O documento discute três leituras bíblicas do 3o Domingo da Páscoa. A primeira fala sobre as dificuldades dos discípulos em crer na ressurreição de Jesus e sobre o testemunho de Pedro. A segunda trata da essência do amor de Deus. A terceira reflete sobre como ser testemunha da ressurreição através da libertação dos oprimidos e da prática do amor.
1. TESTEMUNHAS DA RESSURREIÇÃOBORTOLINE, José - Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulus, 2007
* LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL *
ANO: B – TEMPO LITÚRGICO: 3º DOMINGO DA PASCOA– COR: ROXO
I. INTRODUÇÃO GERAL
1. “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, e proclama-
mos a vossa ressurreição”. Na Eucaristia recebemos
Jesus ressuscitado, e é ele quem nos capacita a traduzir-
mos seu amor em gestos concretos de liberdade e vida
para nossos irmãos. Nas nossas celebrações ouvimos a
Palavra de Deus. E Jesus, mais uma vez, nos quer abrir
os olhos para entendermos que sua morte e ressurreição
constituem o centro da Sagrada Escritura. Nós, pelo tes-
temunho que nasce da fé, queremos dar continuidade ao
projeto de vida do Deus fiel, anunciando em nome de
Jesus a conversão e o perdão dos pecados a todas as
nações.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
Evangelho (Lc 24,35-48): Testemunhas da ressurrei-
ção
2. Estamos diante de um dos últimos acontecimentos
descritos por Lucas em seu evangelho. Os versículos
deste domingo revelam, por um lado, as dificuldades
encontradas em crer na ressurreição de Jesus e, por ou-
tro, a missão que a comunidade recebe de levar o teste-
munho “a todas as nações, começando por Jerusalém”
(v. 47).
a. Dificuldades em crer na ressurreição (vv. 35-43)
3. O versículo 35 serve de ponte entre dois aconteci-
mentos, o episódio dos discípulos de Emaús (24,13ss) e
o que vem a seguir (vv. 36-43). Para Lucas não basta o
testemunho de dois discípulos. A comunidade toda vai
entrar em contato com Jesus ressuscitado. O evangelista
insiste nesse aspecto. As comunidades às quais seu e-
vangelho se destinava eram formadas predominantemen-
te por pagãos influenciados pela cultura grega. Esta,
entre outras coisas, desprezava a matéria, no caso, o
corpo. Por causa desse dualismo grego, tinham dificul-
dades em aceitar a ressurreição de Jesus.
4. A cena se passa de noite, enquanto os discípulos de
Emaús relatam o que tinha acontecido no caminho e
como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão (v. 35).
Pode ser que não se trate somente da noite em seu senti-
do comum, mas sobretudo da “noite das dúvidas” que
impede os discípulos de “enxergar” com olhos da fé (cf.
v. 45: “Então Jesus abriu os olhos dos discípulos para
entenderem as Escrituras”).
5. Jesus aparece no meio deles e os saúda: “A paz este-
ja com vocês!” (v. 36). Temos aqui a coroa do anúncio
feito pelos anjos por ocasião do nascimento do Messias:
“Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos
homens por ele amados” (2,14; cf. também o cântico de
Simeão: “…para iluminar os que vivem nas trevas…
para guiar nossos passos no caminho da paz”, 1,79).
6. Os discípulos ficam assustados e cheios de medo,
pensando estar vendo um fantasma (v. 37). Lucas relata
a perplexidade dos discípulos e, ao mesmo tempo, esti-
mula as comunidades a perceber que, sem a ressurreição
de Jesus, a nova história por ele trazida acaba num beco
sem saída. É por isso que insiste na ressurreição do cor-
po como um dado concreto, real e palpável. O ressusci-
tado não é fruto da fantasia de alguns, mas é o próprio
Jesus terrestre que vive uma realidade e dimensão novas
capazes de ser comprovadas pelos que estiveram com
ele. Os discípulos são convidados a olhar, tocar, consta-
tar, e Jesus lhes mostra as mãos, os pés, e come um pe-
daço de peixe grelhado, o arroz e feijão do povo simples
(vv. 42-43). O ressuscitado possui identidade corpórea:
“Olhem minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! To-
quem em mim e vejam. Um fantasma não tem carne,
nem ossos, como vocês estão vendo que eu tenho” (v.
39).
7. Lucas nos relata que os discípulos ainda não podiam
acreditar porque estavam muito alegres e surpresos (v.
41). Isso nos surpreende, mas ao mesmo tempo nos aler-
ta para o fato de que a fé em Jesus ressuscitado não é
algo superficial e de momento (alegria e surpresa), mas
uma adesão duradoura que leva ao testemunho.
b. Crer para ser testemunha (vv. 44-48)
8. A ressurreição de Jesus é o ponto central de toda a
Bíblia e do projeto de Deus: “São estas as coisas de que
falei quando ainda estava com vocês: era preciso que se
cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de
Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (v. 44). Jesus é o
grande intérprete da Bíblia, e é a partir dele que toda a
Escritura (Lei-Profetas-Salmos) adquire sentido e coe-
são. Tal é o sentido da expressão “Jesus abriu os olhos
dos discípulos” (v. 45a). Ele, ressuscitado, é a chave de
leitura de toda a Bíblia.
9. Jesus ressuscitado interpreta a Escritura aos discípu-
los: “Assim está escrito: o Messias sofrerá e ressuscitará
dos mortos no terceiro dia” (v. 46). Esta frase é uma
síntese do capítulo 53 de Isaías, particularmente do v. 10
(“O servo conhecerá seus descendentes, prolongará sua
existência e, por meio dele, o projeto de Javé triunfará”)
acoplada a Oséias 6,2 (“…no terceiro dia nos fará levan-
tar, e passaremos a viver na sua presença”).
10. O evangelho de hoje termina com uma afirmação de
Jesus: “Vocês são testemunhas de tudo isso” (v. 48). O
tema do testemunho dos discípulos é muito importante
para Lucas, pois é a partir disso que o anúncio do ressus-
citado chegará, nos Atos dos Apóstolos, aos confins do
mundo. Testemunho e universalidade da salvação são a
bagagem e tarefa dos que acreditam em Jesus ressuscita-
do: “No nome do Messias serão anunciados a conversão
e o perdão dos pecados a todas as nações, começando
por Jerusalém” (v. 47). É assim que seus seguidores
darão continuidade à história e sociedade novas trazidas
por Jesus: proclamando que a sociedade injusta não con-
seguiu anular o processo de vida e liberdade que ele
trouxe.
1ª leitura (At 3,13-15.17-19): O que é ser testemunha
do Ressuscitado?
2. 11. Os versículos que compõem esta leitura fazem parte
do discurso de Pedro após ter curado um coxo de nas-
cença (3,1-8). Lucas resumiu no pronunciamento de
Pedro, que representa toda a comunidade cristã, a síntese
da catequese primitiva (querigma) sobre Jesus morto e
ressuscitado, formada por anúncio, denúncia e convite a
aderir a Jesus.
12. Pedro acabara de libertar uma pessoa de suas parali-
sias que a impediam de ter liberdade e vida. Isso nos põe
no centro do plano de Lucas ao escrever os Atos dos
Apóstolos: a comunidade cristã prolonga as palavras e
ações libertadoras de Jesus. De fato, alguns estudiosos
vêem na cura do coxo um episódio paralelo à cura do
cego de nascimento de Jo 9. Contudo, é necessário que a
comunidade cristã assuma seu verdadeiro papel no pro-
cesso de libertação das pessoas, sem usurpar o lugar de
Jesus.
13. Pedro tem consciência disso e procura tirar do povo
as falsas interpretações da cura do coxo. Quem o curou
não foram os apóstolos, mas Jesus (= Deus salva), pois
ele personifica a fidelidade de Deus ao longo dos tem-
pos, libertando as pessoas para criar nova história e nova
sociedade. Dessa fidelidade nos fala o v. 13a, pois a
expressão “o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, o Deus
de nossos antepassados” recorda logo a passagem de Ex
3,6.15, onde Javé se deu a conhecer a Moisés como o
Deus fiel e libertador. Esse Deus “glorificou o seu servo
Jesus” (v. 13b). Chamando Jesus de servo, Pedro estabe-
lece um paralelo com Is 52,13, e com isso monta um
mosaico interessante sobre a pessoa de Jesus: ele é a
personificação do Deus que salva e liberta, é o servo, o
santo e justo (v. 14), o Autor da vida (v. 15) e o Messias
(v. 18). Aí está a síntese da catequese primitiva (anún-
cio) sobre Jesus. É importante salientar o sentido pro-
fundo da expressão “Autor da vida”. Ela afirma que Je-
sus é aquele que dá origem à vida, aquele que caminha à
frente e que introduz a humanidade na vida.
14. Também a denúncia é forte no pronunciamento de
Pedro, que representa a comunidade primitiva. Ela não
omite o pecado da sociedade que entregou (v. 13b), re-
jeitou (v. 14) e matou (v. 15) Jesus, posicionando-se
contra a vida e a favor da morte ao pedir a libertação de
um assassino. Assim ela se tornou cúmplice e promotora
da morte, tentando eliminar a origem e fonte da vida,
Jesus Cristo.
15. Deus, porém, continua fiel ao seu projeto. E a res-
posta que as pessoas devem dar a Deus se traduz na con-
versão e adesão a Jesus: “Arrependam-se, portanto, e se
convertam, para que seus pecados sejam perdoados” (v.
19). O passado foi absolvido pela misericórdia divina.
Resta, à nossa frente, um presente e um futuro que pode-
rão ser marcados pela vida ou pela morte, dependendo da
opção que fazemos por Jesus ou contra ele. “Disto nós
somos testemunhas”, afirma Pedro. Aqui nasce nossa
missão: anunciar, denunciar e convocar à conversão.
2ª leitura (1Jo 2,1-5a): A essência da vontade de Deus
é o amor
16. As comunidades cristãs da Ásia Menor sofreram
influência da gnose (para uma visão rápida da primeira
carta de João, cf. comentário à II leitura do domingo
passado). A característica principal da gnose era o “co-
nhecimento de Deus”. Os adeptos desse modo de viver
afirmavam que o conhecimento de Deus libertava as
pessoas desse mundo e suas exigências. Para eles, o cor-
po não tinha grande valor, podendo as pessoas estar com
Deus sem levar em conta as realidades humanas e as
relações sociais marcadas pelo egoísmo, individualismo,
ganância e opressão. Isso os levava ao total descompro-
misso com uma prática transformadora da realidade,
afirmando que a religião jamais atingiria o coração e a
vida de pessoas concretas. Daí nascia uma teologia des-
vinculada da realidade e incapaz de perceber Deus agin-
do no concreto da história.
17. O autor fala da confiança que acompanha a cami-
nhada das comunidades. Ela reside no fato de Jesus ser
“a vítima de expiação pelos nossos pecados, não só pelos
nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro”
(v. 2). Se a comunidade não reconhece os próprios peca-
dos acaba acusando Deus de injustiça (cf. 1,8). Se os
reconhece, inocenta Deus e descobre que Jesus é seu
defensor junto ao Pai (2,1).
18. Os defensores da gnose afirmavam que conheciam a
Deus, mas não traduziam esse conhecimento em prática
concreta. João garante que conhecer a Deus é praticar os
mandamentos, cuja síntese é o mandamento do amor. Só
este é capaz de acabar com as discriminações e opres-
sões, criando na sociedade relações de vida e liberdade
para todos: “Quem diz: ‘Eu conheço a Deus’, mas não
guarda os seus mandamentos, é mentiroso e a verdade
não está nele” (v. 4). Conhecer a Deus, portanto, é expe-
rimentá-lo no amor e, em quem ama de verdade, o amor
de Deus é perfeito (v. 5a). A religião verdadeira se ba-
seia na obediência a Deus que manda amar sem limites.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
19. A 1ª leitura (At 3,13-15.17-19) e o evangelho deste domingo (Lc 24,35-48) apontam para o
testemunho da ressurreição de Jesus. As dificuldades dos discípulos em crer apesar de poderem to-
car o corpo do ressuscitado são também as nossas dificuldades e desafios. Como crer na ressurrei-
ção de Jesus a partir dos corpos mutilados e oprimidos do nosso povo? Pedro, na 1ª leitura (At
3,13-15.17-19), nos mostra que ser testemunha da ressurreição é devolver, em nome de Jesus, a vi-
da e a liberdade aos que delas foram privados. Como concretizar isso em nossa prática pastoral?
Além disso, a 2ª leitura (1Jo 2,1-5a) mostra que não é possível professar a fé no conhecimento de
Deus sem uma prática que demonstre amor. Já fizemos a experiência de amar a Deus nos que so-
frem?