2. • CAPÍTULO 1 •
A FELICIDADE DEPENDE DE NÓS?
A Por
Liberdade outras
Origina a Lei palavras:
A felicidade reside na realidade LOL
dos acontecimentos vividos ou no
estado de espírito adotado face a
eles?
3. • Secção 1 •
Introdução
A felicidade parece ser uma coisa que depende do acaso. período de luto, por exemplo, um volte de novo a ser
Seria feliz aquele tivesse sorte. Com efeito, se ser feliz feliz e outro não consiga. Ser feliz é, com efeito, sentir-
significa ver todos os seus desejos satisfeitos, não se feliz, em todas as circunstâncias. A ser verdade esta
deveremos admitir que isso depende mais do acaso do afirmação, então a felicidade encontrar-se-ia mais no
que da nossa vontade? A saúde, o amor parecem, por estado de espírito adotado do que nos acontecimentos
exemplo, ser domínios nos quais a vontade não basta vividos. Desde logo, não dependerá de nós experienciar
para nos afastar dos caprichos da sorte. Não seremos, este sentimento de plenitude, a que se chama
então, impotentes face aos acasos da vida, dos quais felicidade? Mas como aceder a esse sentimento, quando
depende a nossa felicidade? Uma resposta positiva a os acontecimentos lhe criam obstáculos?
esta questão implicaria a aceitação de uma certa forma
de fatalismo. Não seríamos suficientemente livres para Em resumo, não estará a felicidade ligada aos acasos da
corrigir o curso da nossa própria existência. vida, responsáveis pela produção de satisfação e de
insatisfação? Mas não poderemos gerir a nossa vida de
Mas será que a felicidade não pode mesmo ser forma a estarmos completamente satisfeitos com ela?
produzida pela nossa ação, pela nossa capacidade de Mesmo quando os acontecimentos são desfavoráveis,
fazer evoluir as situações a nosso favor? Será que não não será possível sermos felizes?
podemos ser os verdadeiros artesãos da nossa própria
felicidade? Mais, não poderemos ser felizes, mesmo que
não consigamos mudar a nossa sorte? No final de
contas, acontece que em circunstâncias iguais, após um
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4. • Secção 2 •
Felicidade e Acaso
Ser feliz significa, antes de mais, que nada nos falte. felizes de forma duradoura. Como podemos ter a
Ora, um tal estado de satisfação total parece difícil, certeza de que a riqueza não nos trará mais
mesmo impossível, de alcançar. Mal acabamos de preocupações do que satisfação, de que o saber não nos
satisfazer um desejo, logo um novo desejo aparece levará a tomar conhecimento de factos que era
dando-nos a sensação de que há sempre alguma coisa preferível ignorar para nos mantermos numa feliz
que nos faz falta. O desejo não parece ser algo que ilusão? Então não podemos ser os autores de uma
possamos gerir, mas uma força que nos domina. Pior satisfação duradoura e total, porque não sabemos em
ainda, a felicidade supõe uma satisfação duradoura, que coisa se transformará amanhã aquilo que tanto
contínua. O prazer, essa descarga pontual desejamos hoje. Seguindo esta linha de pensamento, a
experimentada quando um desejo é satisfeito, não basta felicidade não depende de nós: para isso, seria preciso
para nos dar a felicidade, uma vez que esta tem de ser que fôssemos omniscientes, como diz Kant.
contínua e duradoura. Nestas condições, parece não
depender de nós aceder a um tal estado. Mesmo que De resto, como poderíamos ter a esperança de alcançar
sejamos capazes de alcançar a satisfação pontual de um a felicidade vivendo em sociedade? A felicidade não
desejo, ou de muitos, como podemos ter a certeza de depende de nós, indivíduos, porque depende de nós,
que isso vai durar? Nos Fundamentos da metafísica comunidade. A nossa felicidade dependerá, então, tanto
dos costumes, Kant define a felicidade como um “ideal da regulação pública que pode conceder-nos essa
da imaginação” impossível de definir, precisamente satisfação do ponto de vista económico (assegurando
porque nos é impossível garantir que aquilo que nos um crescimento que nos garanta a satisfação material),
satisfaz pontualmente esteja em condições de nos fazer do ponto de vista social (protegendo-nos, precisamente,
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5. do aleatório da existência, como a doença, os acidentes,
o desemprego), e do ponto de vista político (mantendo-
nos livres). Em suma, se a declaração de independência
dos Estados Unidos da América reconhece, em 1787, o
direito à busca da felicidade como um direito natural e
inalienável, reconhece também que esse direito deve ser
garantido pelo Estado, que não depende só de nós, mas
do ambiente que a coletividade a que pertencemos nos
oferece.
Não depende, portanto, de nós ser felizes, pois, sendo a
felicidade um estado de satisfação total e duradouro,
não somos nós quem tem o domínio sobre o curso das
coisas, para evitar acontecimentos que possam impedir
a nossa total satisfação. Isto quer dizer que o homem é
impotente face ao curso da sua própria existência. Mas
a liberdade, de que é suposto sermos dotados, não
implicará que sejamos capazes de agir sobre o curso das
coisas?
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6. • Secção 3 •
Interferir no Curso das Coisas para Ser Feliz
Não haverá uma espécie de má fé em pretender que nós. Mesmo que vivamos em situações que não
somos infelizes por azar, ou má sina? A liberdade não escolhemos, continuamos a ser livres de decidir o que
pressupõe, pelo contrário, que sejamos capazes de agir fazer nelas ou delas.
sobre a realidade para a transformar? Dizer que a
felicidade não depende de nós, seria renunciar a essa Talvez seja esta a razão por que nem todos conseguem
liberdade que é, de qualquer modo, essencial para nós. ser felizes. A felicidade dependeria da nossa potência,
A liberdade designa a capacidade de agir de acordo com da nossa força de vir a ser. Enquanto satisfação dos
a nossa vontade, face e contra a realidade material, nossos desejos, a felicidade depende essencialmente da
natural, social, etc. Escondermo-nos atrás dos nossa liberdade. Nem todos conseguem obter o que
acontecimentos para justificar a nossa infelicidade é desejam: a felicidade é, então relativa, não só porque
confessar que fomos vencidos pela realidade. Este não temos todos a mesma definição de felicidade, mas
subterfúgio é uma espécie de má fé, no dizer de Sartre, também porque não somos todos iguais em potência.
que consiste precisamente em nos refugiarmos nas Não possuímos todos o mesmo poder de infletir a
circunstâncias, para nos libertarmos do enorme peso realidade, mas é precisamente por isso que a felicidade
das responsabilidades ligadas à nossa total liberdade. depende de nós.
Ora, até aquele que está na prisão é, segundo Sartre,
Então, a felicidade, como satisfação dos nossos desejos,
capaz de agir sobre o seu destino para melhorar a sua
depende de nós. É relativa ao nosso grau de liberdade e
situação, tentar reconquistar a liberdade, fugir da
de potência. No entanto, numa mesma situação, de
prisão... Se tivermos que levar a nossa liberdade a sério,
doença, por exemplo, é possível que alguém, mesmo
então temos que admitir que a felicidade depende de
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7. sem força, seja feliz, enquanto um outro não o é. Será
que isto quer dizer que a felicidade depende de nós, na
justa medida em que reside mais no nosso estado de
espírito, do que nas circunstâncias vividas que se
impõem a nós?
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8. • Secção 4 •
Felicidade e Maneira de Ser
A felicidade também pode ser encarada como um Ultrapassado o choque e a dor do luto, por exemplo,
sentimento, um estado vivido. Nesta perspetiva, ela podemos lutar pela felicidade, se não nos focarmos no
depende mais do que pensamos a respeito das que não temos ou já não temos, para prestar mais
circunstâncias, do que das próprias circunstâncias da atenção àquilo que ainda temos (as recordações que
vida. Mesmo em circunstâncias desfavoráveis, é-nos conservamos, por exemplo, daquele que faleceu).
possível ser felizes, graças ao modo como abordamos os Assim, viver um luto, mesmo dolorosamente, não anula
acontecimentos. Não é isto mesmo o que fazemos por as possibilidades de uma felicidade futura. Compete-
um amigo que atravessa um período difícil? Não nos amarrar o nosso espírito ao que temos, em lugar de
ficamos silenciosos, pelo contrário tentamos o fazer pensar só no que não temos. É este o sentido da
reconfortá-lo, argumentando de modo a que ele encare máxima estóica, que nos convida a distinguir o que
a possibilidade de uma futura felicidade, para além da depende do que não depende de nós. Alcançamos a
sua tristeza imediata. Se é isto o que fazemos pelos felicidade através da vontade, pois é ela que nos
outros, porque haverá de ser impossível fazer o mesmo permite ver e pensar a realidade sob o ângulo certo para
por nós próprios? Estamos habituados a acreditar que ser feliz
somos impotentes perante a má sorte. Mas não são os
acontecimentos que temos de mudar para sermos A perspetiva de Rousseau vai no mesmo sentido, apesar
felizes, mas é nós próprios que temos de forçar para nos de chegar a uma conclusão contrária, a de nos convidar
obrigarmos a ver o que há de positivo nas razões da a refugiarmo-nos no “país das quimeras”. Para
tristeza que nos domina. Rousseau também, não é tentando transformar a
realidade, face à qual somos muitas vezes impotentes,
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9. que conseguimos alcançar a felicidade, mas
satisfazendo-nos com o que temos: seja o que depende
de nós, seja o refúgio da imaginação, seja a antecipação,
essa felicidade anterior à felicidade do desejo.
A felicidade depende, então, de nós. Certamente, as
circunstâncias exteriores pesam sobre nós e fazem-nos
sentir, pontualmente, tristeza ou alegria, mas a
felicidade, estado de plenitude que se prolonga no
tempo, não se encontra nos acasos das circunstâncias.
Encontra-se naquilo que fazemos delas.
Fraca consolação esta para aquele que é atingido por
uma tragédia e que, em muitos casos, não tem para
onde se virar para compensar o que já não tem. Talvez o
mais certo é que talvez não nos seja possível ser sempre
felizes. Mas se pudermos sê-lo, isso depende de nós e da
nossa capacidade para aceitar os acontecimentos.
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10. • CAPÍTULO 2 •
ESQUECER O PASSADO PARA TER FUTURO
Viver não é ser esmagado
pelo peso do passado.
11. • Secção 1 •
Introdução
Quando o futuro se apresenta sombrio, quando não se Pior ainda, o que seriam um país, uma comunidade que
vê a luz ao fundo túnel, se, mesmo assim, queremos ter esquecessem a sua história, que se recusassem a
futuro, então temos que esquecer. Para que algo de recordar-se dela?
novo aconteça, é absolutamente necessário deixar de
repetir. A novidade exige a ausência de repetição. A questão é tão pertinente do ponto de vista individual
como do ponto de vista coletivo. A identidade
Mas será assim tão fácil passar uma esponja sobre o individual, tal como a identidade coletiva, implica
passado, fazendo com que deixe de ter qualquer sempre uma relação com o passado. Mas com qual
repercussão no presente? Numa das suas famosas peças passado? O que é devemos fazer do passado? A
de teatro, O viajante sem bagagem, Jean Anouilh conta dificuldade deste tipo de questões prende-se com o
a história de um homem reencontrado amnésico no fim facto de todos concordarmos facilmente quer com a
da Primeira Guerra Mundial. Não se lembra sequer do necessidade de esquecer quer com a necessidade de
seu nome, nem tão pouco do que quer que seja da sua recordar. Mas esquecer o quê, recordar o quê?
vida anterior. Vivendo só no presente, este homem não
tem verdadeiramente lugar na sociedade, no seio da
qual ele se sente um estranho. É que recusar todas as
ligações ao passado, negá-lo, é também negar as
relações que tenhamos conseguido manter com os
outros, com a sociedade, com o mundo; e esta é uma
boa razão para fazer de nós pessoas muito estranhas.
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12. • Secção 2 •
A Necessária Rutura com o Passado
A. Romper com o que já não é: a necessidade de trabalho de reconstrução das ligações com o mundo: a
luto ausência de luto é um obstáculo à existência.
Se o passado se define como aquilo que já não é, sendo B. A dimensão mortífera da memória.
o futuro aquilo que ainda não é, se o passado é um não-
ser, não é difícil compreender como é que a ligação a A memória pode paralisar. Aquele que fosse capaz de
essa dimensão do tempo corre o risco de ser um travão se recordar de tudo, rapidamente se transformaria em
da ação. Viver é, com efeito, antes de mais, viver no alguém incapaz pensar, e até de existir. Pensar é
presente, o único tempo que é. Transportarmo-nos distinguir, discernir, separar e este tipo de atividades
permanentemente para o passado só pode impedir-nos implica a de classificar e de hierarquizar. Viver não é ser
de viver. Os sentimentos de nostalgia e de saudade são esmagado pelo peso do passado. Por isso, é-nos
uma boa ilustração desse impedimento de viver. O indispensável uma boa dose de esquecimento.
homem nostálgico é aquele que, tendo saudades do Imaginemos um ser que não esquecesse nada, como
passado, acha que o presente e o futuro nunca estarão à Funes, personagem de um romance de Jorge Luís
sua altura. Esta prisão ao passado pode mesmo tomar Borges. Porque retém absolutamente tudo na memória,
contornos patológicos. O luto é, então, um trabalho é incapaz de comparar ou de classificar: incapaz de
necessário, que todas as pessoas devem ser capazes de esquecer, acaba por morrer de uma congestão
realizar, se a sua intenção for a de viver. Fazer o luto de pulmonar, abafado pelas suas recordações. Devemos,
uma pessoa, ou de um modo de vida pressupõe um então, aprender a esquecer, pois esquecer é não só uma
condição para sobreviver, mas também para ser feliz.
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13. C. O esquecimento, como condição para a Resumo/Balanço
felicidade.
É então necessária uma certa dose de esquecimento
Num estado de felicidade, somos absorvidos pelo para que o futuro seja possível, e isto é verdade, quer do
presente. Ser feliz é lutar contra o imperfeito, ponto de vista individual, quer do ponto de vista
simplesmente porque não é perfeito, e isso por uma coletivo. A história da construção europeia, por
razão óbvia: porque já não é, porque é o passado. Foi exemplo, baseia-se numa vontade de não-repetição,
por esta razão que Nietzche disse que o homem tem num “isso nunca mais” que exige um rompimento com
inveja do rebanho que nunca diz “eu era”, o rebanho o passado. Assim ele se faça. Dar-se um futuro a si
desses animais que vivem unicamente “rebitados à mesmo exige, no mínimo, que não assimilemos o outro
estaca do instante” e que, em nenhum momento, àquilo que ele pode ter sido num dado momento da
dobram a espinha face ao passado. Não se trata tanto de história, não o congelar numa recordação.
imitar o animal, mas antes de cultivar uma faculdade
aparentemente negativa: “a capacidade de esquecer”. É Transição
o esquecimento, não a memória, que desempenha uma
Todavia se é verdade que é indispensável fazer uma
função vital. Como nos diz Nietzche, o apaixonado, ou
ruptura com o passado, nem sempre é garantido que
aquele que tem um grande projeto seleciona muito bem
essa ruptura seja sinónimo de esquecimento, ou que
das suas experiências aquelas que respondem à sua
uma implique o outro. Podemos invejar certos animais,
paixão exclusiva, e esquecem ou desconhecem tudo o
mas o problema é que nós não somos como os outros
resto. Tudo o que os apaixonados pretendem é fazer ser
animais. Nós temos uma história, os outros bichos, pelo
o que ainda não é, fazer chegar um tempo novo.
que parece, não a têm. O que seria um homem sem
história?
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14. • Secção 3 •
A Recuperação do Passado
A. A R u p t u r a c o m o p a s s a d o n ã o é moderno” tal como nos é retratada por Hannah Arendt:
necessariamente esquecimento um homem sem história, sem bagagem, que já não
consegue cultivar uma existência social, precisamente
Se o luto supõe o ressurgimento do acontecimento, porque perdeu toda a sua identidade, ao tentar
então a ruptura com o passado não é exatamente preservá-la na mais absoluta individualidade.
sinónimo de esquecimento. Quando Anna O., uma
célebre doente histérica de Freud, consegue viver de Sem memória, não pode haver identidade, só uma
novo, encarar, dar-se a si mesma um futuro, é, antes de rapsódia de momentos isolados, destituídos de
mais, graças à evocação de um acontecimento qualquer significação, seja do ponto de vista individual,
traumatizante do passado, até então recalcado para fora seja do ponto de vista coletivo.
das recordações conscientes.
B. O dever de memória
Dizer que é preciso esquecer tudo parece ser demasiado
radical. Romper é sobretudo refrear uma repetição, é Como podemos ter a coragem de afirmar a necessidade
dar-se a si mesmo as condições que permitam o acesso de esquecer, quando somos confrontados com as
a uma forma de novidade. Mas esta ruptura, supõe, atrocidades da história? Parece, pelo contrário, impor-
talvez, uma tomada de consciência do passado e não a se sobretudo um dever de memória. Como já vimos, não
sua rejeição. O homem, sem passado, seria um homem se trata de nos limitarmos a apreender do outro só o
desenraizado que correria permanentemente o risco de que pode ter feito num dado momento, e reduzi-lo às
se perder no presente. Esta é a “condição do homem
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15. suas ações do passado. Mas esquecer os mortos é esquecimento não pode incidir sobre todo o passado. E,
condená-los a morrer de novo. por seu turno, o passado não pode ser objeto de
fascínio.
Se é verdade que o dever de memória nos surge como
um imperativo, então também será verdade que ele é Transição
uma condição para a construção de um futuro comum,
um futuro coletivo. Permite, por um lado, garantir a Abordar as questões deste modo, coloca-nos, no
uma comunidade, ou a uma nação, a continuidade da entanto, em face de um problema difícil de superar.
sua história e, por via disso, a construção da sua Poderíamos dizer: “devemos esquecer, mas não tudo.”
identidade; por outro lado, permite-lhe ultrapassar os Mas o que é que deve ser esquecido? E o que é que não
conflitos que possa ter alimentado com outras deve ser esquecido? Podemos todos concordar com o
comunidades, ou nações. princípio, mas nem por isso deixa de ser muito vago
defender “uma certa dose de esquecimento”. Os piores
Este é o sentido do perdão que torna possível a vida em ideólogos também têm este discurso e, por via dele,
comum num mundo futuro. Perdoar não é esquecer. O pretendem escolher aquilo que querem pôr em
perdão pressupõe a lembrança do sofrimento, mas de evidência e aquilo que preferem escamotear. É deste
um sofrimento que se ultrapassa. modo que todos os ditadores reconstroem o passado. O
princípio segundo o qual “devemos esquecer, mas não
Resumo/Balanço tudo”, para além de ser vago, é também muito perigoso.
A relação com o passado é necessária, mas o passado
não pode transformar-se num objeto de adoração. Se é
necessária uma certa dose de esquecimento, isso não
deve conduzir-nos à negação da história. A exigência de
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16. • Secção 4 •
Devemos Peneirar o Passado
A. Os perigos de uma reconstrução do passado. B. Distinguir a memória da história.
Como peneirar? Como separar e classificar as coisas do A memória tem sobretudo uma dimensão afetiva:
passado? Colocar estas questões, só por si, já é um lembramo-nos de acontecimentos marcantes, ou então
problema e um perigo, na medida em que equaciona a recalcamo-los. A memória é seletiva, e a sua seleção
possibilidade de reconstruir ou inventar a História, ou a depende muito frequentemente de circunstâncias e
sua própria história individual. Podem alguns pensar condições individuais. De um ponto de vista coletivo, o
que poderíamos decidir lembrar só o que nos interessa, perigo consiste em operar uma seleção de natureza
ou só o que nos dá jeito. Não é difícil detetar a idêntica, uma seleção que serve interesses próprios, ou
ambiguidade ou mesmo o absurdo de tal coisa. uma ideologia. É neste sentido que o historiador Vidal-
Primeiro, porque, de um ponto de vista individual, Naquet sublinha a diferença, a tensão mesmo, que pode
simplesmente não somos capazes de tomar decisões existir entre a memória e a história. O historiador deve
dessa natureza; depois, porque, de um ponto de vista preocupar-se em dar conta dos acontecimentos
coletivo, corremos sérios riscos de nos precipitarmos. passados, em permitir a sua compreensão, sempre
As atitudes revisionistas e negativistas são visando a objetividade. É esta objetividade que a
precisamente manifestações desse absurdo de memória nunca alcança, justamente porque é sempre
reinventar a História. Na verdade, a precipitação e o acompanhada por uma dimensão afetiva.
absurdo destas atitudes resultam da tentativa de evitar
a concorrência entre memórias. É que há um diferença
importante entre memória e história.
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17. C. A realidade do passado ou aquilo que devemos recordar. Este é o grande e sério
problema da existência. Levantar uma injunção sobre o
De um ponto de vista individual, a própria ideia de que recordar, à qual tenhamos de obedecer, é travestir a
obrigação de esquecer ou de recordar parece dever ser existência. Pretender que o esquecimento ou a evocação
rejeitada. Quando me pergunto que coisas devo dependem de uma decisão voluntária é artificial. Na
esquecer e de que coisas devo lembrar-me, pretendo verdade o que importa é que nos resguardemos dos
operar uma seleção do passado, individual ou coletivo. pensamentos travestidos do passado, dos fantasmas do
Por outras palavras, represento-me o passado, o meu passado, com origem numa representação do passado,
passado, e questiono-me sobre o que deve ser isolado do presente.
conservado em memória. Digo a mim mesmo que para
agir, pois disso depende o meu futuro, tenho de Lutar pelo futuro exige então que não fujamos da nossa
seleccionar, classificar, distinguir e, portanto, tornar-me condição, que não construamos uma falsa realidade.
em espectador do meu próprio passado. É por isso que Lutar pelo futuro é abrirmo-nos à novidade, isto é,
uma semelhante conceção do passado e relação com ele evitar a repetição. Para isso, o passado não deve ser
não nos permitem evitar os escolhos da reconstrução, esquecido, mas ultrapassado. Finalmente, a única
do artifício e também do fantasmático. De facto, que sou exigência não é a de esquecer, mas a de não confundir a
eu senão a totalidade do que vivi, a totalidade da minha realidade com a ficção.
história? Na verdade, só consigo agir com a totalidade
do que sou.
Conclusão.
Nenhum discurso oficial, nem nenhuma autoridade
podem dizer-nos, do exterior, o que devemos esquecer,
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