O documento descreve a rua da estrada como um espaço transgênico que assimila elementos urbanos e rurais, tornando-se um sistema de vários centros ao invés de um centro único. Também discute como as casas ao longo da estrada são constantemente modificadas para se adaptar às necessidades dos moradores e como os edifícios servem como vitrines para atrair motoristas.
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
A Rua Da Estrada
1. Visita Técnica “ A rua da estrada” Orientada por Álvaro Domingues
2. A estrada-rua é o elemento mais banal das formas e processos de urbanização em Portugal, nos antípodas de qualquer ideal-tipo do que seja a boa e genuína cidade... A passagem da cidade para o urbano arrastou uma metamorfose profunda: - de centrípeta, passou a centrífuga; de limitada e contida, passou a coisa desconfinada; - de coesa e contínua, passou a difusa e fragmentada; - de espaço legível e estruturado, passou a campo de forças organizado por novas mobilidades e espacialidades; - de contrária ou híbrida do "rural", passou a transgénico que assimila e reprocessa elementos que antes pertenciam a um e outro rurais ou urbanos; - de organização estruturada pela relação a um centro, passou a sistema de vários centros; - de ponto num mapa, passou a mancha, etc. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 13
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7. Uma casa À beira da estrada a visibilidade é tão grande… … a estrada na urbanização contemporânea, tal como a praça na cidade convencional, é um dispositivo que amplia a visibilidade pública da esfera privada. … Público e privado não são dois conjuntos disjuntos nem significados oponíveis. A maior parte das casas são casas muito simples, de quem não tem dinheiro para grandes ostentações nem capital cultural para exercícios de estética erudita, neo-clássica ou outra. Na sua escassez de recursos e materiais, o que chama a atenção é essa cenografia pública da esfera privada… adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 31
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10. Casas Kitadas Uma casa nunca está acabada. … … Uma casa é elástica - pode-se acrescentar, modificar, reformular - e se lhe acrescentarmos o terreno onde se localiza, as possibilidades são ainda maiores. Na arquitectura erudita, chama-se a isso a construção evolutiva, mas o conceito reserva-se para processos bastante controlados que obedecem a tipologias de referência. … Depois, a evolução é ela própria perturbadora: pode não se perceber muito bem o sentido e o programa dessa evolução; pode ser algo em que evoluir significa degenerar e colapsar; pode-se, em vez da evolução programada, evoluir erraticamente por tentativa e erro, por inclusão de ajustamentos e próteses para sobreviver, competir, adaptar, afinar… … … trata de tuning - o exercício mais ou menos contínuo de "afinar" uma casa ou outro qualquer edifício para que se vá adaptando, para que funcione. As casas kitadas são os melhores exemplares para verificar a elasticidade que uma casa pode ter para se adaptar à vida móvel da Rua da Estrada, para ser como os seus donos gostam que seja, para traduzir modos de estar e de funcionar. A forma segue a necessidade. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 53 e 58
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13. Edifícios Montra A montra da Rua da Estrada é uma coisa relativamente simples de explicar. O princípio é o mesmo da montra convencional: mostrar o produto e atrair o passante com técnicas de namoro mais ou menos profissionais … Na rua, tudo parece mais simples. A montra é uma falsa janela ou uma falsa porta disponível para o passante. Resolvidos os materiais e as técnicas de construção, a arquitectura da montra pode confundir-se com a própria loja, o seu "dentro" e "fora" ao mesmo tempo, expõem mercadorias que, antes da banalização da caixa de vidro, se penduravam nas paredes e se derramavam pelo passeio. … Técnicas de teatro, fotografia, cinema, televisão, moda, grafismo, som, decoração, publicidade, etc., convergem e mudam actos que antes eram tão simples como espalhar mercadorias, enchendo o aquário onde se colava o nariz do consumidor. A diferença é que na Rua da Estrada não é a lógica do peão que conta. A Rua da Estrada é para os automóveis. O movimento rápido e as limitações de campo visual exigem dispositivos de grande formato, colocados de forma a captar diferentes ângulos visuais: aproximação ao longe, passagem em frente, afastamento. A montra transforma -se assim numa "hiper-montra", apta a responder à mudança da espacialidade e à combinação de dispositivos visuais apropriados. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 75
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16. Lugares Comuns o problema com que hoje nos enfrentamos consiste em como pensar a cidade quando temos redes em lugar de vizinhanças, quando o espaço homogéneo e estável não é mais do que um caso limite no seio de um espaço global de multiplicidaqes locais conectadas, quando há já muito tempo que o debate público se realiza em espaços virtuais, quando as ruas e as praças deixaram de ser o principal lugar de encontro e encenação. … É na Rua da Estrada que melhor se percebem as dúvidas e as ansiedades que hoje podemos encontrar acerca do "espaço público" enquanto conceito central da ideia de cidade. Desde logo porque, formalmente, não estamos perante as tipologias habituais de espaço público em arquitectura e urbanismo. Não há praças, ruas, avenidas, alamedas, largos, jardins ou parques, excepto quando são parques de estacionamento. Contrariamente à cidade, a rede de estradas não é uma configuração centrada com elementos de referenciação estáveis. A estrada é um percurso, uma sequência de formas, funções e signos; um centro em linha. Na Rua da Estrada existe um léxico mínimo de bermas, valetas, passeios, rotundas e estrada, muita estrada. … adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 123
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19. Códigos da Estrada, o hipertexto em construção Faltam à estrada as estabilidades formais, os códigos e significados simbólicos da cidade "consolidada". … Esses outros códigos da estrada são bem mais complicados e mais rebeldes a certas leituras demasiado estruturalistas e forçadas. A estrada e tudo que a ela se pode referenciar, não se podem decifrar como quem lê um texto linear e estruturado. A estrada é um hipertexto em construção contínua. Aquilo que para muitos é caos, ruído, cacofonia, poluição visual, etc., é afinal resultado de uma acumulação de signos cuja polissemia multiplica as possibilidades de estabelecer leituras, nexos, relações e significações, isto é, de construir comunicação. … A polissemia da estrada não resulta necessariamente numa crise do signo e na total ilegibilidade. … Mas é pelo meio dessa confusão que cada um organiza o zapping que o leva onde quiser. … Quanto ao gosto, é melhor suspender a questão, ou então ficaríamos emaranhados entre a "alta" e a "baixa" culturas, entre o gosto. erudito e cultivado, a cultura pop e o kitsch com a sua desmesurada artilharia simbólica. Os códigos da estrada vivem da pluralidade e não da unidade; conjugam identidade e alteridade na produção de sentido, sem que isso diminua necessariamente a eficácia da comunicação ou da persuasão. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 145 e 146
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22. Monumentos Monumentos são memórias. … Hoje. os monumentos são entendidos quase sempre como edifícios de grande dimensão e significado simbólico. coisas do passado… Na Rua da Estrada quase não há destes monumentos. Contrariamente à cidade patrimonializada que tem excesso de passado, a Rua da Estrada tem excesso de presente. Quase não há nada para rememorar ou invocar do passado, das origens ou das identidades. … … o significado do monumento na Rua da Estrada quase que se resume a uma certa dimensão colossal ou excepcionalidade arquitectónicas que funcionam como dissonâncias no barulho de fundo que vai ao longo da berma. Quando assim é, as presenças monumentais funcionam também como referentes. como monumento-sinal ou monumento-espectáculo; sinais de coisas desmemoriadas desdobradas em expressões múltiplas:… … Monumento, despido da sua espessura simbólica ou significado colectivo, pode ser apenas o modo como aparecem formas não esperadas, marcas excepcionais na banalidade da Rua da Estrada. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 159 e 161
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25. Arte na Estrada e Arquitectura Erudita A Rua da Estrada não é só o reino da espontaneidade … Diversa como é, a sociedade e os seus gostos vão depositando sinais materiais dessa diversidade pela estrada fora. Se fosse música o que corre pela janela do automóvel quando se fazem uns quilómetros na Rua da Estrada, a aparição destes edifícios seriam dissonâncias de feição erudita; parecem deslocados dali. Basta atravessar a estrada, não usar um plano frontal e logo aparece o mundo que os rodeia: asfalto, pilhas de pneus pretos e coloridos e leões pensativos como esfinges. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 189
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29. … a Rua da Estrada não voltará a ser essa estrada poética e esburacada que o Estado Novo tratava com remendos e cantoneiros, e que o Portugal Europeu de hoje trata com camadas sobrepostas de asfalto, sinalética, passadeiras, lombas, semáforos e rotundas com sinais a multiplicar, esguichos cibernéticos e estatuária variada. Para entender a Rua da Estrada é necessário um relativo afastamento face a estas e outras ideias-feitas acerca da estrada. É claro que a estrada não desapareceu. A questão é que por também ser rua -densamente edificada nas suas margens; usada por quem passa e vai ou vem de longe, mas também por quem vive e trabalha ali mesmo; com ou sem passeios e iluminação ou árvores, etc. - nem é uma coisa nem outra, mas uma permanente metamorfose que tanto guarda traços do passado mais ou menos longínquo, como regista a mais recente das contemporaneidades. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora - 2010
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32. Naquilo que se chama "a cidade", o centro define-se, entre outras coisas, pela aglomeração de funções de carácter direccional, sejam instituições do poder político ou militar, da administração, da vida cultural ou empresas de comércio e serviços caracterizados pela sua especialização, como seja o caso do sector financeiro. … A Rua da Estrada garante uma outra característica do "centro" que é a forte acessibilidade, o lugar de onde e para onde se pode chegar com facilidade. A Rua da Estrada é mais trajecto do que lugar, mais relação do que forma. Tudo pronto, portanto, para que a génese do centro se possa também aí desenvolver; de resto na Rua da Estrada também há monumentos e outras referências simbólicas e iconográficas para o postal e a foto. Business Center faz parte do léxico das palavras em estrangeiro que povoam o imaginário dos negócios e do urbanismo comercial. … Este Business Center não é o World Trade Center … Faltam-lhe também os hotéis, as salas de congressos, as torres de escritórios e um incontornável SPA e restaurante de comida estética. É o que há para começar. Se houvesse dúvidas quanto à possibilidade de haver CBD na Rua da Estrada, bastaria perguntar onde se localizam as sedes de alguns grupos económicos com bastante expressão em Portugal. … adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 240
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36. A Rua da Estrada é transgénica. A mutação genética produz os mesmos sobressaltos éticos, estéticos ou morais da manipulação genética na biologia. … Não interessa. Tal como no vasto universo que se abre à manipulação genética, na Rua da Estrada combinam-se elementos pertencentes a diferentes genomas ou universos conceptuais: urbano, rural, natural, industrial, comercial..., o que seja. Além do mais, o transgénico pode reproduzir-se, legando a sua nova herança genética às gerações seguintes. Perturbador, no mínimo. Não interessa por isso dizer que a Rua da Estrada é rural, ou é urbana, ou é "rururbana" … A Rua da Estrada é o que é, mais as combinações genéticas possíveis que se podem enunciar de forma elementar, enunciando e identificando, simplesmente, esses elementos: um camião TIR por trás de uma vinha; ao fundo, um grande poste de iluminação ilumina uma rotunda onde está uma velha máquina como se fosse escultura. Ou uma ramada (há vinhas por todo a lado!), misturada com umas árvores de fruto e erva por baixo; no plano seguinte estão as varandas de um prédio com umas antenas parabólicas; por baixo da primeira varanda está um toldo azul que parece ser de um restaurante; o espaço entre a porta do restaurante e a estrada é um lugar onde podem estacionar os clientes do restaurante; depois há uns postes (há postes por todo o lado; um dia as vinhas treparão por eles acima); ao fundo dois edifícios-montra, um grande e outro pequeno. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág. 246 e 248
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40. A instabilidade e o paradoxo estão na nossa cabeça, na herança racionalista que foi lá instalada, nos nossos tiques normativos, nos nossos julgamentos, nas limitações dos nossos códigos de inteligibilidade do real, nuns conceitos que aprendemos nos livros e tudo o mais que se quiser, menos o simples espírito da curiosidade em entender a razão das coisas e das suas mudanças e o registo de relatos simples com que os "indígenas" nos explicam o que é que é aquilo, porque é que está ali e, afinal, porque é que não é assim tão disparatado, inesperado ou irracional. No fundo, entender a instabilidade da Rua da Estrada implica abolir velhos tabus e ter alguma descontracção. adaptado de "A Rua da Estrada" - Álvaro Domingues - Dafne Editora – 2010, pág.248 e 257