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PÚBLICO,QUA7JAN2015 | 47
DR
De Kiev a Odessa
na viragem do ano
Eleições
e liberdade
A
s marcas dos acontecimentos
de há cerca de um ano na Praça
Maidan são ainda visíveis na
capital da Ucrânia. Mas se é
fácil notar os efeitos do passado
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senhora Merkel e o senhor
Schäuble não podem impor
à Europa uma doutrina de
soberania limitada semelhante
àquela que Brejnev instituiu
para os países do Leste
europeu depois da Primavera
de Praga em 1968 e da invasão
da então Checoslováquia
pelos blindados do Pacto de
Varsóvia. É isso que está em causa nas
eleições que vão disputar-se na Grécia,
berço da democracia e da civilização
europeia. Um problema de liberdade: os
eleitores gregos têm o direito de decidir
livremente sem chantagens nem ameaças.
Mas não é só um problema de liberdade
para a Grécia. Está em causa também uma
concepção da Europa, a liberdade e a
soberania dos países da União Europeia.
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entre Estados soberanos e iguais, ou uma
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é um atentado à
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dos eleitores gregos
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em todo o bairro, com a substituição
repentina de vizinhos e as trocas de olhares
silenciados pelo medo coletivo. Ninguém
dizia nada. Os testemunhos de alguns
residentes mais idosos, com quem mais
tarde contactei, confirmaram-no. Mas, ao
subir neste elevador degradado, tais relatos
misturam-se com a memória da literatura de
Kravchenko e Soljenitsin, que nos legaram
os primeiros testemunhos do que era
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soviético.
A Praça Maidan está agora limpa de
destroços da violência recente. Na mesma
subida onde os disparos de alegados
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num único dia, está exposto um memorial
dedicado às vítimas. Nele se alinham os
rostos daqueles jovens, a preto e branco, por
entre cravos vermelhos, numa simplicidade
tocante. O largo principal está decorado
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e exibindo fotos gigantes dos momentos
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Porém, o clima de consternação não deixa
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na sequência, alguns a esgueirarem-se
sorrateiros. Pode ser uma reação inócua,
mas são estes gestos que, aqui ou noutro
lugar, ajudam a construir a cidadania
democrática.
O comboio modelo soviético onde viajei
entre Chercassy e Odessa parece sugerir que
o tempo parou nos anos cinquenta do século
passado. Carruagens-cama com quatro
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lençóis e serviço de chá assegurados pela
funcionária (uma em cada carruagem),
é mais uma peça “intacta” do período
soviético. Porém, tanto na tecnologia como
no modo de funcionamento, este fragmento
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no tempo até ao Portugal profundo do
período salazarista. Lá como cá, as rotinas
da época escondiam a violência por detrás
da fachada. O casal que nos acompanhou
numa parte do percurso contou histórias,
falou de política (um ponto em que
certamente as coisas mudaram muito).
Mostraram-se críticos de Putin e da política
da Rússia, embora o homem (cerca de 40
anos, operário da construção civil) trabalhe
em Moscovo, onde o salário é melhor. Na
Rússia, garantiu-nos, nunca revela a sua
opinião sobre tais matérias. Parece ser
uma tradição desta linha férrea: viagens
longas durante a noite podem suscitar todo
o tipo de conversas nos encontros casuais
entre passageiros. Tal como entram, saem,
cumprimentando-se, sem sequer revelarem
os nomes.
Chegados a Odessa, o nevão revelou-se
bem mais intenso do que esperávamos.
Mas o espírito natalício conjugado com
o humor típico dos “odessitas” ganham
outro colorido no fundo branco das amplas
avenidas da cidade, e até o caos do trânsito
no último dia do ano é encarado com um
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Professor da Faculdade de Economia e
investigador do Centro de Estudos Sociais
DebateUcrânia DebateGréciaeUniãoEuropeia
ElísioEstanque ManuelAlegre

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De Kiev a Odessa: Eleições, liberdade e o legado soviético na Ucrânia

  • 1. PÚBLICO,QUA7JAN2015 | 47 DR De Kiev a Odessa na viragem do ano Eleições e liberdade A s marcas dos acontecimentos de há cerca de um ano na Praça Maidan são ainda visíveis na capital da Ucrânia. Mas se é fácil notar os efeitos do passado recente, o legado de setenta anos de regime soviético (1922- 1991) continua igualmente bem vivo no quotidiano dos ucranianos, embora à mistura com as tendências alucinantes do mundo globalizado do século XXI. Um “minibus” mais ou menos oficial levou-nos do aeroporto até um daqueles bairros periféricos de construção retilínea, típica do período estalinista e hoje em processo de degradação. Enquanto aguardamos o encontro com o nosso contacto, ocorre o primeiro sobressalto: de mochila às costas e com a mala de viagem ao lado (ainda com a etiqueta da Air France), logo senti um pequeno encosto. Ao virar-me, reparei que um jovem apanhava do chão o que me pareceu ser um rolo de notas de 100 dólares. Como não falo russo nem ucraniano, foi a minha companheira que argumentou e por certo travou um desenlace que poderia ter sido grave. O gesto do jovem, bem vestido, pretendia simular generosidade, já que me interpelou perguntando se aquele dinheiro era meu. Mas, como de imediato ficou claro, tratava-se naturalmente de uma manobra de diversão de um pequeno grupo de meliantes para apanhar mais um turista tolo ou distraído. Passado o susto, seguimos por caminhos esconsos nos acessos ao bairro. A lama cola-se aos carros ao ponto de esconder por completo as matrículas. Suponho que seja proibido, mas não importa, porque o cenário revela um padrão. Ao subir no elevador até ao 13.º andar com a nossa anfitriã, senti-me num cenário próprio da era de Estaline ou Brejnev. Os solavancos, a dimensão ampla, o chão sujo, a escassa iluminação, o intercomunicador do tempo da II Guerra e todo o ambiente na entrada daquele edifício me conduziu ao passado. Fragmentos de um mundo, onde, segundo algumas opiniões, “apesar de tudo, as coisas funcionavam” (ou pareciam funcionar). Muita gente ainda recorda que naquela época a vida era mais previsível e havia menos corrupção (ou estava mais escondida?). Porém, o outro lado da aparente segurança — isso também não foi esquecido — era o excesso de zelo de funcionários e o medo instalado em cada família, em cada apartamento destes mesmos prédios, porque as paredes tinham ouvidos e uma conversa que levantasse suspeitas podia resultar no desaparecimento silencioso da família inteira. Nos tempos do A senhora Merkel e o senhor Schäuble não podem impor à Europa uma doutrina de soberania limitada semelhante àquela que Brejnev instituiu para os países do Leste europeu depois da Primavera de Praga em 1968 e da invasão da então Checoslováquia pelos blindados do Pacto de Varsóvia. É isso que está em causa nas eleições que vão disputar-se na Grécia, berço da democracia e da civilização europeia. Um problema de liberdade: os eleitores gregos têm o direito de decidir livremente sem chantagens nem ameaças. Mas não é só um problema de liberdade para a Grécia. Está em causa também uma concepção da Europa, a liberdade e a soberania dos países da União Europeia. Ou uma Europa entendida como União entre Estados soberanos e iguais, ou uma Europa diminuída e pervertida, com um país dominante e uma Comissão Europeia submissa a ditarem as regras e a decidirem o que cada país pode ou não pode fazer. Uma tal Europa é um atentado à liberdade e uma nova forma de autoritarismo. Por isso as eleições gregas são tão importantes. Não se trata de ser por ou contra o Syriza, mas de ser por ou contra o direito de os gregos escolherem quem muito bem entenderem. Uma ameaça a este direito dos eleitores gregos é uma ameaça à liberdade e à soberania de todos os povos da União Europeia. Nem só com tanques se invade um país e se mata uma Primavera. Quem coloca os mercados acima dos Estados e quem faz chantagem sobre o sentido de votos dos eleitores gregos está a invadir a Grécia e está a invadir-nos a todos nós. Nas eleições gregas, não vai apenas decidir-se o futuro político próximo da Grécia. Vai definir-se o futuro da liberdade e da democracia na Europa. Fundador do PS Gulag, o terror pesava nos dias seguintes em todo o bairro, com a substituição repentina de vizinhos e as trocas de olhares silenciados pelo medo coletivo. Ninguém dizia nada. Os testemunhos de alguns residentes mais idosos, com quem mais tarde contactei, confirmaram-no. Mas, ao subir neste elevador degradado, tais relatos misturam-se com a memória da literatura de Kravchenko e Soljenitsin, que nos legaram os primeiros testemunhos do que era realmente o “paraíso socialista” e o mundo soviético. A Praça Maidan está agora limpa de destroços da violência recente. Na mesma subida onde os disparos de alegados mercenários ceifaram cerca de cem vidas num único dia, está exposto um memorial dedicado às vítimas. Nele se alinham os rostos daqueles jovens, a preto e branco, por entre cravos vermelhos, numa simplicidade tocante. O largo principal está decorado com centenas de velas acesas, desenhando o símbolo da bandeira nacional do país e exibindo fotos gigantes dos momentos mais intensos da “revolução do Maidan”. Porém, o clima de consternação não deixa de albergar o oportunismo de alguns, que tentam aproveitar-se da solenidade para angariar “apoio” a um suposto familiar doente ou vítima dos ataques atribuídos a Putin. Uma amiga assumidamente nacionalista interpela um dos jovens que se passeiam com caixinhas improvisadas, penduradas ao pescoço, para o peditório de apoio às famílias das imaginárias vítimas: “Mostra- me a identificação!” A seguir faz telefonemas, dirige-se à polícia: Aosubirno elevadoraté ao13.ºandar, senti-me numcenário própriodaera deEstalineou Brejnev Naseleições gregas,não vaiapenas decidir-seo futuropolítico próximoda Grécia.Vai definir-se ofuturoda liberdadeeda democraciana Europa “Que vergonha, tenho aqui visitantes da Europa a assistir a este oportunismo. O que faz a polícia?”. O certo é que, depois de muita insistência, os militares de serviço foram identificar os suspeitos, vendo-se, na sequência, alguns a esgueirarem-se sorrateiros. Pode ser uma reação inócua, mas são estes gestos que, aqui ou noutro lugar, ajudam a construir a cidadania democrática. O comboio modelo soviético onde viajei entre Chercassy e Odessa parece sugerir que o tempo parou nos anos cinquenta do século passado. Carruagens-cama com quatro lugares em cada divisão, equipamentos asseados, ambiente bem aquecido, lençóis e serviço de chá assegurados pela funcionária (uma em cada carruagem), é mais uma peça “intacta” do período soviético. Porém, tanto na tecnologia como no modo de funcionamento, este fragmento de “socialismo” também me fez viajar no tempo até ao Portugal profundo do período salazarista. Lá como cá, as rotinas da época escondiam a violência por detrás da fachada. O casal que nos acompanhou numa parte do percurso contou histórias, falou de política (um ponto em que certamente as coisas mudaram muito). Mostraram-se críticos de Putin e da política da Rússia, embora o homem (cerca de 40 anos, operário da construção civil) trabalhe em Moscovo, onde o salário é melhor. Na Rússia, garantiu-nos, nunca revela a sua opinião sobre tais matérias. Parece ser uma tradição desta linha férrea: viagens longas durante a noite podem suscitar todo o tipo de conversas nos encontros casuais entre passageiros. Tal como entram, saem, cumprimentando-se, sem sequer revelarem os nomes. Chegados a Odessa, o nevão revelou-se bem mais intenso do que esperávamos. Mas o espírito natalício conjugado com o humor típico dos “odessitas” ganham outro colorido no fundo branco das amplas avenidas da cidade, e até o caos do trânsito no último dia do ano é encarado com um sorriso condescendente. Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais DebateUcrânia DebateGréciaeUniãoEuropeia ElísioEstanque ManuelAlegre