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A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da
           educação da criança anormal

           Lev Semionovitch Vigotski




                                                              Este artigo, inédito no Brasil, foi traduzido diretamente
                                                              do russo por Denise Regina Sales, Marta Kohl de Oliveira
                                                              e Priscila Nascimento Marques, que constituem um grupo
                                                              de tradução dedicado às obras de Vigotski. O texto original
                                                              (VIGOTSKI, L. S. Defektologuia i utchenie o razvitii i vos-
                                                              pitanii nenormálnogo rebionka. In: Problemi defektologuii
                                                              [Problemas de defectologia]. Moscou: Prosveschenie, 1995.
                                                              p. 451-458.) tem sua data de produção desconhecida, mas
                                                              provavelmente foi escrito entre 1924 e 1931. Sua primeira
                                                              publicação data de 1983, no quinto volume das Obras es-
                                                              colhidas, em russo (VIGOTSKI, L. S. Obras escolhidas. t. 5.
                                                              Moscou: Pedagoguika, 1983. p. 166-173); posteriormente, o
                                                              texto foi publicado nas traduções feitas na Espanha (1997) e
                                                              nos Estados Unidos (1993). Os termos defectologia e criança
                                                              anormal, utilizados no título e ao longo do artigo, foram
                                                              mantidos na presente tradução por corresponderem à termi-
                                                              nologia utilizada no início do século XX, quando Vigotski
                                                              produziu seus textos. Atualmente, seriam equivalentes às
                                                              expressões deficiência e educação especial e criança com de-
                                                              ficiência, respectivamente. Além do interesse histórico e da
                                                              indiscutível relevância de fazer traduções diretas da obra vi-
                                                              gotskiana, destaca-se neste artigo a postulação do desenvol-
                                                              vimento como um percurso tortuoso, atravessado por rup-
                                                              turas e conflitos, e a tese central do autor de que caminhos
                                                              indiretos de desenvolvimento são possibilitados pela cultura
                                                              quando o caminho direto está impedido. Isso teria especial
                                                              importância no caso das crianças com deficiência. O desen-
                                                              volvimento cultural seria, assim, a principal esfera em que é
                                                              possível compensar a deficiência.




           Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011.                                           863




Livro volume 37 n.4 .indb 863                                                                                             24/11/2011 10:48:53
Atualmente, a questão consiste em rom-               ou o homem primitivo1. Nós, homens culturais,
           per o aprisionamento biológico da psicologia                 e as crianças de idade escolar mais avançada,
           e passar para o campo da psicologia históri-                 para fazer a divisão, usamos o caminho indire-
           ca, humana. A palavra! social, aplicada à nossa              to; primeiramente, contamos os objetos e, dessa
           disciplina, possui um importante significado.                 forma, o objetivo fundamental de dividir fica
           Antes de mais nada, em seu sentido mais am-                  em segundo plano. Os homens culturais con-
           plo, essa palavra indica que tudo o que é cultu-             tam primeiro os objetos, depois os participan-
           ral é social. A cultura também é produto da vida             tes presentes; em seguida, efetuam a operação
           em sociedade e da atividade social do homem                  aritmética, por exemplo, dividem 64 objetos
           e, por isso, a própria colocação do problema do              entre quatro participantes. O número obtido in-
           desenvolvimento cultural já nos introduz dire-               dica quantos objetos devem ficar com cada um.
           tamente no plano social do desenvolvimento.                  Apenas depois disso a divisão tem início. Em
           Além disso, seria possível apontar para o fato               outras palavras, o objetivo fundamental, sem
           de que o signo localizado fora do organismo,                 dúvida, não é alcançado de modo direto, assim
           assim como o instrumento, está separado do                   que surge a tarefa. Mesmo em crianças de tenra
           indivíduo e consiste, em essência, num órgão                 idade, ele é adiado, é deixado para o final, e o
           da sociedade ou num meio social. Ademais, po-                intervalo é preenchido por uma série de opera-
           deríamos dizer que todas as funções superiores               ções, que consistem em um caminho indireto
           formaram-se não na biologia nem na história                  para a resolução da tarefa.
           da filogênese pura – esse mecanismo, que se                          Do mesmo modo, a criança começa a
           encontra na base das funções psíquicas supe-                 contar nos dedos quando, por não estar em
           riores, tem sua matriz no social. Poderíamos                 condições de dar uma resposta direta à pergun-
           indicar o resultado fundamental a que nos con-               ta do professor sobre o resultado de 6 mais 2,
           duz a história do desenvolvimento cultural da                ela conta nos dedos 6, depois 2 e diz: 8. Aqui
           criança como a sociogênese das formas supe-                  temos novamente a estrutura do caminho in-
           riores de comportamento.                                     direto para a realização de determinada ope-
                   A estrutura das formas complexas de                  ração – uma conta: a criança, sem ter uma
           comportamento da criança consiste numa es-                   resposta pronta, automática, utiliza as próprias
           trutura de caminhos indiretos, pois auxilia                  mãos, que antes eram para ela somente pano de
           quando a operação psicológica da criança re-                 fundo. Nesse caso, as mãos, que não possuem
           vela-se impossível pelo caminho direto. Porém,               relação direta com a pergunta, adquirem signi-
           uma vez que esses caminhos indiretos são ad-                 ficado de instrumento assim que a execução da
           quiridos pela humanidade no desenvolvimento                  tarefa pelo caminho direto se mostra impedida
           cultural, histórico, e uma vez que o meio social,            para a criança. Com base nessas colocações, po-
           desde o início, oferece à criança uma série de               deríamos determinar também as próprias fun-
           caminhos indiretos, então, muito frequente-                  ções, o próprio propósito que cumpre essa ope-
           mente, não percebemos que o desenvolvimento                  ração cultural na vida da criança. A estrutura
           acontece por esse caminho indireto.                          do caminho indireto surge apenas quando apa-
                   Um exemplo simples. Vamos imaginar                   rece um obstáculo ao caminho direto, quando a
           que precisamos escolher em qual de dois gru-                 1 - Fortemente influenciado por Lucien Lévy-Bruhl, Vigotski busca tratar
           pos há mais objetos, ou, então, que precisamos               supostos estágios de desenvolvimento cultural apenas como diferentes
           dividir determinado grupo de objetos em certo                entre si e não como inferiores ou superiores; entretanto, coerentemente
                                                                        com as concepções predominantes em seu tempo, ele na verdade concebe
           número de partes (dividir brinquedos ou peças                o pensamento racional e escolarizado como o modo mais avançado de
           entre algumas pessoas presentes). A operação                 funcionamento psicológico. Sendo assim, sua visão sobre essa questão po-
                                                                        deria ser atualmente considerada evolucionista e eurocêntrica, e os termos
           mais simples seria a seguinte: dividir os obje-              homem primitivo e homem cultural, mantidos nesta tradução por fidelidade
           tos a olho, como fazem as crianças mais novas                ao original, são bastante questionáveis. (N. de T.)




           864                     Lev Semionovitch VIGOTSKI. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal




Livro volume 37 n.4 .indb 864                                                                                                                  24/11/2011 10:48:53
resposta pelo caminho direto está impedida; em                              um lápis vermelho”, ou “A lebre vai ficar sem
           outras palavras, quando a situação apresenta                                orelhas”, ou “Vou ter que desenhar com o lápis
           exigências tais, que a resposta primitiva revela-                           cinza”, ou “Se eu molhar o azul na água, ele
           -se insatisfatória. Como regra geral, podemos                               vai ficar como vermelho”, e assim faz a criança.
           considerar isso como operações culturais com-                               Em outras palavras, quando não é possível dar
           plexas da criança. A criança começa a recorrer                              conta da situação por meio de uma ação, surge
           a caminhos indiretos quando, pelo caminho di-                               em cena o raciocínio: como planejar o próprio
           reto, a resposta é dificultada, ou seja, quando                              comportamento ou como conseguir o objeto
           as necessidades de adaptação que se colocam                                 que lhe falta. Às vezes, a criança tenta dar-se
           diante da criança excedem suas possibilidades,                              conta do que está acontecendo. Esse caminho
           quando, por meio da resposta natural, ela não                               indireto aparece quando o caminho direto está
           consegue dar conta da tarefa em questão.                                    impedido.
                   A título de exemplo, apresentamos nosso                                    O experimento nos convence de que a
           experimento, que é uma modificação do expe-                                  fala egocêntrica da criança é uma importante
           rimento de Jean Piaget com a fala egocêntrica                               função do discurso interior, uma vez que ela pla-
           da criança2. Observamos a fala egocêntrica da                               neja o comportamento. Sabemos até que ponto
           criança aproximadamente na mesma situação                                   aquilo que vem à mente da pessoa influencia o
           em que Piaget, mas nos propusemos investigar                                que ela faz e em que medida isso é característi-
           de que fatores ela depende. Diferentemente do                               co do comportamento humano, condiciona seus
           experimento de Piaget, dificultamos o compor-                                atos, sua atitude em relação ao meio circundan-
           tamento da criança. Nós a observamos no mo-                                 te. As origens desse planejamento encontram-
           mento de seu desenho livre, mas organizamos a                               -se na fala egocêntrica infantil.
           atividade de modo que falte à criança determi-                                     O pesquisador suíço Édouard Claparède
           nado lápis de cor. Enquanto ela está entretida                              demonstrou as leis que explicam a estrutura
           com o desenho, nós retiramos, imperceptivel-                                de tais operações indiretas; elas foram por ele
           mente, o modelo a partir do qual ela desenha;                               denominadas leis da dificuldade de tomada de
           quando ela copia o desenho em um papel de                                   consciência3 . Claparède pesquisou como sur-
           seda, retiramos, imperceptivelmente, a tachinha                             ge, na criança, a resposta ao semelhante e ao
           e a folha se solta. Em suma, organizamos o com-                             diferente e deparou com os seguintes fatos: a
           portamento da criança de modo que ela depare                                resposta ao semelhante surge antes da respos-
           com uma série de dificuldades. Constatamos,                                  ta ao diferente, enquanto a definição verbal do
           nesses casos, que a fala egocêntrica imediata-                              diferente surge antes da definição verbal do
           mente sobe para 96%, enquanto seu coeficiente                                semelhante. Claparède explica isso da seguinte
           normal fica em torno de 47%. Isso demonstra                                  forma: com relação à semelhança, não há difi-
           que a fala egocêntrica intensifica-se quando                                 culdades para a criança, ela reage diretamente,
           surgem dificuldades para a criança. Vamos su-                                não tem motivos para recorrer ao caminho in-
           por que uma criança está desenhando e preci-                                direto; com relação ao diferente, ela erra muito
           sa de um lápis vermelho. Se o lápis estiver ali,                            mais, realiza uma e outra ação, e, assim, revela-
           surgirá a fala egocêntrica? Não. Ela precisa do                             -se como surge a operação indireta. Claparède
           lápis vermelho, pega-o e desenha. Agora vamos                               formulou esta lei: procuramos compreender em
           supor que a criança precise do lápis vermelho,
                                                                                       3 - Édouard Claparède (1873-1940), em A educação funcional (1931),
           mas ele não está lá; ela olha e o lápis não está                            apresenta um conjunto de grandes leis da conduta, entre as quais se en-
           ali. É aí que surge a fala egocêntrica, o raciocí-                          contra a lei da tomada de consciência aqui citada por Vigotski. Tal lei es-
                                                                                       tabelece que o indivíduo comporta-se em relação a determinado objeto ou
           nio: “Sumiu o lápis vermelho, preciso arranjar                              processo inicialmente de forma automática, inconsciente. Posteriormente,
           2 - Quando utiliza o conceito de fala egocêntrica em Piaget, Vigotski re-   ele toma consciência desse objeto e pode comportar-se em relação a ele
           fere-se à obra A linguagem e o pensamento da criança, de 1923. (N. de T.)   recorrendo a caminhos indiretos, a partir de uma escolha consciente e não
                                                                                       levado por reações diretas, automáticas. (N. de T.)




           Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011.                                                                              865




Livro volume 37 n.4 .indb 865                                                                                                                                  24/11/2011 10:48:53
palavras ou traduzimos a operação do plano das              rompe e afasta linhas e tendências antigas de
           ações para o plano verbal à medida que apren-               seu desenvolvimento.
           demos a adaptarmo-nos, conforme deparamos                           Agora, o educador começa a compre-
           com dificuldades em nosso comportamento.                     ender que, ao entrar na cultura, a criança não
                   E, realmente, não apenas os pesquisado-             apenas toma algo dela, adquire algo, incute em
           res da fala egocêntrica, mas também os pesqui-              si algo de fora, mas também a própria cultu-
           sadores de operações mais complexas, demons-                ra reelabora todo o comportamento natural da
           tram que a estrutura dos caminhos indiretos                 criança e refaz de modo novo todo o curso do
           surge quando a operação pelo caminho direto                 desenvolvimento.
           está impedida. Em outras palavras, a função bá-                     A distinção de dois planos de desen-
           sica e o objetivo fundamental da forma superior             volvimento no comportamento (o natural e o
           de adaptação consistem em fazer com que ela                 cultural) torna-se o ponto de partida para uma
           ocorra quando a adaptação pelo caminho direto               nova teoria da educação.
           fica difícil para a criança.                                         O segundo ponto é ainda mais importan-
                   Há ainda um ponto extremamente im-                  te. Ele, pela primeira vez, introduz no campo
           portante, que pode ser assim formulado: o                   da educação a concepção dialética do desen-
           desenvolvimento das formas superiores de                    volvimento da criança. Se antes, quando não se
           comportamento acontece sob pressão da neces-                distinguiam os dois planos de desenvolvimento
           sidade; se a criança não tiver necessidade de               – o natural e o cultural –, era possível apresen-
           pensar, ela nunca irá pensar. Se as dificulda-               tar ingenuamente o desenvolvimento cultural
           des organizadas por nós obrigam a criança a                 da criança como continuação e consequência
           corrigir seu comportamento, a pensar antes de               direta de seu desenvolvimento natural, agora
           agir, a tomar consciência em palavras, como diz             tal compreensão resulta impossível. Os antigos
           Claparède, então acontece a situação mencio-                pesquisadores não viam um conflito profun-
           nada. Mas, se organizamos o experimento de                  do na transição, por exemplo, do balbucio às
           modo que a criança não depare com dificulda-                 primeiras palavras ou da percepção das figuras
           des, então a porcentagem de sua fala egocêntri-             numéricas ao sistema decimal. Eles considera-
           ca diminui imediatamente de 96% para 47%, ou                vam que um era mais ou menos a continua-
           seja, cai quase pela metade.                                ção do outro. Novas pesquisas têm mostrado,
                   Antes, os psicólogos estudavam o pro-               e nisso está seu inestimável mérito, que, onde
           cesso de desenvolvimento cultural da criança e              antes se via um caminho plano, na verdade há
           o processo de sua educação de forma unilate-                uma ruptura; onde parecia existir um movi-
           ral. Assim, todos se perguntavam quais dados                mento bem-sucedido por uma superfície plana,
           naturais da psicologia da criança condicionam               na realidade acontecem saltos. Simplificando,
           a possibilidade de seu desenvolvimento cultu-               as novas pesquisas indicaram pontos de vira-
           ral, em quais funções naturais da criança deve              gem no desenvolvimento, em que os antigos
           apoiar-se o pedagogo para introduzi-la nessa                supunham haver um movimento em linha reta.
           ou naquela esfera da cultura. Estudavam, por                Com isso, elas esclareceram os pontos nodais
           exemplo, como o desenvolvimento da fala, ou                 do desenvolvimento da criança mais importan-
           a aprendizagem da aritmética, depende de fun-               tes para a educação. Mas é natural que, junta-
           ções naturais da criança, como ele é preparado              mente com isso, desapareça também a antiga
           no processo de crescimento natural da criança,              concepção sobre o próprio caráter da educação.
           mas não estudavam o contrário: como a assi-                 Onde a antiga teoria podia falar em colabora-
           milação da fala ou da aritmética transforma as              ção, a nova fala em luta. No primeiro caso, a
           funções naturais do aluno, como ela reconstrói              teoria ensinava à criança a dar passos lentos e
           todo o curso de seu pensamento natural, como                tranquilos; a nova deve ensiná-la a saltar. Essa



           866                    Lev Semionovitch VIGOTSKI. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal




Livro volume 37 n.4 .indb 866                                                                                                          24/11/2011 10:48:53
mudança radical no ponto de vista educacio-                           pios da educação quando nos aproximamos da
           nal, que emerge como resultado da revisão dos                         educação da criança anormal.
           problemas fundamentais do desenvolvimento                                     Aqui o caso é essencialmente diferente
           cultural da criança, pode ser ilustrada em cada                       daquele observado no campo da educação da
           problema metodológico, em cada capítulo de                            criança normal. Todo o aparato da cultura hu-
           nossa pesquisa.                                                       mana (da forma exterior de comportamento)
                  A tarefa de cada teoria científica in-                          está adaptado à organização psicofísiológica
           clui a análise das relações existentes entre o                        normal da pessoa. Toda a nossa cultura é cal-
           meio e o organismo e dos seus principais ti-                          culada para a pessoa dotada de certos órgãos
           pos. Entretanto, essa posição expressa, de fato,                      – mão, olho, ouvido – e de certas funções cere-
           a ideia de que o desenvolvimento da criança                           brais. Todos os nossos instrumentos, toda a téc-
           em cada época cultural coincide mais ou me-                           nica, todos os signos e símbolos são calculados
           nos com pontos determinados da linha de seu                           para um tipo normal de pessoa. E daqui surge
           desenvolvimento cultural. Assim, se examinar-                         aquela ilusão de convergência, de passagem
           mos fenotipicamente o fenômeno, à primeira                            natural das formas naturais às culturais, que,
           vista parece de fato que, em certo estágio de                         de fato, não é possível pela própria natureza
           desenvolvimento do cérebro e de acúmulo de                            das coisas e a qual tentamos revelar em seu ver-
           experiência, a criança adquire a fala humana;                         dadeiro conteúdo.
           num estágio mais avançado, ela domina o sis-                                  Quando surge diante de nós uma criança
           tema numérico; mais adiante, em condições                             que se afasta do tipo humano normal, com o
           favoráveis, entra no mundo da álgebra. Aqui                           agravante de uma deficiência na organização
           é como se houvesse plena coincidência ou,                             psicofisiológica, imediatamente, mesmo aos
           mais provavelmente, concordância das linhas                           olhos de um observador leigo, a convergên-
           de desenvolvimento. Mas esse é um ponto de                            cia dá lugar a uma profunda divergência, uma
           vista enganoso. Por trás dele esconde-se uma                          discrepância, uma disparidade entre as linhas
           discrepância profunda, um conflito complexo,                           natural e cultural do desenvolvimento da crian-
           em que sempre se transforma o encontro com                            ça. Por si só, entregue a seu desenvolvimento
           um novo estágio de desenvolvimento, pois, na                          natural, a criança surda-muda nunca aprenderá
           verdade, a linha de desenvolvimento natural da                        a falar, a cega nunca dominará a escrita. Aqui
           criança, entregue à própria lógica, nunca passa                       a educação surge em auxílio, criando técnicas
           para a linha do desenvolvimento cultural.                             artificiais, culturais, um sistema especial de sig-
                  A transformação do material natural em                         nos ou símbolos culturais adaptados às pecu-
           uma forma histórica é sempre um processo não                          liaridades da organização psicofisiológica da
           de simples mudança orgânica, mas de comple-                           criança anormal.
           xa mudança do próprio tipo de desenvolvimen-                                  Assim, no caso dos cegos, a escrita visual
           to. Assim, a principal conclusão que pode ser ti-                     é substituída pela tátil – o sistema Braille permi-
           rada da história do desenvolvimento cultural da                       te compor todo o alfabeto por meio de diferentes
           criança, em relação à sua educação, é a seguin-                       combinações de pontos em relevo, permite ler to-
           te: à educação cumpre sempre enfrentar uma                            cando esses pontos na página, e escrever perfu-
           subida onde antes se via um caminho plano;                            rando o papel e marcando nele pontos em relevo.
           ela deve dar um salto onde até então parecia                          Exatamente do mesmo modo, no caso dos sur-
           ser possível limitar-se a um passo. O primeiro                        dos-mudos, a dactilologia (ou alfabeto manual)
           mérito da nova pesquisa consiste exatamente                           permite substituir por signos visuais, por diversas
           em ter revelado um quadro complexo onde an-                           posições das mãos, os signos sonoros do nosso
           tes se via um simples. Mas esse ponto de vista                        alfabeto e compor no ar uma escrita especial, que
           produz uma verdadeira revolução nos princí-                           a criança surda-muda lê com os olhos.



           Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011.                                                  867




Livro volume 37 n.4 .indb 867                                                                                                     24/11/2011 10:48:53
A educação vai ainda mais longe e en-                         Nós nos acostumamos com a ideia de
           sina ao surdo-mudo a língua falada, uma vez                   que o homem lê com os olhos e fala com a boca,
           que seu aparelho fonador geralmente não está                  e somente o grande experimento cultural que
           prejudicado. Essa criança, surda de nascença, só              mostrou ser possível ler com os dedos e falar
           se torna muda por estar privada de percepção                  com as mãos revela-nos toda a convenciona-
           auditiva. A educação ensina o surdo a compre-                 lidade e a mobilidade das formas culturais de
           ender a língua falada pela leitura dos lábios do              comportamento. Psicologicamente, essas for-
           falante, ou seja, substituindo os sons da fala por            mas de educação conseguem superar o mais
           imagens visuais, movimentos da boca e dos lá-                 importante, ou seja, a educação consegue incu-
           bios. O surdo-mudo aprende a falar utilizando,                tir na criança surda-muda e na cega a fala e a
           para isso, o tato, a imitação de sinais e as sen-             escrita no sentido próprio dessas palavras.
           sações cinestésicas.                                                 O importante é que a criança cega lê, as-
                  Esses caminhos alternativos especial-                  sim como nós lemos, mas essa função cultural é
           mente construídos para o desenvolvimento cul-                 garantida por um aparato psicofisiológico com-
           tural da criança cega e da surda-muda, a língua               pletamente diferente do nosso. E, para a criança
           escrita e falada especialmente criada para elas               surda-muda, o mais importante, do ponto de
           são extremamente importantes na história do                   vista do desenvolvimento cultural, é que a fala
           desenvolvimento cultural em dois aspectos. Os                 humana é garantida por um aparato psicofisio-
           cegos e os surdos-mudos são como um expe-                     lógico completamente diferente.
           rimento natural que demonstra que o desen-                           Dessa forma, a primeira lição que esses
           volvimento cultural do comportamento não se                   exemplos nos ensinam é a independência das
           relaciona, necessariamente, com essa ou aquela                formas culturais de comportamento em rela-
           função orgânica. A fala não está obrigatoria-                 ção a esse ou aquele aparato psicofisiológico.
           mente ligada ao aparelho fonador; ela pode ser                A segunda lição, particularmente evidente no
           realizada em outro sistema de signos, assim                   exemplo das crianças surdas-mudas, refere-se
           como a escrita pode ser transferida do caminho                ao desenvolvimento espontâneo das formas
           visual para o tátil.                                          culturais de comportamento. As crianças sur-
                  Os casos de desenvolvimento anômalo                    das-mudas, por si mesmas, desenvolvem uma
           permitem observar, com máxima clareza, a di-                  língua mímica complexa, uma fala singular. É
           vergência entre o desenvolvimento cultural e o                criada uma forma particular de fala não para
           natural, a qual, em essência, ocorre também na                surdos-mudos, mas construída pelos próprios
           criança normal, mas aqui emerge com máxima                    surdos-mudos. É criada uma língua original,
           nitidez justamente porque, entre os surdos-mu-                que se distingue de todas as línguas humanas
           dos e os cegos, nota-se uma impressionante dis-               contemporâneas mais profundamente do que
           crepância entre as formas culturais de comporta-              estas entre si, pois ela retorna à mais antiga
           mento, destinadas à organização psicofisiológica               protolíngua humana, à língua dos gestos ou até
           normal da pessoa, e o comportamento da criança                mesmo só das mãos.
           acometida por essa ou aquela deficiência. Porém,                      Por si só, mesmo privada de qualquer
           mais importante, as formas culturais de compor-               instrução, a criança ingressa no caminho do
           tamento são o único caminho para a educação                   desenvolvimento cultural; em outras pala-
           da criança anormal. Elas consistem na criação                 vras, é no desenvolvimento psicológico natu-
           de caminhos indiretos de desenvolvimento onde                 ral da criança e no seu meio circundante, na
           este resulta impossível por caminhos diretos. A               necessidade de comunicação com esse meio,
           língua escrita para os cegos e a escrita no ar para           que se encontram todos os dados necessários
           os surdos-mudos são tais caminhos psicofisioló-                para que se realize uma espécie de autoignição
           gicos alternativos de desenvolvimento cultural.               do desenvolvimento cultural, uma passagem



           868                      Lev Semionovitch VIGOTSKI. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal




Livro volume 37 n.4 .indb 868                                                                                                            24/11/2011 10:48:53
espontânea da criança do desenvolvimento                              mento cultural, seja ele pela linha do domínio
           natural ao cultural.                                                  dos meios externos da cultura (fala, escrita,
                   Esses dois aspectos, tomados em con-                          aritmética), ou pela linha do aperfeiçoamento
           junto, levam-nos a uma reavaliação radical                            interno das próprias funções psíquicas (elabo-
           do olhar contemporâneo sobre a educação da                            ração da atenção voluntária, da memória ló-
           criança anormal. O olhar tradicional partia da                        gica, do pensamento abstrato, da formação de
           ideia de que o defeito significa menos, falha,                         conceitos, do livre-arbítrio e assim por diante).
           deficiência, limita e estreita o desenvolvimen-                        As pesquisas mostram que a criança anormal,
           to da criança, o qual era caracterizado, antes                        em geral, tem atrasos justamente nesse aspec-
           de mais nada, pelo ângulo da perda dessa ou                           to. Tal desenvolvimento não depende da defi-
           daquela função. Toda a psicologia da criança                          ciência orgânica.
           anormal foi construída, em geral, pelo método                                Eis por que a história do desenvolvimen-
           da subtração das funções perdidas em relação à                        to cultural da criança permite propor a seguinte
           psicologia da criança normal.                                         tese: o desenvolvimento cultural é a principal
                   Para substituir essa compreensão, surge                       esfera em que é possível compensar a defici-
           outra, que examina a dinâmica do desenvolvi-                          ência. Onde não é possível avançar no desen-
           mento da criança com deficiência partindo da                           volvimento orgânico, abre-se um caminho sem
           posição fundamental de que o defeito exerce                           limites para o desenvolvimento cultural.
           uma dupla influência em seu desenvolvimento.                                  Ao falar sobre talento, detemo-nos espe-
           Por um lado, ele é uma deficiência e atua dire-                        cialmente no modo como a cultura nivela as di-
           tamente como tal, produzindo falhas, obstácu-                         ferenças de talento e como o desenvolvimento
           los, dificuldades na adaptação da criança. Por                         cultural apaga ou, mais precisamente, converte
           outro lado, exatamente porque o defeito produz                        em histórica a superação natural do desenvol-
           obstáculos e dificuldades no desenvolvimento e                         vimento orgânico incompleto.
           rompe o equilíbrio normal, ele serve de estímu-                              Resta-nos apenas acrescentar que, em
           lo ao desenvolvimento de caminhos alternati-                          relação ao desenvolvimento cultural dos meios
           vos de adaptação, indiretos, os quais substituem                      internos de comportamento (atenção voluntária
           ou superpõem funções que buscam compensar                             e pensamento abstrato), deve ser criada a mes-
           a deficiência e conduzir todo o sistema de equi-                       ma técnica de caminhos alternativos que exis-
           líbrio rompido a uma nova ordem.                                      te em relação ao desenvolvimento dos meios
                   Dessa forma, o novo ponto de vista                            externos do comportamento cultural. Para a
           prescreve que se considere não apenas as ca-                          criança intelectualmente atrasada, deve ser
           racterísticas negativas da criança, não só suas                       criado, em relação ao desenvolvimento de suas
           faltas, mas também um retrato positivo de sua                         funções superiores de atenção e pensamento,
           personalidade, o qual apresenta, antes de mais                        algo que lembre o sistema Braille para a crian-
           nada, um quadro dos complexos caminhos                                ça cega ou a dactilologia para a muda, isto é,
           indiretos do desenvolvimento. O desenvolvi-                           um sistema de caminhos indiretos de desenvol-
           mento das funções psíquicas superiores é pos-                         vimento cultural, quando os caminhos diretos
           sível somente pelos caminhos do desenvolvi-                           estão impedidos devido ao defeito.




           Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011.                                                869




Livro volume 37 n.4 .indb 869                                                                                                   24/11/2011 10:48:53
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A defectologia e o desenvolvimento da criança anormal segundo Vigotski

  • 1. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal Lev Semionovitch Vigotski Este artigo, inédito no Brasil, foi traduzido diretamente do russo por Denise Regina Sales, Marta Kohl de Oliveira e Priscila Nascimento Marques, que constituem um grupo de tradução dedicado às obras de Vigotski. O texto original (VIGOTSKI, L. S. Defektologuia i utchenie o razvitii i vos- pitanii nenormálnogo rebionka. In: Problemi defektologuii [Problemas de defectologia]. Moscou: Prosveschenie, 1995. p. 451-458.) tem sua data de produção desconhecida, mas provavelmente foi escrito entre 1924 e 1931. Sua primeira publicação data de 1983, no quinto volume das Obras es- colhidas, em russo (VIGOTSKI, L. S. Obras escolhidas. t. 5. Moscou: Pedagoguika, 1983. p. 166-173); posteriormente, o texto foi publicado nas traduções feitas na Espanha (1997) e nos Estados Unidos (1993). Os termos defectologia e criança anormal, utilizados no título e ao longo do artigo, foram mantidos na presente tradução por corresponderem à termi- nologia utilizada no início do século XX, quando Vigotski produziu seus textos. Atualmente, seriam equivalentes às expressões deficiência e educação especial e criança com de- ficiência, respectivamente. Além do interesse histórico e da indiscutível relevância de fazer traduções diretas da obra vi- gotskiana, destaca-se neste artigo a postulação do desenvol- vimento como um percurso tortuoso, atravessado por rup- turas e conflitos, e a tese central do autor de que caminhos indiretos de desenvolvimento são possibilitados pela cultura quando o caminho direto está impedido. Isso teria especial importância no caso das crianças com deficiência. O desen- volvimento cultural seria, assim, a principal esfera em que é possível compensar a deficiência. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011. 863 Livro volume 37 n.4 .indb 863 24/11/2011 10:48:53
  • 2. Atualmente, a questão consiste em rom- ou o homem primitivo1. Nós, homens culturais, per o aprisionamento biológico da psicologia e as crianças de idade escolar mais avançada, e passar para o campo da psicologia históri- para fazer a divisão, usamos o caminho indire- ca, humana. A palavra! social, aplicada à nossa to; primeiramente, contamos os objetos e, dessa disciplina, possui um importante significado. forma, o objetivo fundamental de dividir fica Antes de mais nada, em seu sentido mais am- em segundo plano. Os homens culturais con- plo, essa palavra indica que tudo o que é cultu- tam primeiro os objetos, depois os participan- ral é social. A cultura também é produto da vida tes presentes; em seguida, efetuam a operação em sociedade e da atividade social do homem aritmética, por exemplo, dividem 64 objetos e, por isso, a própria colocação do problema do entre quatro participantes. O número obtido in- desenvolvimento cultural já nos introduz dire- dica quantos objetos devem ficar com cada um. tamente no plano social do desenvolvimento. Apenas depois disso a divisão tem início. Em Além disso, seria possível apontar para o fato outras palavras, o objetivo fundamental, sem de que o signo localizado fora do organismo, dúvida, não é alcançado de modo direto, assim assim como o instrumento, está separado do que surge a tarefa. Mesmo em crianças de tenra indivíduo e consiste, em essência, num órgão idade, ele é adiado, é deixado para o final, e o da sociedade ou num meio social. Ademais, po- intervalo é preenchido por uma série de opera- deríamos dizer que todas as funções superiores ções, que consistem em um caminho indireto formaram-se não na biologia nem na história para a resolução da tarefa. da filogênese pura – esse mecanismo, que se Do mesmo modo, a criança começa a encontra na base das funções psíquicas supe- contar nos dedos quando, por não estar em riores, tem sua matriz no social. Poderíamos condições de dar uma resposta direta à pergun- indicar o resultado fundamental a que nos con- ta do professor sobre o resultado de 6 mais 2, duz a história do desenvolvimento cultural da ela conta nos dedos 6, depois 2 e diz: 8. Aqui criança como a sociogênese das formas supe- temos novamente a estrutura do caminho in- riores de comportamento. direto para a realização de determinada ope- A estrutura das formas complexas de ração – uma conta: a criança, sem ter uma comportamento da criança consiste numa es- resposta pronta, automática, utiliza as próprias trutura de caminhos indiretos, pois auxilia mãos, que antes eram para ela somente pano de quando a operação psicológica da criança re- fundo. Nesse caso, as mãos, que não possuem vela-se impossível pelo caminho direto. Porém, relação direta com a pergunta, adquirem signi- uma vez que esses caminhos indiretos são ad- ficado de instrumento assim que a execução da quiridos pela humanidade no desenvolvimento tarefa pelo caminho direto se mostra impedida cultural, histórico, e uma vez que o meio social, para a criança. Com base nessas colocações, po- desde o início, oferece à criança uma série de deríamos determinar também as próprias fun- caminhos indiretos, então, muito frequente- ções, o próprio propósito que cumpre essa ope- mente, não percebemos que o desenvolvimento ração cultural na vida da criança. A estrutura acontece por esse caminho indireto. do caminho indireto surge apenas quando apa- Um exemplo simples. Vamos imaginar rece um obstáculo ao caminho direto, quando a que precisamos escolher em qual de dois gru- 1 - Fortemente influenciado por Lucien Lévy-Bruhl, Vigotski busca tratar pos há mais objetos, ou, então, que precisamos supostos estágios de desenvolvimento cultural apenas como diferentes dividir determinado grupo de objetos em certo entre si e não como inferiores ou superiores; entretanto, coerentemente com as concepções predominantes em seu tempo, ele na verdade concebe número de partes (dividir brinquedos ou peças o pensamento racional e escolarizado como o modo mais avançado de entre algumas pessoas presentes). A operação funcionamento psicológico. Sendo assim, sua visão sobre essa questão po- deria ser atualmente considerada evolucionista e eurocêntrica, e os termos mais simples seria a seguinte: dividir os obje- homem primitivo e homem cultural, mantidos nesta tradução por fidelidade tos a olho, como fazem as crianças mais novas ao original, são bastante questionáveis. (N. de T.) 864 Lev Semionovitch VIGOTSKI. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal Livro volume 37 n.4 .indb 864 24/11/2011 10:48:53
  • 3. resposta pelo caminho direto está impedida; em um lápis vermelho”, ou “A lebre vai ficar sem outras palavras, quando a situação apresenta orelhas”, ou “Vou ter que desenhar com o lápis exigências tais, que a resposta primitiva revela- cinza”, ou “Se eu molhar o azul na água, ele -se insatisfatória. Como regra geral, podemos vai ficar como vermelho”, e assim faz a criança. considerar isso como operações culturais com- Em outras palavras, quando não é possível dar plexas da criança. A criança começa a recorrer conta da situação por meio de uma ação, surge a caminhos indiretos quando, pelo caminho di- em cena o raciocínio: como planejar o próprio reto, a resposta é dificultada, ou seja, quando comportamento ou como conseguir o objeto as necessidades de adaptação que se colocam que lhe falta. Às vezes, a criança tenta dar-se diante da criança excedem suas possibilidades, conta do que está acontecendo. Esse caminho quando, por meio da resposta natural, ela não indireto aparece quando o caminho direto está consegue dar conta da tarefa em questão. impedido. A título de exemplo, apresentamos nosso O experimento nos convence de que a experimento, que é uma modificação do expe- fala egocêntrica da criança é uma importante rimento de Jean Piaget com a fala egocêntrica função do discurso interior, uma vez que ela pla- da criança2. Observamos a fala egocêntrica da neja o comportamento. Sabemos até que ponto criança aproximadamente na mesma situação aquilo que vem à mente da pessoa influencia o em que Piaget, mas nos propusemos investigar que ela faz e em que medida isso é característi- de que fatores ela depende. Diferentemente do co do comportamento humano, condiciona seus experimento de Piaget, dificultamos o compor- atos, sua atitude em relação ao meio circundan- tamento da criança. Nós a observamos no mo- te. As origens desse planejamento encontram- mento de seu desenho livre, mas organizamos a -se na fala egocêntrica infantil. atividade de modo que falte à criança determi- O pesquisador suíço Édouard Claparède nado lápis de cor. Enquanto ela está entretida demonstrou as leis que explicam a estrutura com o desenho, nós retiramos, imperceptivel- de tais operações indiretas; elas foram por ele mente, o modelo a partir do qual ela desenha; denominadas leis da dificuldade de tomada de quando ela copia o desenho em um papel de consciência3 . Claparède pesquisou como sur- seda, retiramos, imperceptivelmente, a tachinha ge, na criança, a resposta ao semelhante e ao e a folha se solta. Em suma, organizamos o com- diferente e deparou com os seguintes fatos: a portamento da criança de modo que ela depare resposta ao semelhante surge antes da respos- com uma série de dificuldades. Constatamos, ta ao diferente, enquanto a definição verbal do nesses casos, que a fala egocêntrica imediata- diferente surge antes da definição verbal do mente sobe para 96%, enquanto seu coeficiente semelhante. Claparède explica isso da seguinte normal fica em torno de 47%. Isso demonstra forma: com relação à semelhança, não há difi- que a fala egocêntrica intensifica-se quando culdades para a criança, ela reage diretamente, surgem dificuldades para a criança. Vamos su- não tem motivos para recorrer ao caminho in- por que uma criança está desenhando e preci- direto; com relação ao diferente, ela erra muito sa de um lápis vermelho. Se o lápis estiver ali, mais, realiza uma e outra ação, e, assim, revela- surgirá a fala egocêntrica? Não. Ela precisa do -se como surge a operação indireta. Claparède lápis vermelho, pega-o e desenha. Agora vamos formulou esta lei: procuramos compreender em supor que a criança precise do lápis vermelho, 3 - Édouard Claparède (1873-1940), em A educação funcional (1931), mas ele não está lá; ela olha e o lápis não está apresenta um conjunto de grandes leis da conduta, entre as quais se en- ali. É aí que surge a fala egocêntrica, o raciocí- contra a lei da tomada de consciência aqui citada por Vigotski. Tal lei es- tabelece que o indivíduo comporta-se em relação a determinado objeto ou nio: “Sumiu o lápis vermelho, preciso arranjar processo inicialmente de forma automática, inconsciente. Posteriormente, 2 - Quando utiliza o conceito de fala egocêntrica em Piaget, Vigotski re- ele toma consciência desse objeto e pode comportar-se em relação a ele fere-se à obra A linguagem e o pensamento da criança, de 1923. (N. de T.) recorrendo a caminhos indiretos, a partir de uma escolha consciente e não levado por reações diretas, automáticas. (N. de T.) Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011. 865 Livro volume 37 n.4 .indb 865 24/11/2011 10:48:53
  • 4. palavras ou traduzimos a operação do plano das rompe e afasta linhas e tendências antigas de ações para o plano verbal à medida que apren- seu desenvolvimento. demos a adaptarmo-nos, conforme deparamos Agora, o educador começa a compre- com dificuldades em nosso comportamento. ender que, ao entrar na cultura, a criança não E, realmente, não apenas os pesquisado- apenas toma algo dela, adquire algo, incute em res da fala egocêntrica, mas também os pesqui- si algo de fora, mas também a própria cultu- sadores de operações mais complexas, demons- ra reelabora todo o comportamento natural da tram que a estrutura dos caminhos indiretos criança e refaz de modo novo todo o curso do surge quando a operação pelo caminho direto desenvolvimento. está impedida. Em outras palavras, a função bá- A distinção de dois planos de desen- sica e o objetivo fundamental da forma superior volvimento no comportamento (o natural e o de adaptação consistem em fazer com que ela cultural) torna-se o ponto de partida para uma ocorra quando a adaptação pelo caminho direto nova teoria da educação. fica difícil para a criança. O segundo ponto é ainda mais importan- Há ainda um ponto extremamente im- te. Ele, pela primeira vez, introduz no campo portante, que pode ser assim formulado: o da educação a concepção dialética do desen- desenvolvimento das formas superiores de volvimento da criança. Se antes, quando não se comportamento acontece sob pressão da neces- distinguiam os dois planos de desenvolvimento sidade; se a criança não tiver necessidade de – o natural e o cultural –, era possível apresen- pensar, ela nunca irá pensar. Se as dificulda- tar ingenuamente o desenvolvimento cultural des organizadas por nós obrigam a criança a da criança como continuação e consequência corrigir seu comportamento, a pensar antes de direta de seu desenvolvimento natural, agora agir, a tomar consciência em palavras, como diz tal compreensão resulta impossível. Os antigos Claparède, então acontece a situação mencio- pesquisadores não viam um conflito profun- nada. Mas, se organizamos o experimento de do na transição, por exemplo, do balbucio às modo que a criança não depare com dificulda- primeiras palavras ou da percepção das figuras des, então a porcentagem de sua fala egocêntri- numéricas ao sistema decimal. Eles considera- ca diminui imediatamente de 96% para 47%, ou vam que um era mais ou menos a continua- seja, cai quase pela metade. ção do outro. Novas pesquisas têm mostrado, Antes, os psicólogos estudavam o pro- e nisso está seu inestimável mérito, que, onde cesso de desenvolvimento cultural da criança e antes se via um caminho plano, na verdade há o processo de sua educação de forma unilate- uma ruptura; onde parecia existir um movi- ral. Assim, todos se perguntavam quais dados mento bem-sucedido por uma superfície plana, naturais da psicologia da criança condicionam na realidade acontecem saltos. Simplificando, a possibilidade de seu desenvolvimento cultu- as novas pesquisas indicaram pontos de vira- ral, em quais funções naturais da criança deve gem no desenvolvimento, em que os antigos apoiar-se o pedagogo para introduzi-la nessa supunham haver um movimento em linha reta. ou naquela esfera da cultura. Estudavam, por Com isso, elas esclareceram os pontos nodais exemplo, como o desenvolvimento da fala, ou do desenvolvimento da criança mais importan- a aprendizagem da aritmética, depende de fun- tes para a educação. Mas é natural que, junta- ções naturais da criança, como ele é preparado mente com isso, desapareça também a antiga no processo de crescimento natural da criança, concepção sobre o próprio caráter da educação. mas não estudavam o contrário: como a assi- Onde a antiga teoria podia falar em colabora- milação da fala ou da aritmética transforma as ção, a nova fala em luta. No primeiro caso, a funções naturais do aluno, como ela reconstrói teoria ensinava à criança a dar passos lentos e todo o curso de seu pensamento natural, como tranquilos; a nova deve ensiná-la a saltar. Essa 866 Lev Semionovitch VIGOTSKI. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal Livro volume 37 n.4 .indb 866 24/11/2011 10:48:53
  • 5. mudança radical no ponto de vista educacio- pios da educação quando nos aproximamos da nal, que emerge como resultado da revisão dos educação da criança anormal. problemas fundamentais do desenvolvimento Aqui o caso é essencialmente diferente cultural da criança, pode ser ilustrada em cada daquele observado no campo da educação da problema metodológico, em cada capítulo de criança normal. Todo o aparato da cultura hu- nossa pesquisa. mana (da forma exterior de comportamento) A tarefa de cada teoria científica in- está adaptado à organização psicofísiológica clui a análise das relações existentes entre o normal da pessoa. Toda a nossa cultura é cal- meio e o organismo e dos seus principais ti- culada para a pessoa dotada de certos órgãos pos. Entretanto, essa posição expressa, de fato, – mão, olho, ouvido – e de certas funções cere- a ideia de que o desenvolvimento da criança brais. Todos os nossos instrumentos, toda a téc- em cada época cultural coincide mais ou me- nica, todos os signos e símbolos são calculados nos com pontos determinados da linha de seu para um tipo normal de pessoa. E daqui surge desenvolvimento cultural. Assim, se examinar- aquela ilusão de convergência, de passagem mos fenotipicamente o fenômeno, à primeira natural das formas naturais às culturais, que, vista parece de fato que, em certo estágio de de fato, não é possível pela própria natureza desenvolvimento do cérebro e de acúmulo de das coisas e a qual tentamos revelar em seu ver- experiência, a criança adquire a fala humana; dadeiro conteúdo. num estágio mais avançado, ela domina o sis- Quando surge diante de nós uma criança tema numérico; mais adiante, em condições que se afasta do tipo humano normal, com o favoráveis, entra no mundo da álgebra. Aqui agravante de uma deficiência na organização é como se houvesse plena coincidência ou, psicofisiológica, imediatamente, mesmo aos mais provavelmente, concordância das linhas olhos de um observador leigo, a convergên- de desenvolvimento. Mas esse é um ponto de cia dá lugar a uma profunda divergência, uma vista enganoso. Por trás dele esconde-se uma discrepância, uma disparidade entre as linhas discrepância profunda, um conflito complexo, natural e cultural do desenvolvimento da crian- em que sempre se transforma o encontro com ça. Por si só, entregue a seu desenvolvimento um novo estágio de desenvolvimento, pois, na natural, a criança surda-muda nunca aprenderá verdade, a linha de desenvolvimento natural da a falar, a cega nunca dominará a escrita. Aqui criança, entregue à própria lógica, nunca passa a educação surge em auxílio, criando técnicas para a linha do desenvolvimento cultural. artificiais, culturais, um sistema especial de sig- A transformação do material natural em nos ou símbolos culturais adaptados às pecu- uma forma histórica é sempre um processo não liaridades da organização psicofisiológica da de simples mudança orgânica, mas de comple- criança anormal. xa mudança do próprio tipo de desenvolvimen- Assim, no caso dos cegos, a escrita visual to. Assim, a principal conclusão que pode ser ti- é substituída pela tátil – o sistema Braille permi- rada da história do desenvolvimento cultural da te compor todo o alfabeto por meio de diferentes criança, em relação à sua educação, é a seguin- combinações de pontos em relevo, permite ler to- te: à educação cumpre sempre enfrentar uma cando esses pontos na página, e escrever perfu- subida onde antes se via um caminho plano; rando o papel e marcando nele pontos em relevo. ela deve dar um salto onde até então parecia Exatamente do mesmo modo, no caso dos sur- ser possível limitar-se a um passo. O primeiro dos-mudos, a dactilologia (ou alfabeto manual) mérito da nova pesquisa consiste exatamente permite substituir por signos visuais, por diversas em ter revelado um quadro complexo onde an- posições das mãos, os signos sonoros do nosso tes se via um simples. Mas esse ponto de vista alfabeto e compor no ar uma escrita especial, que produz uma verdadeira revolução nos princí- a criança surda-muda lê com os olhos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011. 867 Livro volume 37 n.4 .indb 867 24/11/2011 10:48:53
  • 6. A educação vai ainda mais longe e en- Nós nos acostumamos com a ideia de sina ao surdo-mudo a língua falada, uma vez que o homem lê com os olhos e fala com a boca, que seu aparelho fonador geralmente não está e somente o grande experimento cultural que prejudicado. Essa criança, surda de nascença, só mostrou ser possível ler com os dedos e falar se torna muda por estar privada de percepção com as mãos revela-nos toda a convenciona- auditiva. A educação ensina o surdo a compre- lidade e a mobilidade das formas culturais de ender a língua falada pela leitura dos lábios do comportamento. Psicologicamente, essas for- falante, ou seja, substituindo os sons da fala por mas de educação conseguem superar o mais imagens visuais, movimentos da boca e dos lá- importante, ou seja, a educação consegue incu- bios. O surdo-mudo aprende a falar utilizando, tir na criança surda-muda e na cega a fala e a para isso, o tato, a imitação de sinais e as sen- escrita no sentido próprio dessas palavras. sações cinestésicas. O importante é que a criança cega lê, as- Esses caminhos alternativos especial- sim como nós lemos, mas essa função cultural é mente construídos para o desenvolvimento cul- garantida por um aparato psicofisiológico com- tural da criança cega e da surda-muda, a língua pletamente diferente do nosso. E, para a criança escrita e falada especialmente criada para elas surda-muda, o mais importante, do ponto de são extremamente importantes na história do vista do desenvolvimento cultural, é que a fala desenvolvimento cultural em dois aspectos. Os humana é garantida por um aparato psicofisio- cegos e os surdos-mudos são como um expe- lógico completamente diferente. rimento natural que demonstra que o desen- Dessa forma, a primeira lição que esses volvimento cultural do comportamento não se exemplos nos ensinam é a independência das relaciona, necessariamente, com essa ou aquela formas culturais de comportamento em rela- função orgânica. A fala não está obrigatoria- ção a esse ou aquele aparato psicofisiológico. mente ligada ao aparelho fonador; ela pode ser A segunda lição, particularmente evidente no realizada em outro sistema de signos, assim exemplo das crianças surdas-mudas, refere-se como a escrita pode ser transferida do caminho ao desenvolvimento espontâneo das formas visual para o tátil. culturais de comportamento. As crianças sur- Os casos de desenvolvimento anômalo das-mudas, por si mesmas, desenvolvem uma permitem observar, com máxima clareza, a di- língua mímica complexa, uma fala singular. É vergência entre o desenvolvimento cultural e o criada uma forma particular de fala não para natural, a qual, em essência, ocorre também na surdos-mudos, mas construída pelos próprios criança normal, mas aqui emerge com máxima surdos-mudos. É criada uma língua original, nitidez justamente porque, entre os surdos-mu- que se distingue de todas as línguas humanas dos e os cegos, nota-se uma impressionante dis- contemporâneas mais profundamente do que crepância entre as formas culturais de comporta- estas entre si, pois ela retorna à mais antiga mento, destinadas à organização psicofisiológica protolíngua humana, à língua dos gestos ou até normal da pessoa, e o comportamento da criança mesmo só das mãos. acometida por essa ou aquela deficiência. Porém, Por si só, mesmo privada de qualquer mais importante, as formas culturais de compor- instrução, a criança ingressa no caminho do tamento são o único caminho para a educação desenvolvimento cultural; em outras pala- da criança anormal. Elas consistem na criação vras, é no desenvolvimento psicológico natu- de caminhos indiretos de desenvolvimento onde ral da criança e no seu meio circundante, na este resulta impossível por caminhos diretos. A necessidade de comunicação com esse meio, língua escrita para os cegos e a escrita no ar para que se encontram todos os dados necessários os surdos-mudos são tais caminhos psicofisioló- para que se realize uma espécie de autoignição gicos alternativos de desenvolvimento cultural. do desenvolvimento cultural, uma passagem 868 Lev Semionovitch VIGOTSKI. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal Livro volume 37 n.4 .indb 868 24/11/2011 10:48:53
  • 7. espontânea da criança do desenvolvimento mento cultural, seja ele pela linha do domínio natural ao cultural. dos meios externos da cultura (fala, escrita, Esses dois aspectos, tomados em con- aritmética), ou pela linha do aperfeiçoamento junto, levam-nos a uma reavaliação radical interno das próprias funções psíquicas (elabo- do olhar contemporâneo sobre a educação da ração da atenção voluntária, da memória ló- criança anormal. O olhar tradicional partia da gica, do pensamento abstrato, da formação de ideia de que o defeito significa menos, falha, conceitos, do livre-arbítrio e assim por diante). deficiência, limita e estreita o desenvolvimen- As pesquisas mostram que a criança anormal, to da criança, o qual era caracterizado, antes em geral, tem atrasos justamente nesse aspec- de mais nada, pelo ângulo da perda dessa ou to. Tal desenvolvimento não depende da defi- daquela função. Toda a psicologia da criança ciência orgânica. anormal foi construída, em geral, pelo método Eis por que a história do desenvolvimen- da subtração das funções perdidas em relação à to cultural da criança permite propor a seguinte psicologia da criança normal. tese: o desenvolvimento cultural é a principal Para substituir essa compreensão, surge esfera em que é possível compensar a defici- outra, que examina a dinâmica do desenvolvi- ência. Onde não é possível avançar no desen- mento da criança com deficiência partindo da volvimento orgânico, abre-se um caminho sem posição fundamental de que o defeito exerce limites para o desenvolvimento cultural. uma dupla influência em seu desenvolvimento. Ao falar sobre talento, detemo-nos espe- Por um lado, ele é uma deficiência e atua dire- cialmente no modo como a cultura nivela as di- tamente como tal, produzindo falhas, obstácu- ferenças de talento e como o desenvolvimento los, dificuldades na adaptação da criança. Por cultural apaga ou, mais precisamente, converte outro lado, exatamente porque o defeito produz em histórica a superação natural do desenvol- obstáculos e dificuldades no desenvolvimento e vimento orgânico incompleto. rompe o equilíbrio normal, ele serve de estímu- Resta-nos apenas acrescentar que, em lo ao desenvolvimento de caminhos alternati- relação ao desenvolvimento cultural dos meios vos de adaptação, indiretos, os quais substituem internos de comportamento (atenção voluntária ou superpõem funções que buscam compensar e pensamento abstrato), deve ser criada a mes- a deficiência e conduzir todo o sistema de equi- ma técnica de caminhos alternativos que exis- líbrio rompido a uma nova ordem. te em relação ao desenvolvimento dos meios Dessa forma, o novo ponto de vista externos do comportamento cultural. Para a prescreve que se considere não apenas as ca- criança intelectualmente atrasada, deve ser racterísticas negativas da criança, não só suas criado, em relação ao desenvolvimento de suas faltas, mas também um retrato positivo de sua funções superiores de atenção e pensamento, personalidade, o qual apresenta, antes de mais algo que lembre o sistema Braille para a crian- nada, um quadro dos complexos caminhos ça cega ou a dactilologia para a muda, isto é, indiretos do desenvolvimento. O desenvolvi- um sistema de caminhos indiretos de desenvol- mento das funções psíquicas superiores é pos- vimento cultural, quando os caminhos diretos sível somente pelos caminhos do desenvolvi- estão impedidos devido ao defeito. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, dez. 2011. 869 Livro volume 37 n.4 .indb 869 24/11/2011 10:48:53
  • 8. Livro volume 37 n.4 .indb 870 24/11/2011 10:48:53