7. VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Círculo do Livro, 1992.
João Paz foi preso sob a falsa acusação de estar treinando secretamente na
nossa cidade um bando de dez guerrilheiros esquerdistas do qual ele era
supostamente o chefe. Sua prisão foi efetuada da maneira mais irregular.
João Paz foi levado para o famoso porão da nossa delegacia onde se
processam os interrogatórios mais brutais. Inocêncio Pigarço fez perguntas
ao prisioneiro, ordenou-lhe que dissesse o nome dos outros dez “membros
do grupo‟. Joãozinho negou-se a isso porque nada sabia, pois tal grupo não
existe em Antares! Inocêncio Pigarço entregou o “subversivo‟ aos cuidados
de seu “especialista‟ em interrogatórios, o famigerado Boquinha de Ouro...
que deve estar em algum lugar desta praça e que espero esteja me ouvindo.
[…] Mas o interrogatório continua [...] Vem então a fase requintada. Enfiam-
lhe um fio de cobre na uretra e outro no ânus e aplicam-lhe choques
elétricos. O prisioneiro desmaia de dor. Metem-lhe a cabeça num balde
d’água gelada e, uma hora depois, quando ele está de novo em condições de
entender o que lhe dizem e de falar, os choques elétricos são repetidos.
10. TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir a roupa limpa e já
começa a transpirar, nem parece que tomou banho. Tão desagradável!...
Minha mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu
vocabulário, ela gostava das belas palavras. Das belas imagens.
Delicadamente falava em transpiração com aquela elegância em vestir as
palavras com nos vestia. Com a diferença que Eduardo se conservava limpo
como se estivesse numa redoma, as mãos sem poeira, a pele fresca. Podia
rolar na terra e não se conspurcava, nada chegava a sujá-lo realmente
porque mesmo através da sujeira podia se ver que estava intacto. Eu não.
Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o suor a escorrer [...]
manchando a camisa de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de
bicho venenoso, traiçoeiro, malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço,
tentava num último esforço salvar ao menos a camisa. Mas a camisa era uma
pele enrugada aderindo à minha.
11. ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing
especial, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei
claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem,
depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto,
gin-seng e lexotan, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma
semana a banchá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente
pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, […] bato o carro numa
esquina ou ligo para o cvv às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum
panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-uma-razão-
para-viver-e-sei-que-essa-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-babaá e me
lamurio até o sol pintar atrás daqueles edifícios sinistros.
15. FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. In.: Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no
cinto, o cano para baixo, e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e
uma tesoura. Vamos, eu disse.
Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos
várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinha gente
demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande
e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de
carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com
a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem
quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola.
16. SANT’ANNA, Sérgio. O monstro. In.: Contos e novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Em sessão do 2º. tribunal do Júri, em 4 de março passado, no Rio de Janeiro, o
professor universitário Antenor Lott Marçal, de 45 anos, após ter sua culpa
reconhecida unanimemente pelos jurados, foi condenado pelo juiz Iraílton
Catanhede à pena de trinta anos de reclusão, pelo estupro e coautoria do
assassinato de Frederika Stucker, de vinte anos, no dia 18 de julho de 1992, em
crimes que chocaram a opinião pública no país, entre outras coisas porque a
jovem e bela Frederika sofria de grave deficiência visual e, ainda drogada por
seus algozes, teve reduzidas a zero suas chances de defender-se.
Nesta história macabra houve uma outra personagem não menos principal:
Marieta Castro, de 34 anos, amante de Antenor, que atraiu Frederika para
aquela cilada fatal em sua casa, depois de conhecê-la enquanto caminhava pela
margem da lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio. Marieta não pôde ser
presa e condenada como o seu cúmplice, porque se suicidou com um tiro no
coração, na tarde de 30 de junho de 1992, no banheiro da firma onde
trabalhava como operadora do mercado de commodities [...].
No decorrer de todo o processo, até o seu desfecho, a extrema lucidez e
articulação verbal com que Antenor narrou os fatos e assumiu suas
responsabildiades dentro deles surpreenderam dos policiais e juízes que o
interrogaram a todos os que estiveram presentes ao julgamento.
27. ÉLIS, Bernardo. A enxada. Disponível em: http://officiallylucas.webnode.com.br/products/a-enxada/. Acesso em: 03 jan. 2016.
Na linha varonil da minha família paterna essa guarda de tradições foi
suspensa devido à sucessão de de três gerações de mordedores! A de meu
pai, que desapareceu aos 35 anos. A do seu pai, falecido aos 37. Meu bisavô,
não sei com que idade morreu. Cedo, decerto, pois meu avô foi criado de
menino por uma de suas avós ou tias-avós. É assim que cada uma dessas
gerações ficou sabendo pouco das anteriores e não teve tempo de transmitir
esse pouco às sucedestes. Por essa razão, também quase nada sei de meu
avô paterno. O que se transmitiu até meu pai e suas irmãs é que sua origem
era italiana e que vinha de um certo Francisco Nava, que teria aportado ao
Brasil no fim do século XVIII ou princípio do XIX. Ignora-se seu nível social, as
razões por que veio da Itália e que ponto do Brasil ele viu primeiro do
paravante de seu veleiro. Onde desembarcou, onde se fixou, que ofício
adotou - tudo mistério. Como era, quem era, que era? Seria um
revolucionário, um maçom, um liberal, um carbonário, um fugitivo? Onde e
com quem se casou? Nada se sabe. Dele só ficou o apelido. Essa coisa
mística, evocativa, mágica e memorativa que o tira do nada porque ele era
Francisco de seu nome; essa coisa ritual, associativa, gregária, racial e
cultural que o envolta porque ele era Nava de seu sobrenome.
28. CONY, Carlos Heitor. Quase memória. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava,
inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no
barbante ordinário, só ele escreveria meu nome daquela maneira,
acrescentando a profissão que também fora sua. […] Pois o barbante, em si,
já era um indício dele. O nó também: exato, sólido, bem no centro do
pacote. Se tudo era ele no papel, no barbante no nó, havia a letra. Fosse eu
cego, mergulhado na treva mais profunda da carne, bastaria passar a mão
sobre ela para saber que era a letra dele. A mesma letra que vinha nos
envelopes quando ele me escrevia para a fazenda do Seminário - único
período do ano em que a correspondência se justificava, pois aqui no Rio ele
sempre tinha uma técnica de estar presente nos mais estranhos lugares e
momentos, fosse para me dar recados, presentes ou para saber de mim e eu
dele.
29. HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O
almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele
mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava horta,
cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. […] Desde a
inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses,
sírios e judeus marroquinos que moravam na Praça Nossa Senhora dos
Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado
com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiram histórias que se
cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco
de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma
trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda
viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os
caloteiros saldassem as dívidas.