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arquitetura
arquitetura
S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO 7
CONCEITUAÇÃO 1 7
TRADIÇÃO OCIDENTAL 2 5
TRADIÇÃO LOCAL 3 3
ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA 41
INTERMEZZO — Catas Altas do Mato Dentro 75
INTERMEZZO — Rott am Inn 85
A N T Ô N I O FRANCISCO LISBOA, O ALEIJADINHO 87
RUPTURA E REFORMULAÇÃO 1 0 3
EDIFÍCIO GUSTAVO CAPANEMA 1 0 9
ADDENDUM URBANÍSTICO 115
5
A R Q U I T E T U R A
BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA (Memória Descritiva) 1 I 7
APÊNDICE 143
ORIENTAÇÃO PARA O PROFESSOR 147
GLOSSÁRIO 149
6
A P R E S E N T A Ç Ã O
Na sucessão dos sintomas que prenunciavam o fim
do regime de exceção, o restabelecimento da abertura e
da ordem democrática, é justo assinalar o lançamento da
Biblioteca Educação É Cultura. A iniciativa resultou de
uma parceria do MEC-Fename e da Bloch Editores S.A.,
em 1 9 8 0 . A publicação desses opúsculos, cada um de per
st quase um vadt-mécum, era dirigida aos professores da rede
de ensino médio, como ferramenta de informação a fim
de despertar o interesse dos alunos para uma melhor com-
preensão de suas vocações. Foram escolhidas figuras re-
presentativas para a elaboração das monografias. Eram dez
títulos: I. Realidade brasileira/Gilberto Freyre; 2. Literatura/
Josué Montello; 3. Música/Francisco Mignone; 4* Folclore/
Maria de Lourdes Borges Ribeiro; 5. Cinema/Wilson C u -
nha; 6. Teatro I/Raymundo Magalhães Júnior; 7. Teatro II/
7
A R Q U I T E T U R A
8
Maria Clara Machado; 8. Artes plásticas I/Flávio D'Aquino;
9. Artes plásticas II/Wladimir Alves de Souza e, finalmente,
1 0 . Arquitetura/Lucio Costa.
O aparecimento do volume IO — Arquitetura — inter-
rompia o hiato provocado por razoável silêncio. Por esse
tempo, só tínhamos acesso à palavra de Lúcio Costa atra-
vés de garimpagem em alguns poucos livros, entrevistas e
escritos esparsos, sendo a principal fonte os importantes
estudos publicados nos primeiros números da Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ( S P H A N ) , iniciada
em 1 9 3 7 -
C o m menos de sessenta páginas em sua edição ori-
ginal, este pequeno grande livro é uma declaração de amor,
um objeto de conquista e um manifesto. E perpassado
por uma simplicidade calma e clara. E, sem ter essa in-
tenção, naturalmente autobiográfico. O índice espicaça
nossa curiosidade. Na "Conceituação", o livro nos mos-
tra que a arquitetura é parte fundamental da criação ar-
tística como manifestação normal de vida, constituindo
uma espécie de "álbum de família" da humanidade. E x -
A P R E S E N T A Ç Ã O
plícita o desafio do artista, do técnico e do homem na
adequação do meio físico e social. Conduz-nos a perce-
ber a arquitetura como bem durável, concebido de ma-
neira estrutural e orgânica, na medida do corpo do homem,
sentido em termos de espaço e volume, enfim, como algo
para ser vivido.
Em "Tradição ocidental", o autor apresenta dois ei-
xos de influência cultural: o nórdico-oriental e o meso-
potâmico-mediterrâneo, do qual descende o nosso gesto
do saber fazer. Em "Tradição local", deparamos com a
memória saudosa e sofrida dos primeiros colonos trans-
migrando para a nova terra, onde tudo era adverso — cli-
ma, índio e bicho. As diversas técnicas herdadas das
diferentes regiões de Portugal, todas encontrando sua
expressão própria, adaptam-se aos poucos, ao sabor do
tempo, aprendendo com o índio, a luz e a paisagem: os
fortes, os oratórios e as igrejas, a casa-cofre dos bandei-
rantes com sua planta ortogonal e assentada no chão. A
casa-grande dos engenhos de açúcar; a casa-gaiola das ci-
dades do ouro, de estrutura de madeira, adaptando-se ao
9
A R Q U I T E T U R A
relevo caprichoso das serras mineiras e que, por falta de
espaço, ombreavam-se em trama de densa organização
urbana. E mesmo mais tarde, nas casas das fazendas de
Minas, São Paulo ou R i o de Janeiro, encontramos as ca-
racterísticas de nossa arquitetura, sempre a revelar força,
coerência, robustez e saúde plástica.
Nas "Anotações ao correr da lembrança", bem como
nos "Intermeçgos", a memória construída com o exercício
da contemplação, lucidez e aguda sensibilidade estão sem-
pre presentes, ao lado de humanidade e compaixão. Há
ainda o luminoso e comovente ensaio sobre Antônio Fran-
cisco Lisboa, o nosso Aleijadinho, arquiteto e escultor, o
maior artista brasileiro do tempo da colônia.
Falando da contribuição do escravo, seja ele índio ou
negro, Lúcio Costa nos lembra que a qualidade artística
de seu trabalho não se origina apenas da fé e do ofício
transmitidos pelo mestre português, mas sim da parcela
de liberdade que colocavam no que faziam, e isso ninguém
lhes poderia tirar.
"Ruptura e reformulação" mostra um processo evo-
10
A P R E S E N T A Ç Ã O
lutivo que se rompeu nos dois áltimos séculos, com o
progresso científico e industrial introduzindo novos m o -
dos de fabricar, construir e viver. O artesanato perde sua
força telúrica e o antigo escravo, que fazia papel de má-
quina, ingressa de forma tímida em uma nova ordem so-
cial, habituada às tradicionais injustiças e despreparada
para isso.
"Edifício Gustavo Capanema" é o relato da corajo-
sa aventura de um grupo de jovens arquitetos, sob a li-
derança do autor, a explicitarem sua fé nos postulados
contemporâneos, e a solicitarem e obterem o conselho e
a conivência de Le Corbusier no risco que originaria o
projeto do antigo Ministério da Educação e Saúde, hoje
Palácio Gustavo Capanema, marco na arquitetura bra-
sileira. Segundo Lúcio Costa, a arquitetura jamais pas-
sou, em espaço de t e m p o semelhante, por tamanha
transformação.
"Addendum urbanístico" apresenta a cidade como ex-
pressão palpável da necessidade humana de contato e c o -
municação. A inter-relação cidade/campo e campo/cidade,
11
A R Q U I T E T U R A
o equilíbrio entre quantidade e qualidade da vida indivi-
dual, atendendo sempre o valor do homem como pessoa,
"Brasília, cidade inventada" (Memória Descritiva)
Por ocasião do Concurso Internacional para o Plano
Piloto de Brasília, Lúcio Costa envia, no dia marcado para
o seu encerramento, os documentos gráficos acompanha-
dos da Memória Descritiva e uma carta dirigida à com-
panhia urbanizadora da nova capital e à comissão julgadora
do concurso.
Desculpa-se pela apresentação sumária do partido su-
gerido e justifica-se. Diz que não pretende concorrer, mas
apenas "desvencilhar-se de uma solução possível, que não
foi procurada mas surgida, por assim dizer, pronta". C o m -
parece como simples maquisarã do urbanismo e a idéia, ape-
sar de espontânea, foi depois intensamente pensada e
desenvolvida, continua ele.
A cidade fora concebida não apenas como urbs, preen-
chendo as condições satisfatórias a um simples organis-
12
A P R E S E N T A Ç Ã O
mo capaz de atender as diversas funções vitais, mas como
civitas, possuidora dos atributos inerentes a uma capital.
Para isso, é necessário que o urbanista se ache imbuído
de certa dignidade e nobreza de intenção, porquanto des-
sa atitude decorre a ordenação e o senso de conveniência
e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o
desejável caráter monumental.
D i t o isso, Lúcio Costa mostra como nasceu a s o -
lução: do gesto primário do encontro de dois eixos, a
assinalar a posse de um lugar, ou seja, o próprio sinal-
da-cruz.
Segue-se a seqüência numerada de todo o plano pi-
loto. Lá está ele de corpo inteiro, desde a adequação à si-
tuação topográfica, aos princípios da técnica rodoviária
com suas implicações modernas. Os centros cívicos e ad-
ministrativos. O eixo monumental, a plataforma dos Mi-
nistérios, a Praça dos Três Poderes, a Catedral, a localização
dos palácios e por fim das unidades de vizinhança — as
superquadras. Tudo descrito de maneira absolutamente
fluida e segura. Lúcio Costa propõe a numeração referida
13
A R Q U I T E T U R A
ao eixo monumental, distribuindo a cidade nas vertentes
Norte e Sul. As quadras seriam assinaladas por números,
os blocos residenciais por letras e, por último, o número
do apartamento, da forma usual.
Há ainda detalhes como o caminho facilitado das ins-
talações, nas faixas verdes, ao longo das pistas de rola-
mento. Enfim, a descrição de uma cidade pronta.
Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade-parque. S o -
nho arquissecular do patriarca José Bonifácio, que já pro-
punha a transferência da capital para Goiás nos idos de
1823.
No "Apêndice", o mestre nos adverte que o desen-
volvimento científico não é oposto à natureza. Trans-
mite sua total confiança no intelecto e na consciência
do homem, capazes de encontrar a compatibilidade
desse pretenso abismo. Mesmo no caos aparente em que
cada geração pode mergulhar, por efeito do que talvez
se possa chamar "lei das resultantes convergentes",
novas perspectivas se abrem e tudo parece de novo fá-
cil e claro.
14
A P R E S E N T A Ç Ã O
Na "Orientação para o professor", o autor desenvol-
ve, com zelo, o que lhe parece fundamental para o melhor
desempenho de um magistério vivo. São práticas que vão
desde a identificação da arquitetura, à interação homem/
meio ambiente e equilíbrio ecológico. Propõe o estudo
comparativo dos diversos tipos de comunidade. Aconse-
lha a promoção de debates, análise de plantas, trabalhos
gráficos e maquetes, facilitando a percepção das variações
de forma, dimensão e espaço. Convida ao conhecimento
das cidades históricas brasileiras através de publicações
ou excursões organizadas.
Por fim, Lúcio Costa encerra o livro com um sabo-
roso glossário, em que traduz as palavras estrangeiras e
explica as de uso limitado, porém tão naturais ao seu pen-
samento que, se substituídas, este perderia sua força.
Lúcio Costa, arquiteto, urbanista, humanista, pro-
fessor, escritor e poeta. De onde lhe vem tanta força para
expressar a essência da realidade brasileira? Talvez de sua
condição de peregrino, primeiro na infância e juventude
passadas na Europa. Ainda peregrino no encontro com sua
15
A R Q U I T E T U R A
pátria, onde, de surpresa em surpresa, lembra-se de coi-
sas esquecidas, de coisas jamais sabidas, mas que estavam
lá, em seu coração.
Jorge de Souza Hue
Arquiteto e sociólogo, amigo e
colaborador do mestre Lúcio Costa.
16
C O N C E I T U A Ç Ã O
A história da arte mostra que a arquitetura sempre foi
parte integrante fundamental no processo da criação artísti-
ca como manifestação normal de vida. Ela engloba, portan-
to, a própria história da arquitetura, constituindo-se, então,
por assim dizer, no "álbum de família" da humanidade. É
através dela, através das coisas belas que nos ficaram do pas-
sado, que podemos refazer, de testemunho em testemunho,
os itinerários percorridos nessa apaíxonante caminhada, não
na busca do tempo perdido, mas ao encontro do tempo que
ficou vivo para sempre porque entranhaâo na arte.
O que caracteriza a obra de arte é, precisamente, esta
eterna presença na coisa daquela carga de amoreâe saber que,
um dia, a configurou. Importa, pois, antes de mais nada,
a distinção entre essência e origem, porque nesta diferencia-
ção preliminar reside a chave do entendimento do que seja
verdadeiramente arte.
17
A R Q U I T E T U R A
Se é indubitável que a origem da arte ê interessada, pois
a sua ocorrência depende sempre de fatores que lhe são
alheios — o meio físico e econômico-social, a época, a
técnica utilizada, os recursos disponíveis e o programa
escolhido ou imposto —, não é menos verdadeiro que na
sua essência, naquilo por que se distingue de todas as de-
mais atividades humanas, é manifestação isenta, porquan-
to nos sucessivos processos de escolha a que afinal se reduz
a elaboração da obra, escolha indefinidamente renovada
entre duas cores, duas tonalidades, duas formas, dois
partidos igualmente apropriados ao fim proposto, nessa
escolha última, ela tão-só — arte pela arte — intervém e
opta.
Conquanto manifestação natural de vida e, como tal,
parte integrante e significativa da obra conjunta elabora-
da pelo corpo social a que pertence, esse caráter suigeneris
da criação artística dificulta a sua abordagem pelas siste-
matizações fUocientíficas, e a torna, por ve2es, refratária
aos enquadramentos filopartidários. É que, enquanto a
criação científica é parcela revelada de uma totalidade sem-
1B
C O N C E 1 T U A Ç Ã O
pre maior que se furta às balizas da delimitação inteligí-
vel, não passando portanto o cientista de uma espécie de
intermediário credenciado do homem com os demais fenô-
menos naturais — donde o fundo de humildade, afetada
ou verdadeira, peculiar à sua atitude — a criação artísti-
ca, ou melhor, o conjunto da obra criada por um determi-
nado artista, se constitui num todo auto-suficiente, e ele
— o próprio artista — é legítimo criador desse mundo à
parte epessoal, pois não existia antes, e idêntico não se refará
jamais. Daí a vaidade inata, aparente ou velada, inerente à
personalidade de todo artista autenticamente criador.
Não cabe indagar, com intenções discriminatórias,
"para quem o artista trabalha", porque, a serviço de uma
causa ou de alguém, por ideal ou por interesse, ele traba-
lha sempre apenas, no fundo — quando verdadeiramente
artista — t p a r a si mesmo, pois se alimenta da própria cria-
ção, muito embora anseie pelo estímulo da repercussão e
do aplauso como pelo ar que respira.
A mais tolhida das artes, a arquitetura é, antes de mais
nada, construção; mas construção concebida com o propó-
19
A R Q U I T E T U R A
20
sito primordial de organizar e ordenar o espaço para de-
terminada finalidade e visando a determinada intenção.
E nesse processo fundamental de organizar, ordenar e
expressar-se ela se revela igualmente arte plástica, porquanto
nos inumeráveis problemas com que se defronta o arqui-
teto desde a germinação do projeto até a conclusão efeti-
va da obra, há sempre, para cada caso específico, certa
margem final de opção entre os limites — máximo e mí-
nimo — determinados pelo cálculo, preconizados pela
técnica, condicionados pelo meio, reclamados pela fun-
ção ou impostos pelo programa, cabendo então ao senti-
mento individual do arquiteto — como artista, portanto
— escolher, na escala dos valores contidos entre tais li-
mites extremos, a forma plástica apropriada a cada por-
menor em função da unidade última da obra idealizada.
A intenção plástica que semelhante escolha subentende
é precisamente o que distingue a arquitetura da simples
construção.
Por outro lado a arquitetura depende ainda, neces-
sariamente, da época da sua ocorrência, do meio físico e
C O N C E I T U A Ç À O
social a que pertence, da técnica decorrente dos materiais
empregados e, finalmente, dos objetivos visados e dos
recursos financeiros disponíveis para a realização da obra,
ou seja, do programa proposto. Pode-se então definir a
arquitetura c o m o construção concebida com o propósito de or-
ganizar e ordenarplasticamente o espaço e os volumes decorrentes,
em função de uma determinada época, de um determinado meio, de
uma determinada técnica, de um determinado programa t de uma
determinada intenção.
Assim, portanto, se, por um lado, arquitetura não é
coisa suplementar usada para enriquecer mais ou menos o
edifício, não é tampouco a simples satisfação de imposi-
ções de ordem técnica e funcional. Fruto de intuição
instantânea ou de procura paciente, para que seja ver-
dadeiramente arquitetura é preciso que, além de satisfazer
rigorosamente — e só assim — a tais imperativos, uma
intenção de outra ordem e mais alta acompanhe paripassu
o trabalho de criação em todas as suas fases. N ã o se trata
de sobrepor à precisão de uma obra tecnicamente perfei-
ta a dose julgada conveniente dc gosto artístico. Aquela in-
21
A R Q U I T E T U R A
tenção deve estar sempre presente desde o início, sele-
cionando, nos menores detalhes, entre duas e três solu-
ções possíveis e tecnicamente corretas, aquela que não
desafine — antes, pelo contrário, melhor contribua, com
a sua parcela mínima, para a intensidade expressiva da
obra total.
Enquanto satisfaz apenas às exigências técnicas e
funcionais, não é ainda arquitetura; quando se perde em
intenções meramente decorativas, tudo não passa de ce-
nografia; mas quando — popular ou erudita — aquele
que a ideou pára e hesita ante a simples escolha de um
espaçamento de pilares ou da relação entre a altura e a
largura de um vão, e se detém na obstinada procura de
uma justa medida entre cheios e vazios, na Fixação dos volu-
mes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento
ao jogo dos materiais e a seu valor expressivo, quando tudo
isto se vai pouco a pouco somando em obediência aos mais
severos preceitos técnicos e funcionais, mas, também,
àquela intenção superior que escolhe, coordena e orienta
no sentido da idéia inicial toda essa massa confusa e
22
C O N C E I T U A Ç À O
23
contraditória de pormenores, transmitindo assim ao con-
junto, ritmo, expressão, unidade e clareza — o que con-
fere à obra o seu caráter de permanência — isto sim, é
arquitetura.
Ou, em outros termos, como lembrete:
arquitetura é coisa para ser exposta à intempérie;
arquitetuta é coisa para ser concebida como um todo
orgânico e funcional;
arquitetura é coisa para ser pensada, desde o início,
estruturalmente;
arquitetura é coisa para ser encarada na medida das
idéias e do corpo do homem;
arquitetura é coisa para ser sentida em termos de es-
paço e volume;
arquitetura é coisa para ser vivida.
TRADIÇÃO OCIDENTAL
O mito e o poder sempre estiveram na origem das
grandes realizações de sentido arquitetônico. Eles se con-
substanciam numa útôa-força da qual resulta a intenção que
orienta e determina a expressão arquitetônica. A realização
arquitetônica é assim a expressão palpável desse conteú-
do ideológico no seu mais amplo sentido.
Constata-se, porém, nesta como que materialização
da idéia, a presença de um componente telúrico que
condiciona e propicia, do ponto de vista da concepção
formal, uma preferência "instintiva" por determinados
tipos de configuração. Assim, na bacia do Mediterrâneo,
tanto no sul da Europa quanto no norte da África, bem
como nas áreas do Oriente próximo e da Mesopotâmia,
prevalece, na arquitetura erudita como na popular, o sen-
tido da coesão plástica, da forma geométrica pura, da
contenção; ao passo que no norte da Europa e nos países
25
A R Q U I T E T U R A
26
eslavos e orientais observa-se, pelo contrário, certa pre-
disposição à plástica de sentido dinâmico, ao perfil mís-
tico, elaborado ou convulso, à dispersão, podendo-se,
portanto, considerar dois eixos culturais latentes quanto
à concepção plástica da forma: o eixo m e s o p o t â m i o -
mediterrâneo, próprio da concepção estática, e o eixo nór-
dico-oriental, que abrange as diferentes modalidades da
concepção dinâmica.
Esse condicionamento inicial, juntamente com os de-
mais fatores de natureza cultural, racial e histórica envol-
vidos, faz com que a arte de cada civilização se constitua
num todo íntegro e autônomo que impede a sua avalia-
ção por padrões outros que não os próprios, não com-
portando, portanto, aferição ou juízo de valor na base de
cânones de outra cultura, como, por exemplo, os oriun-
dos da arte greco-latina, dita "clássica", em relação à arte
das civilizações orientais ou das culturas africanas.
É difícil compreender como a civilização-matriz da
nossa cultura ocidental, a civilização grega, pôde manter
— apesar da trama por vezes perversa, feroz e torpe da
T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
27
A R Q U I T E T U R A
sua história c dos seus mitos — tamanha integridade e
serena constância na evolução da sua arte, repetindo du-
rante mais de quatrocentos anos os mesmos temas, ape-
nas cada vez com maior apuro. Assim, quando passou a
construir os seus templos, de preferência de mármore, se
ateve ao esquema das suas primitivas estruturas de ma-
deira, ou seja, ao mais singelo dos partidos arquitetônicos
possíveis: planta retangular, telhado de duas águas com
frontões nos topos, colunas e arquitrave, ou viga-mestra.
Tudo sempre na base da contenção e da verga reta.
Por dispor do melhor calcário para peças de porte, o
grego ignorou acintosamente o arco — e esta constatação
é fundamental.
O helenismo rompeu essa contenção secular e pre-
parou terreno para o predomínio do poder, que passou a
"usar" o mito, quando anteriormente o poder derivava do
mito, cabendo então, em termos construtivos, às estru-
turas concebidas na base de arcos e abóbadas, traduzir a
obsessão romana pelos grandes espaços e pelo monumen-
tal. Como, porém, a inspiração cultural — o modelo —
28
T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
ainda provinha da Grécia, passaram os arquitetos locais,
como Vitrúvio, a usar os elementos construtivos gregos,
ou sejam, as suas ordens arquitetônicas — dórica, jônica,
coríntía — que eram a expressão viva de intenções bem
definidas, tais como as de força, de graça, de riqueza, às
quais os próprios romanos acrescentaram as ordens
"toscana", de sentido utilitário, e "compósita", para sa-
tisfazer o seu gosto pela opulência — já não apenas com
a sua função estrutural específica de suporte, mas como
elementos complementares de composição arquitetônica
entrosados num sistema construtivo de outra natureza.
Revestiram assim a nudez sadia dos seus monumentos
com uma crosta erudita de colunas e platibandas de már-
more e travertino — vestígios de um processo de edificar
oposto. E foram precisamente os gregos em Bizâncio —
Santa S o f i a — que aproveitaram, tirando-lhe todo o par-
tido da extraordinária beleza — a nova técnica.
O desmantelo do Império levou os sacrossantos
dogmas acadêmicos de roldão e foram então surgindo, aos
poucos, as estruturas de grossas paredes com contrafor-
29
A R Q U I T E T U R A
tes para resistir ao empuxo dos arcos e abóbadas, numa
arquitetura severa e contrita, com denso conteúdo espi-
ritual, chamada "românica", que se foi definindo e apu-
rando nos grandes redutos monásticos onde o fio da
meada cultural greco-latina se preservou. E isto, até que
novas e sábias experiências construtivas conduziram a um
arcabouço estrutural externo, independente das paredes
de sustentação, e capaz de absorver os esforços laterais
resultantes do alteamento das naves, estilo dito ogival ou
"gótico", o que tornou possível a impressionante seqüên-
cia das catedrais.
C o m a expedição turístico-militar de Carlos VIII à
Itália, seguida pelas de Luís XII e Francisco I, a Europa
— já então saturada dos malabarismos góticos — des-
cobriu a clareza racional, as graças do espírito novo e o
humanismo erudito da Renascença, ocorrendo assim um
renovado entusiasmo que, com a expansibilidade de um gás
e o patrocínio pedante dos cortesãos, penetrou todos os
recantos do mundo ocidental, inebriando as cortes e a
sociedade culta.
30
T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L
Conquanto o Renascimento tenha adquirido pecu-
liaridades diferenciadas nos vários países europeus, o em-
prego continuado do receituário acadêmico foi, com o
correr do tempo, cansando e provocando contestações,
pois, com efeito, desde que os vários elementos de que se
compõe cada uma das ordens gregas — as colunas, o
entablamento, os frontões — perderam as suas caracte-
rísticas funcionais primitivas, isto é, deixaram de consti-
tuir a própria estrutura do edifício, nenhuma razão mais
justificava o apego intransigente às fórmulas convencio-
nais e vazias de sentido então em vigor. Se o frontão não
era mais tão-somente uma empena, a coluna um apoio, a
arquitrave uma viga, mas simples formas plásticas de que
os arquitetos se serviam para dar expressão e caráter às
construções — por que não encarar de frente a questão e
tratar cada um desses elementos como formas plásticas
autônomas, criando-se com elas relações espaciais dife-
rentes e garantindo-se assim novo alento de vida ao velho
formulário greco-romano "à bout de forces"?
E aí então — época da Contra-Re forma e de muita
31
A R Q U I T E T U R A
construção — que surge o chamado "barroco", que não
foi uma arte bastarda, como se pretendeu, mas uma nova
concepção espacial e plástica, liberta dos preconceitos an-
teriores e que, apesar de aparente irracionalidade, baseou-
se numa formulação perfeitamente racional.
É neste ciclo que a nossa arte colonial se insere.
32
T R A D I Ç Ã O L O C A L
"Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpre-
sa, a gente como que se encontra, fica contente, feli^ e se lem-
bra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube,
mas que estavam lá dentro de nós."
092-9)
A arquitetura regional autêntica tem as suas raízes
na terra; é produto espontâneo das necessidades e conve-
niências da economia e do meio físico e social e se desen-
volve, com tecnologia a um tempo incipiente e apurada, à
feição da índole e do engenho de cada povo; ao passo que
aqui a arquitetura veio já pronta e, embora beneficiada
pela experiência anterior africana e oriental do coloniza-
dor, teve de ser adaptada como roupa feita, ou de meia-
confecção, ao corpo da nova terra.
À vista desta constatação fundamental, importa pois
conhecer, antes de mais nada, a arquitetura regional por-
33
A R Q U I T E T U R A
tuguesa no próprio berço, porque é na construção popu-
lar de aspecto viril e meio rude, mas acolhedor, das suas
aldeias que as qualidades da raça se mostram melhor, per-
cebendo-se, desde logo, no acerto das proporções e na
ausência de artifícios, uma saúde plástica perfeita, se é
que se pode dizer assim.
Constata-se, de saída, nessa volta às origens, acentuada
diferença entre a arquitetura do norte e a do sul. Da Beira
Baixa, ou cintura do país, para cima prevalece o contraste da
pedra com a caiação, como no Entre Douro e Minho, senão
mesmo o emprego exclusivo do granito em grandes blocos
toscos ou aparelhados como ocorre na Beira Alta e em Trás-
os-Montes; o ponto, ou seja, a inclinação dos telhados de
tacaniça — quatro águas —, é geralmente amortecido graças
ao recurso do chamado "contrafeito", que é pequeno caibro
complementar destinado precisamente a adoçar o ponto e a
dar maior graça ao telhado na aproximação dos beirais.
Na Estremadura, Lisboa e Ericeira, por exemplo, essa
graciosa concavidade das coberturas, tipicamente portugue-
sa — possivelmente por simbiose oriental, pois não existe
em nenhum outro país mediterrâneo —, se acentua, já então
34
T R A D I Ç Ã O L O C A L
35
A R Q U I T E T U R A
associada ao predomínio da caiação; mas no Alentejo, onde
as construções são de taipa ou tijolo e domina inconteste
uma impecável brancura, os telhados são de uma só água,
desempenados e retos, e avultam as grandes chaminés retan-
gulares, com arranque oblíquo na prumada das fachadas so-
bre a rua por onde se acede à intimidade dos pequenos pátios
murados; finalmente no Algarve — extremo sul — surgem
os terraços ou soteias, e as chaminés circulares com os seus
caprichosos coroamentos amouriscados.
Era de onde eles vinham, para a grande aventura in-
consciente de começar a fazer um novo país.
Cada mestre, oficial ou aprendiz—pedreiro, taipeiro,
carpinteiro, alvanéu — trazia consigo a lembrança da sua
província e a experiência do seu ofício, daí a simultânea
adoção, logo de início, das diferenciadas feições arqui-
tetônicas próprias de cada modo de construir: a taipa de
pilão, a taipa de sebe, ou de mão — pau-a-pique —, o
adobe, a alvenaria de tijolo, a pedra e cal.
Sem embargo dessa variada aplicação de processos
construtivos nos dois primeiros séculos, com o tempo e
as circunstâncias locais a preferência por uma determina-
36
T R A D I Ç Ã O L O C A I
da técnica se foi definindo; a taipa de pilão, encontrando
terreno propício, fixou-se principalmente em São Paulo;
a alvenaria de tijolo floresceu mais em Pernambuco e na
Bahia; nas terras acidentadas de Minas, onde os caminhos
acompanhavam as cumeadas, com as casas despencando
pelas encostas, o pau-a-pique sobre baldrames de pedra
foi a solução natural; já no R i o de Janeiro, a fartura de
granito marcou a perspectiva urbana com a seqüência
ritmada das ombreiras e vergas de pedra — suporte e
arquitrave —, princípio construtivo da Grécia antiga,
Se o negro, mais dócil e servil na sua condição de escra-
vo, pôde colaborar com o colono, inclusive no aprendizado
dos ofícios, já o índio, habituado a um estilo de vida diferen-
te, que lhe permitia vagares na confecção limpa e cuidada de
armas, utensílios e enfeites, estranhou, com certeza, a gros-
seira maneira de fazer dos brancos apressados e impacientes,
A identificação com o indígena restringiu-se ao "pro-
grama" dos abrigos iniciais à guisa de casas — grandes es-
paços cobertos nas feteorias ou ranchos, como nos "montes"
do Alentejo — onde acolher as levas de colonos trazidos
pelas frotas. Por seu tamanho, esses telhadões pouco afasta-
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A R Q U I T E T U R A
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dos do chão, como nos próprios engenhos, rompiam com
a tradição metropolitana — que consistia em decompor a
cobertura das edificações de maior porte em telhados me-
nores —, aproximando assim tais estruturas, por sua pu-
reza formal e proporções, das ocas monumentais dos
nativos, tanto mais que eram implantadas em clareiras, como
o terreiro das malocas, uma vez que o inimigo — bicho ou
índio — vinha da mata. É que houve uma curiosa coinci-
dência gerada pela presença do foco de calor, o fogo — o
foyer. O transmontano e o indígena procediam de modo se-
melhante para manter a casa toda aquecida com o aprovei-
tamento do próprio fogo da cozinha e da defumadura,
deixando simplesmente a fumaça escapar pela telha-vã ou
por engenhoso dispositivo na cumeeira das ocas. Daí a
paradoxal contradição observada em Portugal da ausência
de chaminés nas áreas frias do norte e a presença ostensiva
delas no sul, onde o calor concentra-se apenas na lareira
para que não se espraie pelo resto da casa.
De fato, ao entrar no país certa vez por Bragança di-
visei do alto da serra ao crepúsculo, no fundo do vale, os
telhados do casario a fumegar, associando então a tal cos-
T R A D I Ç Ã O L O C A L
tu me a ausência de puxados ou cozinhas nos exemplares
mais puros das casas seiscentistas preservadas em São
Paulo, cuja planta retangular e simétrica dispõe de um
salão central de chão de terra batida e telha-vã e de duas
varandas embutidas no corpo da casa c o m o as loggias
paladianas; a dos fundos, caseira e de serviço, a da frente,
social e de receber, tendo num extremo a capela e no ou-
tro uma camarinha, sem acesso ao corpo da casa, para
pouso eventual de viajantes. No alto salão ficava a com-
prida mesa de pranchões com seus bancos; é aí, nesse gran-
RANCHO OE FEITOR IA
MONTfc ALeNTEJAftO
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A R Q U I T E T U R A
40
de bali medieval, com fogo sempre aceso no inverno, que
armavam as trempes e assavam a rês ou a caça do dia.
É interessante assinalar que esse esquema foi o em-
brião da casa rural brasileira. E não só a rural como tam-
bém a de arrabalde, até fins do século X I X — apenas
acrescida do puxado de serviço; sala de jantar aos fundos
dando para a varanda doméstica e o quintal, e sala da frente
com varanda ou terraço de receber; as duas articuladas por
extenso corredor, com quartos de uma banda e de outra,
o que garantia, no verão, boa tiragem. Assim, pois, de certo
modo, tudo se entrosa — a oca indígena, a casa trans-
montana, a casa chamada do bandeirante, a casa de fazen-
da, a casa de arrabalde, a casa urbana de bairro.
Há certa tendência a considerar "imitações" de obras
reinóis as obras e peças realizadas na colônia. Na verdade,
porém, são obras tão legítimas quanto as de lá, porquanto
0 colono, par âroit de eonquête,1
estava em casa, e o que fazia de
semelhante ou já diferenciado era o que lhe apetecia fazer
— assim como ao falar português não estava a imitar nin-
guém, senão a falar, com sotaque ou não, a própria língua.
1
Por direito de conquista.
A N O T A Ç Õ E S A O C O R R E R D A L E M B R A N Ç A
I — Tanto a taipa de pilão—barro socado entre taipais
de madeira — quanto a de sebe, ou pau-a-pique — trama
de madeira barreada a m ã o — e x i g e m proteção contra a cor-
tina de água despejada dos telhados, daí a necessidade dos
grandes beirais que não visavam primordialmente defender
do sol, mas da chuva, tanto assim que nos países onde o sol
também é muito mas a chuva escassa, eles, quando existem,
se reduzem muitas vezes ao simples saque da telha. E como
a parede espessa de barro requer duplojrecfca/ — barrote que
recebe o madeiramento do telhado — um em cada face, re-
sultou não somente que os caibros apoiados neles para su-
porte do beirai, chamados "cachorros", ficaram de nível, como
também que o maior comprimento do "contrafeito" trans-
feriu a quebra do telhado, e seu conseqüente galbo, mais para
cima, de modo que, mesmo a distância, pode-se identificar a
estrutura da casa como de taipa de pilão.
41
A R Q U I T E T U R A
Já no pau-a-pique o cachorro tem ligeira inclinação
porque é apenas travado, internamente, por um pau roli-
ço interposto entre ele e o caibro, aos quais vem se ajus-
tar a cornija sanqueada que delimita o encontro do forro
do cômodo com a parede. O arcabouço é todo de madeira
e independe dessas paredes que são mero enchimento
como ocorre hoje com o concreto armado, e a casa se apoia
nos próprios esteios, ou pilotis.
Este processo construtivo foi intensivamente empre-
gado em grande parte do estado do Rio e em Minas, tanto
com esmerado apuro em casas de fazenda e urbanas —
Diamantina, por exemplo, é toda de pau-a-pique —, como
na sua forma mais rudimentar, na casa do pobre. Ainda agora
é só andar pelo interior que elas logo surgem ao longo das
estradas. Feitas com pau do mato próximo e da terra do
chão, mal barreadas, como casas de bicho, dão abrigo a toda
a família — crianças de colo, garotos, meninas, os velhos,
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A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A
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tudo de mistura e com aquele ar doente e parado, esperan-
do... E ninguém liga de tão habituado que está, pois aquilo
faz parte da terra como formigueiro, fígueira-brava e pé de
milho — é o chão que continua.
2 — As construções integralmente de alvenaria de ti-
.jolo, ensejando arcos, como a casa-grande de Megajipe, em
Pernambuco — criminosamente destruída —, e abóbadas,
como na parte quinhentista da chamada Casa da Torre de
Garcia d'Ávila, em Tatuapé, na Bahia, seriam, ao que parece,
menos freqüentes. O mais comum era fazer-se apenas a fa-
chada de alvenaria maciça; no corpo da casa a carga concen-
trava-se em robustos pilares, com as paredes montadas sobre
o próprio barroteamento. As telhas do beirai assentavam
sobre cornijas "ameaçadas" com tijolo e revestidas com
perftlatura de massa corrida, ou sobre fiadas da mesma telha
altemadamente acavaladas à mourísca—beira, sobeira e bica.
Quanto ao adobe, ou tijolo cozido ao sol, conquanto
mais usado em Mato Grosso e Goiás, também foi comum
em outras áreas como o comprova o grande sobrado dos
Ta na jura, na Bahia, com capela interna, janelas rasgadas, ou
A R Q U I T E T U R A
seja, com guarda-corpo de madeira entalado no vão, e
pranchões, ou padieiras, à guisa de verga chanfrada para cima
e que se diz "capialçada", como na taipa de pilão.
A parte monumental, seiscentista, das ruínas da referi-
da Casa da Torre, próxima da praia, pouco acima de Salva-
dor, mostra com clareza a técnica construtiva da alvenaria de
pedra e cal e cantaria. Além da seqüência de arcos no rés-do-
chão e dos enquadramentos dos vãos com os respectivos
assentos laterais, ou conversadeiras, lá estão, nos dois anda-
res do corpo central destelhado, os renques de consolos —
ou cães de pedra—engastados nas paredes ao nível de cada
piso, prontos para receber as madres que sustentavam os
barrotes onde se apoiaria o tabuado do pavimento. Tudo
preparado para os pedreiros e canteiros cederem a vez aos
mestres-carp inteiros e seus oficiais, cada qual cuidando exem-
plar e limpamente, no devido tempo, da sua tarefa.
3 — E expressivo o contraste, que ainda perdura, assi-
nalado nas preciosas pranchas da Viagem Filosófica de Alexan-
dre Rodrigues Ferreira, entre o leve casario de duas águas
com empenas vazadas e vedação arejada de folhas trançadas
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de palmeira — vedação que respira —, sobre palafitas à
margem dos rios, e o pesado casario de cunhais em bossagem,
cornijas, faixas, cordões de estuque e elegantes sacadas de
ferro com desenhos à francesa, da escola acadêmica de Landi,
o bolonhês. Portadas e calçadas de pedra de lioz, trazidas como
lastro, são comuns em todo o litoral, mas não tanto quanto
em Belém do Pará por estar mais ao alcance da metrópole. A
identificação desse belo calcário marmóreo como pedra de lioz_
resultou da expressão "pierre de liais" usada pelos escultores
franceses que, como Chanterenne, tanto fizeram pelo apuro
da arte quinhentista portuguesa, para designar o calcário duro
e compacto, porém macio ao corte a que estavam afeitos no
seu país, e como na época o fonema "ais" ainda se escrevia
"oys", a leitura das especificações pelos portugueses consa-
grou a pedra como lioz.
4 — Conquanto o casario de São Luís seja mais co-
nhecido pela azulejaria oítocentista que lhe reveste as facha-
das, o fundo menosprezado das casas, revelado ao antigo
S P H A N 2
pela documentação fotográfica trazida por um
2
S P H A N — Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — hoje. IPHAN.
A R Q U I T E T U R A
estudante francês das Beaux Arts, chamado Kiss, que foi até
lá de caminhão pedindo carona — embora já em grande par-
te desmantelado —, tem para o arquiteto de hoje grande valor,
é uma lição. Contrastando com o denso paramento das fa-
chadas sobre a rua, regularmente cortadas pela seqüência de
vãos, e rematadas por elegantes beirais, elas se abrem, rasga-
das de fora a fora, apoiadas em pilares no quintal, ou em
balanço, formando um avarandado — trama contínua de
venezianas, treliças ou caixilharia — protegido por enormes
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Outra particularidade exclusiva do Maranhão é a
superposição da concavidade de duas telhas a fim de au-
mentar o balanço da chamada bica do beirai, engenhoso
artifício que em Portugal também só ocorre numa região
— a de Setúbal.
5 — Foi o engenheiro francês Vauthier, desencavado
por Gilberto Freyre que, descrevendo os estreitos e altos
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beirais e sobreposto à estrutura maciça da casa. E para aí que
convergem, na forma usual, a sala de jantar, o serviço e a par-
te comunitária mais íntima da vida caseira.
A R Q U I T E T U R A
sobrados do Recife — de íngremes telhados retos, cujo
encaibramento era simplesmente apoiado em possantes
terças entaladas entre os oitões —, revelou o curioso cos-
tume de localizar a sala de jantar no último piso da casa,
juntamente com o serviço que também ocupava o sótão,
onde moravam as mucamas, ficando os escravos e casais
nos baixos da edificação ou na senzala, nos fundos do
quintal, juntamente com a cocheira. Havia passagem de
serviço acessível pela entrada, conquanto fosse vedado
com porta vazada o acesso aos andares pela escada dis-
posta com o devido recuo e atravessada em relação ao lote
para dar lugar à loja e às salas de cima, de frente para a
rua. Não havendo comércio, formava-se o saguão com pa-
tamar de convite para o lanço de altos degraus resguarda-
dos por treliça ou recortes de madeira, senão de todo
escondidos; nesse saguão ficava eventualmente a cadeiri-
nha, tudo na forma usual, como em Minas, no R i o e alhu-
res. Assim, o escritório, as salas de receber e outros
aposentos ocupavam o primeiro andar, e os demais quar-
tos e alcovas o piso intermediário. Construções geralmente
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feitas com alvenaria de tijolo. O maior apego por esse ma-
terial fabricado em vários tamanhos e sempre da melhor
qualidade, embora o seu emprego fosse comum em Portu-
gal, mormente no sul, deveu-se, sem dúvida, ao prolonga-
do convívio com o "flamengo", como então se dizia.
Outra característica desses sobrados de Recife e Olinda
são os robustos consolos de pedra para apoio do piso de
tábuas das sacadas com painéis de almofadas e treliça onde
assentavam as caixas dos muxarabies, ou muxarabis, e, vez por
outra, os pontaletes de sustentação de uma coberta alpen-
drada, havendo então encaixes, rente à parede e também de
pedra, dispostos lateralmente na altura das vergas, para
receber o devido frechal. Ao contrário do que ocorre em
Pernambuco, na Paraíba o piso da sacada é sempre de pe-
dra com perfllatura nos bordos, o que confere ao conjunto
aparência diferente, mais pesada.
Essas caixas sacadas ou rasas, isto é, simplesmente
sobrepostas ao enquadramento dos vãos, de tradição
muçulmana, que permitem resguardo sem prejuízo da
ventilação, foram usadas em toda a colônia, sobretudo nas
A R Q U I T E T U R A
ruelas estreitas onde os cômodos se devassavam. F o t o -
grafias de 1 8 6 0 mostram que eram comuns em São Pau-
lo, juntamente com os grandes beirais de nível e forrados.
C o m a vinda da corte, esse costume que conferia à
cidade certo ar oriental chocou os fidalgos e elas foram
obrigatoriamente arrancadas e substituídas por venezia-
nas e vidraças de guilhotina ou de abrir "à francesa", sur-
gindo então, no R i o , principalmente, as graciosas sacadas
de ferro dispondo nos cantos de barras verticais espiraladast
para pendurar luminárias. Assim, essas reixas de madeira
foram sumindo, e dos simpáticos muxarabis avulsos de
encaixar nas sacadas sobrou apenas um, em todo o país
— o de Diamantina.
6 — A cidade de Salvador do século X V I I e primei-
ra metade de setecentos, quando ainda sede do Governo
Geral, era uma cidade marcadamente aristocrática, de uma
aristocracia a um tempo rural e urbana, de senhores e
escravos; e a arquitetura de suas grandes casas, de porte
severo e nobre, onde avultam belas portadas e lenços de
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pedra, quer dizer, peitoris inteiriços de cantaria, não teve
paralelo no país, salvo a imponente casa chamada "dos
Contos", em Ouro Preto, com o seu senhorial saguão ti-
picamente português.
Este caráter próprio e inconfundível, embora ainda
acentuadamente lusitano, foi aos poucos se diluindo,
minado por uma crescente burguesia menos comprome-
tida com os antigos dogmas e valores, e pela miscigena-
ção. Assim, passo a passo, aquela solidez, aquela carrure
foi se perdendo e a graça e o dengue crioulo se foram in-
sinuando na feição arquitetônica das casas, não somente
em Salvador, como em Cachoeira, principalmente: os vãos
se alteiam e os seus enquadramentos enfeitados são de-
cepados no encontro das tábuas extravasadas dos peito-
ris, com simples palmetas de remate, característica esta
exclusivamente baiana que plasticamente os enfraquece;
os cordões das caixilharias se entrecruzam em capricho-
sos e alegres arranjos e a cor intervém.
Tudo isto contribui para dar à cidade a sua graça, e
conquanto a presença sóbria e aristocrática da casa, de
A R Q U I T E T U R A
começo de setecentos, que sobreviveu com as suas saca-
das de ferro batido, sua rica portada e seteiras, possa pa-
recer, à primeira vista, meio contrafeita, é precisamente
esse variado e consentido convívio — esta simultaneida-
de — que atrai e seduz e faz da Bahia o que ela é.
7 — Na região do Rio de Janeiro floresceu — o ter-
mo é bem este — uma arquitetura rural alpendrada com
colunas toscanas à moda do Minho, mas tudo caiado de
branco à maneira da Estremadura, de que a casa de fazen-
da do Colubandê com a sua importante capela anexa, cuja
imagem de Sant'Anna consta do Santuário Mariano, é,
sem favor, o mais gracioso e puro exemplar. Debret dedi-
ca a prancha 42 do seu precioso documentário a esse es-
tilo de casa típico da região, confrontando a sua planta
com o esquema da casa romana — operistilo, o impluviutn. o
tricltntOy ou sala de jantar, aos fundos, como ficou na nos-
sa tradição. Existe algo semelhante em outras áreas do
país, mas não com o mesmo apuro e constância, e geral-
mente são casas com o avarandado todo à volta, como no
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Ceará, por exemplo, e de construção mais simples: fustes
cilíndricos praticamente sem base nem capitei, e encai-
bramento apertado, de pau rolíço, justo o necessário para
receber de cada vez uma fiada apenas de telha-vã.
No caminho da serra, as antigas e belas fazendas
da Samambaia, do Padre Correia e de Santo A n t ô n i o
já têm os suportes das varandas de madeira, de seção
quadrada, c o m o bisel nas arestas limitado à parte cor-
respondente ao fuste, ainda conforme a velha tradição
medieval; e em Minas, então, prevalece definitiva, tan-
to nas pequenas c o m o nas grandes fazendas, uma apu-
rada técnica de pau-a-pique, c o m a particularidade de,
mantidas as tacaniças nos topos do telhado, descer com
as águas maiores a fim de cobrir o lanço das varandas
à frente e aos fundos, onde estão as escadas de acesso.
Mesmo perto de Brasília ainda existe a robusta cons-
trução da casa com engenho que foi de Joaquim Alves de
Oliveira — hoje conhecida como Babilônia —, louvada
por Saint-Hilaire pela sua exemplar organização, e, até
mesmo para os lados da Chapada dos Guimarães, em Mato
A R Q U I T E T U R A
Grosso, a rústica fazenda do Abrilongo também com en-
genho incorporado à casa.
Curioso é que embora a importante fazenda de Pau-
d'Alho, no vale do Paraíba, ainda ostente a sua varanda
recuperada por Luiz Saia, em toda a área paulisto-flumi-
nense no chamado ciclo do café, os ca saro es rurais passa-
ram a ignorar a tradição das varandas, preferindo os
renques contínuos de janelas, apenas interrompidos pelo
pequeno terraço central de acesso e pela escada de pedra,
com guarda-corpo de ferro se abrindo em leque.
Conquanto nas grandes fazendas a implantação das casas
com os seus engenhos, terreiros, oficinas e senzalas variasse
m u i t o — e sobraram exemplares de alto significado arquite-
tônico como, além da referida Pau-d'Alho e da opulenta fa-
zenda do Resgate, a do Rio de São João, a do Manso e a de
Boa Esperança, em Minas, a do Poço Comprido, em Per-
nambuco, os dois chamados sítios de Santo Antônio e do
Padre Inácio em São Paulo, e tantas m a i s — , o seu arcabouço
estrutural, mormente nos casos de construções de pau-a-
pique ou de pilares autônomos de alvenaria, obedecia ao es-
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quema de crescimento retangular em torno de um niicleo
central, servindo os esteios intermediários de apoio ao am-
plo telhado, independentemente do emprego da clássica te-
soura então ainda desconhecida dos colonos, uma vez que o
seu uso processou-se lentamente depois de estreada na igre-
ja jesuíta de São Roque, em Lisboa.
Outra característica marcante da arquitetura rural é
a constante presença da capela, seja incorporada à casa,
com vão de treliça para peça contígua, a fim de a família
poder assistir à missa na intimidade, enquanto os "ou-
tros", inclusive os escravos, dispunham da varanda, como
nave, ou então desgarrada, algumas de grande porte, ou-
tras com riquíssima talha, como a do Engenho Bonito,
em Pernambuco, a casa se foi, a capela ficou.
8 — O revestimento de azulejos nas fachadas das casas,
característica do século X I X , ocorreu em toda a faixa lito-
rânea — em Minas não há exemplo — de Belém e de São
Luís, onde foi mais freqüente, a Porto Alegre, onde foi mais
elaborado, com azulejos especiais para pilastras e capiteis.
A R Q U I T E T U R A
No R i o de Janeiro foram comuníssimos juntamente com
vasos e estatuetas no coroamento das platibandas e telhões
esmaltados, de fundo azul ou branco, nos beirais. Conquan-
to procedentes na sua maioria da fábrica de Santo Antô-
nio, no Porto, lá são raríssimos, isto porque a cidade já estava
pronta — vinha tudo para cá.
É, aliás, interessante assinalar o importante papel dessa
cerâmica no processo de assimilação do neoclássico no país.
Imposto pela missão francesa, embora prenunciado por ar-
quitetos reinóis — um deles, consultado à vista do risco da
"obra já feita até a empena", sobre o modo como rematá-la
— risco bisonho mas gracioso da igreja do Carmo de São
João dei Rei, conservado no Museu de Ouro Preto —, foi
taxativo: só demolindo tudo para refazer de acordo com as
regras. E que o despojamento e a contida sobriedade do novo
estilo haviam violentado, de certo modo, os laivos remanes-
centes do gosto rococó do período anterior. Assim, o brilho
e a cor do revestimento azulejado dos panos nus de parede,
das platibandas e frontões das eruditas e severas fachadas
neoclássicas contribuíram para amenizar-lhes o impacto do
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confronto com os telhões de louça dos beirais renascidos e
para integrá-los tanto na paisagem urbana quanto na dos
arrabaldes, onde passaram a conviver muito bem com as man-
gueiras, a jaqueira e o pé de fruta-pão.
9 — Sacadas sobre bacias de pedra nas construções
de alvenaria, ou sobre barrotes em balanço nas de pau-a-
pique, bem como balcões corridos, foram comuns, pri-
meiramente protegidos por forte guarda-corpo de ferro
forjado, com a característica portuguesa de dispor uma
barra horizontal a um terço da altura da sacada, levando-
se apenas as peças verticais extremas e uma ou duas in-
termediárias até a barra de peito. Essa disposição peculiar
se repete nas sacadas com balaústres de madeira torneada,
solução corrente em Ouro Preto, por exemplo. Sacadas,
como a de Sabará, com elegantes balaústres de perfil si-
métrico de gosto ainda renascentista, de uso tão genera-
lizado no norte de Portugal, são raras aqui. Em São
Cristóvão, antiga capital de Sergipe, rica em obras de arte,
há dois exemplos valiosos, um de sacadas isoladas com
A R Q U I T E T U R A
robusta e bem desenhada perfilatura, outro com balcão
corrido, de madeira entalhada e risco apuradíssimo. As
reixas graúdas de madeira e os caprichosos recortes, en-
talados nos vãos, são também comuns. Durante o Impé-
rio multiplicaram-se as sacadas de barras finas de ferro
de elaborado e repetido desenho, até que as grades de
ferro fundido, iniciadas pelos artífices da Missão Le-
breton, com moldes clássicos, passaram a prevalecer mas
já então com densos modelos de estilo indefinido.
10 — Nas casas mais antigas, presumivelmente nas
dos fins do século X V I e durante todo o século seguinte,
predominavam os cheios na relação dos vãos com as pare-
des; à medida, porém, que a vida se tornava mais fácil e
policiada, o número de janelas ia aumentando; já no século
XVIII, cheios e vazios se equilibram, e no começo do sécu-
lo X I X , predominam francamente os vãos; de 1 8 5 0 em
diante as ombreiras quase se tocam, até que a fachada, no
final do século, se apresenta praticamente toda aberta, ten-
do os vãos muitas vezes ombreira comum. Contudo,
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caixilharia inteira, de fora a fora e de alto a baixo, como
ocorre na bela frontaria tão atual da Misericórdia de Parati,
é coisa rara. Cronologicamente, a proporção dos vãos ten-
de a se altear, as vergas mantêm-se retas até meados de se-
tecentos, quando passam a ser arqueadas e acrescidas de
cornija. No começo do século X I X , já por influência do
neoclassicismo, voltam a ser retas com enquadramento li-
geiramente mais leve, e surgem os vãos de volta redonda,
ou seja, de meio círculo. É então que as bandeiras ou a parte
superior dos caixilhos passam a se enfeitar com elegantes e
caprichosos desenhos, o que confere à arquitetura do Se-
gundo Reinado um encanto muito especial.
No Mapa Arquitetural do Rio de Janeiro dessa época, ela-
borado por João da Rocha Fragoso, o centro da cidade de
repente ressurge, figurado de corpo inteiro com as suas
fachadas perfiladas ombro a ombro, casa por casa, rua por
rua, a nos revelar a unidade arquitetônica e urbanística que
para sempre se perdeu. Datado de 1&74, sete anos antes
do seu autor perder a razão — em 1 8 8 l foi "julgado so-
frer de alienação mental incurável" —, esse precioso docu-
A R Q U I T E T U R A
mentário iconográfico mostra com imorredoura precisão
como era então a cidade, dando assim sobrevivência e uma
razão maior, imprevista, à sua própria vida.
II — O aqueduto dos arcos dominava a paisagem
urbana, levando lentamente no seu dorso as águas do rio
Carioca até alcançar o gracioso chafariz barroco fielmen-
te "retratado", p o r T h o m a s Ender, esse admirável e bene-
mérito documentador do R i o de Janeiro e das demais
regiões por onde andou.
Foi muito desigual o tratamento dado aos chafarizes,
ou bicas, nas cidades coloniais. Se em São Luís, no Ma-
ranhão, o seu adro rebaixado serve agora para demonstra-
ções de Bumba-meu-Boi, e em Goiás Velho o imponente
chafariz da praça triangular em aclive ainda funciona; se no
Rio eles foram vários, alguns arquitetonicamente valiosos,
como o do antigo Largo do Paço, onde à moda portuguesa
o granito se associou ao calcário de lioz, tal como também
ocorreu no portão do Passeio Público e na igreja da Santa
Cruz dos Militares, obras onde mestre Vilentim deixou a
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sua marca, em cidades importantes como Salvador, Recife,
Olinda etc. foram de certo modo menosprezados, ao con-
trário do que sucedeu em Minas Gerais, onde avultam,
principalmente na antiga Vila Rica, e por sua variedade e
beleza contribuem, juntamente com as pontes, para tornar
a cidade mais humana e acolhedora. Desde o da Casa dos
Contos, que impressiona por sua desenvoltura plástica e
robustez, ao pitoresco chafariz do Largo de Marília que,
num pseudo-restauro simplista, chegou a sofrer a sumária
amputação do seu delicado coroamento, apenas porque era
de massa e não de pedra. Mutilação depois competente-
mente "reimplantada" pelo antigo Sphan, na base de docu-
mentação fotográfica, graças a outro austríaco de nascença,
como Ender, o escultor Max Grossman, homem discreto,
calado e bom: proibido pelo médico de nadar por ter sofri-
do enfarte, salvou uma moça que, sozinha, se afogava na
praia de Copacabana e, em seguida, morreu.
12 — A i n d a que os grandes senhores de engenho dis-
pusessem, desde o primeiro século, de ricas alfaias vindas
A R Q U I T E T U R A
da metrópole e do Oriente, conforme constatou Cardim,
na maioria das casas o mobiliário era de início sóbrio: além
de pequeno oratório com o santo de confiança, camas, ca-
deiras, bancos, mesas e arcas; arcas e baús ou caixões, como
então se dizia, para ter onde meter a tralha toda, E isto não
só porque as modas da corte chegavam aqui com muito
atraso e se infiltravam pela vastidão do território da colô-
nia ainda com maior lentidão, mas também porque não havia
nenhum interesse particular que estimulasse e justificasse
a adoção apressada de formas novas em substituição de ou-
tras já consagradas, quando a maneira de viver e todo o
quadro social continuavam não somente inalterados, mas
sem perspectivas próximas de alteração. E tanto mais que
o clima, geralmente quente, o uso das redes e o costume
nativo e oriental de sentar sobre esteira — ou tapete — no
chão não estimulavam o aconchego dos interiores, nem os
arranjos supérfluos ou de aparato.
Contudo, as peças em si eram trabalhadas com gosto e
o devido apuro, não só porque a tradição do ofício era fazê-
las assim, como porque os oficiais e seus ajudantes eram,
62
a n o t a ç õ e s a o c o r r e r d a l e m b r a n ç a
6 3
muitas vezes, gente da casa, escravos, cujos dotes naturais,
em boa hora revelados, a conveniência do senhor havia sabi-
do aproveitar. Trabalhando sem pressa nem possibilidade de
lucro, o prazer defazer bem-feito era tudo que importava: isto ao
menos era deles — o dono não podia tirar.
Com o correr do tempo os modismos importados,
correspondentes às mudanças de gosto e de estilo peculia-
res a cada reinado — D. Pedro II, D. João V D. José, Dona
Maria —, foram adquirindo feição própria local, diferen-
ciada, o que permite aos entendidos identificá-las como
procedentes de Goiás, de Minas, da Bahia, do Norte ou
do Sul. A esse propósito é preciso acabar com o tolo cos-
tume de chamar de "holandesas" mesas tipicamente luso-
mineiras, devidas ao afluxo de sangue novo da metrópole
— de Guimarães e de outros termos — atraído pela gran-
de procura de carpinteiros e marceneiros nas terras de
Minas, no chamado Ciclo do Ouro.
13 — As casas de câmara e cadeia, da mínima de Pilar
de Goiás, à mais opulenta da antiga Vila Rica e à mais
a r q u i t e t u r a
64
bela e genuinamente portuguesa, de Mariana, obedeciam
ao odioso costume lusitano de assentar sem rodeios o
poder sobre a cadeia — embaixo, no térreo, com vãos
fortemente gradeados e paredes, pisos e forros reforça-
dos, os presos; em cima, no andar, os senhores conselhei-
ros. Mas como toda medalha tem seu reverso, o sistema
oferecia certas vantagens como a contínua ciência das
autoridades pelo que ocorresse, e a acessibilidade aos pre-
sos, através das grades, da família ou de quem passasse:
um bilhete, um doce, um olhar — uma flor.
14 — Foram numerosas as fortificações ao longo do
litoral, mas nenhuma do porte espetacular de Macapá, na
foz do Amazonas, ou impressionante como, no interior, o
Forte Príncipe da Beira, na Rondônia, à margem do Gua-
poré, ou, ainda, da pureza formal do São Marcelo, na baía
de Todos os Santos. Sólidas e bem projetadas estruturas,
baseadas em especificações minuciosas e, no caso do belo
Forte dos Reis Magos, manuscritas e muito bem redigidas
pelo erudito arquiteto Frias de Mesquita, o mesmo que
ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA
6 5
projetou o Mosteiro de São Bento, no Rio, nunca serviram
para nada, tal qual os dispendiosos armamentos de hoje,
destinados a sucata. A sua finalidade foi meramente sim-
bólica, como selos da presença real de sua majestade.
15 — Tanto na construção das fortificações e dos
edifícios públicos, como, principalmente, na das igrejas de
irmandades, os projetos, ou riscos como então se dizia, eram
sempre acompanhados de minuciosas e precisas especi-
ficações. Essa expressão risco não deve ser interpretada como
simples "desenho", mas como desenho visando ao feitio
ou à elaboração de alguma coisa, correspondendo assim à
expressão inglesa design.
Aprovado o projeto, era feita concorrência para es-
colha do mestre do ofício em causa — pedreiro, carpin-
teiro, entalhador — por empreitada ou a jornal e os
trabalhos eram conduzidos com exemplar cuidado e acom-
panhados de constantes louvações para dirimir dúvidas e
conferir medições, sendo os louvados profissionais já con-
sagrados, inclusive "professores", como consta em alguns
ARQUITETURA
documentos. Tudo levado muito a sério e até mesmo com
exagerado rigor, a ponto de — segundo certos testamen-
tos — muito mestre, depois de uma vida penosa de cons-
tante trabalho, morrer na miséria e endividado.
16 — Depois das improvisadas capelas "de pouca
dura", foram construídas, ainda nos anos de quinhentos
e seiscentos, numerosas capelas alpendradas, como era c o -
mum em Portugal. Frei Palácios foi sepultado no "alpen-
dre da capela", no convento que se iniciava no alto da
Penha, no Espírito Santo. Compunham-se de adro, alpen-
dre com porta e duas pequenas janelas gradeadas, de pei-
toríl baixo para que os fiéis, mesmo de fora, pudessem
divisar o altar separado da nave por um arco e, muitas
vezes, coroado por pequena cúpula definidora do espaço
sagrado, cujo extradorso era coberto de telhas, e, final-
mente, da sacristia num corpo lateral mais baixo com água
própria, sendo o acesso à sineira e ao coro por escada ex-
terna, eventualmente coberta. A própria Penha do R i o
começou com uma capela desse tipo.
6 6
ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA
6 7
A Sé de Olinda, como a do Castelo, ainda foi cons-
truída com arcos sobre colunas de ordem toscana forman-
do naves, nos moldes usuais da metrópole, antes que os
jesuítas inovassem a nave única com visão desobstruída
para o pregador e para o altar, inovação desde logo trazida
pelo irmão arquiteto Francisco Dias quando, em 1 5 8 0 ,
projetou e construiu a nossa primeira igreja com pedigree,
a da Graça, em Olinda, martirizada pelo holandês.
Assim, as nossas igrejas, no começo, foram simples
e claras, com o óculo inicial do frontispício da Graça trans-
ferido para a empena de frontão reto, duas janelas no coro
e uma porta só.
C o m o correr do tempo esse esquema singelo foí
sendo alterado: surgiram os corredores laterais com tri-
bunas no andar e a nave escureceu; a talha alastrou; mul-
tiplicaram-se as portas e janelas na fachada e a primitiva
unidade se perdeu. Só dois séculos depois, em Minas, ele
foi retomado, no princípio de setecentos, até desabrochar
— claro e misticamente alegre de novo — na obra-prima
que é a igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.
ARQUITETURA
ISSO S.JCVH 1 7 6 6
17 — No Nordeste, como constatou Ayrton Carva-
lho, as igrejas de pedra e cal, tanto antes como depois da
ocupação, tiveram seu espaço interno compartimentado numa
trama arquitetônica de cantaria — pilastras, arcos, cornijas,
enquadramento de vãos — que contrastava com o branco
das paredes caiadas e delimitava as reentrâncias de maior ou
menor profundidade destinadas a receber os altares laterais
e seus retábulos, os primeiros ainda de pedra, como era co-
mum na fase renascentista — ou, melhor, "maneirista"—
em seguida os de madeira dourada. Com o tempo, essa talha
extravasou dos limites que lhe eram impostos e passou a
recobrir os próprios elementos arquitetônicos moldurados
que a enclausuravam, constituindo-se assim, essa forração
de alto a baixo, num monumental cofre de madeira esculpi-
68
ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA
6 9
da, encaixado no corpo original de alvenaria de pedra, fican-
do desse modo encobertos os pormenores já prontos e aca-
bados da comodulação de cantaria.
O forro era como que a tampa desse cofre revestido
de ouro, inicialmente formando painéis enquadrados para
receber pintura, depois com tabuado liso contínuo para per-
mitir a livre expansão dos arabescos florais, e, finalmente,
a perspectiva arquitetônica, como se o teto todo se abrisse
numa explosão de balaustradas, colunas e arcos entremea-
dos de guirlandas floridas, de anjos, de nuvens para a glo-
rifícação dos santos e de Nossa Senhora em pleno céu.
Assim, a ambientarão mística estruturalmente o b -
tida nas catedrais góticas com os altos feixes de pilares
que se abriam em ogivas nas abóbadas, e com o rendi-
lhado das rosáceas e dos tênues mainéis onde resplen-
diam os vitrais, passara com a ordem nova dos jesuítas,
depois da Contra-Reforma, e graças ao artifícioso en-
genho de artistas c o m o o padre Pozzo e Tiepolo, a ser
alcançada através do contato direto com a visualização
idealizada da própria atmosfera celeste.
ARQUITETURA
M l i T l t l i n O GÓTICO MISTICUMO tlAMMXà.
Tal como na Idade Média, quando os escultores trata-
vam com igual apuro tanto as ilhargas e os tímpanos das
monumentais portadas, como as figuras perdidas nos mais
altos pináculos, ao alcance visual apenas dos anjos, também
no interior das igrejas barrocas, lado a lado com o despo-
jamento pessoal dos religiosos, prevalecia o propósito de que-
rer sempre aplicar o que fosse melhor, mais rico, mais belo,
sem poupar esforços e sacrifícios, num esbanjamento ma-
7 0
ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA
terial, paradoxalmente legítimo, porque em honra e louvação
de uma simples idéia, de uma profunda convicção do espírito.
18 — Enquanto na colônia anglo-saxã do norte, o
puritanismo associado ao pragmatismo e à industriosa
busca da felicidade terrena conduziram à prosperidade
coletiva e à riqueza pessoal, nas colônias latinas, afora a
obsedante busca do ouro, da prata e das pedras preciosas,
toda a atividade dos vários ofícios e energia criativa foi
principalmente concentrada no fabrico de igrejas e con-
ventos — igrejas matrizes, igrejas de irmandades e de ir-
mãos terceiros, mormente em Minas onde o acesso direto
das ordens religiosas ao ouro fora vedado pelo rei.
Avultam, de fato, nas cidades coloniais, o perfil das igre-
jas e a massa edificada dos mosteiros e conventos. Assim,
por exemplo, em Salvador, o colégio e a solene igreja dos je-
suítas, com a sua imponente sacristia que, como a da rica e
bela igreja do Carmo de Cachoeira, não tem nada que se lhes
compare; a opulenta igreja do monumental convento fran-
ciscano, com o seu belíssimo claustro azulejado, o que tam-
bém caracteriza, embora em menores proporções, mas com a
71
ARQUITETURA
mesma graça, os numerosos conventos da ordem no Nor-
deste, cujas igrejas apresentam em comum a particularidade
de ter as fachadas escalonadas, com o coro montado sobre a
parte central de um pórtico de cinco arcos, e uma só torre,
recuada, bem como a de dispor de adro e cruzeiro, além das
preciosas capelas anexas; os mosteiros beneditinos, o do Rio,
valioso relicário de arte sacra, o de Olinda, com a sua
apuradíssima talha portuguesa; as matrizes mineiras, pobres
por fora, ricas por dentro, como as do Pilar em Ouro Preto,
a da Conceição de Sabará — com a jóia de Nossa Senhora
do Ó, mais além —, a de Tiradentes dispondo de órgão e de
fabuloso retábulo devido a mestre Sampayo; ou mesmo em
lugares perdidos como Brumai, um esplêndido exemplar
intacto da primeira metade de setecentos, ou, em Santa Rita
Durão, a linda igreja de Nossa Senhora do Rosário.
A talha dos retábulos evolui, passando do maneirismo
ainda renascentista da primeira fase, e do protobarroco
de colunas torsas e arquivoltas concêntricas, à explosão
do barroco propriamente dito, até alcançar a graça final
do chamado "rococó" que antecede a volta à linha reta e à
concisão do neoclassicismo.
7 2
7 3
ARQUITETURA
74
São tantas, porém, as preciosidades arquitetônicas es-
palhadas pelo país que é impossível enumerá-las nestas sim-
ples anotações, e se desse aparente desperdício resultou —
de par com o acervo monumental — a pobreza, há contudo
algo de positivo a ressaltar, do ponto de vista comunitário e
social, em tão chocante constatação. E que, durante a Colô-
nia e o I m p é r i o — c o m o ainda agora—toda essa opulência,
toda essa riqueza física e espiritual contida nas igrejas anti-
gas, esteve sempre — e ainda está — à disposição de qual-
quer um, ao alcance do povo. Seja qual for o seu estado de
espírito, qualquer que seja a sua condição, você pode usu-
fruí-la, ela é sua — é só entrar e ficar lá.
INTERMEZZO
C a t a s Altas d o M a t o D e n t r o
Em 1 9 2 7 passei cerca de um mês no Caraça.
No último dia do ano, com o jumento resvalando
nas pedras soltas da serra, desci até Catas Altas do M a t o
Dentro, para visitar a rica matriz.
Estava deserta. Apenas uma velhinha sentada num dos
bancos.
Em meio ao esplendor da talha, dos dourados, das
imagens, das pinturas, ela se sentia visivelmente em casa.
Estava ali à vontade, como se tudo aquilo tivesse sido con-
cebido para o seu uso e gozo exclusivo, como se tudo lhe
pertencesse.
Morava num casebre, mas dispunha da imensa nave
e dos gigantescos retábulos para sua conversa diária —
em clima de graça, louvor e glória — com Nossa Senhora
e o Senhor.
7 5
ARQUITETURA
INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
77
19 — Cabe, finalmente, uma referência especial à gran-
de obra realizada pelos padres nos chamados Sete Povos
das Missões, obra que, pertencendo embora à Província
Jesuítica do Paraguai, ficou definitivamente encravada no
país, constituindo assim um setor autônomo no conjunto
dos monumentos coloniais brasileiros.
Cada povo — isto é, cada burgo — era constituído
pela igreja que compunha com a residência dos padres, o
asilo, a enfermaria, as aulas, as oficinas, as cocheiras e t c ,
e também com o cemitério, um grande conjunto arquite-
tônico, servido por vários pátios, tudo murado, muro que
se continuava para os fundos das construções abarcando
a enorme área ocupada pelo pomar e pela horta, ou seja, a
quinta dos padres.
Em frente à igreja, havia um grande terreiro ou pra-
ça, em volta do qual eram dispostos numerosos blocos
de habitação coletiva, compostos de muitas células de
cinco metros por sete, aproximadamente, verdadeiros
apartamentos com porta e janela e construídos com pare-
des de pedra ou de barro, morando em cada um deles uma
ARQUITETURA
família de índios. Um passeio alpendrado circundava es-
ses blocos de habitação que correspondiam a verdadeiras
quadras. Os primeiros blocos construídos eram os que
formavam a praça; depois, à medida que o povo crescia,
novos blocos eram edificados paralelamente aos primei-
ros, surgindo dessa forma, entre eles, numerosas ruas,
todas em esquadro, à moda espanhola.
Estes povos, com as respectivas estâncias para criação
de gado, ficavam a uma distância razoável uns dos outros,
formando a seqüência deles um todo orgânico e perfeita-
mente articulado. Os jesuítas revelaram-se, nestas Missões,
urbanistas notáveis, e a obra deles, tanto pelo espírito de
organização como pela força e pelo fôlego, faz lembrar a
dos romanos nos confins do Império. Apesar do atual des-
mantelo, ainda se adivinha nos menores fragmentos uma
seiva, um vigor, um "impulso", digamos assim, que os tor-
na — estejam onde estiverem — inconfundíveis. A nossa
interferência no caso foi apenas demolidora: conseguimos
desmontar, peça por peça, a obra singular criada pelo gênio
colonizador e sob a tutela dos padres.
78
INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
Só mesmo quando se percorreu, um a um, esses po-
vos, repetindo a peregrinação feita em fins do século pas-
sado por Hemetério Veloso, cujo depoimento é, hoje, dos
mais valiosos, pois que ainda havia ali, então, muita coisa
para ver; quando se estuda a história dramática da instala-
ção das primeiras "reduções" e das lutas que antecederam
ao definitivo abandono e, ainda, documentação antiga re-
ferente à arquitetura missioneira, é que se pode ajuizar e
reconstituir mentalmente o que foram esses povos na épo-
ca do seu florescimento, quando, na bruma da manhã, cada
dia, todos aqueles índios saíam das casas, atravessando o
terreiro em direção da igreja: Santo Ângelo, São Luiz
Gonzaga, São Borja — cidades que, não fossem a praça e
uns poucos vestígios isolados, já teriam esquecido com-
pletamente o aspecto primitivo; São João Baptista, São
Miguel Arcanjo, São Lourenço e São Nicolau — ruínas
perdidas naquele ermo da campanha rio-grandense, com
uma ou outra casa próxima, construída com material anti-
go, ou certo número delas formando novo povoado.
Com exceção das ruínas monumentais de São Miguel,
79
ARQUITETURA
8 0
recuperadas pelo antigo S P H A N , pouca coisa ficou; pe-
ças que, sobrevivendo à catástrofe, por assim dizer, "de-
ram à praia": capiteis, cartelas partidas vermelho-ferrugem,
ainda com o I H S , os três cravos e a cruz, imagens muti-
ladas e já sem cor — peças cuja vista nos deixa uma im-
pressão penosa e certo mal-estar, c o m o se realmente
estivéssemos diante dos destroços de algum naufrágio.
C o m o remate destas anotações avulsas referentes à
nossa tradição, cujo objetivo foi apenas facilitar o enten-
dimento e despertar a curiosidade, cabem algumas consta-
tações de alcance mais abrangente:
I — É, na verdade, impressionante que um programa
tão simples como o da igreja — nave, altar e sacristia —
tenha comportado, através dos tempos, tamanha variedade
de soluções — desde as primeiras, ainda inspiradas nas an-
tigas basílicas, seguidas das inovadoras cúpulas bizantinas,
das severas naves românicas, dos luminosos transeptos góti-
cos, da volta à clareza geométrica renascentista e do desaba-
fo barroco —, até chegar à comovente capela de Ronchamp,
na França, e à bela estrutura da catedral de Brasília.
INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
8 1
2 — São Pedro de Roma é um exemplo de como a
arquitetura pode ajustar-se tão integralmente à idéia que
lhe cabe expressar, que, já agora, se torna impossível
dissociar o conceito de papado, c o m o principal veículo
e símbolo universal da fé cristã, da imagem arquitetônica
que sucessivos artistas lhe conferiram: a dbside e a cúpu-
la de Miguel Ângelo, a nave acrescida por Maderna, o
adro e a praça fronteira delimitada pela monumental
colunata de Bernini, que ainda contribuiu com o resplen-
dor do retábulo e o imenso e fabuloso baliaquino de bron-
ze, na justa medida e no lugar certo. Cabendo igualmente
constatar a incrível coragem e visão desses homens —
papas e artistas — capazes de enfrentar com paixão ta-
manho empreendimento. Basta considerar o caso da fa-
mosa cúpula que, c o m o sua antecessora, a obra-prima
do Brunellesco, em Florença, é imensa tanto vista de
longe como de perto, todos se perguntando c o m o foi
possível fazer tudo aquilo naquela altura com os meios
restritos da época; como também o caso dessa belíssima
praça nascida do gesto inspirado de um simples risco
ARQUITETURA
— assim c o m o procede o nosso Oscar* —, sem consi-
derar secjuer a perspectiva do louco e lento trabalho de
anos e anos a fio: trazer os matacões da pedreira para o
canteiro da obra; lavrar, suspender e ajustar c o m preci-
são cada tambor, ou seja, cada bloco do fuste, à feição
do galbo das 3 2 8 enormes colunas, rematadas pelo
entablamento — arquitrave, friso, cornija — com a sua
alta balaustrada, marcando-se, ainda, o prumo de cada
uma das colunas voltadas para a praça, com o gesto e l o -
qüente de uma gigantesca estátua.
E tudo isto por determinação do detentor da heran-
ça de Pedro, e com tanto maior propriedade porquanto,
na sua ovalada configuração, como que simboliza a pró-
pria rede lançada para arrebanhar os fiéis, tal como ainda
agora, quase quatro séculos depois, tranqüilamente em
casa, temos assistido nas cerimônias divulgadas para o
mundo todo graças ao milagre — este sim — da ciência
e da tecnologia.
'O autor se refere ao arquiteto Oscar Niemeyer.
8 2
INTERMBZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO
3 — A obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleija-
dinho, foi, no parecer de Germain Bazin, antigo conser-
vador-chefe do Museu do Louvre—parecer que subscrevo
integralmente —, a última manifestação válida de arqui-
tetura e escultura cristãs, no âmbito mundial da história
da arte, antes do longo hiato que precedeu à legítima
reformulação arquitetônica contemporânea.
8 3
INTERMEZZO
Rott-am-lnn
Pouco depois do fim da guerra, em 1 9 4 8 , fui ao sul
da Alemanha para conhecer as igrejas barrocas da região
contida entre o Danúbio e os Alpes, tais como o imenso
e belíssimo interior de Ottobeuren e a insuperável graça
rococó de Wies, sozinha no descampado.
Mas o que principalmente me interessava era ver o
retábulo de Rott-am-lnn, porque pelo exame fotográfico
era o único que, de fato, apresentava alguma afinidade
quanto ao partido geral, inclusive a figuração no fecho da
composição, com os retábulos mineiros.
Depois de muito rodar fui bruscamente impedido de
prosseguir — a "autobahn atingida pelos bombardeios,
terminava bruscamente a pique. Foi necessário retroceder
a fim de pegar um atalho, estrada vicinal que não acabava
8 5
ARQUITETURA
6 6
mais, até que, já escurecendo, avistei ao longe o perfil bar-
roco da igreja também solta na paisagem como Wies.
Ao me aproximar, pressenti o malogro: estava fecha-
da. Apesar da frustração, caminhei em direção à porta e,
para meu espanto, ela se abriu. Percebi então ao fundo,
na penumbra, o retábulo. Contendo a emoção entrei na
nave vazia. De repente as luzes se acendem, e quando, com
o pensamento no Aleijadinho, encaro de perto o retábulo,
ouço os primeiros acordes de um cantochão.
Era sábado e o organista ensaiava para a missa da
manhã.
A N T Ô N I O F R A N C I S C O L I S B O A ,
O A L E I J A D I N H O
Antônio Francisco Lisboa nasceu em Ouro Preto,
antiga Vila Rica, a 29 de agosto de 17 3 8, filho de Manoel
Francisco Lisboa, carpinteiro-arquiteto, empreiteiro e
mestre das obras reais, e de Isabel, sua escrava.4
Segundo
descrição de Joana, nora do artista, registrada por seu
biógrafo, Rodrigo José Ferreira Bretas, "Antônio Francis-
co era pardo-escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada e o
gênio agastado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal
configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumo-
sa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, a
testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os
beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto. Até
cerca dos 40 anos teve boa saúde, tanto que cuidava sem-
pre em ter mesa farta e era visto muitas vezes tomando
*Afirmaç,3o nâo confirmada.
8 7
ARQUITETURA
parte nas danças vulgares". Vila Rica a esse tempo ainda
não apresentava o perfil que conhecemos e tanto lhe deve.
A Casa da Câmara, atual Museu da Inconfidência, as igre-
jas de Nossa Senhora do Carmo, de São Francisco de
Assis, de Nossa Senhora do Rosário e de São Francisco
de Paula ainda não existiam; mas a casa dos Governado-
res, com seus baluartes e rampa de acesso como se vê na
fiel reconstituição de Wasth Rodrigues, projetada por
Alpoim e construída precisamente pelo pai de Antônio
Francisco, já comandava a perspectiva urbana. Nascida da
busca do ouro e vencido o período inicial da implanta-
ção, estava então na sua fase de prosperidade e consolida-
ção, afluindo diretamente da metrópole mestres dos vários
ofícios para atender à intensa procura de mão-de-obra
qualificada. As matrizes de Nossa Senhora do Pilar e dc
Nossa Senhora da Conceição, de Antônio Dias, bem como
a importante Capela de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, no Alto da Cruz, estavam sendo concluídas, e a
riquíssima talha dourada dos interiores contrastava de-
liberadamente com a taipa caiada e o pau-a-pique das fa-
8 8
A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
chadas de frontão reto e torres sineiras ainda cobertas de
telha. Contudo, nesse meado de século, estava-se às vés-
peras de novo surto artístico, verdadeiro renascimento,
decorrente ainda do impulso econômico anterior, mas
motivado, desta vez, pela emulação entre as irmandades
empenhadas na construção das respectivas capelas, já de
pedra e cal e mais claras, elegantes e "modernas" como se
dizia também então, movimento iniciado em 1 7 5 2 em
Mariana com a nova capela do Rosário, cuja talha seria
executada em 1 7 7 0 por Francisco Vieira Servas, contem-
porâneo de Antônio Francisco Lisboa. É que, enquanto
na primeira metade do século ainda prevalecia a velha e
boa tradição medieval dos arquitetos se formarem atra-
vés dos ofícios da construção, vai finalmente ocorrer em
Vila Rica, nesta segunda fase, o que sucedera na Renas-
cença, ou seja, a interferência estimulante de arquitetos
oriundos do meio dos artistas plásticos. Surto propiciado
ainda pela sedimentação da cultura e conseqüente tendên-
cia à especulação intelectual e, finalmente, pelo despertar
da consciência cívica; pois apesar da clausura imposta à
8 9
ARQUITETURA
colônia, as idéias nascidas do enciclopedismo, do enligbten~
mtnt e o eco das revoluções libertárias vararam o espaço
através dos mares e montes e vales e, encontrando condi-
ções adequadas, aninharam-se ali. Poetas e eruditos, prela-
dos e bacharéis, músicos, arquitetos, pintores, escultores,
professores de artes mecânicas e mestres de ofícios — t o -
dos conviviam, e esse desenvolvimento intensivo, no deli-
mitado espaço urbano, levou naturalmente àquele anseio
de independência que o Tiradentes, afinal, catalisou.
Foi nesse ambiente saturado de vitalidade que Antô-
nio Francisco se formou. E não lhe faltaram mestres qua-
lificados. O risco arquitetônico e as técnicas da carpintaria
e da marcenaria aprendeu desde cedo com o próprio pai e o
tio, Antônio Francisco Pombal. Como mestres de escultu-
ra e talha, além de ter visto, ainda menino, Francisco Xavier
de Brito trabalhar no Pilar e no Alto da Cruz, teria feito o
aprendizado tanto com Jerônimo Félix ou Felipe Vieira,
como, principalmente, com José Coelho de Noronha, a
quem assistiria em Morro Grande e Caeté; finalmente, nos
segredos do desenho "irregular, do melhor gosto francês",
9 0
A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
91
quer dizer, no estilo Luís X V — c o n f o r m e refere em 1 7 9 0
o vereador de Mariana, Joaquim José da Silva, no precioso
documento transcrito por Bretas —, com o artista grava-
dor, exilado da metrópole, João Gomes Baptista.
Assim aparelhado para o exercício da sua vocação,
pode-se identificar a marca inicial da sua presença no ris-
co de chafariz feito quando tinha apenas 13 anos para o
pátio da casa do governador, e onde já estão definidos dois
traços característicos do seu estilo pessoal: a graça (no
perfil), e a veemência (na carranca); e no daquele outro
construído ao pé da escadaria de Santa Efigênia, no Alto
da Cruz. E que o risco desse chafariz apresentado em 1 7 5 7
por seu pai é, tudo indica, de autoria, tal como o anterior,
ARQUITETURA
do próprio Antônio Francisco, já então com 19 anos. Isto
porque na sua composição ocorre também um pormenor
revelador da intenção plástica que lhe vai marcar a obra
futura, e que é o modo peculiar como os coruchéus foram
implantados: em vez de assentarem diretamente sobre as
pi lastras, na forma usual, foram criados lateralmente, num
plano recuado, dois consolos para recebê-los, ficando eles,
portanto, fora da prumada das pilastras. Resulta desse
artifício um duplo movimento — a composição se abre
para os lados e projeta-se à frente ao mesmo tempo, ad-
quirindo assim sentido dinâmico, apesar da sua estrutu-
ração estática fundamental. Outra circunstância corrobora
a autoria do risco desse chafariz. E que não obstante a
sua execução, por oficiais canteiros, ser um tanto gros-
seira, acha-se coroado por um imprevisto busto de mu-
lher em pedra-sabão datado de I76I. O inusitado da
figuração, o galbo do plinto e o talhe dos algarismos são
outros tantos indícios veementes de afirmação precoce da
personalidade singular de Antônio Francisco Lisboa. E
sabendo-se que seu pai, Manoel Francisco, vivia então
9 2
A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
assoberbado de compromissos, nada mais natural senão
confiar ao filho, que se estava iniciando na profissão, a
desincumbência da pequena tarefa.
Trabalho talvez atribuível a esse primeiro período é o
oratório de jacarandá, na sacristia do Pilar, cujo fundo é
tratado em caneluras, solução só encontrada, depois, no la-
vatório de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Época
em que atuou na igreja que prometia, mas arquitetonica-
mente enjeítada de Morro Grande, onde possivelmente
interferiu no partido de implantação das torres, e elaborou
o risco do arco da capela ainda com pés-direitos e tímpa-
nos à moda antiga, como os fazia seu pai, mas com umas
tantas inovações, além de esculpit os anjos da tarja e a ima-
gem do frontispício; e, ainda, em Caeté, onde deu o risco
para os dois últimos retábulos da empreitada geral de
Coelho de Noronha, executando o do lado da epístola, in-
clusive as imagens. São numerosas as imagens avulsas cuja
autoria se lhe pode atestar, sendo das mais belas uma pe-
quena Sant'Ana, onde com refinado apuro plástico se con-
trapõem a serena desprevenção e a tensão premonitória.
93
ARQUITETURA
9 4
Em 1766 a sua reputação já se Firmara, tanto as-
sim que, havendo a Irmandade Carmelita encomendado
ao velho e consagrado Manoel Francisco Lisboa o risco
para a sua igreja, os irmãos terceiros de São Francisco,
esclarecida irmandade que congregava a maioria dos in-
telectuais, não hesitaram em confiar ao filho a respon-
sabilidade de projetar capela capaz de confrontá-la.
Resultou dessa prova de confiança a sua obra-prima
arquitetônica, na qual executou pessoalmente, além do
frontispício com a portada e do lavatório da sacristia, o
retábulo da capela-mor, o barrete e os púlpitos de pedra
inseridos de forma inusitada nas aduelas do arco-real. V ê -
se, pelo corte preservado de uma cópia contemporânea
do risco original, que, inicialmente, apenas a taça des-
ses púlpitos fora, na forma do costume, prevista de pe-
dra; a deliberação de fazê-los integralmente de esteatita,
c o m o o próprio arco, teria ocorrido durante a constru-
ção. A integração do expressionismo dramático das fi-
gurações bíblicas no elaborado requinte ornamental,
próprio do estilo da época, é uma característica cons-
A N T Ô N I O FRANCISCO LISBOA
tante da obra de Antônio Francisco Lisboa e o que lhe
confere a típica veemência. Lamentavelmente, apesar da
esplêndida complementação arquitetônica da pintura de
Manoel da Costa Athayde, a igreja ficou inconclusa, fal-
tando-lhe o coro, as grades e os próprios altares cola-
terais, que só foram executados mal e tardiamente,
embora segundo risco original. Também externamente,
as varandas laterais previstas com balaustrada e pirâmi-
des de pedra-sabão, tal como consta nas minuciosas
especificações preservadas, não se fizeram, e foram in-
devidamente cobertas, já em l 8 0 I , com telhado sobre
arcadas a pretexto de infiltração.
Data da mesma época dos púlpitos ( 1 7 7 1 - 7 2 ) , além
do risco para o retábulo da capela de São José, a portada
carmelita de Sabará, seguida da portada, também dos ir-
mãos terceiros do Carmo, de Ouro Preto, onde, após a
morte de seu pai, elaborou, por insistência dos irmãos, novo
risco para o corpo da igreja e respectivo frontispício, em
que alteia e altera fundamentalmente o anterior, adaptan-
do assim a composição arquitetônica ao seu estilo pessoal.
9 5
ARQUITETURA
9 6
Voltando a Sabará executa, sempre para o Carmo, pos-
sante e magistral empena de serpentina cor de bronze,
ainda vazada, apesar da rocalba, no arrogante espírito do
estilo D. João V, ou Luís X I Y enquanto no risco apre-
sentado após a conclusão dessa obra, em 1 7 7 4 * para a
igreja franciscana de São João dei Rey — e que não che-
gou a ser realizado tal como fora concebido —, a empe-
na, de partido semelhante, já revela a intenção de graça
peculiar ao estilo Luís XY ou D. José.
A portada figurada nesse risco, apesar do seu inexce-
dível apuro, como desenho e composição, parece ainda
incompleta, pois ainda não havia então ocorrido a Antô-
nio Francisco a solução que afinal adotou na sua volta a
Ouro Preto, quatro meses depois, quando convenceu os
irmãos da necessidade de desfazer as ombreiras e a verga
da porta e de afastar as janelas do coro, já feitas, a fim de
poder realizar o novo risco de portada que trouxera. Que
teria sucedido de tão decisivo em tão curto espaço de tem
po, a ponto de justificar tamanho empenho e decisão?
Presume-se que de São João haja prosseguido viagem até
A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
9 7
o Rio, a fim de conhecer a famosa portada de pedra de
lioz trazida de Lisboa em 1 7 6 1 e que, por seu porte e
beleza, avultava na frontaria inacabada da igreja carmelita
carioca. Esse impacto sugeriu-lhe então sobrepor, naque-
le seu risco, às armas da ordem franciscana, o medalhão
de Nossa Senhora encimado pela coroa real, completan-
do a composição triangular com dois anjos pousados s o -
bre as cornijas das pilastras laterais. Este risco inicial para
São João dei Rey é, pois, uma realização a meio caminho,
o estágio intermediário de uma obra ainda em processo
de elaboração; o artista é, por assim dizer, surpreendido
em flagrante ao cometer o "delito" da criação, que resul-
tou na obra-prima realizada em Ouro Preto. E, assim, esta
capela franciscana adquiriu a sua feição definitiva, obra
sem paralelo, em que a energia, a força, a elegância e a
finura se irmanam, conferindo à criação arquitetônica pal-
pitação de coisa viva.
Ainda em Vila. Rica executou, depois, o belo lavató-
rio para a sacristía da Igreja do Carmo; em seguida, tam-
bém em pedra-sabão, outro, para a de São Francisco, ao
ARQUITETURA
9 8
que parece doado pelos sacristãos, pois não consta nos
livros qualquer referência a pagamento. Obra-prima e
comovente porque foi no transcurso da sua demorada
execução ( 1 7 7 7 - 7 8 - 7 9 ) que a doença o acometeu e de-
formou. Perdeu o "uso dos dedos, tanto dos pés como
das mãos, com exceção dos polegares e índices", e teve o
rosto desfigurado, o que lhe conferiu, no dizer da nora,
"expressão asquerosa e sinistra que chegava a assustar a
quem quer que o encarasse inopinadamente", daí "a
acrimônia do seu humor, por vezes colérico". Já em 1 7 7 7 -
78 há registro do que se despendeu com dois pretos para
carregá-lo numa inspeção de serviço, e o documento ofi-
cial de 1 7 9 0 , já referido, constata: "Tanta preciosidade
se acha depositada em corpo enfermo que precisa ser con-
duzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para
poder trabalhar." Passou então a ser conhecido pela alcu-
nha de Aleijadinho.
Parece que a moléstia ainda o apegou mais ao traba-
lho, pois a sua obra se avoluma e avulta. Concluindo o
frontispício de São Miguel e Almas, em O u r o Preto,
A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
retorna a Sabará, onde faz o elegante coro, a grade, os
púlpitos e duas imagens; fornece o risco — que não teria
sido obedecido — para o altar-mor de São Francisco em
São João dei Rey, atendendo assim à solicitação dos ir-
mãos empenhados na procura do arquiteto "em Vila Rica,
ou em qualquer parte onde se achasse". E depois de ou-
tros trabalhos, na encantadora igreja do Rosário, em Santa
Rita Durão, e na importante capela da fazenda da Jaguara,
concentra-se finalmente de novo na sua obra-mestra, São
Francisco de Ouro Preto, a fim de executar o monumen-
tal retábulo da capela-mor, obra plástica de inexcedível
apuro e vigor, sonora e vibrante como um canto pungen-
te de glória; obra que durou de 1 7 9 0 a 9 4 . Vinte anos
depois da sua primeira visita, quando ainda são, volta a
São João, onde os seus projetos foram indevidamente al-
terados por Francisco de Lima Cerqueira, o respeitado
mestre-canteiro responsável pelas obras, e trabalha a jor-
nal, como de costume, de 94 a 9 5 . nas portadas do Carmo
e de São Francisco.
A contradição fundamental entre o estilo da época —
9 9
ARQUITETURA
elegante e maneirado — e o ímpeto poderoso do seu tem-
peramento apaixonado e tantas vezes místico, contradição
magistralmente superada, mas latente e que, por isto, de
quando em quando extravasava, é a marca indelével da sua
obra, o que lhe dá o tom singular e faz deste brasileiro das
Minas Gerais a mais alta expressão individualizada da arte
portuguesa do seu tempo. Deve-se aliás assinalar que essa
modalidade mineira da arte colonial portuguesa no Brasil
apresenta, por vezes, maior afinidade com o barroco-rococó
de entre o Danúbio e os Alpes do que com a arte metropo-
litana que a gerou.
A religiosidade do Aleijadinho cresceu na medida do
seu íntimo convívio com a hagiografia e com a Bíblia; e
do isolamento a que se impôs em conseqüência da m o -
léstia resultou uma profunda comunhão da sua arte com
a fé. As inúmeras sentenças e os versículos que partici-
pam da composição dos púlpitos e retábulos de sua au-
toria se devem indubitavelmente à sua própria iniciativa
e escolha, porquanto não ocorrem na obra de nenhum
outro entalhador.
100
A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA
Dedica-se, por fim, ao santuário de N o s s o Senhor
do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, para em-
preender, sexagenário, a enorme tarefa de encenar, em ta-
manho natural, os Passos da Paixão, figuração onde
avultam, entre a comparsaria, as imagens em corpo intei-
ro do Senhor e seus discípulos, conjuntos que só foram
definitivamente montados quando se concluíram as ca-
pelas, depois da sua morte.
E como se não bastasse como remate de uma vida
inteira dedicada à arte, ainda compõe arquitetonicamen-
te o adro do santuário e, no ermo da colina, enfrenta n o -
vamente os toscos blocos azulados de pedra tenra de onde
extrai, sem lhes roubar a íntegra consistência, com a aju-
da dos seus oficiais — um deles, Maurício, morre nesse
empenho, as figuras bíblicas, gravando-lhes no gesto, nas
cartelas e na face as sentenças proféticas — Jeremias,
Ezequiel, Habacuc, Nahum, Joel, Oseas, Baruc, Jonas,
Daniel, Amos, Abdias, Isaías.
De volta a Ouro Preto dá o risco para os dois últi-
mos altares colaterais do Carmo e neles trabalha com
101
ARQUITETURA
Justino, com quem se desentende por questões de paga-
mento. Data igualmente desse período final o projeto da
nova frontaria para a Matriz de Tiradentes, e a consulta
dos carmelitas de Sabará, quando então propôs (sem êxi-
t o ) o alteamento da capela-mor para que nela coubesse o
retábulo que concebera.
Depois, com o corpo chagado, amargurado e só, ja-
zeu por quase dois anos num estrado de tábuas sobre dois
cepos em pequena ale ova onde conservava, no dizer de
Joana Francisca, sua nora, a imagem do Senhor a quem
apostrofava, na sua lenta agonia, pedindo que "sobre ele
pusesse os seus divinos pés".
102
R U P T U R A E R E F O R M U L A Ç Ã O
C o m o advento da Revolução Industrial, o processo
evolutivo se rompeu, já agora proporcionando a formula-
ção de novas proposições de fundo científico e tecnológico
ainda mais revolucionárias, cujas implicações de ordem
ética e filosófica afetam e condicionam o grande drama
humano, econômico e social em que o mundo se debate
— esse imenso puzgle que se veio armando pacientemen-
te, peça por peça, durante todo o século passado e neste
final de século se continua a armar com muito menos
paciência, não nos permitindo as peças que ainda faltam
a segurança de afirmar se é mesmo de um anjo sem asas
que se trata, como querem uns, ou, como asseveram ou-
tros — igualmente compenetrados —, de um demônio
imberbe.
Poderá parecer fora de propósito, tratando-se aqui
103
ARQUITETURA
de um tema restrito, alusão a ocorrência tão distante no
tempo, mas é que, apesar da sua remota origem, ela se faz
cada vez mais presente e está na fardos grandes e peque-
nos problemas atuais, não apenas os que afetam o nosso
egoísmo, porventura legítimo, e nos afligem cada dia a cons-
ciência e o coração, mas também aqueles de cuja solução
depende a própria feição material da cidade futura.
Numa perspectiva mais ampla, esse desajuste pro-
fundo provocado pela industrialização agravou-se devido
ao fato do espírito agnóstico se haver antecipado ao espí-
rito religioso na inteligência do seu verdadeiro sentido e
alcance.
C o m efeito, quando a produção era obra manual de
artesanato — ou seja, necessariamente limitada — só uns
poucos privilegiados podiam usufruí-la, cabendo assim
ao padre, já que não havia outro remédio, aconselhar re-
signação. C o m as novas técnicas revolucionárias de pro-
dução, esse esquema imemorial se inverteu e, com poucos,
se produz em massa aquilo de que todos têm precisão.
Portanto, a reivindicação do que lhe é devido, da parte de
104
RUPTURA E REFORMULAÇÃO
quem trabalha, passou a ser legítima, tornando-se já en-
tão imoral — e cínico — aquele apelo à resignação. D a í
a coincidência de propósitos que se observa, na atual fase
do processo de reformulação econômico-social, entre o
crente e o que descrê. Continuarão juntos até que, com
o bem alcançado, um já se dê por satisfeito e o outro pros-
siga, porque o seu verdadeiro objetivo está além.
A distinção entre transformações estilísticas de cará-
ter evolutivo, embora por vezes radicais, processadas de um
período a outro na arte do mesmo ciclo econômico-social
— e, portanto, de superfície — e transformações como
esta, de feição nitidamente revolucionária, porquanto decor-
rente de mudança fundamental na técnica da produção, ou
seja, nos modos de fabricar, de construir, de viver, é indis-
pensável para a compreensão da verdadeira natureza e m o -
tivo das substanciais modificações por que vem passando
a arquitetura e, de um modo geral, a arte contemporânea,
pois, no primeiro caso, o próprio gosto, já cansado de re-
petir soluções consagradas, toma a iniciativa cguia a inten-
ção formal no sentido da renovação do estilo, ao passo que,
105
Arquitetura   lucio costa
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Arquitetura lucio costa

  • 2.
  • 4.
  • 5. S U M Á R I O APRESENTAÇÃO 7 CONCEITUAÇÃO 1 7 TRADIÇÃO OCIDENTAL 2 5 TRADIÇÃO LOCAL 3 3 ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA 41 INTERMEZZO — Catas Altas do Mato Dentro 75 INTERMEZZO — Rott am Inn 85 A N T Ô N I O FRANCISCO LISBOA, O ALEIJADINHO 87 RUPTURA E REFORMULAÇÃO 1 0 3 EDIFÍCIO GUSTAVO CAPANEMA 1 0 9 ADDENDUM URBANÍSTICO 115 5
  • 6. A R Q U I T E T U R A BRASÍLIA, CIDADE INVENTADA (Memória Descritiva) 1 I 7 APÊNDICE 143 ORIENTAÇÃO PARA O PROFESSOR 147 GLOSSÁRIO 149 6
  • 7. A P R E S E N T A Ç Ã O Na sucessão dos sintomas que prenunciavam o fim do regime de exceção, o restabelecimento da abertura e da ordem democrática, é justo assinalar o lançamento da Biblioteca Educação É Cultura. A iniciativa resultou de uma parceria do MEC-Fename e da Bloch Editores S.A., em 1 9 8 0 . A publicação desses opúsculos, cada um de per st quase um vadt-mécum, era dirigida aos professores da rede de ensino médio, como ferramenta de informação a fim de despertar o interesse dos alunos para uma melhor com- preensão de suas vocações. Foram escolhidas figuras re- presentativas para a elaboração das monografias. Eram dez títulos: I. Realidade brasileira/Gilberto Freyre; 2. Literatura/ Josué Montello; 3. Música/Francisco Mignone; 4* Folclore/ Maria de Lourdes Borges Ribeiro; 5. Cinema/Wilson C u - nha; 6. Teatro I/Raymundo Magalhães Júnior; 7. Teatro II/ 7
  • 8. A R Q U I T E T U R A 8 Maria Clara Machado; 8. Artes plásticas I/Flávio D'Aquino; 9. Artes plásticas II/Wladimir Alves de Souza e, finalmente, 1 0 . Arquitetura/Lucio Costa. O aparecimento do volume IO — Arquitetura — inter- rompia o hiato provocado por razoável silêncio. Por esse tempo, só tínhamos acesso à palavra de Lúcio Costa atra- vés de garimpagem em alguns poucos livros, entrevistas e escritos esparsos, sendo a principal fonte os importantes estudos publicados nos primeiros números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ( S P H A N ) , iniciada em 1 9 3 7 - C o m menos de sessenta páginas em sua edição ori- ginal, este pequeno grande livro é uma declaração de amor, um objeto de conquista e um manifesto. E perpassado por uma simplicidade calma e clara. E, sem ter essa in- tenção, naturalmente autobiográfico. O índice espicaça nossa curiosidade. Na "Conceituação", o livro nos mos- tra que a arquitetura é parte fundamental da criação ar- tística como manifestação normal de vida, constituindo uma espécie de "álbum de família" da humanidade. E x -
  • 9. A P R E S E N T A Ç Ã O plícita o desafio do artista, do técnico e do homem na adequação do meio físico e social. Conduz-nos a perce- ber a arquitetura como bem durável, concebido de ma- neira estrutural e orgânica, na medida do corpo do homem, sentido em termos de espaço e volume, enfim, como algo para ser vivido. Em "Tradição ocidental", o autor apresenta dois ei- xos de influência cultural: o nórdico-oriental e o meso- potâmico-mediterrâneo, do qual descende o nosso gesto do saber fazer. Em "Tradição local", deparamos com a memória saudosa e sofrida dos primeiros colonos trans- migrando para a nova terra, onde tudo era adverso — cli- ma, índio e bicho. As diversas técnicas herdadas das diferentes regiões de Portugal, todas encontrando sua expressão própria, adaptam-se aos poucos, ao sabor do tempo, aprendendo com o índio, a luz e a paisagem: os fortes, os oratórios e as igrejas, a casa-cofre dos bandei- rantes com sua planta ortogonal e assentada no chão. A casa-grande dos engenhos de açúcar; a casa-gaiola das ci- dades do ouro, de estrutura de madeira, adaptando-se ao 9
  • 10. A R Q U I T E T U R A relevo caprichoso das serras mineiras e que, por falta de espaço, ombreavam-se em trama de densa organização urbana. E mesmo mais tarde, nas casas das fazendas de Minas, São Paulo ou R i o de Janeiro, encontramos as ca- racterísticas de nossa arquitetura, sempre a revelar força, coerência, robustez e saúde plástica. Nas "Anotações ao correr da lembrança", bem como nos "Intermeçgos", a memória construída com o exercício da contemplação, lucidez e aguda sensibilidade estão sem- pre presentes, ao lado de humanidade e compaixão. Há ainda o luminoso e comovente ensaio sobre Antônio Fran- cisco Lisboa, o nosso Aleijadinho, arquiteto e escultor, o maior artista brasileiro do tempo da colônia. Falando da contribuição do escravo, seja ele índio ou negro, Lúcio Costa nos lembra que a qualidade artística de seu trabalho não se origina apenas da fé e do ofício transmitidos pelo mestre português, mas sim da parcela de liberdade que colocavam no que faziam, e isso ninguém lhes poderia tirar. "Ruptura e reformulação" mostra um processo evo- 10
  • 11. A P R E S E N T A Ç Ã O lutivo que se rompeu nos dois áltimos séculos, com o progresso científico e industrial introduzindo novos m o - dos de fabricar, construir e viver. O artesanato perde sua força telúrica e o antigo escravo, que fazia papel de má- quina, ingressa de forma tímida em uma nova ordem so- cial, habituada às tradicionais injustiças e despreparada para isso. "Edifício Gustavo Capanema" é o relato da corajo- sa aventura de um grupo de jovens arquitetos, sob a li- derança do autor, a explicitarem sua fé nos postulados contemporâneos, e a solicitarem e obterem o conselho e a conivência de Le Corbusier no risco que originaria o projeto do antigo Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio Gustavo Capanema, marco na arquitetura bra- sileira. Segundo Lúcio Costa, a arquitetura jamais pas- sou, em espaço de t e m p o semelhante, por tamanha transformação. "Addendum urbanístico" apresenta a cidade como ex- pressão palpável da necessidade humana de contato e c o - municação. A inter-relação cidade/campo e campo/cidade, 11
  • 12. A R Q U I T E T U R A o equilíbrio entre quantidade e qualidade da vida indivi- dual, atendendo sempre o valor do homem como pessoa, "Brasília, cidade inventada" (Memória Descritiva) Por ocasião do Concurso Internacional para o Plano Piloto de Brasília, Lúcio Costa envia, no dia marcado para o seu encerramento, os documentos gráficos acompanha- dos da Memória Descritiva e uma carta dirigida à com- panhia urbanizadora da nova capital e à comissão julgadora do concurso. Desculpa-se pela apresentação sumária do partido su- gerido e justifica-se. Diz que não pretende concorrer, mas apenas "desvencilhar-se de uma solução possível, que não foi procurada mas surgida, por assim dizer, pronta". C o m - parece como simples maquisarã do urbanismo e a idéia, ape- sar de espontânea, foi depois intensamente pensada e desenvolvida, continua ele. A cidade fora concebida não apenas como urbs, preen- chendo as condições satisfatórias a um simples organis- 12
  • 13. A P R E S E N T A Ç Ã O mo capaz de atender as diversas funções vitais, mas como civitas, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. Para isso, é necessário que o urbanista se ache imbuído de certa dignidade e nobreza de intenção, porquanto des- sa atitude decorre a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter monumental. D i t o isso, Lúcio Costa mostra como nasceu a s o - lução: do gesto primário do encontro de dois eixos, a assinalar a posse de um lugar, ou seja, o próprio sinal- da-cruz. Segue-se a seqüência numerada de todo o plano pi- loto. Lá está ele de corpo inteiro, desde a adequação à si- tuação topográfica, aos princípios da técnica rodoviária com suas implicações modernas. Os centros cívicos e ad- ministrativos. O eixo monumental, a plataforma dos Mi- nistérios, a Praça dos Três Poderes, a Catedral, a localização dos palácios e por fim das unidades de vizinhança — as superquadras. Tudo descrito de maneira absolutamente fluida e segura. Lúcio Costa propõe a numeração referida 13
  • 14. A R Q U I T E T U R A ao eixo monumental, distribuindo a cidade nas vertentes Norte e Sul. As quadras seriam assinaladas por números, os blocos residenciais por letras e, por último, o número do apartamento, da forma usual. Há ainda detalhes como o caminho facilitado das ins- talações, nas faixas verdes, ao longo das pistas de rola- mento. Enfim, a descrição de uma cidade pronta. Brasília, capital aérea e rodoviária; cidade-parque. S o - nho arquissecular do patriarca José Bonifácio, que já pro- punha a transferência da capital para Goiás nos idos de 1823. No "Apêndice", o mestre nos adverte que o desen- volvimento científico não é oposto à natureza. Trans- mite sua total confiança no intelecto e na consciência do homem, capazes de encontrar a compatibilidade desse pretenso abismo. Mesmo no caos aparente em que cada geração pode mergulhar, por efeito do que talvez se possa chamar "lei das resultantes convergentes", novas perspectivas se abrem e tudo parece de novo fá- cil e claro. 14
  • 15. A P R E S E N T A Ç Ã O Na "Orientação para o professor", o autor desenvol- ve, com zelo, o que lhe parece fundamental para o melhor desempenho de um magistério vivo. São práticas que vão desde a identificação da arquitetura, à interação homem/ meio ambiente e equilíbrio ecológico. Propõe o estudo comparativo dos diversos tipos de comunidade. Aconse- lha a promoção de debates, análise de plantas, trabalhos gráficos e maquetes, facilitando a percepção das variações de forma, dimensão e espaço. Convida ao conhecimento das cidades históricas brasileiras através de publicações ou excursões organizadas. Por fim, Lúcio Costa encerra o livro com um sabo- roso glossário, em que traduz as palavras estrangeiras e explica as de uso limitado, porém tão naturais ao seu pen- samento que, se substituídas, este perderia sua força. Lúcio Costa, arquiteto, urbanista, humanista, pro- fessor, escritor e poeta. De onde lhe vem tanta força para expressar a essência da realidade brasileira? Talvez de sua condição de peregrino, primeiro na infância e juventude passadas na Europa. Ainda peregrino no encontro com sua 15
  • 16. A R Q U I T E T U R A pátria, onde, de surpresa em surpresa, lembra-se de coi- sas esquecidas, de coisas jamais sabidas, mas que estavam lá, em seu coração. Jorge de Souza Hue Arquiteto e sociólogo, amigo e colaborador do mestre Lúcio Costa. 16
  • 17. C O N C E I T U A Ç Ã O A história da arte mostra que a arquitetura sempre foi parte integrante fundamental no processo da criação artísti- ca como manifestação normal de vida. Ela engloba, portan- to, a própria história da arquitetura, constituindo-se, então, por assim dizer, no "álbum de família" da humanidade. É através dela, através das coisas belas que nos ficaram do pas- sado, que podemos refazer, de testemunho em testemunho, os itinerários percorridos nessa apaíxonante caminhada, não na busca do tempo perdido, mas ao encontro do tempo que ficou vivo para sempre porque entranhaâo na arte. O que caracteriza a obra de arte é, precisamente, esta eterna presença na coisa daquela carga de amoreâe saber que, um dia, a configurou. Importa, pois, antes de mais nada, a distinção entre essência e origem, porque nesta diferencia- ção preliminar reside a chave do entendimento do que seja verdadeiramente arte. 17
  • 18. A R Q U I T E T U R A Se é indubitável que a origem da arte ê interessada, pois a sua ocorrência depende sempre de fatores que lhe são alheios — o meio físico e econômico-social, a época, a técnica utilizada, os recursos disponíveis e o programa escolhido ou imposto —, não é menos verdadeiro que na sua essência, naquilo por que se distingue de todas as de- mais atividades humanas, é manifestação isenta, porquan- to nos sucessivos processos de escolha a que afinal se reduz a elaboração da obra, escolha indefinidamente renovada entre duas cores, duas tonalidades, duas formas, dois partidos igualmente apropriados ao fim proposto, nessa escolha última, ela tão-só — arte pela arte — intervém e opta. Conquanto manifestação natural de vida e, como tal, parte integrante e significativa da obra conjunta elabora- da pelo corpo social a que pertence, esse caráter suigeneris da criação artística dificulta a sua abordagem pelas siste- matizações fUocientíficas, e a torna, por ve2es, refratária aos enquadramentos filopartidários. É que, enquanto a criação científica é parcela revelada de uma totalidade sem- 1B
  • 19. C O N C E 1 T U A Ç Ã O pre maior que se furta às balizas da delimitação inteligí- vel, não passando portanto o cientista de uma espécie de intermediário credenciado do homem com os demais fenô- menos naturais — donde o fundo de humildade, afetada ou verdadeira, peculiar à sua atitude — a criação artísti- ca, ou melhor, o conjunto da obra criada por um determi- nado artista, se constitui num todo auto-suficiente, e ele — o próprio artista — é legítimo criador desse mundo à parte epessoal, pois não existia antes, e idêntico não se refará jamais. Daí a vaidade inata, aparente ou velada, inerente à personalidade de todo artista autenticamente criador. Não cabe indagar, com intenções discriminatórias, "para quem o artista trabalha", porque, a serviço de uma causa ou de alguém, por ideal ou por interesse, ele traba- lha sempre apenas, no fundo — quando verdadeiramente artista — t p a r a si mesmo, pois se alimenta da própria cria- ção, muito embora anseie pelo estímulo da repercussão e do aplauso como pelo ar que respira. A mais tolhida das artes, a arquitetura é, antes de mais nada, construção; mas construção concebida com o propó- 19
  • 20. A R Q U I T E T U R A 20 sito primordial de organizar e ordenar o espaço para de- terminada finalidade e visando a determinada intenção. E nesse processo fundamental de organizar, ordenar e expressar-se ela se revela igualmente arte plástica, porquanto nos inumeráveis problemas com que se defronta o arqui- teto desde a germinação do projeto até a conclusão efeti- va da obra, há sempre, para cada caso específico, certa margem final de opção entre os limites — máximo e mí- nimo — determinados pelo cálculo, preconizados pela técnica, condicionados pelo meio, reclamados pela fun- ção ou impostos pelo programa, cabendo então ao senti- mento individual do arquiteto — como artista, portanto — escolher, na escala dos valores contidos entre tais li- mites extremos, a forma plástica apropriada a cada por- menor em função da unidade última da obra idealizada. A intenção plástica que semelhante escolha subentende é precisamente o que distingue a arquitetura da simples construção. Por outro lado a arquitetura depende ainda, neces- sariamente, da época da sua ocorrência, do meio físico e
  • 21. C O N C E I T U A Ç À O social a que pertence, da técnica decorrente dos materiais empregados e, finalmente, dos objetivos visados e dos recursos financeiros disponíveis para a realização da obra, ou seja, do programa proposto. Pode-se então definir a arquitetura c o m o construção concebida com o propósito de or- ganizar e ordenarplasticamente o espaço e os volumes decorrentes, em função de uma determinada época, de um determinado meio, de uma determinada técnica, de um determinado programa t de uma determinada intenção. Assim, portanto, se, por um lado, arquitetura não é coisa suplementar usada para enriquecer mais ou menos o edifício, não é tampouco a simples satisfação de imposi- ções de ordem técnica e funcional. Fruto de intuição instantânea ou de procura paciente, para que seja ver- dadeiramente arquitetura é preciso que, além de satisfazer rigorosamente — e só assim — a tais imperativos, uma intenção de outra ordem e mais alta acompanhe paripassu o trabalho de criação em todas as suas fases. N ã o se trata de sobrepor à precisão de uma obra tecnicamente perfei- ta a dose julgada conveniente dc gosto artístico. Aquela in- 21
  • 22. A R Q U I T E T U R A tenção deve estar sempre presente desde o início, sele- cionando, nos menores detalhes, entre duas e três solu- ções possíveis e tecnicamente corretas, aquela que não desafine — antes, pelo contrário, melhor contribua, com a sua parcela mínima, para a intensidade expressiva da obra total. Enquanto satisfaz apenas às exigências técnicas e funcionais, não é ainda arquitetura; quando se perde em intenções meramente decorativas, tudo não passa de ce- nografia; mas quando — popular ou erudita — aquele que a ideou pára e hesita ante a simples escolha de um espaçamento de pilares ou da relação entre a altura e a largura de um vão, e se detém na obstinada procura de uma justa medida entre cheios e vazios, na Fixação dos volu- mes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento ao jogo dos materiais e a seu valor expressivo, quando tudo isto se vai pouco a pouco somando em obediência aos mais severos preceitos técnicos e funcionais, mas, também, àquela intenção superior que escolhe, coordena e orienta no sentido da idéia inicial toda essa massa confusa e 22
  • 23. C O N C E I T U A Ç À O 23 contraditória de pormenores, transmitindo assim ao con- junto, ritmo, expressão, unidade e clareza — o que con- fere à obra o seu caráter de permanência — isto sim, é arquitetura. Ou, em outros termos, como lembrete: arquitetura é coisa para ser exposta à intempérie; arquitetuta é coisa para ser concebida como um todo orgânico e funcional; arquitetura é coisa para ser pensada, desde o início, estruturalmente; arquitetura é coisa para ser encarada na medida das idéias e do corpo do homem; arquitetura é coisa para ser sentida em termos de es- paço e volume; arquitetura é coisa para ser vivida.
  • 24.
  • 25. TRADIÇÃO OCIDENTAL O mito e o poder sempre estiveram na origem das grandes realizações de sentido arquitetônico. Eles se con- substanciam numa útôa-força da qual resulta a intenção que orienta e determina a expressão arquitetônica. A realização arquitetônica é assim a expressão palpável desse conteú- do ideológico no seu mais amplo sentido. Constata-se, porém, nesta como que materialização da idéia, a presença de um componente telúrico que condiciona e propicia, do ponto de vista da concepção formal, uma preferência "instintiva" por determinados tipos de configuração. Assim, na bacia do Mediterrâneo, tanto no sul da Europa quanto no norte da África, bem como nas áreas do Oriente próximo e da Mesopotâmia, prevalece, na arquitetura erudita como na popular, o sen- tido da coesão plástica, da forma geométrica pura, da contenção; ao passo que no norte da Europa e nos países 25
  • 26. A R Q U I T E T U R A 26 eslavos e orientais observa-se, pelo contrário, certa pre- disposição à plástica de sentido dinâmico, ao perfil mís- tico, elaborado ou convulso, à dispersão, podendo-se, portanto, considerar dois eixos culturais latentes quanto à concepção plástica da forma: o eixo m e s o p o t â m i o - mediterrâneo, próprio da concepção estática, e o eixo nór- dico-oriental, que abrange as diferentes modalidades da concepção dinâmica. Esse condicionamento inicial, juntamente com os de- mais fatores de natureza cultural, racial e histórica envol- vidos, faz com que a arte de cada civilização se constitua num todo íntegro e autônomo que impede a sua avalia- ção por padrões outros que não os próprios, não com- portando, portanto, aferição ou juízo de valor na base de cânones de outra cultura, como, por exemplo, os oriun- dos da arte greco-latina, dita "clássica", em relação à arte das civilizações orientais ou das culturas africanas. É difícil compreender como a civilização-matriz da nossa cultura ocidental, a civilização grega, pôde manter — apesar da trama por vezes perversa, feroz e torpe da
  • 27. T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L 27
  • 28. A R Q U I T E T U R A sua história c dos seus mitos — tamanha integridade e serena constância na evolução da sua arte, repetindo du- rante mais de quatrocentos anos os mesmos temas, ape- nas cada vez com maior apuro. Assim, quando passou a construir os seus templos, de preferência de mármore, se ateve ao esquema das suas primitivas estruturas de ma- deira, ou seja, ao mais singelo dos partidos arquitetônicos possíveis: planta retangular, telhado de duas águas com frontões nos topos, colunas e arquitrave, ou viga-mestra. Tudo sempre na base da contenção e da verga reta. Por dispor do melhor calcário para peças de porte, o grego ignorou acintosamente o arco — e esta constatação é fundamental. O helenismo rompeu essa contenção secular e pre- parou terreno para o predomínio do poder, que passou a "usar" o mito, quando anteriormente o poder derivava do mito, cabendo então, em termos construtivos, às estru- turas concebidas na base de arcos e abóbadas, traduzir a obsessão romana pelos grandes espaços e pelo monumen- tal. Como, porém, a inspiração cultural — o modelo — 28
  • 29. T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L ainda provinha da Grécia, passaram os arquitetos locais, como Vitrúvio, a usar os elementos construtivos gregos, ou sejam, as suas ordens arquitetônicas — dórica, jônica, coríntía — que eram a expressão viva de intenções bem definidas, tais como as de força, de graça, de riqueza, às quais os próprios romanos acrescentaram as ordens "toscana", de sentido utilitário, e "compósita", para sa- tisfazer o seu gosto pela opulência — já não apenas com a sua função estrutural específica de suporte, mas como elementos complementares de composição arquitetônica entrosados num sistema construtivo de outra natureza. Revestiram assim a nudez sadia dos seus monumentos com uma crosta erudita de colunas e platibandas de már- more e travertino — vestígios de um processo de edificar oposto. E foram precisamente os gregos em Bizâncio — Santa S o f i a — que aproveitaram, tirando-lhe todo o par- tido da extraordinária beleza — a nova técnica. O desmantelo do Império levou os sacrossantos dogmas acadêmicos de roldão e foram então surgindo, aos poucos, as estruturas de grossas paredes com contrafor- 29
  • 30. A R Q U I T E T U R A tes para resistir ao empuxo dos arcos e abóbadas, numa arquitetura severa e contrita, com denso conteúdo espi- ritual, chamada "românica", que se foi definindo e apu- rando nos grandes redutos monásticos onde o fio da meada cultural greco-latina se preservou. E isto, até que novas e sábias experiências construtivas conduziram a um arcabouço estrutural externo, independente das paredes de sustentação, e capaz de absorver os esforços laterais resultantes do alteamento das naves, estilo dito ogival ou "gótico", o que tornou possível a impressionante seqüên- cia das catedrais. C o m a expedição turístico-militar de Carlos VIII à Itália, seguida pelas de Luís XII e Francisco I, a Europa — já então saturada dos malabarismos góticos — des- cobriu a clareza racional, as graças do espírito novo e o humanismo erudito da Renascença, ocorrendo assim um renovado entusiasmo que, com a expansibilidade de um gás e o patrocínio pedante dos cortesãos, penetrou todos os recantos do mundo ocidental, inebriando as cortes e a sociedade culta. 30
  • 31. T R A D I Ç Ã O O C I D E N T A L Conquanto o Renascimento tenha adquirido pecu- liaridades diferenciadas nos vários países europeus, o em- prego continuado do receituário acadêmico foi, com o correr do tempo, cansando e provocando contestações, pois, com efeito, desde que os vários elementos de que se compõe cada uma das ordens gregas — as colunas, o entablamento, os frontões — perderam as suas caracte- rísticas funcionais primitivas, isto é, deixaram de consti- tuir a própria estrutura do edifício, nenhuma razão mais justificava o apego intransigente às fórmulas convencio- nais e vazias de sentido então em vigor. Se o frontão não era mais tão-somente uma empena, a coluna um apoio, a arquitrave uma viga, mas simples formas plásticas de que os arquitetos se serviam para dar expressão e caráter às construções — por que não encarar de frente a questão e tratar cada um desses elementos como formas plásticas autônomas, criando-se com elas relações espaciais dife- rentes e garantindo-se assim novo alento de vida ao velho formulário greco-romano "à bout de forces"? E aí então — época da Contra-Re forma e de muita 31
  • 32. A R Q U I T E T U R A construção — que surge o chamado "barroco", que não foi uma arte bastarda, como se pretendeu, mas uma nova concepção espacial e plástica, liberta dos preconceitos an- teriores e que, apesar de aparente irracionalidade, baseou- se numa formulação perfeitamente racional. É neste ciclo que a nossa arte colonial se insere. 32
  • 33. T R A D I Ç Ã O L O C A L "Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpre- sa, a gente como que se encontra, fica contente, feli^ e se lem- bra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós." 092-9) A arquitetura regional autêntica tem as suas raízes na terra; é produto espontâneo das necessidades e conve- niências da economia e do meio físico e social e se desen- volve, com tecnologia a um tempo incipiente e apurada, à feição da índole e do engenho de cada povo; ao passo que aqui a arquitetura veio já pronta e, embora beneficiada pela experiência anterior africana e oriental do coloniza- dor, teve de ser adaptada como roupa feita, ou de meia- confecção, ao corpo da nova terra. À vista desta constatação fundamental, importa pois conhecer, antes de mais nada, a arquitetura regional por- 33
  • 34. A R Q U I T E T U R A tuguesa no próprio berço, porque é na construção popu- lar de aspecto viril e meio rude, mas acolhedor, das suas aldeias que as qualidades da raça se mostram melhor, per- cebendo-se, desde logo, no acerto das proporções e na ausência de artifícios, uma saúde plástica perfeita, se é que se pode dizer assim. Constata-se, de saída, nessa volta às origens, acentuada diferença entre a arquitetura do norte e a do sul. Da Beira Baixa, ou cintura do país, para cima prevalece o contraste da pedra com a caiação, como no Entre Douro e Minho, senão mesmo o emprego exclusivo do granito em grandes blocos toscos ou aparelhados como ocorre na Beira Alta e em Trás- os-Montes; o ponto, ou seja, a inclinação dos telhados de tacaniça — quatro águas —, é geralmente amortecido graças ao recurso do chamado "contrafeito", que é pequeno caibro complementar destinado precisamente a adoçar o ponto e a dar maior graça ao telhado na aproximação dos beirais. Na Estremadura, Lisboa e Ericeira, por exemplo, essa graciosa concavidade das coberturas, tipicamente portugue- sa — possivelmente por simbiose oriental, pois não existe em nenhum outro país mediterrâneo —, se acentua, já então 34
  • 35. T R A D I Ç Ã O L O C A L 35
  • 36. A R Q U I T E T U R A associada ao predomínio da caiação; mas no Alentejo, onde as construções são de taipa ou tijolo e domina inconteste uma impecável brancura, os telhados são de uma só água, desempenados e retos, e avultam as grandes chaminés retan- gulares, com arranque oblíquo na prumada das fachadas so- bre a rua por onde se acede à intimidade dos pequenos pátios murados; finalmente no Algarve — extremo sul — surgem os terraços ou soteias, e as chaminés circulares com os seus caprichosos coroamentos amouriscados. Era de onde eles vinham, para a grande aventura in- consciente de começar a fazer um novo país. Cada mestre, oficial ou aprendiz—pedreiro, taipeiro, carpinteiro, alvanéu — trazia consigo a lembrança da sua província e a experiência do seu ofício, daí a simultânea adoção, logo de início, das diferenciadas feições arqui- tetônicas próprias de cada modo de construir: a taipa de pilão, a taipa de sebe, ou de mão — pau-a-pique —, o adobe, a alvenaria de tijolo, a pedra e cal. Sem embargo dessa variada aplicação de processos construtivos nos dois primeiros séculos, com o tempo e as circunstâncias locais a preferência por uma determina- 36
  • 37. T R A D I Ç Ã O L O C A I da técnica se foi definindo; a taipa de pilão, encontrando terreno propício, fixou-se principalmente em São Paulo; a alvenaria de tijolo floresceu mais em Pernambuco e na Bahia; nas terras acidentadas de Minas, onde os caminhos acompanhavam as cumeadas, com as casas despencando pelas encostas, o pau-a-pique sobre baldrames de pedra foi a solução natural; já no R i o de Janeiro, a fartura de granito marcou a perspectiva urbana com a seqüência ritmada das ombreiras e vergas de pedra — suporte e arquitrave —, princípio construtivo da Grécia antiga, Se o negro, mais dócil e servil na sua condição de escra- vo, pôde colaborar com o colono, inclusive no aprendizado dos ofícios, já o índio, habituado a um estilo de vida diferen- te, que lhe permitia vagares na confecção limpa e cuidada de armas, utensílios e enfeites, estranhou, com certeza, a gros- seira maneira de fazer dos brancos apressados e impacientes, A identificação com o indígena restringiu-se ao "pro- grama" dos abrigos iniciais à guisa de casas — grandes es- paços cobertos nas feteorias ou ranchos, como nos "montes" do Alentejo — onde acolher as levas de colonos trazidos pelas frotas. Por seu tamanho, esses telhadões pouco afasta- 37
  • 38. A R Q U I T E T U R A 38 dos do chão, como nos próprios engenhos, rompiam com a tradição metropolitana — que consistia em decompor a cobertura das edificações de maior porte em telhados me- nores —, aproximando assim tais estruturas, por sua pu- reza formal e proporções, das ocas monumentais dos nativos, tanto mais que eram implantadas em clareiras, como o terreiro das malocas, uma vez que o inimigo — bicho ou índio — vinha da mata. É que houve uma curiosa coinci- dência gerada pela presença do foco de calor, o fogo — o foyer. O transmontano e o indígena procediam de modo se- melhante para manter a casa toda aquecida com o aprovei- tamento do próprio fogo da cozinha e da defumadura, deixando simplesmente a fumaça escapar pela telha-vã ou por engenhoso dispositivo na cumeeira das ocas. Daí a paradoxal contradição observada em Portugal da ausência de chaminés nas áreas frias do norte e a presença ostensiva delas no sul, onde o calor concentra-se apenas na lareira para que não se espraie pelo resto da casa. De fato, ao entrar no país certa vez por Bragança di- visei do alto da serra ao crepúsculo, no fundo do vale, os telhados do casario a fumegar, associando então a tal cos-
  • 39. T R A D I Ç Ã O L O C A L tu me a ausência de puxados ou cozinhas nos exemplares mais puros das casas seiscentistas preservadas em São Paulo, cuja planta retangular e simétrica dispõe de um salão central de chão de terra batida e telha-vã e de duas varandas embutidas no corpo da casa c o m o as loggias paladianas; a dos fundos, caseira e de serviço, a da frente, social e de receber, tendo num extremo a capela e no ou- tro uma camarinha, sem acesso ao corpo da casa, para pouso eventual de viajantes. No alto salão ficava a com- prida mesa de pranchões com seus bancos; é aí, nesse gran- RANCHO OE FEITOR IA MONTfc ALeNTEJAftO 39
  • 40. A R Q U I T E T U R A 40 de bali medieval, com fogo sempre aceso no inverno, que armavam as trempes e assavam a rês ou a caça do dia. É interessante assinalar que esse esquema foi o em- brião da casa rural brasileira. E não só a rural como tam- bém a de arrabalde, até fins do século X I X — apenas acrescida do puxado de serviço; sala de jantar aos fundos dando para a varanda doméstica e o quintal, e sala da frente com varanda ou terraço de receber; as duas articuladas por extenso corredor, com quartos de uma banda e de outra, o que garantia, no verão, boa tiragem. Assim, pois, de certo modo, tudo se entrosa — a oca indígena, a casa trans- montana, a casa chamada do bandeirante, a casa de fazen- da, a casa de arrabalde, a casa urbana de bairro. Há certa tendência a considerar "imitações" de obras reinóis as obras e peças realizadas na colônia. Na verdade, porém, são obras tão legítimas quanto as de lá, porquanto 0 colono, par âroit de eonquête,1 estava em casa, e o que fazia de semelhante ou já diferenciado era o que lhe apetecia fazer — assim como ao falar português não estava a imitar nin- guém, senão a falar, com sotaque ou não, a própria língua. 1 Por direito de conquista.
  • 41. A N O T A Ç Õ E S A O C O R R E R D A L E M B R A N Ç A I — Tanto a taipa de pilão—barro socado entre taipais de madeira — quanto a de sebe, ou pau-a-pique — trama de madeira barreada a m ã o — e x i g e m proteção contra a cor- tina de água despejada dos telhados, daí a necessidade dos grandes beirais que não visavam primordialmente defender do sol, mas da chuva, tanto assim que nos países onde o sol também é muito mas a chuva escassa, eles, quando existem, se reduzem muitas vezes ao simples saque da telha. E como a parede espessa de barro requer duplojrecfca/ — barrote que recebe o madeiramento do telhado — um em cada face, re- sultou não somente que os caibros apoiados neles para su- porte do beirai, chamados "cachorros", ficaram de nível, como também que o maior comprimento do "contrafeito" trans- feriu a quebra do telhado, e seu conseqüente galbo, mais para cima, de modo que, mesmo a distância, pode-se identificar a estrutura da casa como de taipa de pilão. 41
  • 42. A R Q U I T E T U R A Já no pau-a-pique o cachorro tem ligeira inclinação porque é apenas travado, internamente, por um pau roli- ço interposto entre ele e o caibro, aos quais vem se ajus- tar a cornija sanqueada que delimita o encontro do forro do cômodo com a parede. O arcabouço é todo de madeira e independe dessas paredes que são mero enchimento como ocorre hoje com o concreto armado, e a casa se apoia nos próprios esteios, ou pilotis. Este processo construtivo foi intensivamente empre- gado em grande parte do estado do Rio e em Minas, tanto com esmerado apuro em casas de fazenda e urbanas — Diamantina, por exemplo, é toda de pau-a-pique —, como na sua forma mais rudimentar, na casa do pobre. Ainda agora é só andar pelo interior que elas logo surgem ao longo das estradas. Feitas com pau do mato próximo e da terra do chão, mal barreadas, como casas de bicho, dão abrigo a toda a família — crianças de colo, garotos, meninas, os velhos, 42
  • 43. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 43 tudo de mistura e com aquele ar doente e parado, esperan- do... E ninguém liga de tão habituado que está, pois aquilo faz parte da terra como formigueiro, fígueira-brava e pé de milho — é o chão que continua. 2 — As construções integralmente de alvenaria de ti- .jolo, ensejando arcos, como a casa-grande de Megajipe, em Pernambuco — criminosamente destruída —, e abóbadas, como na parte quinhentista da chamada Casa da Torre de Garcia d'Ávila, em Tatuapé, na Bahia, seriam, ao que parece, menos freqüentes. O mais comum era fazer-se apenas a fa- chada de alvenaria maciça; no corpo da casa a carga concen- trava-se em robustos pilares, com as paredes montadas sobre o próprio barroteamento. As telhas do beirai assentavam sobre cornijas "ameaçadas" com tijolo e revestidas com perftlatura de massa corrida, ou sobre fiadas da mesma telha altemadamente acavaladas à mourísca—beira, sobeira e bica. Quanto ao adobe, ou tijolo cozido ao sol, conquanto mais usado em Mato Grosso e Goiás, também foi comum em outras áreas como o comprova o grande sobrado dos Ta na jura, na Bahia, com capela interna, janelas rasgadas, ou
  • 44. A R Q U I T E T U R A seja, com guarda-corpo de madeira entalado no vão, e pranchões, ou padieiras, à guisa de verga chanfrada para cima e que se diz "capialçada", como na taipa de pilão. A parte monumental, seiscentista, das ruínas da referi- da Casa da Torre, próxima da praia, pouco acima de Salva- dor, mostra com clareza a técnica construtiva da alvenaria de pedra e cal e cantaria. Além da seqüência de arcos no rés-do- chão e dos enquadramentos dos vãos com os respectivos assentos laterais, ou conversadeiras, lá estão, nos dois anda- res do corpo central destelhado, os renques de consolos — ou cães de pedra—engastados nas paredes ao nível de cada piso, prontos para receber as madres que sustentavam os barrotes onde se apoiaria o tabuado do pavimento. Tudo preparado para os pedreiros e canteiros cederem a vez aos mestres-carp inteiros e seus oficiais, cada qual cuidando exem- plar e limpamente, no devido tempo, da sua tarefa. 3 — E expressivo o contraste, que ainda perdura, assi- nalado nas preciosas pranchas da Viagem Filosófica de Alexan- dre Rodrigues Ferreira, entre o leve casario de duas águas com empenas vazadas e vedação arejada de folhas trançadas 44
  • 45. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 45 de palmeira — vedação que respira —, sobre palafitas à margem dos rios, e o pesado casario de cunhais em bossagem, cornijas, faixas, cordões de estuque e elegantes sacadas de ferro com desenhos à francesa, da escola acadêmica de Landi, o bolonhês. Portadas e calçadas de pedra de lioz, trazidas como lastro, são comuns em todo o litoral, mas não tanto quanto em Belém do Pará por estar mais ao alcance da metrópole. A identificação desse belo calcário marmóreo como pedra de lioz_ resultou da expressão "pierre de liais" usada pelos escultores franceses que, como Chanterenne, tanto fizeram pelo apuro da arte quinhentista portuguesa, para designar o calcário duro e compacto, porém macio ao corte a que estavam afeitos no seu país, e como na época o fonema "ais" ainda se escrevia "oys", a leitura das especificações pelos portugueses consa- grou a pedra como lioz. 4 — Conquanto o casario de São Luís seja mais co- nhecido pela azulejaria oítocentista que lhe reveste as facha- das, o fundo menosprezado das casas, revelado ao antigo S P H A N 2 pela documentação fotográfica trazida por um 2 S P H A N — Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — hoje. IPHAN.
  • 46. A R Q U I T E T U R A estudante francês das Beaux Arts, chamado Kiss, que foi até lá de caminhão pedindo carona — embora já em grande par- te desmantelado —, tem para o arquiteto de hoje grande valor, é uma lição. Contrastando com o denso paramento das fa- chadas sobre a rua, regularmente cortadas pela seqüência de vãos, e rematadas por elegantes beirais, elas se abrem, rasga- das de fora a fora, apoiadas em pilares no quintal, ou em balanço, formando um avarandado — trama contínua de venezianas, treliças ou caixilharia — protegido por enormes 46
  • 47. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A Outra particularidade exclusiva do Maranhão é a superposição da concavidade de duas telhas a fim de au- mentar o balanço da chamada bica do beirai, engenhoso artifício que em Portugal também só ocorre numa região — a de Setúbal. 5 — Foi o engenheiro francês Vauthier, desencavado por Gilberto Freyre que, descrevendo os estreitos e altos 47 beirais e sobreposto à estrutura maciça da casa. E para aí que convergem, na forma usual, a sala de jantar, o serviço e a par- te comunitária mais íntima da vida caseira.
  • 48. A R Q U I T E T U R A sobrados do Recife — de íngremes telhados retos, cujo encaibramento era simplesmente apoiado em possantes terças entaladas entre os oitões —, revelou o curioso cos- tume de localizar a sala de jantar no último piso da casa, juntamente com o serviço que também ocupava o sótão, onde moravam as mucamas, ficando os escravos e casais nos baixos da edificação ou na senzala, nos fundos do quintal, juntamente com a cocheira. Havia passagem de serviço acessível pela entrada, conquanto fosse vedado com porta vazada o acesso aos andares pela escada dis- posta com o devido recuo e atravessada em relação ao lote para dar lugar à loja e às salas de cima, de frente para a rua. Não havendo comércio, formava-se o saguão com pa- tamar de convite para o lanço de altos degraus resguarda- dos por treliça ou recortes de madeira, senão de todo escondidos; nesse saguão ficava eventualmente a cadeiri- nha, tudo na forma usual, como em Minas, no R i o e alhu- res. Assim, o escritório, as salas de receber e outros aposentos ocupavam o primeiro andar, e os demais quar- tos e alcovas o piso intermediário. Construções geralmente 48
  • 49. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 49 feitas com alvenaria de tijolo. O maior apego por esse ma- terial fabricado em vários tamanhos e sempre da melhor qualidade, embora o seu emprego fosse comum em Portu- gal, mormente no sul, deveu-se, sem dúvida, ao prolonga- do convívio com o "flamengo", como então se dizia. Outra característica desses sobrados de Recife e Olinda são os robustos consolos de pedra para apoio do piso de tábuas das sacadas com painéis de almofadas e treliça onde assentavam as caixas dos muxarabies, ou muxarabis, e, vez por outra, os pontaletes de sustentação de uma coberta alpen- drada, havendo então encaixes, rente à parede e também de pedra, dispostos lateralmente na altura das vergas, para receber o devido frechal. Ao contrário do que ocorre em Pernambuco, na Paraíba o piso da sacada é sempre de pe- dra com perfllatura nos bordos, o que confere ao conjunto aparência diferente, mais pesada. Essas caixas sacadas ou rasas, isto é, simplesmente sobrepostas ao enquadramento dos vãos, de tradição muçulmana, que permitem resguardo sem prejuízo da ventilação, foram usadas em toda a colônia, sobretudo nas
  • 50. A R Q U I T E T U R A ruelas estreitas onde os cômodos se devassavam. F o t o - grafias de 1 8 6 0 mostram que eram comuns em São Pau- lo, juntamente com os grandes beirais de nível e forrados. C o m a vinda da corte, esse costume que conferia à cidade certo ar oriental chocou os fidalgos e elas foram obrigatoriamente arrancadas e substituídas por venezia- nas e vidraças de guilhotina ou de abrir "à francesa", sur- gindo então, no R i o , principalmente, as graciosas sacadas de ferro dispondo nos cantos de barras verticais espiraladast para pendurar luminárias. Assim, essas reixas de madeira foram sumindo, e dos simpáticos muxarabis avulsos de encaixar nas sacadas sobrou apenas um, em todo o país — o de Diamantina. 6 — A cidade de Salvador do século X V I I e primei- ra metade de setecentos, quando ainda sede do Governo Geral, era uma cidade marcadamente aristocrática, de uma aristocracia a um tempo rural e urbana, de senhores e escravos; e a arquitetura de suas grandes casas, de porte severo e nobre, onde avultam belas portadas e lenços de 50
  • 51. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 51 pedra, quer dizer, peitoris inteiriços de cantaria, não teve paralelo no país, salvo a imponente casa chamada "dos Contos", em Ouro Preto, com o seu senhorial saguão ti- picamente português. Este caráter próprio e inconfundível, embora ainda acentuadamente lusitano, foi aos poucos se diluindo, minado por uma crescente burguesia menos comprome- tida com os antigos dogmas e valores, e pela miscigena- ção. Assim, passo a passo, aquela solidez, aquela carrure foi se perdendo e a graça e o dengue crioulo se foram in- sinuando na feição arquitetônica das casas, não somente em Salvador, como em Cachoeira, principalmente: os vãos se alteiam e os seus enquadramentos enfeitados são de- cepados no encontro das tábuas extravasadas dos peito- ris, com simples palmetas de remate, característica esta exclusivamente baiana que plasticamente os enfraquece; os cordões das caixilharias se entrecruzam em capricho- sos e alegres arranjos e a cor intervém. Tudo isto contribui para dar à cidade a sua graça, e conquanto a presença sóbria e aristocrática da casa, de
  • 52. A R Q U I T E T U R A começo de setecentos, que sobreviveu com as suas saca- das de ferro batido, sua rica portada e seteiras, possa pa- recer, à primeira vista, meio contrafeita, é precisamente esse variado e consentido convívio — esta simultaneida- de — que atrai e seduz e faz da Bahia o que ela é. 7 — Na região do Rio de Janeiro floresceu — o ter- mo é bem este — uma arquitetura rural alpendrada com colunas toscanas à moda do Minho, mas tudo caiado de branco à maneira da Estremadura, de que a casa de fazen- da do Colubandê com a sua importante capela anexa, cuja imagem de Sant'Anna consta do Santuário Mariano, é, sem favor, o mais gracioso e puro exemplar. Debret dedi- ca a prancha 42 do seu precioso documentário a esse es- tilo de casa típico da região, confrontando a sua planta com o esquema da casa romana — operistilo, o impluviutn. o tricltntOy ou sala de jantar, aos fundos, como ficou na nos- sa tradição. Existe algo semelhante em outras áreas do país, mas não com o mesmo apuro e constância, e geral- mente são casas com o avarandado todo à volta, como no 52
  • 53. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 53 Ceará, por exemplo, e de construção mais simples: fustes cilíndricos praticamente sem base nem capitei, e encai- bramento apertado, de pau rolíço, justo o necessário para receber de cada vez uma fiada apenas de telha-vã. No caminho da serra, as antigas e belas fazendas da Samambaia, do Padre Correia e de Santo A n t ô n i o já têm os suportes das varandas de madeira, de seção quadrada, c o m o bisel nas arestas limitado à parte cor- respondente ao fuste, ainda conforme a velha tradição medieval; e em Minas, então, prevalece definitiva, tan- to nas pequenas c o m o nas grandes fazendas, uma apu- rada técnica de pau-a-pique, c o m a particularidade de, mantidas as tacaniças nos topos do telhado, descer com as águas maiores a fim de cobrir o lanço das varandas à frente e aos fundos, onde estão as escadas de acesso. Mesmo perto de Brasília ainda existe a robusta cons- trução da casa com engenho que foi de Joaquim Alves de Oliveira — hoje conhecida como Babilônia —, louvada por Saint-Hilaire pela sua exemplar organização, e, até mesmo para os lados da Chapada dos Guimarães, em Mato
  • 54. A R Q U I T E T U R A Grosso, a rústica fazenda do Abrilongo também com en- genho incorporado à casa. Curioso é que embora a importante fazenda de Pau- d'Alho, no vale do Paraíba, ainda ostente a sua varanda recuperada por Luiz Saia, em toda a área paulisto-flumi- nense no chamado ciclo do café, os ca saro es rurais passa- ram a ignorar a tradição das varandas, preferindo os renques contínuos de janelas, apenas interrompidos pelo pequeno terraço central de acesso e pela escada de pedra, com guarda-corpo de ferro se abrindo em leque. Conquanto nas grandes fazendas a implantação das casas com os seus engenhos, terreiros, oficinas e senzalas variasse m u i t o — e sobraram exemplares de alto significado arquite- tônico como, além da referida Pau-d'Alho e da opulenta fa- zenda do Resgate, a do Rio de São João, a do Manso e a de Boa Esperança, em Minas, a do Poço Comprido, em Per- nambuco, os dois chamados sítios de Santo Antônio e do Padre Inácio em São Paulo, e tantas m a i s — , o seu arcabouço estrutural, mormente nos casos de construções de pau-a- pique ou de pilares autônomos de alvenaria, obedecia ao es- 54
  • 55. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 55 quema de crescimento retangular em torno de um niicleo central, servindo os esteios intermediários de apoio ao am- plo telhado, independentemente do emprego da clássica te- soura então ainda desconhecida dos colonos, uma vez que o seu uso processou-se lentamente depois de estreada na igre- ja jesuíta de São Roque, em Lisboa. Outra característica marcante da arquitetura rural é a constante presença da capela, seja incorporada à casa, com vão de treliça para peça contígua, a fim de a família poder assistir à missa na intimidade, enquanto os "ou- tros", inclusive os escravos, dispunham da varanda, como nave, ou então desgarrada, algumas de grande porte, ou- tras com riquíssima talha, como a do Engenho Bonito, em Pernambuco, a casa se foi, a capela ficou. 8 — O revestimento de azulejos nas fachadas das casas, característica do século X I X , ocorreu em toda a faixa lito- rânea — em Minas não há exemplo — de Belém e de São Luís, onde foi mais freqüente, a Porto Alegre, onde foi mais elaborado, com azulejos especiais para pilastras e capiteis.
  • 56. A R Q U I T E T U R A No R i o de Janeiro foram comuníssimos juntamente com vasos e estatuetas no coroamento das platibandas e telhões esmaltados, de fundo azul ou branco, nos beirais. Conquan- to procedentes na sua maioria da fábrica de Santo Antô- nio, no Porto, lá são raríssimos, isto porque a cidade já estava pronta — vinha tudo para cá. É, aliás, interessante assinalar o importante papel dessa cerâmica no processo de assimilação do neoclássico no país. Imposto pela missão francesa, embora prenunciado por ar- quitetos reinóis — um deles, consultado à vista do risco da "obra já feita até a empena", sobre o modo como rematá-la — risco bisonho mas gracioso da igreja do Carmo de São João dei Rei, conservado no Museu de Ouro Preto —, foi taxativo: só demolindo tudo para refazer de acordo com as regras. E que o despojamento e a contida sobriedade do novo estilo haviam violentado, de certo modo, os laivos remanes- centes do gosto rococó do período anterior. Assim, o brilho e a cor do revestimento azulejado dos panos nus de parede, das platibandas e frontões das eruditas e severas fachadas neoclássicas contribuíram para amenizar-lhes o impacto do 5Ó
  • 57. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 57 confronto com os telhões de louça dos beirais renascidos e para integrá-los tanto na paisagem urbana quanto na dos arrabaldes, onde passaram a conviver muito bem com as man- gueiras, a jaqueira e o pé de fruta-pão. 9 — Sacadas sobre bacias de pedra nas construções de alvenaria, ou sobre barrotes em balanço nas de pau-a- pique, bem como balcões corridos, foram comuns, pri- meiramente protegidos por forte guarda-corpo de ferro forjado, com a característica portuguesa de dispor uma barra horizontal a um terço da altura da sacada, levando- se apenas as peças verticais extremas e uma ou duas in- termediárias até a barra de peito. Essa disposição peculiar se repete nas sacadas com balaústres de madeira torneada, solução corrente em Ouro Preto, por exemplo. Sacadas, como a de Sabará, com elegantes balaústres de perfil si- métrico de gosto ainda renascentista, de uso tão genera- lizado no norte de Portugal, são raras aqui. Em São Cristóvão, antiga capital de Sergipe, rica em obras de arte, há dois exemplos valiosos, um de sacadas isoladas com
  • 58. A R Q U I T E T U R A robusta e bem desenhada perfilatura, outro com balcão corrido, de madeira entalhada e risco apuradíssimo. As reixas graúdas de madeira e os caprichosos recortes, en- talados nos vãos, são também comuns. Durante o Impé- rio multiplicaram-se as sacadas de barras finas de ferro de elaborado e repetido desenho, até que as grades de ferro fundido, iniciadas pelos artífices da Missão Le- breton, com moldes clássicos, passaram a prevalecer mas já então com densos modelos de estilo indefinido. 10 — Nas casas mais antigas, presumivelmente nas dos fins do século X V I e durante todo o século seguinte, predominavam os cheios na relação dos vãos com as pare- des; à medida, porém, que a vida se tornava mais fácil e policiada, o número de janelas ia aumentando; já no século XVIII, cheios e vazios se equilibram, e no começo do sécu- lo X I X , predominam francamente os vãos; de 1 8 5 0 em diante as ombreiras quase se tocam, até que a fachada, no final do século, se apresenta praticamente toda aberta, ten- do os vãos muitas vezes ombreira comum. Contudo, 58
  • 59. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 59 caixilharia inteira, de fora a fora e de alto a baixo, como ocorre na bela frontaria tão atual da Misericórdia de Parati, é coisa rara. Cronologicamente, a proporção dos vãos ten- de a se altear, as vergas mantêm-se retas até meados de se- tecentos, quando passam a ser arqueadas e acrescidas de cornija. No começo do século X I X , já por influência do neoclassicismo, voltam a ser retas com enquadramento li- geiramente mais leve, e surgem os vãos de volta redonda, ou seja, de meio círculo. É então que as bandeiras ou a parte superior dos caixilhos passam a se enfeitar com elegantes e caprichosos desenhos, o que confere à arquitetura do Se- gundo Reinado um encanto muito especial. No Mapa Arquitetural do Rio de Janeiro dessa época, ela- borado por João da Rocha Fragoso, o centro da cidade de repente ressurge, figurado de corpo inteiro com as suas fachadas perfiladas ombro a ombro, casa por casa, rua por rua, a nos revelar a unidade arquitetônica e urbanística que para sempre se perdeu. Datado de 1&74, sete anos antes do seu autor perder a razão — em 1 8 8 l foi "julgado so- frer de alienação mental incurável" —, esse precioso docu-
  • 60. A R Q U I T E T U R A mentário iconográfico mostra com imorredoura precisão como era então a cidade, dando assim sobrevivência e uma razão maior, imprevista, à sua própria vida. II — O aqueduto dos arcos dominava a paisagem urbana, levando lentamente no seu dorso as águas do rio Carioca até alcançar o gracioso chafariz barroco fielmen- te "retratado", p o r T h o m a s Ender, esse admirável e bene- mérito documentador do R i o de Janeiro e das demais regiões por onde andou. Foi muito desigual o tratamento dado aos chafarizes, ou bicas, nas cidades coloniais. Se em São Luís, no Ma- ranhão, o seu adro rebaixado serve agora para demonstra- ções de Bumba-meu-Boi, e em Goiás Velho o imponente chafariz da praça triangular em aclive ainda funciona; se no Rio eles foram vários, alguns arquitetonicamente valiosos, como o do antigo Largo do Paço, onde à moda portuguesa o granito se associou ao calcário de lioz, tal como também ocorreu no portão do Passeio Público e na igreja da Santa Cruz dos Militares, obras onde mestre Vilentim deixou a 60
  • 61. A N O T A Ç Õ E S AO C O R R E R DA L E M B R A N Ç A 61 sua marca, em cidades importantes como Salvador, Recife, Olinda etc. foram de certo modo menosprezados, ao con- trário do que sucedeu em Minas Gerais, onde avultam, principalmente na antiga Vila Rica, e por sua variedade e beleza contribuem, juntamente com as pontes, para tornar a cidade mais humana e acolhedora. Desde o da Casa dos Contos, que impressiona por sua desenvoltura plástica e robustez, ao pitoresco chafariz do Largo de Marília que, num pseudo-restauro simplista, chegou a sofrer a sumária amputação do seu delicado coroamento, apenas porque era de massa e não de pedra. Mutilação depois competente- mente "reimplantada" pelo antigo Sphan, na base de docu- mentação fotográfica, graças a outro austríaco de nascença, como Ender, o escultor Max Grossman, homem discreto, calado e bom: proibido pelo médico de nadar por ter sofri- do enfarte, salvou uma moça que, sozinha, se afogava na praia de Copacabana e, em seguida, morreu. 12 — A i n d a que os grandes senhores de engenho dis- pusessem, desde o primeiro século, de ricas alfaias vindas
  • 62. A R Q U I T E T U R A da metrópole e do Oriente, conforme constatou Cardim, na maioria das casas o mobiliário era de início sóbrio: além de pequeno oratório com o santo de confiança, camas, ca- deiras, bancos, mesas e arcas; arcas e baús ou caixões, como então se dizia, para ter onde meter a tralha toda, E isto não só porque as modas da corte chegavam aqui com muito atraso e se infiltravam pela vastidão do território da colô- nia ainda com maior lentidão, mas também porque não havia nenhum interesse particular que estimulasse e justificasse a adoção apressada de formas novas em substituição de ou- tras já consagradas, quando a maneira de viver e todo o quadro social continuavam não somente inalterados, mas sem perspectivas próximas de alteração. E tanto mais que o clima, geralmente quente, o uso das redes e o costume nativo e oriental de sentar sobre esteira — ou tapete — no chão não estimulavam o aconchego dos interiores, nem os arranjos supérfluos ou de aparato. Contudo, as peças em si eram trabalhadas com gosto e o devido apuro, não só porque a tradição do ofício era fazê- las assim, como porque os oficiais e seus ajudantes eram, 62
  • 63. a n o t a ç õ e s a o c o r r e r d a l e m b r a n ç a 6 3 muitas vezes, gente da casa, escravos, cujos dotes naturais, em boa hora revelados, a conveniência do senhor havia sabi- do aproveitar. Trabalhando sem pressa nem possibilidade de lucro, o prazer defazer bem-feito era tudo que importava: isto ao menos era deles — o dono não podia tirar. Com o correr do tempo os modismos importados, correspondentes às mudanças de gosto e de estilo peculia- res a cada reinado — D. Pedro II, D. João V D. José, Dona Maria —, foram adquirindo feição própria local, diferen- ciada, o que permite aos entendidos identificá-las como procedentes de Goiás, de Minas, da Bahia, do Norte ou do Sul. A esse propósito é preciso acabar com o tolo cos- tume de chamar de "holandesas" mesas tipicamente luso- mineiras, devidas ao afluxo de sangue novo da metrópole — de Guimarães e de outros termos — atraído pela gran- de procura de carpinteiros e marceneiros nas terras de Minas, no chamado Ciclo do Ouro. 13 — As casas de câmara e cadeia, da mínima de Pilar de Goiás, à mais opulenta da antiga Vila Rica e à mais
  • 64. a r q u i t e t u r a 64 bela e genuinamente portuguesa, de Mariana, obedeciam ao odioso costume lusitano de assentar sem rodeios o poder sobre a cadeia — embaixo, no térreo, com vãos fortemente gradeados e paredes, pisos e forros reforça- dos, os presos; em cima, no andar, os senhores conselhei- ros. Mas como toda medalha tem seu reverso, o sistema oferecia certas vantagens como a contínua ciência das autoridades pelo que ocorresse, e a acessibilidade aos pre- sos, através das grades, da família ou de quem passasse: um bilhete, um doce, um olhar — uma flor. 14 — Foram numerosas as fortificações ao longo do litoral, mas nenhuma do porte espetacular de Macapá, na foz do Amazonas, ou impressionante como, no interior, o Forte Príncipe da Beira, na Rondônia, à margem do Gua- poré, ou, ainda, da pureza formal do São Marcelo, na baía de Todos os Santos. Sólidas e bem projetadas estruturas, baseadas em especificações minuciosas e, no caso do belo Forte dos Reis Magos, manuscritas e muito bem redigidas pelo erudito arquiteto Frias de Mesquita, o mesmo que
  • 65. ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA 6 5 projetou o Mosteiro de São Bento, no Rio, nunca serviram para nada, tal qual os dispendiosos armamentos de hoje, destinados a sucata. A sua finalidade foi meramente sim- bólica, como selos da presença real de sua majestade. 15 — Tanto na construção das fortificações e dos edifícios públicos, como, principalmente, na das igrejas de irmandades, os projetos, ou riscos como então se dizia, eram sempre acompanhados de minuciosas e precisas especi- ficações. Essa expressão risco não deve ser interpretada como simples "desenho", mas como desenho visando ao feitio ou à elaboração de alguma coisa, correspondendo assim à expressão inglesa design. Aprovado o projeto, era feita concorrência para es- colha do mestre do ofício em causa — pedreiro, carpin- teiro, entalhador — por empreitada ou a jornal e os trabalhos eram conduzidos com exemplar cuidado e acom- panhados de constantes louvações para dirimir dúvidas e conferir medições, sendo os louvados profissionais já con- sagrados, inclusive "professores", como consta em alguns
  • 66. ARQUITETURA documentos. Tudo levado muito a sério e até mesmo com exagerado rigor, a ponto de — segundo certos testamen- tos — muito mestre, depois de uma vida penosa de cons- tante trabalho, morrer na miséria e endividado. 16 — Depois das improvisadas capelas "de pouca dura", foram construídas, ainda nos anos de quinhentos e seiscentos, numerosas capelas alpendradas, como era c o - mum em Portugal. Frei Palácios foi sepultado no "alpen- dre da capela", no convento que se iniciava no alto da Penha, no Espírito Santo. Compunham-se de adro, alpen- dre com porta e duas pequenas janelas gradeadas, de pei- toríl baixo para que os fiéis, mesmo de fora, pudessem divisar o altar separado da nave por um arco e, muitas vezes, coroado por pequena cúpula definidora do espaço sagrado, cujo extradorso era coberto de telhas, e, final- mente, da sacristia num corpo lateral mais baixo com água própria, sendo o acesso à sineira e ao coro por escada ex- terna, eventualmente coberta. A própria Penha do R i o começou com uma capela desse tipo. 6 6
  • 67. ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA 6 7 A Sé de Olinda, como a do Castelo, ainda foi cons- truída com arcos sobre colunas de ordem toscana forman- do naves, nos moldes usuais da metrópole, antes que os jesuítas inovassem a nave única com visão desobstruída para o pregador e para o altar, inovação desde logo trazida pelo irmão arquiteto Francisco Dias quando, em 1 5 8 0 , projetou e construiu a nossa primeira igreja com pedigree, a da Graça, em Olinda, martirizada pelo holandês. Assim, as nossas igrejas, no começo, foram simples e claras, com o óculo inicial do frontispício da Graça trans- ferido para a empena de frontão reto, duas janelas no coro e uma porta só. C o m o correr do tempo esse esquema singelo foí sendo alterado: surgiram os corredores laterais com tri- bunas no andar e a nave escureceu; a talha alastrou; mul- tiplicaram-se as portas e janelas na fachada e a primitiva unidade se perdeu. Só dois séculos depois, em Minas, ele foi retomado, no princípio de setecentos, até desabrochar — claro e misticamente alegre de novo — na obra-prima que é a igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.
  • 68. ARQUITETURA ISSO S.JCVH 1 7 6 6 17 — No Nordeste, como constatou Ayrton Carva- lho, as igrejas de pedra e cal, tanto antes como depois da ocupação, tiveram seu espaço interno compartimentado numa trama arquitetônica de cantaria — pilastras, arcos, cornijas, enquadramento de vãos — que contrastava com o branco das paredes caiadas e delimitava as reentrâncias de maior ou menor profundidade destinadas a receber os altares laterais e seus retábulos, os primeiros ainda de pedra, como era co- mum na fase renascentista — ou, melhor, "maneirista"— em seguida os de madeira dourada. Com o tempo, essa talha extravasou dos limites que lhe eram impostos e passou a recobrir os próprios elementos arquitetônicos moldurados que a enclausuravam, constituindo-se assim, essa forração de alto a baixo, num monumental cofre de madeira esculpi- 68
  • 69. ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA 6 9 da, encaixado no corpo original de alvenaria de pedra, fican- do desse modo encobertos os pormenores já prontos e aca- bados da comodulação de cantaria. O forro era como que a tampa desse cofre revestido de ouro, inicialmente formando painéis enquadrados para receber pintura, depois com tabuado liso contínuo para per- mitir a livre expansão dos arabescos florais, e, finalmente, a perspectiva arquitetônica, como se o teto todo se abrisse numa explosão de balaustradas, colunas e arcos entremea- dos de guirlandas floridas, de anjos, de nuvens para a glo- rifícação dos santos e de Nossa Senhora em pleno céu. Assim, a ambientarão mística estruturalmente o b - tida nas catedrais góticas com os altos feixes de pilares que se abriam em ogivas nas abóbadas, e com o rendi- lhado das rosáceas e dos tênues mainéis onde resplen- diam os vitrais, passara com a ordem nova dos jesuítas, depois da Contra-Reforma, e graças ao artifícioso en- genho de artistas c o m o o padre Pozzo e Tiepolo, a ser alcançada através do contato direto com a visualização idealizada da própria atmosfera celeste.
  • 70. ARQUITETURA M l i T l t l i n O GÓTICO MISTICUMO tlAMMXà. Tal como na Idade Média, quando os escultores trata- vam com igual apuro tanto as ilhargas e os tímpanos das monumentais portadas, como as figuras perdidas nos mais altos pináculos, ao alcance visual apenas dos anjos, também no interior das igrejas barrocas, lado a lado com o despo- jamento pessoal dos religiosos, prevalecia o propósito de que- rer sempre aplicar o que fosse melhor, mais rico, mais belo, sem poupar esforços e sacrifícios, num esbanjamento ma- 7 0
  • 71. ANOTAÇÕES AO CORRER DA LEMBRANÇA terial, paradoxalmente legítimo, porque em honra e louvação de uma simples idéia, de uma profunda convicção do espírito. 18 — Enquanto na colônia anglo-saxã do norte, o puritanismo associado ao pragmatismo e à industriosa busca da felicidade terrena conduziram à prosperidade coletiva e à riqueza pessoal, nas colônias latinas, afora a obsedante busca do ouro, da prata e das pedras preciosas, toda a atividade dos vários ofícios e energia criativa foi principalmente concentrada no fabrico de igrejas e con- ventos — igrejas matrizes, igrejas de irmandades e de ir- mãos terceiros, mormente em Minas onde o acesso direto das ordens religiosas ao ouro fora vedado pelo rei. Avultam, de fato, nas cidades coloniais, o perfil das igre- jas e a massa edificada dos mosteiros e conventos. Assim, por exemplo, em Salvador, o colégio e a solene igreja dos je- suítas, com a sua imponente sacristia que, como a da rica e bela igreja do Carmo de Cachoeira, não tem nada que se lhes compare; a opulenta igreja do monumental convento fran- ciscano, com o seu belíssimo claustro azulejado, o que tam- bém caracteriza, embora em menores proporções, mas com a 71
  • 72. ARQUITETURA mesma graça, os numerosos conventos da ordem no Nor- deste, cujas igrejas apresentam em comum a particularidade de ter as fachadas escalonadas, com o coro montado sobre a parte central de um pórtico de cinco arcos, e uma só torre, recuada, bem como a de dispor de adro e cruzeiro, além das preciosas capelas anexas; os mosteiros beneditinos, o do Rio, valioso relicário de arte sacra, o de Olinda, com a sua apuradíssima talha portuguesa; as matrizes mineiras, pobres por fora, ricas por dentro, como as do Pilar em Ouro Preto, a da Conceição de Sabará — com a jóia de Nossa Senhora do Ó, mais além —, a de Tiradentes dispondo de órgão e de fabuloso retábulo devido a mestre Sampayo; ou mesmo em lugares perdidos como Brumai, um esplêndido exemplar intacto da primeira metade de setecentos, ou, em Santa Rita Durão, a linda igreja de Nossa Senhora do Rosário. A talha dos retábulos evolui, passando do maneirismo ainda renascentista da primeira fase, e do protobarroco de colunas torsas e arquivoltas concêntricas, à explosão do barroco propriamente dito, até alcançar a graça final do chamado "rococó" que antecede a volta à linha reta e à concisão do neoclassicismo. 7 2
  • 73. 7 3
  • 74. ARQUITETURA 74 São tantas, porém, as preciosidades arquitetônicas es- palhadas pelo país que é impossível enumerá-las nestas sim- ples anotações, e se desse aparente desperdício resultou — de par com o acervo monumental — a pobreza, há contudo algo de positivo a ressaltar, do ponto de vista comunitário e social, em tão chocante constatação. E que, durante a Colô- nia e o I m p é r i o — c o m o ainda agora—toda essa opulência, toda essa riqueza física e espiritual contida nas igrejas anti- gas, esteve sempre — e ainda está — à disposição de qual- quer um, ao alcance do povo. Seja qual for o seu estado de espírito, qualquer que seja a sua condição, você pode usu- fruí-la, ela é sua — é só entrar e ficar lá.
  • 75. INTERMEZZO C a t a s Altas d o M a t o D e n t r o Em 1 9 2 7 passei cerca de um mês no Caraça. No último dia do ano, com o jumento resvalando nas pedras soltas da serra, desci até Catas Altas do M a t o Dentro, para visitar a rica matriz. Estava deserta. Apenas uma velhinha sentada num dos bancos. Em meio ao esplendor da talha, dos dourados, das imagens, das pinturas, ela se sentia visivelmente em casa. Estava ali à vontade, como se tudo aquilo tivesse sido con- cebido para o seu uso e gozo exclusivo, como se tudo lhe pertencesse. Morava num casebre, mas dispunha da imensa nave e dos gigantescos retábulos para sua conversa diária — em clima de graça, louvor e glória — com Nossa Senhora e o Senhor. 7 5
  • 77. INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO 77 19 — Cabe, finalmente, uma referência especial à gran- de obra realizada pelos padres nos chamados Sete Povos das Missões, obra que, pertencendo embora à Província Jesuítica do Paraguai, ficou definitivamente encravada no país, constituindo assim um setor autônomo no conjunto dos monumentos coloniais brasileiros. Cada povo — isto é, cada burgo — era constituído pela igreja que compunha com a residência dos padres, o asilo, a enfermaria, as aulas, as oficinas, as cocheiras e t c , e também com o cemitério, um grande conjunto arquite- tônico, servido por vários pátios, tudo murado, muro que se continuava para os fundos das construções abarcando a enorme área ocupada pelo pomar e pela horta, ou seja, a quinta dos padres. Em frente à igreja, havia um grande terreiro ou pra- ça, em volta do qual eram dispostos numerosos blocos de habitação coletiva, compostos de muitas células de cinco metros por sete, aproximadamente, verdadeiros apartamentos com porta e janela e construídos com pare- des de pedra ou de barro, morando em cada um deles uma
  • 78. ARQUITETURA família de índios. Um passeio alpendrado circundava es- ses blocos de habitação que correspondiam a verdadeiras quadras. Os primeiros blocos construídos eram os que formavam a praça; depois, à medida que o povo crescia, novos blocos eram edificados paralelamente aos primei- ros, surgindo dessa forma, entre eles, numerosas ruas, todas em esquadro, à moda espanhola. Estes povos, com as respectivas estâncias para criação de gado, ficavam a uma distância razoável uns dos outros, formando a seqüência deles um todo orgânico e perfeita- mente articulado. Os jesuítas revelaram-se, nestas Missões, urbanistas notáveis, e a obra deles, tanto pelo espírito de organização como pela força e pelo fôlego, faz lembrar a dos romanos nos confins do Império. Apesar do atual des- mantelo, ainda se adivinha nos menores fragmentos uma seiva, um vigor, um "impulso", digamos assim, que os tor- na — estejam onde estiverem — inconfundíveis. A nossa interferência no caso foi apenas demolidora: conseguimos desmontar, peça por peça, a obra singular criada pelo gênio colonizador e sob a tutela dos padres. 78
  • 79. INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO Só mesmo quando se percorreu, um a um, esses po- vos, repetindo a peregrinação feita em fins do século pas- sado por Hemetério Veloso, cujo depoimento é, hoje, dos mais valiosos, pois que ainda havia ali, então, muita coisa para ver; quando se estuda a história dramática da instala- ção das primeiras "reduções" e das lutas que antecederam ao definitivo abandono e, ainda, documentação antiga re- ferente à arquitetura missioneira, é que se pode ajuizar e reconstituir mentalmente o que foram esses povos na épo- ca do seu florescimento, quando, na bruma da manhã, cada dia, todos aqueles índios saíam das casas, atravessando o terreiro em direção da igreja: Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga, São Borja — cidades que, não fossem a praça e uns poucos vestígios isolados, já teriam esquecido com- pletamente o aspecto primitivo; São João Baptista, São Miguel Arcanjo, São Lourenço e São Nicolau — ruínas perdidas naquele ermo da campanha rio-grandense, com uma ou outra casa próxima, construída com material anti- go, ou certo número delas formando novo povoado. Com exceção das ruínas monumentais de São Miguel, 79
  • 80. ARQUITETURA 8 0 recuperadas pelo antigo S P H A N , pouca coisa ficou; pe- ças que, sobrevivendo à catástrofe, por assim dizer, "de- ram à praia": capiteis, cartelas partidas vermelho-ferrugem, ainda com o I H S , os três cravos e a cruz, imagens muti- ladas e já sem cor — peças cuja vista nos deixa uma im- pressão penosa e certo mal-estar, c o m o se realmente estivéssemos diante dos destroços de algum naufrágio. C o m o remate destas anotações avulsas referentes à nossa tradição, cujo objetivo foi apenas facilitar o enten- dimento e despertar a curiosidade, cabem algumas consta- tações de alcance mais abrangente: I — É, na verdade, impressionante que um programa tão simples como o da igreja — nave, altar e sacristia — tenha comportado, através dos tempos, tamanha variedade de soluções — desde as primeiras, ainda inspiradas nas an- tigas basílicas, seguidas das inovadoras cúpulas bizantinas, das severas naves românicas, dos luminosos transeptos góti- cos, da volta à clareza geométrica renascentista e do desaba- fo barroco —, até chegar à comovente capela de Ronchamp, na França, e à bela estrutura da catedral de Brasília.
  • 81. INTERMEZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO 8 1 2 — São Pedro de Roma é um exemplo de como a arquitetura pode ajustar-se tão integralmente à idéia que lhe cabe expressar, que, já agora, se torna impossível dissociar o conceito de papado, c o m o principal veículo e símbolo universal da fé cristã, da imagem arquitetônica que sucessivos artistas lhe conferiram: a dbside e a cúpu- la de Miguel Ângelo, a nave acrescida por Maderna, o adro e a praça fronteira delimitada pela monumental colunata de Bernini, que ainda contribuiu com o resplen- dor do retábulo e o imenso e fabuloso baliaquino de bron- ze, na justa medida e no lugar certo. Cabendo igualmente constatar a incrível coragem e visão desses homens — papas e artistas — capazes de enfrentar com paixão ta- manho empreendimento. Basta considerar o caso da fa- mosa cúpula que, c o m o sua antecessora, a obra-prima do Brunellesco, em Florença, é imensa tanto vista de longe como de perto, todos se perguntando c o m o foi possível fazer tudo aquilo naquela altura com os meios restritos da época; como também o caso dessa belíssima praça nascida do gesto inspirado de um simples risco
  • 82. ARQUITETURA — assim c o m o procede o nosso Oscar* —, sem consi- derar secjuer a perspectiva do louco e lento trabalho de anos e anos a fio: trazer os matacões da pedreira para o canteiro da obra; lavrar, suspender e ajustar c o m preci- são cada tambor, ou seja, cada bloco do fuste, à feição do galbo das 3 2 8 enormes colunas, rematadas pelo entablamento — arquitrave, friso, cornija — com a sua alta balaustrada, marcando-se, ainda, o prumo de cada uma das colunas voltadas para a praça, com o gesto e l o - qüente de uma gigantesca estátua. E tudo isto por determinação do detentor da heran- ça de Pedro, e com tanto maior propriedade porquanto, na sua ovalada configuração, como que simboliza a pró- pria rede lançada para arrebanhar os fiéis, tal como ainda agora, quase quatro séculos depois, tranqüilamente em casa, temos assistido nas cerimônias divulgadas para o mundo todo graças ao milagre — este sim — da ciência e da tecnologia. 'O autor se refere ao arquiteto Oscar Niemeyer. 8 2
  • 83. INTERMBZZO — CATAS ALTAS DO MATO DENTRO 3 — A obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleija- dinho, foi, no parecer de Germain Bazin, antigo conser- vador-chefe do Museu do Louvre—parecer que subscrevo integralmente —, a última manifestação válida de arqui- tetura e escultura cristãs, no âmbito mundial da história da arte, antes do longo hiato que precedeu à legítima reformulação arquitetônica contemporânea. 8 3
  • 84.
  • 85. INTERMEZZO Rott-am-lnn Pouco depois do fim da guerra, em 1 9 4 8 , fui ao sul da Alemanha para conhecer as igrejas barrocas da região contida entre o Danúbio e os Alpes, tais como o imenso e belíssimo interior de Ottobeuren e a insuperável graça rococó de Wies, sozinha no descampado. Mas o que principalmente me interessava era ver o retábulo de Rott-am-lnn, porque pelo exame fotográfico era o único que, de fato, apresentava alguma afinidade quanto ao partido geral, inclusive a figuração no fecho da composição, com os retábulos mineiros. Depois de muito rodar fui bruscamente impedido de prosseguir — a "autobahn atingida pelos bombardeios, terminava bruscamente a pique. Foi necessário retroceder a fim de pegar um atalho, estrada vicinal que não acabava 8 5
  • 86. ARQUITETURA 6 6 mais, até que, já escurecendo, avistei ao longe o perfil bar- roco da igreja também solta na paisagem como Wies. Ao me aproximar, pressenti o malogro: estava fecha- da. Apesar da frustração, caminhei em direção à porta e, para meu espanto, ela se abriu. Percebi então ao fundo, na penumbra, o retábulo. Contendo a emoção entrei na nave vazia. De repente as luzes se acendem, e quando, com o pensamento no Aleijadinho, encaro de perto o retábulo, ouço os primeiros acordes de um cantochão. Era sábado e o organista ensaiava para a missa da manhã.
  • 87. A N T Ô N I O F R A N C I S C O L I S B O A , O A L E I J A D I N H O Antônio Francisco Lisboa nasceu em Ouro Preto, antiga Vila Rica, a 29 de agosto de 17 3 8, filho de Manoel Francisco Lisboa, carpinteiro-arquiteto, empreiteiro e mestre das obras reais, e de Isabel, sua escrava.4 Segundo descrição de Joana, nora do artista, registrada por seu biógrafo, Rodrigo José Ferreira Bretas, "Antônio Francis- co era pardo-escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada e o gênio agastado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumo- sa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, a testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto. Até cerca dos 40 anos teve boa saúde, tanto que cuidava sem- pre em ter mesa farta e era visto muitas vezes tomando *Afirmaç,3o nâo confirmada. 8 7
  • 88. ARQUITETURA parte nas danças vulgares". Vila Rica a esse tempo ainda não apresentava o perfil que conhecemos e tanto lhe deve. A Casa da Câmara, atual Museu da Inconfidência, as igre- jas de Nossa Senhora do Carmo, de São Francisco de Assis, de Nossa Senhora do Rosário e de São Francisco de Paula ainda não existiam; mas a casa dos Governado- res, com seus baluartes e rampa de acesso como se vê na fiel reconstituição de Wasth Rodrigues, projetada por Alpoim e construída precisamente pelo pai de Antônio Francisco, já comandava a perspectiva urbana. Nascida da busca do ouro e vencido o período inicial da implanta- ção, estava então na sua fase de prosperidade e consolida- ção, afluindo diretamente da metrópole mestres dos vários ofícios para atender à intensa procura de mão-de-obra qualificada. As matrizes de Nossa Senhora do Pilar e dc Nossa Senhora da Conceição, de Antônio Dias, bem como a importante Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Alto da Cruz, estavam sendo concluídas, e a riquíssima talha dourada dos interiores contrastava de- liberadamente com a taipa caiada e o pau-a-pique das fa- 8 8
  • 89. A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA chadas de frontão reto e torres sineiras ainda cobertas de telha. Contudo, nesse meado de século, estava-se às vés- peras de novo surto artístico, verdadeiro renascimento, decorrente ainda do impulso econômico anterior, mas motivado, desta vez, pela emulação entre as irmandades empenhadas na construção das respectivas capelas, já de pedra e cal e mais claras, elegantes e "modernas" como se dizia também então, movimento iniciado em 1 7 5 2 em Mariana com a nova capela do Rosário, cuja talha seria executada em 1 7 7 0 por Francisco Vieira Servas, contem- porâneo de Antônio Francisco Lisboa. É que, enquanto na primeira metade do século ainda prevalecia a velha e boa tradição medieval dos arquitetos se formarem atra- vés dos ofícios da construção, vai finalmente ocorrer em Vila Rica, nesta segunda fase, o que sucedera na Renas- cença, ou seja, a interferência estimulante de arquitetos oriundos do meio dos artistas plásticos. Surto propiciado ainda pela sedimentação da cultura e conseqüente tendên- cia à especulação intelectual e, finalmente, pelo despertar da consciência cívica; pois apesar da clausura imposta à 8 9
  • 90. ARQUITETURA colônia, as idéias nascidas do enciclopedismo, do enligbten~ mtnt e o eco das revoluções libertárias vararam o espaço através dos mares e montes e vales e, encontrando condi- ções adequadas, aninharam-se ali. Poetas e eruditos, prela- dos e bacharéis, músicos, arquitetos, pintores, escultores, professores de artes mecânicas e mestres de ofícios — t o - dos conviviam, e esse desenvolvimento intensivo, no deli- mitado espaço urbano, levou naturalmente àquele anseio de independência que o Tiradentes, afinal, catalisou. Foi nesse ambiente saturado de vitalidade que Antô- nio Francisco se formou. E não lhe faltaram mestres qua- lificados. O risco arquitetônico e as técnicas da carpintaria e da marcenaria aprendeu desde cedo com o próprio pai e o tio, Antônio Francisco Pombal. Como mestres de escultu- ra e talha, além de ter visto, ainda menino, Francisco Xavier de Brito trabalhar no Pilar e no Alto da Cruz, teria feito o aprendizado tanto com Jerônimo Félix ou Felipe Vieira, como, principalmente, com José Coelho de Noronha, a quem assistiria em Morro Grande e Caeté; finalmente, nos segredos do desenho "irregular, do melhor gosto francês", 9 0
  • 91. A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA 91 quer dizer, no estilo Luís X V — c o n f o r m e refere em 1 7 9 0 o vereador de Mariana, Joaquim José da Silva, no precioso documento transcrito por Bretas —, com o artista grava- dor, exilado da metrópole, João Gomes Baptista. Assim aparelhado para o exercício da sua vocação, pode-se identificar a marca inicial da sua presença no ris- co de chafariz feito quando tinha apenas 13 anos para o pátio da casa do governador, e onde já estão definidos dois traços característicos do seu estilo pessoal: a graça (no perfil), e a veemência (na carranca); e no daquele outro construído ao pé da escadaria de Santa Efigênia, no Alto da Cruz. E que o risco desse chafariz apresentado em 1 7 5 7 por seu pai é, tudo indica, de autoria, tal como o anterior,
  • 92. ARQUITETURA do próprio Antônio Francisco, já então com 19 anos. Isto porque na sua composição ocorre também um pormenor revelador da intenção plástica que lhe vai marcar a obra futura, e que é o modo peculiar como os coruchéus foram implantados: em vez de assentarem diretamente sobre as pi lastras, na forma usual, foram criados lateralmente, num plano recuado, dois consolos para recebê-los, ficando eles, portanto, fora da prumada das pilastras. Resulta desse artifício um duplo movimento — a composição se abre para os lados e projeta-se à frente ao mesmo tempo, ad- quirindo assim sentido dinâmico, apesar da sua estrutu- ração estática fundamental. Outra circunstância corrobora a autoria do risco desse chafariz. E que não obstante a sua execução, por oficiais canteiros, ser um tanto gros- seira, acha-se coroado por um imprevisto busto de mu- lher em pedra-sabão datado de I76I. O inusitado da figuração, o galbo do plinto e o talhe dos algarismos são outros tantos indícios veementes de afirmação precoce da personalidade singular de Antônio Francisco Lisboa. E sabendo-se que seu pai, Manoel Francisco, vivia então 9 2
  • 93. A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA assoberbado de compromissos, nada mais natural senão confiar ao filho, que se estava iniciando na profissão, a desincumbência da pequena tarefa. Trabalho talvez atribuível a esse primeiro período é o oratório de jacarandá, na sacristia do Pilar, cujo fundo é tratado em caneluras, solução só encontrada, depois, no la- vatório de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Época em que atuou na igreja que prometia, mas arquitetonica- mente enjeítada de Morro Grande, onde possivelmente interferiu no partido de implantação das torres, e elaborou o risco do arco da capela ainda com pés-direitos e tímpa- nos à moda antiga, como os fazia seu pai, mas com umas tantas inovações, além de esculpit os anjos da tarja e a ima- gem do frontispício; e, ainda, em Caeté, onde deu o risco para os dois últimos retábulos da empreitada geral de Coelho de Noronha, executando o do lado da epístola, in- clusive as imagens. São numerosas as imagens avulsas cuja autoria se lhe pode atestar, sendo das mais belas uma pe- quena Sant'Ana, onde com refinado apuro plástico se con- trapõem a serena desprevenção e a tensão premonitória. 93
  • 94. ARQUITETURA 9 4 Em 1766 a sua reputação já se Firmara, tanto as- sim que, havendo a Irmandade Carmelita encomendado ao velho e consagrado Manoel Francisco Lisboa o risco para a sua igreja, os irmãos terceiros de São Francisco, esclarecida irmandade que congregava a maioria dos in- telectuais, não hesitaram em confiar ao filho a respon- sabilidade de projetar capela capaz de confrontá-la. Resultou dessa prova de confiança a sua obra-prima arquitetônica, na qual executou pessoalmente, além do frontispício com a portada e do lavatório da sacristia, o retábulo da capela-mor, o barrete e os púlpitos de pedra inseridos de forma inusitada nas aduelas do arco-real. V ê - se, pelo corte preservado de uma cópia contemporânea do risco original, que, inicialmente, apenas a taça des- ses púlpitos fora, na forma do costume, prevista de pe- dra; a deliberação de fazê-los integralmente de esteatita, c o m o o próprio arco, teria ocorrido durante a constru- ção. A integração do expressionismo dramático das fi- gurações bíblicas no elaborado requinte ornamental, próprio do estilo da época, é uma característica cons-
  • 95. A N T Ô N I O FRANCISCO LISBOA tante da obra de Antônio Francisco Lisboa e o que lhe confere a típica veemência. Lamentavelmente, apesar da esplêndida complementação arquitetônica da pintura de Manoel da Costa Athayde, a igreja ficou inconclusa, fal- tando-lhe o coro, as grades e os próprios altares cola- terais, que só foram executados mal e tardiamente, embora segundo risco original. Também externamente, as varandas laterais previstas com balaustrada e pirâmi- des de pedra-sabão, tal como consta nas minuciosas especificações preservadas, não se fizeram, e foram in- devidamente cobertas, já em l 8 0 I , com telhado sobre arcadas a pretexto de infiltração. Data da mesma época dos púlpitos ( 1 7 7 1 - 7 2 ) , além do risco para o retábulo da capela de São José, a portada carmelita de Sabará, seguida da portada, também dos ir- mãos terceiros do Carmo, de Ouro Preto, onde, após a morte de seu pai, elaborou, por insistência dos irmãos, novo risco para o corpo da igreja e respectivo frontispício, em que alteia e altera fundamentalmente o anterior, adaptan- do assim a composição arquitetônica ao seu estilo pessoal. 9 5
  • 96. ARQUITETURA 9 6 Voltando a Sabará executa, sempre para o Carmo, pos- sante e magistral empena de serpentina cor de bronze, ainda vazada, apesar da rocalba, no arrogante espírito do estilo D. João V, ou Luís X I Y enquanto no risco apre- sentado após a conclusão dessa obra, em 1 7 7 4 * para a igreja franciscana de São João dei Rey — e que não che- gou a ser realizado tal como fora concebido —, a empe- na, de partido semelhante, já revela a intenção de graça peculiar ao estilo Luís XY ou D. José. A portada figurada nesse risco, apesar do seu inexce- dível apuro, como desenho e composição, parece ainda incompleta, pois ainda não havia então ocorrido a Antô- nio Francisco a solução que afinal adotou na sua volta a Ouro Preto, quatro meses depois, quando convenceu os irmãos da necessidade de desfazer as ombreiras e a verga da porta e de afastar as janelas do coro, já feitas, a fim de poder realizar o novo risco de portada que trouxera. Que teria sucedido de tão decisivo em tão curto espaço de tem po, a ponto de justificar tamanho empenho e decisão? Presume-se que de São João haja prosseguido viagem até
  • 97. A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA 9 7 o Rio, a fim de conhecer a famosa portada de pedra de lioz trazida de Lisboa em 1 7 6 1 e que, por seu porte e beleza, avultava na frontaria inacabada da igreja carmelita carioca. Esse impacto sugeriu-lhe então sobrepor, naque- le seu risco, às armas da ordem franciscana, o medalhão de Nossa Senhora encimado pela coroa real, completan- do a composição triangular com dois anjos pousados s o - bre as cornijas das pilastras laterais. Este risco inicial para São João dei Rey é, pois, uma realização a meio caminho, o estágio intermediário de uma obra ainda em processo de elaboração; o artista é, por assim dizer, surpreendido em flagrante ao cometer o "delito" da criação, que resul- tou na obra-prima realizada em Ouro Preto. E, assim, esta capela franciscana adquiriu a sua feição definitiva, obra sem paralelo, em que a energia, a força, a elegância e a finura se irmanam, conferindo à criação arquitetônica pal- pitação de coisa viva. Ainda em Vila. Rica executou, depois, o belo lavató- rio para a sacristía da Igreja do Carmo; em seguida, tam- bém em pedra-sabão, outro, para a de São Francisco, ao
  • 98. ARQUITETURA 9 8 que parece doado pelos sacristãos, pois não consta nos livros qualquer referência a pagamento. Obra-prima e comovente porque foi no transcurso da sua demorada execução ( 1 7 7 7 - 7 8 - 7 9 ) que a doença o acometeu e de- formou. Perdeu o "uso dos dedos, tanto dos pés como das mãos, com exceção dos polegares e índices", e teve o rosto desfigurado, o que lhe conferiu, no dizer da nora, "expressão asquerosa e sinistra que chegava a assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente", daí "a acrimônia do seu humor, por vezes colérico". Já em 1 7 7 7 - 78 há registro do que se despendeu com dois pretos para carregá-lo numa inspeção de serviço, e o documento ofi- cial de 1 7 9 0 , já referido, constata: "Tanta preciosidade se acha depositada em corpo enfermo que precisa ser con- duzido a qualquer parte e atarem-se-lhe os ferros para poder trabalhar." Passou então a ser conhecido pela alcu- nha de Aleijadinho. Parece que a moléstia ainda o apegou mais ao traba- lho, pois a sua obra se avoluma e avulta. Concluindo o frontispício de São Miguel e Almas, em O u r o Preto,
  • 99. A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA retorna a Sabará, onde faz o elegante coro, a grade, os púlpitos e duas imagens; fornece o risco — que não teria sido obedecido — para o altar-mor de São Francisco em São João dei Rey, atendendo assim à solicitação dos ir- mãos empenhados na procura do arquiteto "em Vila Rica, ou em qualquer parte onde se achasse". E depois de ou- tros trabalhos, na encantadora igreja do Rosário, em Santa Rita Durão, e na importante capela da fazenda da Jaguara, concentra-se finalmente de novo na sua obra-mestra, São Francisco de Ouro Preto, a fim de executar o monumen- tal retábulo da capela-mor, obra plástica de inexcedível apuro e vigor, sonora e vibrante como um canto pungen- te de glória; obra que durou de 1 7 9 0 a 9 4 . Vinte anos depois da sua primeira visita, quando ainda são, volta a São João, onde os seus projetos foram indevidamente al- terados por Francisco de Lima Cerqueira, o respeitado mestre-canteiro responsável pelas obras, e trabalha a jor- nal, como de costume, de 94 a 9 5 . nas portadas do Carmo e de São Francisco. A contradição fundamental entre o estilo da época — 9 9
  • 100. ARQUITETURA elegante e maneirado — e o ímpeto poderoso do seu tem- peramento apaixonado e tantas vezes místico, contradição magistralmente superada, mas latente e que, por isto, de quando em quando extravasava, é a marca indelével da sua obra, o que lhe dá o tom singular e faz deste brasileiro das Minas Gerais a mais alta expressão individualizada da arte portuguesa do seu tempo. Deve-se aliás assinalar que essa modalidade mineira da arte colonial portuguesa no Brasil apresenta, por vezes, maior afinidade com o barroco-rococó de entre o Danúbio e os Alpes do que com a arte metropo- litana que a gerou. A religiosidade do Aleijadinho cresceu na medida do seu íntimo convívio com a hagiografia e com a Bíblia; e do isolamento a que se impôs em conseqüência da m o - léstia resultou uma profunda comunhão da sua arte com a fé. As inúmeras sentenças e os versículos que partici- pam da composição dos púlpitos e retábulos de sua au- toria se devem indubitavelmente à sua própria iniciativa e escolha, porquanto não ocorrem na obra de nenhum outro entalhador. 100
  • 101. A N T Ô N I O F R A N C I S C O LISBOA Dedica-se, por fim, ao santuário de N o s s o Senhor do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, para em- preender, sexagenário, a enorme tarefa de encenar, em ta- manho natural, os Passos da Paixão, figuração onde avultam, entre a comparsaria, as imagens em corpo intei- ro do Senhor e seus discípulos, conjuntos que só foram definitivamente montados quando se concluíram as ca- pelas, depois da sua morte. E como se não bastasse como remate de uma vida inteira dedicada à arte, ainda compõe arquitetonicamen- te o adro do santuário e, no ermo da colina, enfrenta n o - vamente os toscos blocos azulados de pedra tenra de onde extrai, sem lhes roubar a íntegra consistência, com a aju- da dos seus oficiais — um deles, Maurício, morre nesse empenho, as figuras bíblicas, gravando-lhes no gesto, nas cartelas e na face as sentenças proféticas — Jeremias, Ezequiel, Habacuc, Nahum, Joel, Oseas, Baruc, Jonas, Daniel, Amos, Abdias, Isaías. De volta a Ouro Preto dá o risco para os dois últi- mos altares colaterais do Carmo e neles trabalha com 101
  • 102. ARQUITETURA Justino, com quem se desentende por questões de paga- mento. Data igualmente desse período final o projeto da nova frontaria para a Matriz de Tiradentes, e a consulta dos carmelitas de Sabará, quando então propôs (sem êxi- t o ) o alteamento da capela-mor para que nela coubesse o retábulo que concebera. Depois, com o corpo chagado, amargurado e só, ja- zeu por quase dois anos num estrado de tábuas sobre dois cepos em pequena ale ova onde conservava, no dizer de Joana Francisca, sua nora, a imagem do Senhor a quem apostrofava, na sua lenta agonia, pedindo que "sobre ele pusesse os seus divinos pés". 102
  • 103. R U P T U R A E R E F O R M U L A Ç Ã O C o m o advento da Revolução Industrial, o processo evolutivo se rompeu, já agora proporcionando a formula- ção de novas proposições de fundo científico e tecnológico ainda mais revolucionárias, cujas implicações de ordem ética e filosófica afetam e condicionam o grande drama humano, econômico e social em que o mundo se debate — esse imenso puzgle que se veio armando pacientemen- te, peça por peça, durante todo o século passado e neste final de século se continua a armar com muito menos paciência, não nos permitindo as peças que ainda faltam a segurança de afirmar se é mesmo de um anjo sem asas que se trata, como querem uns, ou, como asseveram ou- tros — igualmente compenetrados —, de um demônio imberbe. Poderá parecer fora de propósito, tratando-se aqui 103
  • 104. ARQUITETURA de um tema restrito, alusão a ocorrência tão distante no tempo, mas é que, apesar da sua remota origem, ela se faz cada vez mais presente e está na fardos grandes e peque- nos problemas atuais, não apenas os que afetam o nosso egoísmo, porventura legítimo, e nos afligem cada dia a cons- ciência e o coração, mas também aqueles de cuja solução depende a própria feição material da cidade futura. Numa perspectiva mais ampla, esse desajuste pro- fundo provocado pela industrialização agravou-se devido ao fato do espírito agnóstico se haver antecipado ao espí- rito religioso na inteligência do seu verdadeiro sentido e alcance. C o m efeito, quando a produção era obra manual de artesanato — ou seja, necessariamente limitada — só uns poucos privilegiados podiam usufruí-la, cabendo assim ao padre, já que não havia outro remédio, aconselhar re- signação. C o m as novas técnicas revolucionárias de pro- dução, esse esquema imemorial se inverteu e, com poucos, se produz em massa aquilo de que todos têm precisão. Portanto, a reivindicação do que lhe é devido, da parte de 104
  • 105. RUPTURA E REFORMULAÇÃO quem trabalha, passou a ser legítima, tornando-se já en- tão imoral — e cínico — aquele apelo à resignação. D a í a coincidência de propósitos que se observa, na atual fase do processo de reformulação econômico-social, entre o crente e o que descrê. Continuarão juntos até que, com o bem alcançado, um já se dê por satisfeito e o outro pros- siga, porque o seu verdadeiro objetivo está além. A distinção entre transformações estilísticas de cará- ter evolutivo, embora por vezes radicais, processadas de um período a outro na arte do mesmo ciclo econômico-social — e, portanto, de superfície — e transformações como esta, de feição nitidamente revolucionária, porquanto decor- rente de mudança fundamental na técnica da produção, ou seja, nos modos de fabricar, de construir, de viver, é indis- pensável para a compreensão da verdadeira natureza e m o - tivo das substanciais modificações por que vem passando a arquitetura e, de um modo geral, a arte contemporânea, pois, no primeiro caso, o próprio gosto, já cansado de re- petir soluções consagradas, toma a iniciativa cguia a inten- ção formal no sentido da renovação do estilo, ao passo que, 105