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-'

A resistência da crítica ao teatro épico"
1. Militância crítica
,,-( Numa fórmula extremamente sumária, podemos dizer que;
) o teatro épico, do qual Brecht é o mais importante emblema,
~;foi uma espécie de arma forjada entre o final do século passado
, e as três primeiras décadas deste por artistas adeptos da causa
,-_,darevolução proletária, no âmbito da luta cultural. Uma luta
tão legítima quanto a travada por Diderot e companheiros do
então chamado "partido filosófico" para criar o teatro dramá-
tico em meados do século XVIII. Mas na comparação entre
os dois gêneros desde logo o teatro épico sai em desvantagem
por uma questão histórica decisiva: enquanto o drama e a
classe que o forjou acabaram vencendo no capítulo que lhes
coube na história da luta de classes - vitória cifrada na Revo-
lução Francesa e no apogeu do drama em sua (já decadente)
versão "peça bem feita" durante o Segundo Império -, o teatro
épico foi vítima de sucessivas derrotas ao longo do nosso sé-
culo, sendo que a primeira delas, já expressão do desastre que
<- Publicado originalmente na revista Cultura Vozes n.S, ano 90, vol. 90,
set/out 1996,
75
SINTA O DRAMA
o stalinismo significou para a revolução, poderia muito bem
ser identificada ao suicídio de Maiakóvski e ao assassinato de
Meyerhold, uma vez que com a encenação de Mistério Bufo,
texto do primeiro e direção do segundo para comemorar o ani-
versário da Revolução Soviética, os dois escreveram um capítulo
fundamental da história que interessa aqui. As derrotas políticas,
artísticas e teóricas, constituem hoje parte do problema a ser
enfrentado por quem se interesse pelos períodos mais férteis da
história do teatro moderno e contemporâneo, como é o caso
dos anos que vão mais ou menos de 1880 a 1945 na Europa
e Estados Unidos e dos anos sessenta no Brasil.
Os artistas que se envolveram com o teatro épico tiveram
toda sorte de inimigos a enfrentar, começando por aqueles
que se faziam passar por aliados e, para os interessados em
seu estudo, além desses, é ainda preciso identificar os ad-
versários mais empenhados e acertar as contas com eles tam-
bém: os empresários teatrais, os próprios atores, diretores
e dramaturgos praticantes do teatro dramático (em particu-
lar o modernizado) e sobretudo os críticos e historiadores do
teatro, uma vez que estes constituem a indispensável primeira
fonte de informação.
Uma vez definido o interesse por esse problema, no exame
do papel fundamental desempenhado por DJcio. ..de.Almeida
prado no processo de aclimatação do teatro moderno no Br~~Ü,
para além de sua função de X?rIE.~d?.rde mais deumageraçâo
de pes_quisadores (inclusive a minha), .notam-se duas caracte-
rísticas muito marcantes em sua críticai de um lado, uma forte
resistência à obra de Brecht e, de outro, aadoção oe~üIDàieoria
francesa muito especial e refinada. Como alguma coisa desse
processo ajuda a esclarecer as dificuldades, sobretudo de or-
dem teórica e conceitual, a serem enfrentadas por quem pes-
quisa a história do teatro épico em sua versão brasileira, vale
a pena acompanhar sua intervenção crítica em relação a esse
tópico específico pois, se foi com ele que todos aprendemos
a apreciar criticamente uma peça teatral, não podemos perder
de vista sua complexa relação com o teatro brechtiano e com
a teoria francesa moderna.
76
A RESISTI~NCLA. DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
Miroel Silveira, desde a primeira hora um adversário ideo-
lógico e por isso mesmo testemunha isenta, teve a grandeza
de reconhecer a relevância do trabalho de Décio de Almeida
Prado e o seu lugar único na história da crítica teatral bra-
sileira em termos que qualquer um de seus discípulos gos-
taria de ter utilizado:
Comohomem mais velho que Décio, eu pude ser testemunha de
sua carreira desde praticamente o inícioe por isso gosto de dizer
que,antes de Décio,a críticateatral noBrasiltinha até umsentido
anedótico.(...) Como Décio (...) pela primeiravez surgiu umfun-
damento estético, um fundamentofilosófico,umfundamentohis-
tórico, um fundamento sociológicona crítica brasileira. Então, a
partir de Décio de Almeida Prado, nós começamos realmente a
ter crítica teatral em profundidade.'.
Mas se essa é uma verdade objetiva, é preciso então des-
cobrir por que em mais de uma oportunidade nosso mestre
pôs sob suspeita a obra de Brecht, o maior dramaturgo do
século XX, apenas alterando os seus juízos quando a experiên-
cia com o teatro épico entre nós já tinha produzido os efeitos
possíveis em nossa dramaturgia, que por sinal recuava em fran-
ca marcha batida. O levantamento das manifestaçôes que apre-
sentamos a seguir não pretende esgotar o assunto, trata-se
apenas de rastrear esse ponto específico de sua trajetória.
Uma das mais antigas referências a Brecht em sua obra
ocorre no início dos anos 50, numa comparação com Piran-
dello - o que já sinaliza opção estética. Depois de afirmar que
tanto em política como na forma teatral esses dois dramaturgos
estão em campos opostos, quando se trata da peça de Brecht,
A exceção e a regra, o argumento é que, sendo "a linguagem
da política, como os seus objetivos, sempre, pela própria In-
I PRADO, D.A. Depoimento ao SNT, 30.10.74. in MESQUITA, Alfredo et
alii. Depoimentos lI. Rio de Janeiro: SNT, 1977, p. 38-9.
77
SINTA O DRAMA
dol e, abstrata'"; ao utilizá-Ia a obra fica prejudicada quando
trata diretamente dela, como teria sido o caso desta.
Numa longa análise de A alma boa de Setsuan, primeiro
espetáculo profissional de Brecht entre nós, produção de Maria
Della Costa em 1958, nosso crítico alega uma curiosa "suspensão
de juízo" imediatamente seguida de objeções de ordem política
e estética que serão reiteradas em outras oportunidades. Daí em
diante Brecht será regularmente identificado como comunista.'
ou marxista e os recursos de seu teatro épico serão mais de
uma vez qualificados como esquemáticos, reducionistas e res-
ponsáveis por um empobrecimento da linguagem teatral.
Em 1960Alberto D'Aversa encenou Mãe Coragem e a peça
foi criticada, sempre associando política e estética, de modo
a mostrar que as deficiências desta são consequências da pri-
meira: "Os comunistas, no mundo moderno, são os mestres
das simplificações, da redução do complexo ao simples. As
guerras, por exemplo, têm causas econômicas - e está dito
tudo, exceto quando a Rússia entra em guerra. Ora, Brecht,
que além de comunista era um espírito sardônico e realista,
viu a guerra em Mãe Coragem, não através de uma, mas de
várias reduçôes'", Enumeradas as reduções, a conclusão con-
firma: "Brecht, na sua ânsia de redução, priva-se de muita
coisa: do heroísmo e do altruísmo, por exemplo, no plano
PRADO, D.A. De Pirandello a Brecht. In -Apresentação do teatro brasileiro
,moderno. São Paulo: Martins, 1956, p. 20l.
3 Para quem sabe da participação do jovem Décio de Almeida Prado no grupo
de socialistas conhecido como "Esquerda Democrática" por ocasião do fim
da ditadura Vargas, fica claro que a palavra comunista é código para stalinista.
Mas acontece que para os interessados em Brecht e na história do marxismo
e da esquerda, sabendo que outros anti-stalinistas, assim como anti-social
democratas, reivindicam também a condição de marxistas e comunistas, a
assimilação historicamente operada por alguns socialistas entre comunismo
e stalinismo pode provocar confusão e injustiças como as que veremos em
relação a Brecht, que nunca se enganou a respeito da degeneração do regime
soviético e por isso mesmo nunca foi muito bem acolhido pelos agentes de
Stalin nas artes cênicas, sobretudo na União Soviética.
C4 ~RADO, D.A. Mãe Coragem. In - Teatro em progresso. São Paulo: Martins,
1.964, p. 154.
78
A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
humano; da poesia e do poder transfigurador da palavra no
plano estético".5 E, para não restarem dúvidas sobre as restrições
ao dramaturgo, vem o arremate: "é o caso de perguntar se a
realidade não é mais rica, mais variada, menos mesquinha do
que supõe o realismo algo pobre de Brecht".
6
A própria teo.ria
do teatro épico é posta sob suspeita de mero discurso apologético
e o dramaturgo desqualificado por suspeita de incapacidade:
"Começamos a indagar, a certa altura, se as teorias estéticas de
Brecht, aliás inteligentíssimas, não se destinam porvent~ra a
transformar limitações em qualidades, a racionalizar e a legitimar
uma fundamental pobreza de inspiração poética'".
Em outra oportunidade, para mostrar a diferença entre A
alma boa de Setsuan e O testamento do cangaceiro, de Chico
de Assis, a peça brechtiana é classificada como "visceralm~nte
marxista", o que por sinal é verdade, mas não sabemos se Isto
pesa contra ou a favor do dramaturgo e, escrevendo em 1963
sobre Terror e miséria do lJI Reich, o crítico volta à pergunta
já conhecida: "até que ponto suas teorias estéticas seriam ~m.a
racionalização, uma cobertura dada pelo juízo crítico às limi-
tações da sensibilidade?"s
Mais tarde, já em 1964, A ópera dos três vinténs estreou
com mais de trinta anos de atraso no Brasil, apresentando
qualidades incompatíveis com o que até aqui fora considerado
como limitações artísticas do dramaturgo. Com a lembrança
de que é de 1928, quando Brecht ainda não se "conve~tera"
ao comunismo, a peça acaba retrospectivamente determinada
pelo crítico no conjunto da obra: "Brecht purgava ~ssim não
só o seu lirismo envergonhado como a sua anarquia e o seu
niilismo, preparando-se para aceitar o ascetismo moral do co-
. " 9
Hl lj Fl l Sffl O •
s Id., ibid., p. 155.
6 Id., ibid.
7 Id., ibid.
x Id., Terror e miséria do III Reich. In Teatro em progresso, op. cit., p. 267.
9', Id., A ópera dos três vinténs. In - Exercício findo. São Paulo: Perspectiva,
1987, p. 60.
79
SINTA O DRAMA
Por razões que até agora nos escapam (ainda há muito a
pesquisar), somente no ano de 1967 Décio de Alrneida Prado
acabou concedendo ao dramaturgo alemão algum valor artís--
tico. Mesmo assim, possivelmente para insistir na distância
política que o separa do dramaturgo cO,m.unista,t~atou d,~la~-
çar mão de uma piada, de gosto no rrururno ?uvldos~: A di-
ficuldade para se distinguir entre um comunista lntehge.nte e
um comunista burro - confidenciava-rne um ex-cornurusta -
. ,,10M
é que ambos dizem exatamente as mesmas cOls.as. as agora
são reconhecidas qualidades até então repetidamente postas
em dúvida: "Do ponto de vista artístico, a originalidade d.e
Brecht é ao mesmo tempo lógica e poética, que reduz a reali-
dade ao essencial substituindo a descrição pela evocação e
pela análise crític~. A economia e o rig:>r ~~ forma justif~c~m
o que possa haver de excessivamente smtetico e esquematl~o
no pensamento". 11 Mesmo rnantida a objeção ao esquernans-
mo, aquilo que antes era expressão de realisr.n~ pobre, .po.breza
de inspiração poética e prova de uma sensIbIl~dade limitada,
agora é promovido a rigor da forma. Com essa ImpresslOnan~e
mudança de juizo, deparamo-nos com um problen~a dos mais
instigantes, que não pode ser despachado sem mais, mas que
estamos longe de ter resolvido.
Esta espécie de rendição, que pode muito bem ser irônica,
à então avassaladora presença, direta e indireta, da obra brech-
tiana em nossos palcos, talvez não pudesse se estampar sem
maiores reparos num jornal conservador como O Estadode
São Paulo, ou a própria consciência anticornunista do crítico
talvez exigisse ainda uma derradeira contraposição. São as ÚDl-
cas hipóteses que por enquanto nos ocorrem para interpr:tar
o seguinte arremate: "Afinal, por que haveríamos de ~eIxar
/ aos comunistas a iniciativa ou o privilégio de denunciar as
e-, injustiças sociais, como se somente eles se interessassem pela
sorte dos pobres e dos explorados?,,12
/ I)
<i:
1() Id., De Brecht a Stanislaw Ponte Preta. In - Exercício findo, op. cit., p. 212.
11 Id., ibid., p. 213.
12 Id., ibid., p. 215.
80
A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
2. Genealogias

', Certamente os comunistas não detêm o monopólio do in-
teresse pela sorte dos pobres e dos explorados, mas também
é certo que desde o século XIX só os seus antepassados, os
socialistas em suas várias vertentes, incluídos os comunistas,
se interessaram pelos pobres e explorados a ponto de elevar
os assuntos que lhes dizem respeito ao nível e à dignidade de
obras de arte - coisa de extremo mau gosto na opinião dos
antepassados do nosso crítico.
Por antepassados diretos, isto é, no âmbito da teoria tea-
tral, de Décio de Almeida Prado entendemos o crítico e diretor
francês Jacques Copeau e o ator e diretor Louis Jouvet, seu
discípulo, que levaram a efeito uma luta sem tréguas contra o
naturalismo - movimento teatral que o próprio Brecht faz
questão de incluir entre os seus antecedentes e com o qual
desenvolveu uma relação crítica do maior interesse dialético,
Como se vê, a briga vem de longe e passou de pai para filho
por mais de uma geração. Quanto ao crítico brasileiro, todas
as vezes em que a oportunidade se apresentou, fez questão de
reverenciar estes seus mestres, como na Introdução à sua pri-
meira coletânea de críticas:
...é aos mais novos que me acho ligado pelas idéias, aos que vieram, de
uma maneira geral, depois e não antes de Ziembinski (...). O que ca-
racteriza tanto a eles como a mim são os mesmos modos de encarar o
espetáculo, as mesmas concepções sobre o que seja representar bem
(...). Jacques Copeau, de quem todos descendemos, escreveu: "por
encenação compreendemos o desenho de uma ação dramática,,13.
Perguntado sobre sua experiência com O teatro moderno
europeu, o crítico relata o seguinte episódio:
Em 1939 estive na França durante dois meses e meio (...). Lá vi
algum teatro, inclusive algumas daquelas companhias célebres
I.l Id., Introdução a Apresentação do teatro brasileiro moderno. Op. cit., p.
5 (grifos nossos).
81
SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO f:PICO
ligadas aotrabalho renovador de Copeau. Naquela ocasião cheguei
a assistir, em Paris, a uma conferência do próprio Copeau (...),
além de espetáculos de Dullin, Jouvet e outros'".
No mesmo depoimento, a propósito de sua formação teó-
rica, é detalhado o papel da matriz francesa:
Leitura de teoria de teatro realmente eu comecei a fazer no mo-
mento em que fuiescolhido para crítico de Clima.Oprimeiro livro
que li de teoria teatral foiReflexions du comédien do Jouvet (...).
Este livro, aliás, me marcou muito, e por isso talvez até hoje eu
permaneça dentro dessa tradição de Copeau e Iouvet, de dar im-
portância ao texto
J5
•
De fato, quando da temporada de Jouvet no Brasil em
1941, o número 3 da revista Clima publicou um iluminador
ensaio do jovem Décio de Almeida Prado sobre este mestre
francês. Ali encontramos uma espécie de "plataforma política"
que vale a pena reproduzir, pois estão identificados os adver-
sários e as preferências desta família teatral:
Jouvet acredita no que ele chama de "convenção teatral", acordo
entre o autor, o ator, e o público para criar um espetáculo, cada um
colaborando para que a ilusão seja perfeita e a emoção apareça.
Esta convenção que nasceu com o próprio teatro e foirespeitada
durante todo o período do teatro clássico (...) foidestruída (ou sua
destruição foi tentada) pelo teatro naturalista, na França pelo
"Théatre Libre,,16.
•.~... .,_.. ,~.-"... "~
Depois de mostrar que segundo Louis Jouvet o teatro na-
turalista, devido à opção por apresentar no palco locais de
trabalho como açougues, cozinhas e lavanderias, foi respon-
sável pela "diminuição do espiritual, morte da imaginação, do
maravilhoso e aviltamento da linguagem,,17, o crítico passa-lhe
a palavra para indicar os rumos do teatro, numa espécie de
síntese de seu pensamento:
se o teatro de hoje tende para alguma coisa, é para um caminho
onde o espiritual parece ter reconquistado seus direitos sobre o
material, o verbo sobre ojogo, o texto sobre o espetáculo. E para
uma convenção dramática feita de poesia, de graça e de nobreza.l"
Embora já esteja mais ou menos claro o significado dessa
"reconquista" dos "direitos do espiritual" sobre o "material",
não é demais identificar, nas palavras do próprio Jouvet, o
"partido do material", digamos assim, por ele combatido até
mesmo nas aulas que deu no Conservatório Nacional de Arte
Dramática, nos anos de 1939 e 1940. Explicando a uma das
alunas o "erro" por ela cometido numa proposta de cena, o
professor por assim dizer argumenta: "Essa é a lógica do Teatro
Livre. Você está aqui para aprender a lógica puramente dra-
mática".19 E como a aluna reincide no "erro" mais adiante,
cometendo aos olhos do mestre a heresia de defender a sua
concepção da personagem, alegando ser ela uma empregadinha
14 Id., Depoimento ao SNT, cit., p. 40-41, grifos nossos. Já que o único
espetáculo referido é a Gaivota de Tchekov, encenada por Pitoeff, vale a pena
reconstituir a situação de destaque em que àquela altura se encontravam os
artistas mencionados. Copeau, além de Jouvet, Baty, Dullin e Pitoêff (o Car-
tel) foram convidados pelo governo da Frente Popular, o da aliança entre
. socialistas, comunistas e "burguesia progressista" (1936-38) para dirigir pe-
ças na Comédie Française e demais teatros do Estado. Esta experiência foi
tão bem sucedida que em maio de 1940 Copeau é nomeado Administrador
da Comédie, permanecendo em seu cargo mesmo durante o governo Pétain,
com Paris ocupada, razão pela qual Jouvet, Dullin e Bary romperam publi-
camente com o mestre, que só deixou a Comédie após o ultimatum alemão
(Cf. BORGAL, Clément. Jacques Copeau. Paris: LArche, 1960, p. 268-9).
Pois foi este homem "apolítico" que imprimiu uma linha nitidamente voltada
para o teatro clássico na Comédie, empenhando-se inclusive em "restaurar
as regras do classicismo" no teatro francês (Cf. MIGNON, Paul Louis. His-
toria dei teatro contemporaneo. Madrid: Guadarrama, 1973, p.49).
J5 Idem, depoimento citado, grifos nossos.
1ó PRADO, D.A. O teatro de "Louis Jouvet" em São Paulo. Clima n" 3. São
Paulo, agosto de 1941, p. 95-96.
17 Louis ]ouvet, apud D.A. Prado, loc. cit., p. 96.
18 Louis ]ouvet, ibid., p. 10l.
19 ]OUVET, Louis. 'Iiagédie classique et théâtre du XIX siecle. Paris: Galli-
mard, 1968, p.230.
82 83
•.-. __.•----.----.-------'_ •...
SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTfCA AO TEATRO ÉPICO
Antes de passar para as preferências desses dois mestres
franceses em matéria de drarnaturgia (no que também foram
seguidos pelos discípulos brasileiros), conviria reunir e histo-
riar um pouco alguns dos conceitos e expressões mais abstratas
que constituem seu repertório teórico. Décio de Almeida Pr3-
do diz ter aprendido com Copeau e Jouvet que "encenação é
o desenho de uma ação dramática"; que o texto deve recon-
quistar os seus direitos sobre o espetáculo; e que é preciso
restaurar a convenção teatral - a convenção dramática, feita
de poesia, graça e nobreza - que teria sido respeitada durante
todo o período do teatro clássico, mas o Teatro Livre tentou
destruir na França. Além disso, no ensaio sobre Jouvet dá a
entender que o espiritual, 3 imaginação e o maravilhoso devem
ser valorizados contra o aviltamento da linguagem e o rcbai-
xarnento dos assuntos (também promovidos pelo Teatro Li-
vre). Finalmente, vimos que para Jouvet há uma lógica
dramática, a do teatro que não tem empregadinhas nem bê-
bados, oposta à lógica do Teatro Livre, a ser combatida.
Como já tratamos em outra oportunidade das questões
relativas a convenção dramática, lógica dramática e ação dra-
mática'", agora interessa ver de onde Copeau e depois Jouvet
retiraram esses valores e como os utilizaram em sua própria
atividade. No caso de Copeau, o crítico vem primeiro. Embora
já venha de Brunetiêre o projeto de exumação das convenções
do teatro clássico, como se elas não estivessem perfeitamente
vivas no repertório dos atores e diretores da Comédie Fran-
çaise e demais teatros parisienses'", não é preciso recuar tanto
na história da crítica teatral francesa para identificar os ante-
passados de Copeau. Basta ver que, em nome de critérios como
ação dramática, ele desqualifica quase todos os dramaturgos
encenados pelo Teatro Livre, em termos semelhantes aos de
Sarcey, a grande autoridade da crítica teatral francesa desde
1880. Segundo Thibaudet, a idéia mestra da crítica de Sarcey
. era a de que "teatro é teatro e consequentemente não é livro,
"não é literatura, não é poesia,,23. E segundo Antoine "o todo-
poderoso Sarcey defendia firmemente a praça com seu mara-
vilhoso senso do espectador burguês (...) resolvido a não deixar
passar um teatro cujo triunfo seria a ruína de tudo o que ele
tinha amado e defendido".24 Sarcey amava e defendia Corneil-
le, Racine e Moliêre, mas diga-se a bem da verdade que ele
jamais atribuiu qualquer valor à obra de Ibsen, enquanto Co-
peau alinhou-se entre seus partidários e admiradores, questão
de extremo interesse para a história da crítica moderna, cujo
exame no momento nos levaria longe demais.
Vejamos o argumento da ação dramática, ou lógica dra-
mática, entendida por Copeau como exclusivamente aquela
que provém de uma motivação psicológica e portanto da "pin-
tura interior" dos personagens, usado contra dramaturgos en-
cenados pelo Teatro Livre.
.'-
(petite bonne), o professor perde a paciência e explode numa
explicação das mais esclarecedoras: "Não há empregadas tbon-
nes) no teatro, digo de uma vez por todas. Nem empregadas
nem donas-de-casa. No Teatro Livre sim, há empregadinhas
(boniches), bêbados. No teatro não há empregadas. Há criadas
(soubrettes), sem as quais o personagem ficaria sozinho".20
3. Repertório armado
22 Sobre o conscrvadorismo exacerbado de Brunetiêre, esse inimigo jurado
de Baudelairc, ver THIBAUDET, Albert. Histoire de Ia littérature [rançaise.
Paris: Stock, 1936, p. 454-456; e sobre a presença, ainda no final do século,
das convenções clássicas nas técnicas de atuação dos elencos da Comédie,
do Odcon e do Noveautés, ver ANTOINE, André. Mes souuenirs sur le
Tbéatre-Libre. Paris: Arthêrne Fayard, 1921, p. 198-203.
2.1 Thibauder, op. cit., p. 458. (Mas este critério vigora na França desde pelo
menos 1830).
24 Antoine, op. cit., p. 8.
20 Id., loe. cit., p.232, grifas nossos.
21 Cf. nosso estudo ''A dramaturgia moderna entre os moldes da imaginação".
In MATE, A.L. (org.). Teatro: um espaço para a literatura. São Paulo: FDE, 1992.
84 85
•••••• .,. ta d;· ••••.. "iJ';;;;:~'J"1'!iiC!ll!l~MJ"'i'~.~!}"Q~;:J!I!::;~,.~~",.;;.,~~.~,.I;'~';';"'''''''~''''"''''-
""'""._" ....
SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
Contra Emile Fabre:
um artesão completo (...) talvez não seja poeta; [e apropriando-se
de uma observação de Dumas Filho]: um elaborador dos movi-
mentos puramente exteriores do homem; o elemento social do-
mina; o elemento íntimo, conquanto furtivamente indicado, é
25
como que excluído.
Contra Paul Hervieu, além de se apoiar nos critérios de
Brunetiêre, que é amplamente citado, conclui que suas peças
têm os seguintes defeitos:
Fragilidade da trama psicológica e peso excessivo do processo
material; acontecimentos fortuitos a serviço de intenções de-
monstrativas - prova da fatalidade do acaso.
26
Brieux talvez seja para Copeau o caso mais grave de inca-
pacidade poética, por ser um dramaturgo que não expõe dra-
maticamente fatos importantes:
Brieux evita o drama - quer dizer, a pintura direta, autêntica e
sincera dos personagens, suas relações e conflitos - cada vez que
os encontra. (...)Sua pintura é mesquinha e convencional; ela aflo-
ra realidades, mas não as penetra. Ela não cria atrnosferas.Y
Para nâo correr o risco de reproduzir todas as críticas,
passemos às convicções que as sustentam. Numa resenha que
apresenta o trabalho do crítico inglês William Archer como
um modelo a ser seguido, Copeáu acaba introduzindo algu mas
definições importantes, como é o caso de drama: "o drama
digno desse nome é o personagem em ação". Ou então, lógica
no drama: "lógica é interior, e não a que um Paul Hervieu
impõe, de fora, às suas ficções abstratas". Na conclusão, depois
de reconhecer que essas idéias (suas e de William Archer) nem
sequer são novas, Copeau faz a sua profissão de fé: "É a elas,
entretanto, que é preciso voltar sempre (...); é delas, e de seu
império soberano que depende a saúde, a vitalidade da nossa
arte" .28 Quanto à finalidade e aos conteúdos, em lugar da arte
"de tese, ou de idéias" o dramaturgo deve ambicionar a grande
arte que consiste em "pintar ingenuamente semelhanças (...).
E fazer sonhar, evocando, sugerindo a vida múltipla e miste-
riosa, tirar das coisas e dos seres seu canto profundo, não fechar
a perspectiva do mundo por um julgamento pesado, não se
opor aos fenômenos, ser simples, familiar (... ) saber, se assim
se pode dizer, não ter idéias, não ter espírito, - e ver,,29.
Após esta definição, ninguém se surpreenderia com a in-
formação de que, para Copeau, o maior dramaturgo dos tem-
pos modernos é Paul Claudel", de quem encenou uma peça
que lhe serviu de inspiração em seu último trabalho como
diretor, Le miracle du pain doré (1943). Dito de teatro popular
- entendido como "cerimônia de confraternização social" - o
espetáculo é assim descrito pelo biógrafo e admirador deste
grande mestre do teatro moderno francês:
a maior parte dos trechos cantados foi escolhida no velho reper-
tório monódico e polifônico dos trovadores e mestres dos séculos
XVe XVI.Outros foram compostos segundo exigências do texto
por joseph Samson, o mestre de capela da Catedral de Dijon. O
importante, com efeito, era que a música, estreitamente unida ao
corpo da peça, constituía como que a sua palpitação, tão irrepri-
mível quanto as reações de alegria ou medo. Um coro de sessenta
e quatro pessoas acompanhava a descida dos céus e a ascensão
2X Id., loe. cit., p. 202-3. Como Copeau, William Archer foi admirador e
encenado r de Ibsen. Sua opinião sobre o dramaturgo escandinavo se encontra
no artigo lbsen and the English Theatre, reproduzido em diversas publicações,
como é o caso de HINCHLIFFE, A.E. Drama Criticism. Deuelopments sina
lbsen. Londres: McMillan, 1979, p. 60-67.
29 Id., loe. cit., p. 230.
30 Para os que já se esqueceram dessa figura que até morou no Brasil em
missão diplomática, vale a pena reproduzir esta observação de Thibaudet:
'~Ação Francesa produzirá [já no início deste século] uma doutrina geral da
reação [católica, monarquista, etc.]; e o estilo da reação, do qual encontra-
remos exemplos em Léon Daudet, Claudel e Maritain, permanece hoje [anos
30] mais vivo do que nunca". Cf. Thibaudet, op. cit., p. 383.
25 COPEAU, Jacques. Critiques d'un autre temps. Paris: NRF, 1923, p. 19 a 28.
26 Id., loc. cit., p. 66 a 85.
27 Id., loco cir., p. 130 a 144. Cabe lembrar entretanto que esta opinião não o impediu
de encenar Brieux em mais de uma temporada do Vieux Colombier.
86 87
SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
de Deus e sua Mãe. O coro de trombetas, que sublinhava as en-
tradas, foi composto sob medida31
.
Apesar do esforço, principalmente de Louis Jouvet, para
apresentar a idéia de "convenção dramática" como sinônimo
da "convenção teatral" combatida pelo Teatro Livre, que lhe
interessava restaurar, caberia insistir, mesmo que esquemati-
camente, na sua diferença, de natureza histórica, pois quando
se pensa no teatro moderno essa assimilação pode induzir a
enganos de toda ordem.
Por "convenção teatral", Copeau, Sarcey, Brunetiêre e de-
mais conservadores entendiam aqueles procedimentos de tex-
to e interpretação próprios da tragédia clássica francesa:
versos, divisão em atos logicarnente determinada pela ação
dramática e assuntos selecionados entre os de interesse da aris-
tocracia, com personagens "naturalmente" representando
príncipes, princesas, reis, rainhas e respectivas cortes ou, não
por acaso, retirados de histórias bíblicas sempre em torno de
problemas e experiências dos poderosos. A interpretação re-
querida por esse tipo de dramaturgia tinha pelo menos duas
características fundamentais: era frontal, ou seja, mesmo em
caso de diálogos, os atores não se entreolhavam, mas dirigiam-
se ao público - procedimento declamatório cuja defesa gerou
a argumentação "técnica" em favor da melhor "audição" por
parte do público ". Em segundo lugar, tanto pelos textos ver-
sificados, quanto pela tentativa de imitar a dicção solene em
situações idem da classe dominante, os atores do teatro clás-
sico, e seus sucessores na Comédie Française até o século XX,
desenvolveram uma dicção, dita teatral, caracterizada por
aquilo que até hoje os fonoaudiólogos chamam "impostação
da voz", mas que tão somente era (como continua sendo) ba-
seada na concepção e prática clássicas da eloquência, exigindo
voz forte, grave e volumosa, pronúncia correta das palavras e
dramaticidade de expressão, fala pausada (pausas longas a cada
oração), capacidade de estabelecer oposições (com os recursos
técnicos da modulação e do colorido), ênfase nas inflexões e
domínio da mímica, do gesto e das expressões faciais, que
deveriam funcionar como recursos adicionais, de realce do
texto declamado.
O Brasil do teatro moderno adotou uma atriz francesa com
total domínio desse repertório. Trata-se de Henriette Mori-
neau, que Décio de Almeida Prado elogiava, pode até ser que
curn grana salis, em termos como "o espetáculo da força de
uma grande atriz é sempre fascinante, como um fenômeno da
natureza - e Morineau tem força por três ou quatro atrizes:
força física, força de voz e força espiritual, isto é, força de
temperamento. As suas explosões va!em por si, inde-
pendentemente da peça e dos atores. (...) E pena que o teatro
moderno tenha, em geral, tão pouco uso a fazer desse manan-
cial de energias". Faltou dizer quanto tempo de treinamento
um ator francês leva para se apropriar desse repertório a ponto
de transtorrná-lo em "força da natureza".
As "convenções dramáticas", por sua vez, foram criadas
em oposição às "teatrais" a partir do período anterior à Re-
volução Francesa, à medida que dramaturgos começaram a
tratar de assuntos mais "populares" (no tempo em que a bur-
guesia ainda era "povo") e deixaram de escrever em versos
(datam desta época argumentos de conservadores do tipo de
La Harpe tais como "empobrecimento da linguagem teatral",
"pobreza de inspiração poética" e "perda da poesia", os mes-
mos usados por Décio de Almeida Prado contra Brecht). Por
isso mesmo, aqueles dramaturgos do chamado "partido filo-
sófico" desenvolveram de maneira notável o drama em prosa
propriamente dito. A geração responsável pela consolidação
desse feito na França é conhecida como "realista" e seus maio-
res representantes são Dumas Filho, Augier e Sardou (é bom
que se diga que Brunetiêre e Sarcey abominavam suas obras).
Esse drama, em sua fase de consolidação de meados do século
.lI BORGAL, Clément. Op. cir., p. 282.
.12 Mas também gerou uma série de comentários divertidos incorporados ao
folclore da "gente de teatro", relativos aos casos reais de atores e atrizes que se
queimaram nos bicos de gás da ribalta, de que se aproximavam excessivamente
para seus rostos ficarem mais iluminados (Cf, Antoine, op. cit., p. 200).
88 89
SINTA O DRAMA
XIX, já dispunha de uma espécie de "mapa da mina", no Dis-
curso sobre a poesia dramática de Diderot. O trio acima, entre
inúmeros outros, deu realidade, inclusive conceptual, ao que
o filósofo chamou comédia séria, embora os chamados vícios
(sobretudo o do adultério, apesar dos protestos das platéias
suscetíveis) integrassem o seu repertório, como também o do
próprio Diderot. Ao contrário do que propagam os detratores
do Teatro Livre, a interpretação supondo uma quarta parede
invisível (porque os atores dialogam entre si, podendo até mes-
J1l0 voltar as costas ao público para escândalo dos conserva-
dores de plantão) foi introduzida antes mesmo de Antoine ter
uascido. Poclc-se dizer o mesmo da dicção rebaixada, corres-
pondcudo, l10 plano da técnica de interpretação, ao abandono
da cloquência em favor da fala cotidiana ou "natural", imitada
dos costumes linguÍsticos da burguesia francesa, afinal a classe
que fornecia Unto os assuntos quanto a renda de bilheteria e
os investimentos para esse teatro.
Quando surgiu a geração de Antoine, havia no panorama
teatral francês esta duplicidade de repertório: o clássico e o
realista. A própria Comédie Française, principal trincheira do
repertório clássico, já fora invadida (termo usado pela crítica
conservadora) até mesmo pelos dramaturgos naturalistas que,
como bem lembrou Thibauder, nada mais representavam do
que a radicalizaçâo da "escola realista". Basta ver que, ainda
em 1882 (cinco anos antes da fundação do Teatro Livre), Hen-
ry Becque teve sua peça Les Corbeaux encenada na "casa de
Moliêre" e que no Ambigu, desde 1879, Emile Zola já vinha
obtendo grandes sucessos de público com adaptações de LAs-
sommoir e Nana, a primeira ultrapassando as cem repre-
«nmçôes, para não falarmos de outros autores .
.')('p:ua os conservadores da tradição clássica o drama rea-
1.';1.1n.1 in.iccitável por ficar às voltas com problemas familia-
11":., "11iIiIos de gerações, adultérios, demi-mondaines (e
prml 1I111.1',1'1oprinrnente ditas, mas de alto nível, comoAdama
das cutncl ur-), 11<."111como golpes financeiros ou corrupção da
justiça, a :lIIlI'II.H ...IO <.ksserepertório (já considerado de péssi-
mo gosto) P;Ir:1(IS csnirúrios, as lavanderias, as cozinhas) as
90
•••.......----.~-
A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
reivindicações políticas
33
e os atos públicos (caso de NelI Horn,
de Rosny, montada por Antoine em 1891» com hinos e ban-
deiras dos diferentes partidos de trabalhadores, ultrapassava
os limites do suportável. Quanto à dicção e hábitos linguísticos
populares trazidos ao palco, não é preciso repetir as fúrias dos
Sarceye mesmo de dramaturgos realistas como Sardou, ferozes
inimigos da "escola naturalista" e em especial do Teatro Livre
e de Antoine.
Enquanto a "opção preferencial pela burguesia" do teatro
realista determinou que a "convenção teatral" (tragédia em
versos e eloquência na interpretação) fosse definitivamente
superada pela "convenção dramática" (texto em prosa e inter-
pretação realista» a "opção mais ou menos preferencial pelos
trabalhadores" do teatro naturalista (cujos militantes, como
Antoine, apreciavam muito o realista) é bom que se diga) sig-
nificou, por um lado, a "convenção dramática" intensificada
no plano da interpretação) com destaque para a quarta parede
e a total identificação entre ator e personagem de modo a
produzir empana no público e, por outro, a progressiva des-
truição da forma do drama realista (ou burguês, ou peça-bem-
feita) - segundo Brecht e especialistas em sua drarnaturgia, o
primeiro passo em direção ao teatro épico.
Neste momento da história nós ainda estamos pelo menos
uma década distantes do teatro épico) de Maiakóvski a Brecht
entre outros) que transformou em método de composição aqui-
lo que os críticos conservadores apontavam como incapacida-
de artística ou pobreza de inspiração nos dramaturgos
naturalistas. O seguinte comentário de Copeau a uma peça de
Octave Mirbeau, encenada em 1908 pela Comédie Française,
33 Em 1889 Amaine montou uma peça, que ele mesmo achava imprópria
para as reduzidas dimensões de seu teatro, especificamente porque nela havia
uma cena em que o povo fazia um protesto diante da prefeitura de Verdun.
Ele trabalhou com 500 figurantes e inúmeros recursos de iluminação e mo-
vimento para realizá-Ia. Tratava-se de um texto escrito por Zola em 1866,
La patrie en danger, que permanecera inédito. Desnecessário dizer que Sarcey
critica Antoine justamente por essa cena. (Cf. Amaine, op.cit., p. 137-140).
91
SINTA O DRAMA
praticamente sintetiza esses argumentos, que poderiam sem
muito esforço constituir uma espécie de roteiro de análise para
uma peça épica:
Talvez, numa leitura, poderá parecer menos imperfeita esta peça
onde eu acreditei ver tantos defeitos. Eu nada mais fizque traduzir
as impressões que tive durante a representação. Se as qualidades
que sem dúvida Le Foyer contém não se deixam perceber com
facilidade, é porque a grande fragilidade da obra funda-se em sua
composição dramática. A forma, em si mesma, não é concebida
com suficiente rigor. Daí uma ausência quase total de contrastes.
E quanto mais preciosa a matéria do drama, mais deplorável esta
falha orgânica. Pois os fatos e os personagens não são nada se não
entrarem em combinações originais. E os traços de observação,
mesmo os mais autênticos e mais saborosos, ficam fracos quando
permanecem disseminados. Ora, aqui a linha flutua, o ritmo é he-
sitante. As cenas não se encadeiam, elas se justapõem umas às
outras. Em lugar nenhum o drama se manifesta. Há acumulação,
superposição de materiais, e não formação de uma matéria sub-
metida à força artística. Falta o ângulo de visão ou, como dizem
os pintores, elaboração ".
4. Turbulência conceitual
No plano da forma, detalhe significativo, o "ideal" de Co-
peau estava ali mesmo no Gymnase - a histórica cidadela do
drama burguês do século XIX - e, no da interpretação, na
Comédie Française. Mas com o Teatro Livre rondando por
pert035
e com a rápida identificação deste como o principal
34 Copeau, op. cit., p. 37-38. Parece que, como Hauprrnann, Mirbeau acabou
aprendendo a lição de Copeau, pois na sua temporada nova-iorquina de
1918 esse diretor encenou sua peça Les mauvais bergers.
35 É bem verdade que o primeiro endereço do Teatro Livre era um teatrinho de
Montparnasse mas, paradoxalmente empurrado pelas dificuldades financeiras, Antoi-
ne acabou conseguindo alugar por duas noites ao mês o Menus-Plaisirs que ficava no
Boulevard Strasbourg. Não era grande coisa, mas ao menos ficava em Paris (Cf. An-
toine, op. cit., p. 65 e 100).
92
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1
1i
A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
1
li
inimigo a ser combatido, a assimilação dos conceitos de con-
venção teatral e dramática acabou se transformando na peça
básica da artilharia voltada contra os "naturalistas". E estes
passaram para a história oficial do teatro como os responsáveis
pela tentativa de "destruir" as "imortais" convenções teatrais,
como VImos.
Um dos maiores mal-entendidos do teatro moderno de-
corre exatamente dessa operação: na medida em que Copeau
e seus discípulos, desde a inauguração do Vieux Clombier em
1913, se lançaram à luta pelo "resgate da teatral idade", eles
puderam ser aproximados de artistas como Brecht e Meyer-
hold que, na ponta esquerda, também criticavam os métodos
de encenação e interpretação naturalistas, em busca do que
Brecht, seguindo os forrnalistas russos, chamou "efeitos de
distanciamento". A palavra chave do mal-entendido é teatra-
lidade pois, desprezadas as finalidades opostas, pode-se dizer
que tanto Brecht quanto Jouvet fazem questão de mostrar ao
público que ele está assistindo a um espetáculo e não presen-
ciando "fatos realmente acontecendo". No entanto, sabemos
que para Brecht, Meyerhold e demais diretores do teatro épico,
os recursos teatrais do distanciarnento têm o objetivo de eli-
minar a identificação ator/personagem, no plano da interpre-
ração e, na relação público/espetáculo, impedir CJuese produza
a ernpatia, ou a projeção - aquele comportamento que Adorno
chama de boçal. Já a restauração das convenções teatrais tem
para Copeau, Jouvet, Dullin e outros a finalidade oposta. Para
eles não basta o simples comportamento boçal do consumidor
burguês de "arte"; eles ainda querem mais. Querem que da-
quele "íntimo acordo" entre palco e platéia se produzam ilu-
sões e emoçôes ainda mais profundas que as provocadas pelo
teatro realista e naturalista. Talvez essas ilusões e emoções lhes
pareçam mais "profundas" por serem provenientes do ancien
régime, do tempo em que o homem ficava perplexo diante dos
"profundos mistérios" que envolviam sua vida e se "resolviam"
a poder de "oração".
O "respeito ao texto", a mais importante lição que Décio
de Almeida Prado diz ter aprendido com Copeau e Jouvet,
93
:~". ·"":;;;:;"'·-·'=·""""""""'~""""""ó"''''''''''-'':'''~~ ...~_.~~.~"~Jl4tc,,".I!i:»!$lpJ!l'.i!!E'
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SINTA O DRAMA
produz um outro mal entendido do maior interesse. Este pro-
vém das experiências de vanguarda realizadas por diretores
como Gordon Craig, Max Reinhardt e Meyerhold, para nos
limitarmos aos mais conhecidos, que Copeau rejeita com vee-
mência no "manifesto" do Vieux Colombier. O mal-entendido
que, convém ressaltar, nunca foi parti Ihado por Décio de Almeida
Prado, consiste em imaginar que Copeau e Gordon Craig estão
de acordo nesse ponto, só porque o último escrevia coisas como
"um poema é para ser lido. Um drama não é para ser lido, mas
para ser visto no palco"; ou então: "o diretor toma u~a cópia
da peça e promete ao dramaturgo interpretá-lo como indicado
no texto,,36. O equívoco começa a se desfazer quando, avançan-
do na leitura de sua obra principal, encontramos as observa-
ções sobre o "caco" e a rubrica: se "caco é a maior ofensa que
o ator pode fazer ao dramaturgo, rubrica é a maior ofensa que
d f d
,,37
o dramaturgo po e azer ao encena or .
Quando se trata de um diretor mitológico do porte de um
Gordon Craig, para ver como ele estava muito longe de pra-
ticar esse "respeito ao texto" de que falam Copeau e Jouvet,
melhor é referir brevemente uma de suas experiências mais
radicais - o seu Hamlet experimental de 1911 no Teatro de
Arte de Moscou com o elenco de Sranislavski. Segundo Nina
Gourfinkel: "Para Stanislavski tratava-se de Shakespeare, de
uma determinada tragédia, examinando um problema psico-
lógico numa determinada época. Para Craig, tratava-se ~e um
conjunto cênico; menos ainda: do pretexto para construir um
conjunto cênico, colocado fora do tempo, diretamente na eter-
nidade, onde poderiam se mover, num determinado ritmo,
personagens, portadores não de psicologia mas de gestos trá-
gicos. Não só a encenação não devia, de maneira alguma, dar
36 GORDON CRAIG, E. De l'art du théatre. Paris: Lieutier, s/d, p. 116 a
121. Em todo caso, corria nos Estados Unidos o comentário de que Gordon
Craig era mais conhecido "de ouvido" que de leitura. (Cf. BROWN, John
Mason. Upstage. The American Tbeatre in Performance. Nova York: WW
Norton, 1930). Isso também pode ser verdadeiro no Brasil,
.17 Gordon Craig, op. cit., p. 247.
94
A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
qualquer ilusão de realidade mas, muito ao contrário, para
além da aparência visível de uma construção abstrata, ela de-
veria evocar o invisível". 38
Stanislavski - o grande mestre da interpretação realista e
naturalista do século XX - naturalmente não aderiu a essa
experiência craiguiana, sobretudo por seu desrespeito ao texto
de Shakespeare, transformado em mero pretexto. Quem se
encantou com a encenação teatral de Gordon Craig foi Meyer-
hold, que levou muito longe a idéia de usar o texto como
pretexto, a ponto de desenvolver trabalhos nos quais a ence-
nação desmente ou, como diria Brecht, critica o texto. No
artigo citado de Nina Gourfinkel encontra-se a esse propósito
uma minuciosa descrição da hilariante cena final criada por
Meyerhold para Casa de bonecas, que literalmente demoliu a
peça de Ibsen.
Já o diretor francês, ao apresentar seu plano de "renovação
teatral", declara enfaticamente conhecer os trabalhos de todos
aqueles diretores da vanguarda européia, com os quais só con-
corda naquilo que rejeitam da encenação realista, mas preten-
de seguir um caminho próprio, apoiado no bom senso e no
bom gosto. Pois, diz ele: "é preciso reconhecer que as idéias
desses mestres nem sempre deixam de nos chocar por seu ex-
tremo pedantismo. Delas, cabe destacar um certo parti-pris de
simplismo, que nem sempre acompanha a verdadeira simpli-
cidade, e sobretudo uma tendência, que ofende a [inesse e a
modéstia de nosso gosto francês, de sublinhar numa obra, de
reforçar por meios materiais, e frequentemente ingênuos, as
intenções do poeta. O espectador cultivado gosta de descobri-
Ias, de surpreendê-ias por uma abordagem mais sutil".39
Nessa mesma linha, mas assumindo e tornando ainda
mais evidentes as disposições conservadoras do teatro pro-
posto por Copeau, Gaston Baty, também seu discípulo, assim
95
.lH GOURFINKEL, Nina. L'apport du théatre étranger au début du xx=
siêcle. La reuue des lettres modernes, n" 3. Paris: abril de 1954, p. 14-15.
39 Copeau, op. cit., p. 247 .
------------------------------------------------------------------_.
SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
explica em 1944 a rejeição francesa ao conjunto das experiên-
cias da vanguarda teatral:
No tempo em que triunfavam o expressionismo alemão e o cons-
trutivismo russo, os franceses seguiram esse movimento muito
à distãncia. Seu emprego era tímido e muitos consideravam re-
trógrados aqueles dentre nós que se consagravam às mais novas
pesquisas. Mas eis que a moda passou. As audácias se acalmaram
e percebe-se que aquilo que será incorporado ao patrimônio da
arte cênica é mais ou menos o que os encenadores franceses ti-
nham aceito desde o começo. Uma vez mais nosso país terá cum-
prido a sua missão de colocar uma novidade nos seus devidos
termos, de eliminar os excessos, de reter o que é durável e de
reajustá-Ia à medida clássica 40
Não foi Baty o único a valorizar o caráter abertamente
conservador do trabalho desenvolvido no Vieux Colombier.
O presidente Clemenceau, identificando perfeitamente o ad-
versário, também o fez. Tanto que, em plena guerra, tratou de
enviar Copeau para uma temporada nos Estados Unidos em mis-
são oficial que se prolongou de 1917 a 1920. E esse artista "apo-
lítico" se transformou em "embaixador extraordinário" do teatro
francês, nada menos que por "razões de Estado". Nas palavras
entusiásticas de seu biógrafo: "a América se mostrava perigosa-
mente sensível à Kultur alemã. (...) As preferências do público
dirigiam-se ao Teatro Alemão em Nova York, enquanto o Teatro
Francês ali morria do mesmo mal que em Paris. Enfim, falava-se
das grandes reformas dramáticas da Alemanha e da Rússia; ig-
noravam-se as realizações francesas. Era preciso inverter essa
corrente,,41. Para se ter idéia do quanto Clemenceau estava
empenhado nessa iniciativa, basta saber que ele próprio, a pe-
dido de Copeau, solicitou ao Ministro da Guerra que conce-
desse baixa a atores do Vieux Colombier, entre os quais Jouvet,
para garantir o sucesso da missão. Mas o Ministro não atendeu
ao pedido e a primeira fase da longa temporada do diretor em
Nova York consistiu numa série de conferências para fazer
apenas a divulgação/propaganda do projeto de restauração dos
"valores eternos" do teatro clássico, segundo o bom gosto fran-
cês por ele redescoberto no Vieux Colombier.
5. Modelos para o bem do Brasil
Com as características esboçadas, nem é preciso dizer que
o forte do repertório deste grupo era constituído por peças
clássicas, nelas incluídas obras de Shakespcarc e Moliêre, Mas,
embora não fosse uma prioridade, Copeau chegou a encenar
peças de dramaturgos contemporâneos. Bem entendido, só os
que já tivessem sido aprovados em testes de palco por outras
companhias, como foi o caso de Claudel, seu amigo e compa-
nheiro da Nouvelle Revue Française. "Revelado" na França pelos
adeptos do chamado teatro simbolista (inaugurado por Lugné-
Poe, também como reação ao Teatro Livre), este dramaturgo é
assim apresentado numa antologia do teatro francês de vanguar-
da: "convertido ao catolicismo em 1886, não somente sua obra
será inspirada por um profundo sentimento religioso, mas o
próprio misticismo e a religião constituirão os temas funda-
. da rnai d b 47mentais a maior parte e suas oras" -. Dele, Copeau ence-
nou, na temporada de lançamento do Vieux Colombier,
LEchange, concebendo para único cenário uma árvore e o céu.
Os discípulos de Copeau também terão oportunidade de
expor nos palcos franceses, e mesmo nos brasileiros, as "inu-
sitadas" qualidades da drarnaturgia deste poeta. É o caso, para
ficar num exemplo que nos interessa diretamente, de Jean-
Louis Barrault que trouxe em 1954 ao Brasil a sua produção
de Le livre de Christophe Colomb, comentada por Décio de
40 BATY,Gaston. Rideau baissé. s/I: Bordas, 1949, p. 212.
41 BORGAL, C. op. cit., p. 139.
42 PILLEMENT, Gcorges (org.). Anthologie du théatre [rançais contempo-
ramo Vol. 1, (Le théatre d'avant-garde). Paris: Bélier, 1945, p. 39.
96 97
---_-.--....-----~.-... _.__ .-._--_ .....
SINTA O DRAl1A
Almeida Prado com um entusiasmo raramente visto em seus
textos críticos, normalmente bastante comedidos. Depois de
lembrar que por muito tempo a peça foi considerada irrepre-
sentável (era tida como peça para ser lida ... ) e de observar que
ela é bastante irregular e de inspiração desigual, afirma que
Claudel a teria escrito "para um cncenador e uma forma de
teatro que não haviam ainda nascido" (não fosse a história que
vai dos Meininger a Brecht, passando por Antoine, Gordon
Craig, Meyerhold e Piscator, podemos contrapor) e explica as
razões de seu entusiasmo:
de repente vem um espetáculo como Christophe Colomb e eis
toda uma comunidade abalada,galvanizadapor esta simples ficção,
por este sonho apaixonado, por este nada; todos, ricos ou pobres,
inteligentes outolos, cultos ou ignorantes,jovens ouvelhos, todos
elevados acima de si mesmos, todos compreendendo, ao menos
por um instante, por um lampejo de sensibilidade, depois do qual
tornarão a cair na rotina da vida prática, que a arte é verdadeira-
mente alguma coisa superior; uma forma de conhecimento que
pode ser colocadaao lado da ciência, da filosofiae da religião. Este
é o milagre que, por alguns segundos inesquecíveis, Le livre de
Christophe Colomb operou em todos nós.
43
Embora nosso crítico nunca tenha apresentado Claudel
como alternativa a Brecht, não seria exercício inútil comparar
as observações que dedicou ao dramaturgo alemão às seguin-
tes, sobre o francês: "Claudel tem qualquer coisa dessa gran-
deza poética que não se confunde com o talento ou a
inteligência (...). Não importa que se divirta com o teatro como
uma criança que acabou de descobrir um brinquedo, não im-
porta que o seu senso de humor seja o mais pesado e o mais
carregado possível, não importa que volte as costas instintiva
e deliberadamente ao bom senso mais elementar, jogando com
as palavras, reinventando arbitrariamente os fatos, fazendo da
história, às vezes, um simples joguete. A visão que tem das
43 PRADO, D.A. Apresentação do teatro moderno brasileiro, op. cit., p. 439.
98
__ -"'-_~-~_F-'----
A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
coisas é sincera, é autêntica, é poética, é a única no mundo
t I t b ,. ,,44 P -a ua a er um certo sa or eplco. or essas razoes, nos anos
50, Décio de Almeida Prado considerava Claudel o maior dra-
maturgo francês da primeira metade do século.
Ao lado de Paul Claudel, Jean Giraudoux desempenhou
na imaginação dos brasileiros modernos, ao longo dos anos
50, o papel de ideal a ser atingido, ou pelo menos de termo
de comparação para aquilatar a qualidade de uma peça, como
se vê, por exemplo, nesta crítica de 1953 a Lúcio Cardoso:
"os nossos autores ou são humildes fabricantes de 'chanchadas'
ou pretendem ser a última edição, revista e melhorada de
- '
Claudel, Giraudoux,,4j. Para o nosso crítico, Giraudoux é infe-
rior a Claudel, mas não menos importante na dramaturgia fran-
cesa: "Giraudoux eJouvet, de 30 a 40, renovaram por completo
o teatro francês, ao reintroduzir no palco duas entidades quase
esquecidas: a poesia e o estilo. Em outros termos, o valor da
imaginação pela imaginação e o valor da palavra pela palavra.
( ) Ora, o teatro do último decênio deu um novo passo à frente
( ) e, nesse sentido, pode-se dizer que o grande mestre da metade
do século não é Giraudoux, mas Claudel, o Claudel de Le
soulier de satin e Le livre de Christophe Colomb".46
Jean Giraudoux, o dramaturgo preferido de Louis Jouvet,
era considerado uma espécie de Racine moderno que, depois
de uma experiência com a mitologia alemã (um Siegfried de
1928), dedicou-se a peças inspiradas na mitologia grega (Am-
phitrion 38, La guerre de Troie n'aura pas lieu e Eleetre - esta
considerada a sua obra prima), ou na Bíblia (judith, Sodoma
e Gomorra, Cântico dos eânticos).
Mas já que se falou nesse dramaturgo que valoriza a ima-
ginação pela imaginação e a palavra pela palavra, vale a pena
resumir o argumento de sua Guerra de Tróia, de 1935. Curio-
samente, Giraudoux adota aqui uma perspectiva digamos fa-
44 Id., ibid., p. 441-442.
45 Id., loc. cit., p. 123.
4" Id., loc, cit., p. 213.
99
SINTA O DRA ..".1A
talista, demonstrando em seu texto que, mesmo que os fran-
ceses, digo, os troianos devolvessem a Lorena, digo, Helena
aos alemães, perdão, aos gregos, a guerra aconteceria. Isto por-
que alguns "troianos", apes:u do empenho de "Heitor", dis-
posto a devolver "Helena", queriam tanto aquela guerra que
cometeriam qualquer ato, mesmo imoral, para provocá-Ia.
Aliás, a peça foi considerada profética, Se não estivessem na
ordem do dia francesa os problemas de política externa às
voltas com Hitler e alianças "difíceis" de honrar, talvez nós
pudéssemos imaginar que a tragédia examina apenas o "eter-
no" tema da bravura de um herói, herdeiro do trono, tentando
refrear os ímpetos belicosos de seus súditos ...
O outro dramaturgo valorizado por Jouvet e Décio de
Almeida Prado é, como já ficou sugerido no início, o italiano
Pirandello. Jouvet, ao se referir a ele, vai logo ao ponto: "a
que se deve o sucesso das obras de Pirandello? Ao fato de que
Pirandello toca direta e unicamente naquilo que eu chamaria
a magia dramática, ao fato de que ele ousou, por um jogo de
espírito talvez sacrílego, reanimar velhas fórmulas e transmu-
tar valores dramáticos afastados há muito tempo?": E Décio
de Alrneida Prado, que em suaApresentação do teatro brasileiro
moderno considera Pirandello um autor revolucionário, sem-
pre que escreveu sobre ele procurou exaltar em sua obra aque-
las qualidades sistematicamente negadas em Brecht. A começar
pela originalidade: "Partindo do expressionismo alemão e do
grotesco italiano, termina por desmontar o próprio mecanis-
mo interno do teatro, expondo-lhe o avesso ao público muito
antes que Brecht sonhasse fazê-lo".48 Enquanto, como vimos,
para ele Brecht simplifica e esquematiza a realidade (que é
"muito mais rica do que supõe seu realismo algo pobre"), Pi-
randello ilumina o que não percebíamos: "Depois de Piran-
dello começamos a enxergar partes até então obscuras da
realidade, porque só notamos o que conseguimos compreen-
47 JOtNET, Louis. Problemas do teatro. In BORBA FILHO, Hcrmilo (org.).
Teoria e prática de teatro. 55.0 Paulo: Iris, 1960, p. 219, grifas nossos.
48 PRADO, D.A. Pirandello: cem anos. In -Exercfcio findo, op. cit., p. 191.
100
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A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO
der e interpretar't.Y E enquanto o dramaturgo marxista é es-
quemático e empobrecedor, o italiano, além de humanista, é
dialético: "O exercício da sua dialética não é vão, não brota da
vaidade: é desejo de alargar a nossa compreensão, o círculo da
nossa simpatia, tornando-nos um pouco mais atentos, um pouco
menos intolerantes em face do espetáculo da paixão humana.
Aprendemos com ele, como diz o título de uma de suas peça.s, a
aceitar 'la ragione degli altri' (...) O humanismo, com efeito,
parece ser o limite e o fim do relativismo pirandclliano. (.)
O respeito pelo homem, o desrespeito pelas idéias estabeleci-
I . I I' - d IY J II ,,)0
das, eis a ú rima e mais a ta içao e irunoc o .
Essas palavras foram escritas em 1967 por nosso crítico,
ano em que, como vimos, ele pareceu render-se às qualidades
da obra de Brecht. Mas mesmo assim ele ainda parecia dispor
de uma alternativa melhor - o dramaturgo italiano. Há coe-
rência na opção: como acabamos de aprender, há que aceitar
as razões dos outros. Só não entendemos como as qualidades
acima enumeradas (humanismo, respeito pelo homem e des-
respeito pelas idéias estabelecidas), que qualquer principiante
encontraria abundantemente na obra de Brecht, podem ser
atribuídas a um dramaturgo que aderiu, mesmo que tempora-
riamente, ao fascismo. Eis como Aurora Fornoni Bernardini
relata o caso: "quem sabe tenha sido uma tardia exigência de
revolta libertária radical a que o aproximou, ainda que de
passagem, num dos momentos mais críticos da história da Itália
(logo após o assassinato de Matteotti), do mal compreendido
'anarquismo' fascista, em apoio a uma vontade de agir 'forte'
e determinada. Do mesmo modo, será igual anseio que o levará
mais tarde a certas adesões ao fascismo já instalado, do qual
não percebeu o alcance".51 Convenhamos que a um artista
assim "distraído" fica difícil atribuir qualidades como "capa-
49 Id., ibid., p. 192.
50 Id., ibid.
51 BERNARDINI, Aurora Fornoni. Henrique N e Pirandello. S5.o Paulo:
Edusp, 1990, p. 33.
101
SINTA O DRAMA
cidade de alargar nossa compreensão" ou de nos tornar mais
tolerantes. A menos que a idéia do crítico, usada contra o dra-
maturgo alemão, de que o trabalho estético é indissolúvel da
opção política só tenha valor quando utilizada para desqualificar
comunistas do quilate de Brecht, não valendo para conservado-
res, fascistas de férias ou p:1r<l"apolíticos" como Copeau.
102

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A resistência da crítica brasileira ao teatro épico de Brecht

  • 1. -' A resistência da crítica ao teatro épico" 1. Militância crítica ,,-( Numa fórmula extremamente sumária, podemos dizer que; ) o teatro épico, do qual Brecht é o mais importante emblema, ~;foi uma espécie de arma forjada entre o final do século passado , e as três primeiras décadas deste por artistas adeptos da causa ,-_,darevolução proletária, no âmbito da luta cultural. Uma luta tão legítima quanto a travada por Diderot e companheiros do então chamado "partido filosófico" para criar o teatro dramá- tico em meados do século XVIII. Mas na comparação entre os dois gêneros desde logo o teatro épico sai em desvantagem por uma questão histórica decisiva: enquanto o drama e a classe que o forjou acabaram vencendo no capítulo que lhes coube na história da luta de classes - vitória cifrada na Revo- lução Francesa e no apogeu do drama em sua (já decadente) versão "peça bem feita" durante o Segundo Império -, o teatro épico foi vítima de sucessivas derrotas ao longo do nosso sé- culo, sendo que a primeira delas, já expressão do desastre que <- Publicado originalmente na revista Cultura Vozes n.S, ano 90, vol. 90, set/out 1996, 75
  • 2. SINTA O DRAMA o stalinismo significou para a revolução, poderia muito bem ser identificada ao suicídio de Maiakóvski e ao assassinato de Meyerhold, uma vez que com a encenação de Mistério Bufo, texto do primeiro e direção do segundo para comemorar o ani- versário da Revolução Soviética, os dois escreveram um capítulo fundamental da história que interessa aqui. As derrotas políticas, artísticas e teóricas, constituem hoje parte do problema a ser enfrentado por quem se interesse pelos períodos mais férteis da história do teatro moderno e contemporâneo, como é o caso dos anos que vão mais ou menos de 1880 a 1945 na Europa e Estados Unidos e dos anos sessenta no Brasil. Os artistas que se envolveram com o teatro épico tiveram toda sorte de inimigos a enfrentar, começando por aqueles que se faziam passar por aliados e, para os interessados em seu estudo, além desses, é ainda preciso identificar os ad- versários mais empenhados e acertar as contas com eles tam- bém: os empresários teatrais, os próprios atores, diretores e dramaturgos praticantes do teatro dramático (em particu- lar o modernizado) e sobretudo os críticos e historiadores do teatro, uma vez que estes constituem a indispensável primeira fonte de informação. Uma vez definido o interesse por esse problema, no exame do papel fundamental desempenhado por DJcio. ..de.Almeida prado no processo de aclimatação do teatro moderno no Br~~Ü, para além de sua função de X?rIE.~d?.rde mais deumageraçâo de pes_quisadores (inclusive a minha), .notam-se duas caracte- rísticas muito marcantes em sua críticai de um lado, uma forte resistência à obra de Brecht e, de outro, aadoção oe~üIDàieoria francesa muito especial e refinada. Como alguma coisa desse processo ajuda a esclarecer as dificuldades, sobretudo de or- dem teórica e conceitual, a serem enfrentadas por quem pes- quisa a história do teatro épico em sua versão brasileira, vale a pena acompanhar sua intervenção crítica em relação a esse tópico específico pois, se foi com ele que todos aprendemos a apreciar criticamente uma peça teatral, não podemos perder de vista sua complexa relação com o teatro brechtiano e com a teoria francesa moderna. 76 A RESISTI~NCLA. DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO Miroel Silveira, desde a primeira hora um adversário ideo- lógico e por isso mesmo testemunha isenta, teve a grandeza de reconhecer a relevância do trabalho de Décio de Almeida Prado e o seu lugar único na história da crítica teatral bra- sileira em termos que qualquer um de seus discípulos gos- taria de ter utilizado: Comohomem mais velho que Décio, eu pude ser testemunha de sua carreira desde praticamente o inícioe por isso gosto de dizer que,antes de Décio,a críticateatral noBrasiltinha até umsentido anedótico.(...) Como Décio (...) pela primeiravez surgiu umfun- damento estético, um fundamentofilosófico,umfundamentohis- tórico, um fundamento sociológicona crítica brasileira. Então, a partir de Décio de Almeida Prado, nós começamos realmente a ter crítica teatral em profundidade.'. Mas se essa é uma verdade objetiva, é preciso então des- cobrir por que em mais de uma oportunidade nosso mestre pôs sob suspeita a obra de Brecht, o maior dramaturgo do século XX, apenas alterando os seus juízos quando a experiên- cia com o teatro épico entre nós já tinha produzido os efeitos possíveis em nossa dramaturgia, que por sinal recuava em fran- ca marcha batida. O levantamento das manifestaçôes que apre- sentamos a seguir não pretende esgotar o assunto, trata-se apenas de rastrear esse ponto específico de sua trajetória. Uma das mais antigas referências a Brecht em sua obra ocorre no início dos anos 50, numa comparação com Piran- dello - o que já sinaliza opção estética. Depois de afirmar que tanto em política como na forma teatral esses dois dramaturgos estão em campos opostos, quando se trata da peça de Brecht, A exceção e a regra, o argumento é que, sendo "a linguagem da política, como os seus objetivos, sempre, pela própria In- I PRADO, D.A. Depoimento ao SNT, 30.10.74. in MESQUITA, Alfredo et alii. Depoimentos lI. Rio de Janeiro: SNT, 1977, p. 38-9. 77
  • 3. SINTA O DRAMA dol e, abstrata'"; ao utilizá-Ia a obra fica prejudicada quando trata diretamente dela, como teria sido o caso desta. Numa longa análise de A alma boa de Setsuan, primeiro espetáculo profissional de Brecht entre nós, produção de Maria Della Costa em 1958, nosso crítico alega uma curiosa "suspensão de juízo" imediatamente seguida de objeções de ordem política e estética que serão reiteradas em outras oportunidades. Daí em diante Brecht será regularmente identificado como comunista.' ou marxista e os recursos de seu teatro épico serão mais de uma vez qualificados como esquemáticos, reducionistas e res- ponsáveis por um empobrecimento da linguagem teatral. Em 1960Alberto D'Aversa encenou Mãe Coragem e a peça foi criticada, sempre associando política e estética, de modo a mostrar que as deficiências desta são consequências da pri- meira: "Os comunistas, no mundo moderno, são os mestres das simplificações, da redução do complexo ao simples. As guerras, por exemplo, têm causas econômicas - e está dito tudo, exceto quando a Rússia entra em guerra. Ora, Brecht, que além de comunista era um espírito sardônico e realista, viu a guerra em Mãe Coragem, não através de uma, mas de várias reduçôes'", Enumeradas as reduções, a conclusão con- firma: "Brecht, na sua ânsia de redução, priva-se de muita coisa: do heroísmo e do altruísmo, por exemplo, no plano PRADO, D.A. De Pirandello a Brecht. In -Apresentação do teatro brasileiro ,moderno. São Paulo: Martins, 1956, p. 20l. 3 Para quem sabe da participação do jovem Décio de Almeida Prado no grupo de socialistas conhecido como "Esquerda Democrática" por ocasião do fim da ditadura Vargas, fica claro que a palavra comunista é código para stalinista. Mas acontece que para os interessados em Brecht e na história do marxismo e da esquerda, sabendo que outros anti-stalinistas, assim como anti-social democratas, reivindicam também a condição de marxistas e comunistas, a assimilação historicamente operada por alguns socialistas entre comunismo e stalinismo pode provocar confusão e injustiças como as que veremos em relação a Brecht, que nunca se enganou a respeito da degeneração do regime soviético e por isso mesmo nunca foi muito bem acolhido pelos agentes de Stalin nas artes cênicas, sobretudo na União Soviética. C4 ~RADO, D.A. Mãe Coragem. In - Teatro em progresso. São Paulo: Martins, 1.964, p. 154. 78 A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO humano; da poesia e do poder transfigurador da palavra no plano estético".5 E, para não restarem dúvidas sobre as restrições ao dramaturgo, vem o arremate: "é o caso de perguntar se a realidade não é mais rica, mais variada, menos mesquinha do que supõe o realismo algo pobre de Brecht". 6 A própria teo.ria do teatro épico é posta sob suspeita de mero discurso apologético e o dramaturgo desqualificado por suspeita de incapacidade: "Começamos a indagar, a certa altura, se as teorias estéticas de Brecht, aliás inteligentíssimas, não se destinam porvent~ra a transformar limitações em qualidades, a racionalizar e a legitimar uma fundamental pobreza de inspiração poética'". Em outra oportunidade, para mostrar a diferença entre A alma boa de Setsuan e O testamento do cangaceiro, de Chico de Assis, a peça brechtiana é classificada como "visceralm~nte marxista", o que por sinal é verdade, mas não sabemos se Isto pesa contra ou a favor do dramaturgo e, escrevendo em 1963 sobre Terror e miséria do lJI Reich, o crítico volta à pergunta já conhecida: "até que ponto suas teorias estéticas seriam ~m.a racionalização, uma cobertura dada pelo juízo crítico às limi- tações da sensibilidade?"s Mais tarde, já em 1964, A ópera dos três vinténs estreou com mais de trinta anos de atraso no Brasil, apresentando qualidades incompatíveis com o que até aqui fora considerado como limitações artísticas do dramaturgo. Com a lembrança de que é de 1928, quando Brecht ainda não se "conve~tera" ao comunismo, a peça acaba retrospectivamente determinada pelo crítico no conjunto da obra: "Brecht purgava ~ssim não só o seu lirismo envergonhado como a sua anarquia e o seu niilismo, preparando-se para aceitar o ascetismo moral do co- . " 9 Hl lj Fl l Sffl O • s Id., ibid., p. 155. 6 Id., ibid. 7 Id., ibid. x Id., Terror e miséria do III Reich. In Teatro em progresso, op. cit., p. 267. 9', Id., A ópera dos três vinténs. In - Exercício findo. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 60. 79
  • 4. SINTA O DRAMA Por razões que até agora nos escapam (ainda há muito a pesquisar), somente no ano de 1967 Décio de Alrneida Prado acabou concedendo ao dramaturgo alemão algum valor artís-- tico. Mesmo assim, possivelmente para insistir na distância política que o separa do dramaturgo cO,m.unista,t~atou d,~la~- çar mão de uma piada, de gosto no rrururno ?uvldos~: A di- ficuldade para se distinguir entre um comunista lntehge.nte e um comunista burro - confidenciava-rne um ex-cornurusta - . ,,10M é que ambos dizem exatamente as mesmas cOls.as. as agora são reconhecidas qualidades até então repetidamente postas em dúvida: "Do ponto de vista artístico, a originalidade d.e Brecht é ao mesmo tempo lógica e poética, que reduz a reali- dade ao essencial substituindo a descrição pela evocação e pela análise crític~. A economia e o rig:>r ~~ forma justif~c~m o que possa haver de excessivamente smtetico e esquematl~o no pensamento". 11 Mesmo rnantida a objeção ao esquernans- mo, aquilo que antes era expressão de realisr.n~ pobre, .po.breza de inspiração poética e prova de uma sensIbIl~dade limitada, agora é promovido a rigor da forma. Com essa ImpresslOnan~e mudança de juizo, deparamo-nos com um problen~a dos mais instigantes, que não pode ser despachado sem mais, mas que estamos longe de ter resolvido. Esta espécie de rendição, que pode muito bem ser irônica, à então avassaladora presença, direta e indireta, da obra brech- tiana em nossos palcos, talvez não pudesse se estampar sem maiores reparos num jornal conservador como O Estadode São Paulo, ou a própria consciência anticornunista do crítico talvez exigisse ainda uma derradeira contraposição. São as ÚDl- cas hipóteses que por enquanto nos ocorrem para interpr:tar o seguinte arremate: "Afinal, por que haveríamos de ~eIxar / aos comunistas a iniciativa ou o privilégio de denunciar as e-, injustiças sociais, como se somente eles se interessassem pela sorte dos pobres e dos explorados?,,12 / I) <i: 1() Id., De Brecht a Stanislaw Ponte Preta. In - Exercício findo, op. cit., p. 212. 11 Id., ibid., p. 213. 12 Id., ibid., p. 215. 80 A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO 2. Genealogias ', Certamente os comunistas não detêm o monopólio do in- teresse pela sorte dos pobres e dos explorados, mas também é certo que desde o século XIX só os seus antepassados, os socialistas em suas várias vertentes, incluídos os comunistas, se interessaram pelos pobres e explorados a ponto de elevar os assuntos que lhes dizem respeito ao nível e à dignidade de obras de arte - coisa de extremo mau gosto na opinião dos antepassados do nosso crítico. Por antepassados diretos, isto é, no âmbito da teoria tea- tral, de Décio de Almeida Prado entendemos o crítico e diretor francês Jacques Copeau e o ator e diretor Louis Jouvet, seu discípulo, que levaram a efeito uma luta sem tréguas contra o naturalismo - movimento teatral que o próprio Brecht faz questão de incluir entre os seus antecedentes e com o qual desenvolveu uma relação crítica do maior interesse dialético, Como se vê, a briga vem de longe e passou de pai para filho por mais de uma geração. Quanto ao crítico brasileiro, todas as vezes em que a oportunidade se apresentou, fez questão de reverenciar estes seus mestres, como na Introdução à sua pri- meira coletânea de críticas: ...é aos mais novos que me acho ligado pelas idéias, aos que vieram, de uma maneira geral, depois e não antes de Ziembinski (...). O que ca- racteriza tanto a eles como a mim são os mesmos modos de encarar o espetáculo, as mesmas concepções sobre o que seja representar bem (...). Jacques Copeau, de quem todos descendemos, escreveu: "por encenação compreendemos o desenho de uma ação dramática,,13. Perguntado sobre sua experiência com O teatro moderno europeu, o crítico relata o seguinte episódio: Em 1939 estive na França durante dois meses e meio (...). Lá vi algum teatro, inclusive algumas daquelas companhias célebres I.l Id., Introdução a Apresentação do teatro brasileiro moderno. Op. cit., p. 5 (grifos nossos). 81
  • 5. SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO f:PICO ligadas aotrabalho renovador de Copeau. Naquela ocasião cheguei a assistir, em Paris, a uma conferência do próprio Copeau (...), além de espetáculos de Dullin, Jouvet e outros'". No mesmo depoimento, a propósito de sua formação teó- rica, é detalhado o papel da matriz francesa: Leitura de teoria de teatro realmente eu comecei a fazer no mo- mento em que fuiescolhido para crítico de Clima.Oprimeiro livro que li de teoria teatral foiReflexions du comédien do Jouvet (...). Este livro, aliás, me marcou muito, e por isso talvez até hoje eu permaneça dentro dessa tradição de Copeau e Iouvet, de dar im- portância ao texto J5 • De fato, quando da temporada de Jouvet no Brasil em 1941, o número 3 da revista Clima publicou um iluminador ensaio do jovem Décio de Almeida Prado sobre este mestre francês. Ali encontramos uma espécie de "plataforma política" que vale a pena reproduzir, pois estão identificados os adver- sários e as preferências desta família teatral: Jouvet acredita no que ele chama de "convenção teatral", acordo entre o autor, o ator, e o público para criar um espetáculo, cada um colaborando para que a ilusão seja perfeita e a emoção apareça. Esta convenção que nasceu com o próprio teatro e foirespeitada durante todo o período do teatro clássico (...) foidestruída (ou sua destruição foi tentada) pelo teatro naturalista, na França pelo "Théatre Libre,,16. •.~... .,_.. ,~.-"... "~ Depois de mostrar que segundo Louis Jouvet o teatro na- turalista, devido à opção por apresentar no palco locais de trabalho como açougues, cozinhas e lavanderias, foi respon- sável pela "diminuição do espiritual, morte da imaginação, do maravilhoso e aviltamento da linguagem,,17, o crítico passa-lhe a palavra para indicar os rumos do teatro, numa espécie de síntese de seu pensamento: se o teatro de hoje tende para alguma coisa, é para um caminho onde o espiritual parece ter reconquistado seus direitos sobre o material, o verbo sobre ojogo, o texto sobre o espetáculo. E para uma convenção dramática feita de poesia, de graça e de nobreza.l" Embora já esteja mais ou menos claro o significado dessa "reconquista" dos "direitos do espiritual" sobre o "material", não é demais identificar, nas palavras do próprio Jouvet, o "partido do material", digamos assim, por ele combatido até mesmo nas aulas que deu no Conservatório Nacional de Arte Dramática, nos anos de 1939 e 1940. Explicando a uma das alunas o "erro" por ela cometido numa proposta de cena, o professor por assim dizer argumenta: "Essa é a lógica do Teatro Livre. Você está aqui para aprender a lógica puramente dra- mática".19 E como a aluna reincide no "erro" mais adiante, cometendo aos olhos do mestre a heresia de defender a sua concepção da personagem, alegando ser ela uma empregadinha 14 Id., Depoimento ao SNT, cit., p. 40-41, grifos nossos. Já que o único espetáculo referido é a Gaivota de Tchekov, encenada por Pitoeff, vale a pena reconstituir a situação de destaque em que àquela altura se encontravam os artistas mencionados. Copeau, além de Jouvet, Baty, Dullin e Pitoêff (o Car- tel) foram convidados pelo governo da Frente Popular, o da aliança entre . socialistas, comunistas e "burguesia progressista" (1936-38) para dirigir pe- ças na Comédie Française e demais teatros do Estado. Esta experiência foi tão bem sucedida que em maio de 1940 Copeau é nomeado Administrador da Comédie, permanecendo em seu cargo mesmo durante o governo Pétain, com Paris ocupada, razão pela qual Jouvet, Dullin e Bary romperam publi- camente com o mestre, que só deixou a Comédie após o ultimatum alemão (Cf. BORGAL, Clément. Jacques Copeau. Paris: LArche, 1960, p. 268-9). Pois foi este homem "apolítico" que imprimiu uma linha nitidamente voltada para o teatro clássico na Comédie, empenhando-se inclusive em "restaurar as regras do classicismo" no teatro francês (Cf. MIGNON, Paul Louis. His- toria dei teatro contemporaneo. Madrid: Guadarrama, 1973, p.49). J5 Idem, depoimento citado, grifos nossos. 1ó PRADO, D.A. O teatro de "Louis Jouvet" em São Paulo. Clima n" 3. São Paulo, agosto de 1941, p. 95-96. 17 Louis ]ouvet, apud D.A. Prado, loc. cit., p. 96. 18 Louis ]ouvet, ibid., p. 10l. 19 ]OUVET, Louis. 'Iiagédie classique et théâtre du XIX siecle. Paris: Galli- mard, 1968, p.230. 82 83 •.-. __.•----.----.-------'_ •...
  • 6. SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTfCA AO TEATRO ÉPICO Antes de passar para as preferências desses dois mestres franceses em matéria de drarnaturgia (no que também foram seguidos pelos discípulos brasileiros), conviria reunir e histo- riar um pouco alguns dos conceitos e expressões mais abstratas que constituem seu repertório teórico. Décio de Almeida Pr3- do diz ter aprendido com Copeau e Jouvet que "encenação é o desenho de uma ação dramática"; que o texto deve recon- quistar os seus direitos sobre o espetáculo; e que é preciso restaurar a convenção teatral - a convenção dramática, feita de poesia, graça e nobreza - que teria sido respeitada durante todo o período do teatro clássico, mas o Teatro Livre tentou destruir na França. Além disso, no ensaio sobre Jouvet dá a entender que o espiritual, 3 imaginação e o maravilhoso devem ser valorizados contra o aviltamento da linguagem e o rcbai- xarnento dos assuntos (também promovidos pelo Teatro Li- vre). Finalmente, vimos que para Jouvet há uma lógica dramática, a do teatro que não tem empregadinhas nem bê- bados, oposta à lógica do Teatro Livre, a ser combatida. Como já tratamos em outra oportunidade das questões relativas a convenção dramática, lógica dramática e ação dra- mática'", agora interessa ver de onde Copeau e depois Jouvet retiraram esses valores e como os utilizaram em sua própria atividade. No caso de Copeau, o crítico vem primeiro. Embora já venha de Brunetiêre o projeto de exumação das convenções do teatro clássico, como se elas não estivessem perfeitamente vivas no repertório dos atores e diretores da Comédie Fran- çaise e demais teatros parisienses'", não é preciso recuar tanto na história da crítica teatral francesa para identificar os ante- passados de Copeau. Basta ver que, em nome de critérios como ação dramática, ele desqualifica quase todos os dramaturgos encenados pelo Teatro Livre, em termos semelhantes aos de Sarcey, a grande autoridade da crítica teatral francesa desde 1880. Segundo Thibaudet, a idéia mestra da crítica de Sarcey . era a de que "teatro é teatro e consequentemente não é livro, "não é literatura, não é poesia,,23. E segundo Antoine "o todo- poderoso Sarcey defendia firmemente a praça com seu mara- vilhoso senso do espectador burguês (...) resolvido a não deixar passar um teatro cujo triunfo seria a ruína de tudo o que ele tinha amado e defendido".24 Sarcey amava e defendia Corneil- le, Racine e Moliêre, mas diga-se a bem da verdade que ele jamais atribuiu qualquer valor à obra de Ibsen, enquanto Co- peau alinhou-se entre seus partidários e admiradores, questão de extremo interesse para a história da crítica moderna, cujo exame no momento nos levaria longe demais. Vejamos o argumento da ação dramática, ou lógica dra- mática, entendida por Copeau como exclusivamente aquela que provém de uma motivação psicológica e portanto da "pin- tura interior" dos personagens, usado contra dramaturgos en- cenados pelo Teatro Livre. .'- (petite bonne), o professor perde a paciência e explode numa explicação das mais esclarecedoras: "Não há empregadas tbon- nes) no teatro, digo de uma vez por todas. Nem empregadas nem donas-de-casa. No Teatro Livre sim, há empregadinhas (boniches), bêbados. No teatro não há empregadas. Há criadas (soubrettes), sem as quais o personagem ficaria sozinho".20 3. Repertório armado 22 Sobre o conscrvadorismo exacerbado de Brunetiêre, esse inimigo jurado de Baudelairc, ver THIBAUDET, Albert. Histoire de Ia littérature [rançaise. Paris: Stock, 1936, p. 454-456; e sobre a presença, ainda no final do século, das convenções clássicas nas técnicas de atuação dos elencos da Comédie, do Odcon e do Noveautés, ver ANTOINE, André. Mes souuenirs sur le Tbéatre-Libre. Paris: Arthêrne Fayard, 1921, p. 198-203. 2.1 Thibauder, op. cit., p. 458. (Mas este critério vigora na França desde pelo menos 1830). 24 Antoine, op. cit., p. 8. 20 Id., loe. cit., p.232, grifas nossos. 21 Cf. nosso estudo ''A dramaturgia moderna entre os moldes da imaginação". In MATE, A.L. (org.). Teatro: um espaço para a literatura. São Paulo: FDE, 1992. 84 85 •••••• .,. ta d;· ••••.. "iJ';;;;:~'J"1'!iiC!ll!l~MJ"'i'~.~!}"Q~;:J!I!::;~,.~~",.;;.,~~.~,.I;'~';';"'''''''~''''"''''- ""'""._" ....
  • 7. SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO Contra Emile Fabre: um artesão completo (...) talvez não seja poeta; [e apropriando-se de uma observação de Dumas Filho]: um elaborador dos movi- mentos puramente exteriores do homem; o elemento social do- mina; o elemento íntimo, conquanto furtivamente indicado, é 25 como que excluído. Contra Paul Hervieu, além de se apoiar nos critérios de Brunetiêre, que é amplamente citado, conclui que suas peças têm os seguintes defeitos: Fragilidade da trama psicológica e peso excessivo do processo material; acontecimentos fortuitos a serviço de intenções de- monstrativas - prova da fatalidade do acaso. 26 Brieux talvez seja para Copeau o caso mais grave de inca- pacidade poética, por ser um dramaturgo que não expõe dra- maticamente fatos importantes: Brieux evita o drama - quer dizer, a pintura direta, autêntica e sincera dos personagens, suas relações e conflitos - cada vez que os encontra. (...)Sua pintura é mesquinha e convencional; ela aflo- ra realidades, mas não as penetra. Ela não cria atrnosferas.Y Para nâo correr o risco de reproduzir todas as críticas, passemos às convicções que as sustentam. Numa resenha que apresenta o trabalho do crítico inglês William Archer como um modelo a ser seguido, Copeáu acaba introduzindo algu mas definições importantes, como é o caso de drama: "o drama digno desse nome é o personagem em ação". Ou então, lógica no drama: "lógica é interior, e não a que um Paul Hervieu impõe, de fora, às suas ficções abstratas". Na conclusão, depois de reconhecer que essas idéias (suas e de William Archer) nem sequer são novas, Copeau faz a sua profissão de fé: "É a elas, entretanto, que é preciso voltar sempre (...); é delas, e de seu império soberano que depende a saúde, a vitalidade da nossa arte" .28 Quanto à finalidade e aos conteúdos, em lugar da arte "de tese, ou de idéias" o dramaturgo deve ambicionar a grande arte que consiste em "pintar ingenuamente semelhanças (...). E fazer sonhar, evocando, sugerindo a vida múltipla e miste- riosa, tirar das coisas e dos seres seu canto profundo, não fechar a perspectiva do mundo por um julgamento pesado, não se opor aos fenômenos, ser simples, familiar (... ) saber, se assim se pode dizer, não ter idéias, não ter espírito, - e ver,,29. Após esta definição, ninguém se surpreenderia com a in- formação de que, para Copeau, o maior dramaturgo dos tem- pos modernos é Paul Claudel", de quem encenou uma peça que lhe serviu de inspiração em seu último trabalho como diretor, Le miracle du pain doré (1943). Dito de teatro popular - entendido como "cerimônia de confraternização social" - o espetáculo é assim descrito pelo biógrafo e admirador deste grande mestre do teatro moderno francês: a maior parte dos trechos cantados foi escolhida no velho reper- tório monódico e polifônico dos trovadores e mestres dos séculos XVe XVI.Outros foram compostos segundo exigências do texto por joseph Samson, o mestre de capela da Catedral de Dijon. O importante, com efeito, era que a música, estreitamente unida ao corpo da peça, constituía como que a sua palpitação, tão irrepri- mível quanto as reações de alegria ou medo. Um coro de sessenta e quatro pessoas acompanhava a descida dos céus e a ascensão 2X Id., loe. cit., p. 202-3. Como Copeau, William Archer foi admirador e encenado r de Ibsen. Sua opinião sobre o dramaturgo escandinavo se encontra no artigo lbsen and the English Theatre, reproduzido em diversas publicações, como é o caso de HINCHLIFFE, A.E. Drama Criticism. Deuelopments sina lbsen. Londres: McMillan, 1979, p. 60-67. 29 Id., loe. cit., p. 230. 30 Para os que já se esqueceram dessa figura que até morou no Brasil em missão diplomática, vale a pena reproduzir esta observação de Thibaudet: '~Ação Francesa produzirá [já no início deste século] uma doutrina geral da reação [católica, monarquista, etc.]; e o estilo da reação, do qual encontra- remos exemplos em Léon Daudet, Claudel e Maritain, permanece hoje [anos 30] mais vivo do que nunca". Cf. Thibaudet, op. cit., p. 383. 25 COPEAU, Jacques. Critiques d'un autre temps. Paris: NRF, 1923, p. 19 a 28. 26 Id., loc. cit., p. 66 a 85. 27 Id., loco cir., p. 130 a 144. Cabe lembrar entretanto que esta opinião não o impediu de encenar Brieux em mais de uma temporada do Vieux Colombier. 86 87
  • 8. SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO de Deus e sua Mãe. O coro de trombetas, que sublinhava as en- tradas, foi composto sob medida31 . Apesar do esforço, principalmente de Louis Jouvet, para apresentar a idéia de "convenção dramática" como sinônimo da "convenção teatral" combatida pelo Teatro Livre, que lhe interessava restaurar, caberia insistir, mesmo que esquemati- camente, na sua diferença, de natureza histórica, pois quando se pensa no teatro moderno essa assimilação pode induzir a enganos de toda ordem. Por "convenção teatral", Copeau, Sarcey, Brunetiêre e de- mais conservadores entendiam aqueles procedimentos de tex- to e interpretação próprios da tragédia clássica francesa: versos, divisão em atos logicarnente determinada pela ação dramática e assuntos selecionados entre os de interesse da aris- tocracia, com personagens "naturalmente" representando príncipes, princesas, reis, rainhas e respectivas cortes ou, não por acaso, retirados de histórias bíblicas sempre em torno de problemas e experiências dos poderosos. A interpretação re- querida por esse tipo de dramaturgia tinha pelo menos duas características fundamentais: era frontal, ou seja, mesmo em caso de diálogos, os atores não se entreolhavam, mas dirigiam- se ao público - procedimento declamatório cuja defesa gerou a argumentação "técnica" em favor da melhor "audição" por parte do público ". Em segundo lugar, tanto pelos textos ver- sificados, quanto pela tentativa de imitar a dicção solene em situações idem da classe dominante, os atores do teatro clás- sico, e seus sucessores na Comédie Française até o século XX, desenvolveram uma dicção, dita teatral, caracterizada por aquilo que até hoje os fonoaudiólogos chamam "impostação da voz", mas que tão somente era (como continua sendo) ba- seada na concepção e prática clássicas da eloquência, exigindo voz forte, grave e volumosa, pronúncia correta das palavras e dramaticidade de expressão, fala pausada (pausas longas a cada oração), capacidade de estabelecer oposições (com os recursos técnicos da modulação e do colorido), ênfase nas inflexões e domínio da mímica, do gesto e das expressões faciais, que deveriam funcionar como recursos adicionais, de realce do texto declamado. O Brasil do teatro moderno adotou uma atriz francesa com total domínio desse repertório. Trata-se de Henriette Mori- neau, que Décio de Almeida Prado elogiava, pode até ser que curn grana salis, em termos como "o espetáculo da força de uma grande atriz é sempre fascinante, como um fenômeno da natureza - e Morineau tem força por três ou quatro atrizes: força física, força de voz e força espiritual, isto é, força de temperamento. As suas explosões va!em por si, inde- pendentemente da peça e dos atores. (...) E pena que o teatro moderno tenha, em geral, tão pouco uso a fazer desse manan- cial de energias". Faltou dizer quanto tempo de treinamento um ator francês leva para se apropriar desse repertório a ponto de transtorrná-lo em "força da natureza". As "convenções dramáticas", por sua vez, foram criadas em oposição às "teatrais" a partir do período anterior à Re- volução Francesa, à medida que dramaturgos começaram a tratar de assuntos mais "populares" (no tempo em que a bur- guesia ainda era "povo") e deixaram de escrever em versos (datam desta época argumentos de conservadores do tipo de La Harpe tais como "empobrecimento da linguagem teatral", "pobreza de inspiração poética" e "perda da poesia", os mes- mos usados por Décio de Almeida Prado contra Brecht). Por isso mesmo, aqueles dramaturgos do chamado "partido filo- sófico" desenvolveram de maneira notável o drama em prosa propriamente dito. A geração responsável pela consolidação desse feito na França é conhecida como "realista" e seus maio- res representantes são Dumas Filho, Augier e Sardou (é bom que se diga que Brunetiêre e Sarcey abominavam suas obras). Esse drama, em sua fase de consolidação de meados do século .lI BORGAL, Clément. Op. cir., p. 282. .12 Mas também gerou uma série de comentários divertidos incorporados ao folclore da "gente de teatro", relativos aos casos reais de atores e atrizes que se queimaram nos bicos de gás da ribalta, de que se aproximavam excessivamente para seus rostos ficarem mais iluminados (Cf, Antoine, op. cit., p. 200). 88 89
  • 9. SINTA O DRAMA XIX, já dispunha de uma espécie de "mapa da mina", no Dis- curso sobre a poesia dramática de Diderot. O trio acima, entre inúmeros outros, deu realidade, inclusive conceptual, ao que o filósofo chamou comédia séria, embora os chamados vícios (sobretudo o do adultério, apesar dos protestos das platéias suscetíveis) integrassem o seu repertório, como também o do próprio Diderot. Ao contrário do que propagam os detratores do Teatro Livre, a interpretação supondo uma quarta parede invisível (porque os atores dialogam entre si, podendo até mes- J1l0 voltar as costas ao público para escândalo dos conserva- dores de plantão) foi introduzida antes mesmo de Antoine ter uascido. Poclc-se dizer o mesmo da dicção rebaixada, corres- pondcudo, l10 plano da técnica de interpretação, ao abandono da cloquência em favor da fala cotidiana ou "natural", imitada dos costumes linguÍsticos da burguesia francesa, afinal a classe que fornecia Unto os assuntos quanto a renda de bilheteria e os investimentos para esse teatro. Quando surgiu a geração de Antoine, havia no panorama teatral francês esta duplicidade de repertório: o clássico e o realista. A própria Comédie Française, principal trincheira do repertório clássico, já fora invadida (termo usado pela crítica conservadora) até mesmo pelos dramaturgos naturalistas que, como bem lembrou Thibauder, nada mais representavam do que a radicalizaçâo da "escola realista". Basta ver que, ainda em 1882 (cinco anos antes da fundação do Teatro Livre), Hen- ry Becque teve sua peça Les Corbeaux encenada na "casa de Moliêre" e que no Ambigu, desde 1879, Emile Zola já vinha obtendo grandes sucessos de público com adaptações de LAs- sommoir e Nana, a primeira ultrapassando as cem repre- «nmçôes, para não falarmos de outros autores . .')('p:ua os conservadores da tradição clássica o drama rea- 1.';1.1n.1 in.iccitável por ficar às voltas com problemas familia- 11":., "11iIiIos de gerações, adultérios, demi-mondaines (e prml 1I111.1',1'1oprinrnente ditas, mas de alto nível, comoAdama das cutncl ur-), 11<."111como golpes financeiros ou corrupção da justiça, a :lIIlI'II.H ...IO <.ksserepertório (já considerado de péssi- mo gosto) P;Ir:1(IS csnirúrios, as lavanderias, as cozinhas) as 90 •••.......----.~- A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO reivindicações políticas 33 e os atos públicos (caso de NelI Horn, de Rosny, montada por Antoine em 1891» com hinos e ban- deiras dos diferentes partidos de trabalhadores, ultrapassava os limites do suportável. Quanto à dicção e hábitos linguísticos populares trazidos ao palco, não é preciso repetir as fúrias dos Sarceye mesmo de dramaturgos realistas como Sardou, ferozes inimigos da "escola naturalista" e em especial do Teatro Livre e de Antoine. Enquanto a "opção preferencial pela burguesia" do teatro realista determinou que a "convenção teatral" (tragédia em versos e eloquência na interpretação) fosse definitivamente superada pela "convenção dramática" (texto em prosa e inter- pretação realista» a "opção mais ou menos preferencial pelos trabalhadores" do teatro naturalista (cujos militantes, como Antoine, apreciavam muito o realista) é bom que se diga) sig- nificou, por um lado, a "convenção dramática" intensificada no plano da interpretação) com destaque para a quarta parede e a total identificação entre ator e personagem de modo a produzir empana no público e, por outro, a progressiva des- truição da forma do drama realista (ou burguês, ou peça-bem- feita) - segundo Brecht e especialistas em sua drarnaturgia, o primeiro passo em direção ao teatro épico. Neste momento da história nós ainda estamos pelo menos uma década distantes do teatro épico) de Maiakóvski a Brecht entre outros) que transformou em método de composição aqui- lo que os críticos conservadores apontavam como incapacida- de artística ou pobreza de inspiração nos dramaturgos naturalistas. O seguinte comentário de Copeau a uma peça de Octave Mirbeau, encenada em 1908 pela Comédie Française, 33 Em 1889 Amaine montou uma peça, que ele mesmo achava imprópria para as reduzidas dimensões de seu teatro, especificamente porque nela havia uma cena em que o povo fazia um protesto diante da prefeitura de Verdun. Ele trabalhou com 500 figurantes e inúmeros recursos de iluminação e mo- vimento para realizá-Ia. Tratava-se de um texto escrito por Zola em 1866, La patrie en danger, que permanecera inédito. Desnecessário dizer que Sarcey critica Antoine justamente por essa cena. (Cf. Amaine, op.cit., p. 137-140). 91
  • 10. SINTA O DRAMA praticamente sintetiza esses argumentos, que poderiam sem muito esforço constituir uma espécie de roteiro de análise para uma peça épica: Talvez, numa leitura, poderá parecer menos imperfeita esta peça onde eu acreditei ver tantos defeitos. Eu nada mais fizque traduzir as impressões que tive durante a representação. Se as qualidades que sem dúvida Le Foyer contém não se deixam perceber com facilidade, é porque a grande fragilidade da obra funda-se em sua composição dramática. A forma, em si mesma, não é concebida com suficiente rigor. Daí uma ausência quase total de contrastes. E quanto mais preciosa a matéria do drama, mais deplorável esta falha orgânica. Pois os fatos e os personagens não são nada se não entrarem em combinações originais. E os traços de observação, mesmo os mais autênticos e mais saborosos, ficam fracos quando permanecem disseminados. Ora, aqui a linha flutua, o ritmo é he- sitante. As cenas não se encadeiam, elas se justapõem umas às outras. Em lugar nenhum o drama se manifesta. Há acumulação, superposição de materiais, e não formação de uma matéria sub- metida à força artística. Falta o ângulo de visão ou, como dizem os pintores, elaboração ". 4. Turbulência conceitual No plano da forma, detalhe significativo, o "ideal" de Co- peau estava ali mesmo no Gymnase - a histórica cidadela do drama burguês do século XIX - e, no da interpretação, na Comédie Française. Mas com o Teatro Livre rondando por pert035 e com a rápida identificação deste como o principal 34 Copeau, op. cit., p. 37-38. Parece que, como Hauprrnann, Mirbeau acabou aprendendo a lição de Copeau, pois na sua temporada nova-iorquina de 1918 esse diretor encenou sua peça Les mauvais bergers. 35 É bem verdade que o primeiro endereço do Teatro Livre era um teatrinho de Montparnasse mas, paradoxalmente empurrado pelas dificuldades financeiras, Antoi- ne acabou conseguindo alugar por duas noites ao mês o Menus-Plaisirs que ficava no Boulevard Strasbourg. Não era grande coisa, mas ao menos ficava em Paris (Cf. An- toine, op. cit., p. 65 e 100). 92 ..----'_•. , I· 'I ! 1 1i A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO 1 li inimigo a ser combatido, a assimilação dos conceitos de con- venção teatral e dramática acabou se transformando na peça básica da artilharia voltada contra os "naturalistas". E estes passaram para a história oficial do teatro como os responsáveis pela tentativa de "destruir" as "imortais" convenções teatrais, como VImos. Um dos maiores mal-entendidos do teatro moderno de- corre exatamente dessa operação: na medida em que Copeau e seus discípulos, desde a inauguração do Vieux Clombier em 1913, se lançaram à luta pelo "resgate da teatral idade", eles puderam ser aproximados de artistas como Brecht e Meyer- hold que, na ponta esquerda, também criticavam os métodos de encenação e interpretação naturalistas, em busca do que Brecht, seguindo os forrnalistas russos, chamou "efeitos de distanciamento". A palavra chave do mal-entendido é teatra- lidade pois, desprezadas as finalidades opostas, pode-se dizer que tanto Brecht quanto Jouvet fazem questão de mostrar ao público que ele está assistindo a um espetáculo e não presen- ciando "fatos realmente acontecendo". No entanto, sabemos que para Brecht, Meyerhold e demais diretores do teatro épico, os recursos teatrais do distanciarnento têm o objetivo de eli- minar a identificação ator/personagem, no plano da interpre- ração e, na relação público/espetáculo, impedir CJuese produza a ernpatia, ou a projeção - aquele comportamento que Adorno chama de boçal. Já a restauração das convenções teatrais tem para Copeau, Jouvet, Dullin e outros a finalidade oposta. Para eles não basta o simples comportamento boçal do consumidor burguês de "arte"; eles ainda querem mais. Querem que da- quele "íntimo acordo" entre palco e platéia se produzam ilu- sões e emoçôes ainda mais profundas que as provocadas pelo teatro realista e naturalista. Talvez essas ilusões e emoções lhes pareçam mais "profundas" por serem provenientes do ancien régime, do tempo em que o homem ficava perplexo diante dos "profundos mistérios" que envolviam sua vida e se "resolviam" a poder de "oração". O "respeito ao texto", a mais importante lição que Décio de Almeida Prado diz ter aprendido com Copeau e Jouvet, 93 :~". ·"":;;;:;"'·-·'=·""""""""'~""""""ó"''''''''''-'':'''~~ ...~_.~~.~"~Jl4tc,,".I!i:»!$lpJ!l'.i!!E' ;;':-'_c.~_~~~.
  • 11. SINTA O DRAMA produz um outro mal entendido do maior interesse. Este pro- vém das experiências de vanguarda realizadas por diretores como Gordon Craig, Max Reinhardt e Meyerhold, para nos limitarmos aos mais conhecidos, que Copeau rejeita com vee- mência no "manifesto" do Vieux Colombier. O mal-entendido que, convém ressaltar, nunca foi parti Ihado por Décio de Almeida Prado, consiste em imaginar que Copeau e Gordon Craig estão de acordo nesse ponto, só porque o último escrevia coisas como "um poema é para ser lido. Um drama não é para ser lido, mas para ser visto no palco"; ou então: "o diretor toma u~a cópia da peça e promete ao dramaturgo interpretá-lo como indicado no texto,,36. O equívoco começa a se desfazer quando, avançan- do na leitura de sua obra principal, encontramos as observa- ções sobre o "caco" e a rubrica: se "caco é a maior ofensa que o ator pode fazer ao dramaturgo, rubrica é a maior ofensa que d f d ,,37 o dramaturgo po e azer ao encena or . Quando se trata de um diretor mitológico do porte de um Gordon Craig, para ver como ele estava muito longe de pra- ticar esse "respeito ao texto" de que falam Copeau e Jouvet, melhor é referir brevemente uma de suas experiências mais radicais - o seu Hamlet experimental de 1911 no Teatro de Arte de Moscou com o elenco de Sranislavski. Segundo Nina Gourfinkel: "Para Stanislavski tratava-se de Shakespeare, de uma determinada tragédia, examinando um problema psico- lógico numa determinada época. Para Craig, tratava-se ~e um conjunto cênico; menos ainda: do pretexto para construir um conjunto cênico, colocado fora do tempo, diretamente na eter- nidade, onde poderiam se mover, num determinado ritmo, personagens, portadores não de psicologia mas de gestos trá- gicos. Não só a encenação não devia, de maneira alguma, dar 36 GORDON CRAIG, E. De l'art du théatre. Paris: Lieutier, s/d, p. 116 a 121. Em todo caso, corria nos Estados Unidos o comentário de que Gordon Craig era mais conhecido "de ouvido" que de leitura. (Cf. BROWN, John Mason. Upstage. The American Tbeatre in Performance. Nova York: WW Norton, 1930). Isso também pode ser verdadeiro no Brasil, .17 Gordon Craig, op. cit., p. 247. 94 A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO qualquer ilusão de realidade mas, muito ao contrário, para além da aparência visível de uma construção abstrata, ela de- veria evocar o invisível". 38 Stanislavski - o grande mestre da interpretação realista e naturalista do século XX - naturalmente não aderiu a essa experiência craiguiana, sobretudo por seu desrespeito ao texto de Shakespeare, transformado em mero pretexto. Quem se encantou com a encenação teatral de Gordon Craig foi Meyer- hold, que levou muito longe a idéia de usar o texto como pretexto, a ponto de desenvolver trabalhos nos quais a ence- nação desmente ou, como diria Brecht, critica o texto. No artigo citado de Nina Gourfinkel encontra-se a esse propósito uma minuciosa descrição da hilariante cena final criada por Meyerhold para Casa de bonecas, que literalmente demoliu a peça de Ibsen. Já o diretor francês, ao apresentar seu plano de "renovação teatral", declara enfaticamente conhecer os trabalhos de todos aqueles diretores da vanguarda européia, com os quais só con- corda naquilo que rejeitam da encenação realista, mas preten- de seguir um caminho próprio, apoiado no bom senso e no bom gosto. Pois, diz ele: "é preciso reconhecer que as idéias desses mestres nem sempre deixam de nos chocar por seu ex- tremo pedantismo. Delas, cabe destacar um certo parti-pris de simplismo, que nem sempre acompanha a verdadeira simpli- cidade, e sobretudo uma tendência, que ofende a [inesse e a modéstia de nosso gosto francês, de sublinhar numa obra, de reforçar por meios materiais, e frequentemente ingênuos, as intenções do poeta. O espectador cultivado gosta de descobri- Ias, de surpreendê-ias por uma abordagem mais sutil".39 Nessa mesma linha, mas assumindo e tornando ainda mais evidentes as disposições conservadoras do teatro pro- posto por Copeau, Gaston Baty, também seu discípulo, assim 95 .lH GOURFINKEL, Nina. L'apport du théatre étranger au début du xx= siêcle. La reuue des lettres modernes, n" 3. Paris: abril de 1954, p. 14-15. 39 Copeau, op. cit., p. 247 .
  • 12. ------------------------------------------------------------------_. SINTA O DRAMA A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO explica em 1944 a rejeição francesa ao conjunto das experiên- cias da vanguarda teatral: No tempo em que triunfavam o expressionismo alemão e o cons- trutivismo russo, os franceses seguiram esse movimento muito à distãncia. Seu emprego era tímido e muitos consideravam re- trógrados aqueles dentre nós que se consagravam às mais novas pesquisas. Mas eis que a moda passou. As audácias se acalmaram e percebe-se que aquilo que será incorporado ao patrimônio da arte cênica é mais ou menos o que os encenadores franceses ti- nham aceito desde o começo. Uma vez mais nosso país terá cum- prido a sua missão de colocar uma novidade nos seus devidos termos, de eliminar os excessos, de reter o que é durável e de reajustá-Ia à medida clássica 40 Não foi Baty o único a valorizar o caráter abertamente conservador do trabalho desenvolvido no Vieux Colombier. O presidente Clemenceau, identificando perfeitamente o ad- versário, também o fez. Tanto que, em plena guerra, tratou de enviar Copeau para uma temporada nos Estados Unidos em mis- são oficial que se prolongou de 1917 a 1920. E esse artista "apo- lítico" se transformou em "embaixador extraordinário" do teatro francês, nada menos que por "razões de Estado". Nas palavras entusiásticas de seu biógrafo: "a América se mostrava perigosa- mente sensível à Kultur alemã. (...) As preferências do público dirigiam-se ao Teatro Alemão em Nova York, enquanto o Teatro Francês ali morria do mesmo mal que em Paris. Enfim, falava-se das grandes reformas dramáticas da Alemanha e da Rússia; ig- noravam-se as realizações francesas. Era preciso inverter essa corrente,,41. Para se ter idéia do quanto Clemenceau estava empenhado nessa iniciativa, basta saber que ele próprio, a pe- dido de Copeau, solicitou ao Ministro da Guerra que conce- desse baixa a atores do Vieux Colombier, entre os quais Jouvet, para garantir o sucesso da missão. Mas o Ministro não atendeu ao pedido e a primeira fase da longa temporada do diretor em Nova York consistiu numa série de conferências para fazer apenas a divulgação/propaganda do projeto de restauração dos "valores eternos" do teatro clássico, segundo o bom gosto fran- cês por ele redescoberto no Vieux Colombier. 5. Modelos para o bem do Brasil Com as características esboçadas, nem é preciso dizer que o forte do repertório deste grupo era constituído por peças clássicas, nelas incluídas obras de Shakespcarc e Moliêre, Mas, embora não fosse uma prioridade, Copeau chegou a encenar peças de dramaturgos contemporâneos. Bem entendido, só os que já tivessem sido aprovados em testes de palco por outras companhias, como foi o caso de Claudel, seu amigo e compa- nheiro da Nouvelle Revue Française. "Revelado" na França pelos adeptos do chamado teatro simbolista (inaugurado por Lugné- Poe, também como reação ao Teatro Livre), este dramaturgo é assim apresentado numa antologia do teatro francês de vanguar- da: "convertido ao catolicismo em 1886, não somente sua obra será inspirada por um profundo sentimento religioso, mas o próprio misticismo e a religião constituirão os temas funda- . da rnai d b 47mentais a maior parte e suas oras" -. Dele, Copeau ence- nou, na temporada de lançamento do Vieux Colombier, LEchange, concebendo para único cenário uma árvore e o céu. Os discípulos de Copeau também terão oportunidade de expor nos palcos franceses, e mesmo nos brasileiros, as "inu- sitadas" qualidades da drarnaturgia deste poeta. É o caso, para ficar num exemplo que nos interessa diretamente, de Jean- Louis Barrault que trouxe em 1954 ao Brasil a sua produção de Le livre de Christophe Colomb, comentada por Décio de 40 BATY,Gaston. Rideau baissé. s/I: Bordas, 1949, p. 212. 41 BORGAL, C. op. cit., p. 139. 42 PILLEMENT, Gcorges (org.). Anthologie du théatre [rançais contempo- ramo Vol. 1, (Le théatre d'avant-garde). Paris: Bélier, 1945, p. 39. 96 97 ---_-.--....-----~.-... _.__ .-._--_ .....
  • 13. SINTA O DRAl1A Almeida Prado com um entusiasmo raramente visto em seus textos críticos, normalmente bastante comedidos. Depois de lembrar que por muito tempo a peça foi considerada irrepre- sentável (era tida como peça para ser lida ... ) e de observar que ela é bastante irregular e de inspiração desigual, afirma que Claudel a teria escrito "para um cncenador e uma forma de teatro que não haviam ainda nascido" (não fosse a história que vai dos Meininger a Brecht, passando por Antoine, Gordon Craig, Meyerhold e Piscator, podemos contrapor) e explica as razões de seu entusiasmo: de repente vem um espetáculo como Christophe Colomb e eis toda uma comunidade abalada,galvanizadapor esta simples ficção, por este sonho apaixonado, por este nada; todos, ricos ou pobres, inteligentes outolos, cultos ou ignorantes,jovens ouvelhos, todos elevados acima de si mesmos, todos compreendendo, ao menos por um instante, por um lampejo de sensibilidade, depois do qual tornarão a cair na rotina da vida prática, que a arte é verdadeira- mente alguma coisa superior; uma forma de conhecimento que pode ser colocadaao lado da ciência, da filosofiae da religião. Este é o milagre que, por alguns segundos inesquecíveis, Le livre de Christophe Colomb operou em todos nós. 43 Embora nosso crítico nunca tenha apresentado Claudel como alternativa a Brecht, não seria exercício inútil comparar as observações que dedicou ao dramaturgo alemão às seguin- tes, sobre o francês: "Claudel tem qualquer coisa dessa gran- deza poética que não se confunde com o talento ou a inteligência (...). Não importa que se divirta com o teatro como uma criança que acabou de descobrir um brinquedo, não im- porta que o seu senso de humor seja o mais pesado e o mais carregado possível, não importa que volte as costas instintiva e deliberadamente ao bom senso mais elementar, jogando com as palavras, reinventando arbitrariamente os fatos, fazendo da história, às vezes, um simples joguete. A visão que tem das 43 PRADO, D.A. Apresentação do teatro moderno brasileiro, op. cit., p. 439. 98 __ -"'-_~-~_F-'---- A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO coisas é sincera, é autêntica, é poética, é a única no mundo t I t b ,. ,,44 P -a ua a er um certo sa or eplco. or essas razoes, nos anos 50, Décio de Almeida Prado considerava Claudel o maior dra- maturgo francês da primeira metade do século. Ao lado de Paul Claudel, Jean Giraudoux desempenhou na imaginação dos brasileiros modernos, ao longo dos anos 50, o papel de ideal a ser atingido, ou pelo menos de termo de comparação para aquilatar a qualidade de uma peça, como se vê, por exemplo, nesta crítica de 1953 a Lúcio Cardoso: "os nossos autores ou são humildes fabricantes de 'chanchadas' ou pretendem ser a última edição, revista e melhorada de - ' Claudel, Giraudoux,,4j. Para o nosso crítico, Giraudoux é infe- rior a Claudel, mas não menos importante na dramaturgia fran- cesa: "Giraudoux eJouvet, de 30 a 40, renovaram por completo o teatro francês, ao reintroduzir no palco duas entidades quase esquecidas: a poesia e o estilo. Em outros termos, o valor da imaginação pela imaginação e o valor da palavra pela palavra. ( ) Ora, o teatro do último decênio deu um novo passo à frente ( ) e, nesse sentido, pode-se dizer que o grande mestre da metade do século não é Giraudoux, mas Claudel, o Claudel de Le soulier de satin e Le livre de Christophe Colomb".46 Jean Giraudoux, o dramaturgo preferido de Louis Jouvet, era considerado uma espécie de Racine moderno que, depois de uma experiência com a mitologia alemã (um Siegfried de 1928), dedicou-se a peças inspiradas na mitologia grega (Am- phitrion 38, La guerre de Troie n'aura pas lieu e Eleetre - esta considerada a sua obra prima), ou na Bíblia (judith, Sodoma e Gomorra, Cântico dos eânticos). Mas já que se falou nesse dramaturgo que valoriza a ima- ginação pela imaginação e a palavra pela palavra, vale a pena resumir o argumento de sua Guerra de Tróia, de 1935. Curio- samente, Giraudoux adota aqui uma perspectiva digamos fa- 44 Id., ibid., p. 441-442. 45 Id., loc. cit., p. 123. 4" Id., loc, cit., p. 213. 99
  • 14. SINTA O DRA ..".1A talista, demonstrando em seu texto que, mesmo que os fran- ceses, digo, os troianos devolvessem a Lorena, digo, Helena aos alemães, perdão, aos gregos, a guerra aconteceria. Isto por- que alguns "troianos", apes:u do empenho de "Heitor", dis- posto a devolver "Helena", queriam tanto aquela guerra que cometeriam qualquer ato, mesmo imoral, para provocá-Ia. Aliás, a peça foi considerada profética, Se não estivessem na ordem do dia francesa os problemas de política externa às voltas com Hitler e alianças "difíceis" de honrar, talvez nós pudéssemos imaginar que a tragédia examina apenas o "eter- no" tema da bravura de um herói, herdeiro do trono, tentando refrear os ímpetos belicosos de seus súditos ... O outro dramaturgo valorizado por Jouvet e Décio de Almeida Prado é, como já ficou sugerido no início, o italiano Pirandello. Jouvet, ao se referir a ele, vai logo ao ponto: "a que se deve o sucesso das obras de Pirandello? Ao fato de que Pirandello toca direta e unicamente naquilo que eu chamaria a magia dramática, ao fato de que ele ousou, por um jogo de espírito talvez sacrílego, reanimar velhas fórmulas e transmu- tar valores dramáticos afastados há muito tempo?": E Décio de Alrneida Prado, que em suaApresentação do teatro brasileiro moderno considera Pirandello um autor revolucionário, sem- pre que escreveu sobre ele procurou exaltar em sua obra aque- las qualidades sistematicamente negadas em Brecht. A começar pela originalidade: "Partindo do expressionismo alemão e do grotesco italiano, termina por desmontar o próprio mecanis- mo interno do teatro, expondo-lhe o avesso ao público muito antes que Brecht sonhasse fazê-lo".48 Enquanto, como vimos, para ele Brecht simplifica e esquematiza a realidade (que é "muito mais rica do que supõe seu realismo algo pobre"), Pi- randello ilumina o que não percebíamos: "Depois de Piran- dello começamos a enxergar partes até então obscuras da realidade, porque só notamos o que conseguimos compreen- 47 JOtNET, Louis. Problemas do teatro. In BORBA FILHO, Hcrmilo (org.). Teoria e prática de teatro. 55.0 Paulo: Iris, 1960, p. 219, grifas nossos. 48 PRADO, D.A. Pirandello: cem anos. In -Exercfcio findo, op. cit., p. 191. 100 ••........' .......".. "'"" A RESISTÊNCIA DA CRÍTICA AO TEATRO ÉPICO der e interpretar't.Y E enquanto o dramaturgo marxista é es- quemático e empobrecedor, o italiano, além de humanista, é dialético: "O exercício da sua dialética não é vão, não brota da vaidade: é desejo de alargar a nossa compreensão, o círculo da nossa simpatia, tornando-nos um pouco mais atentos, um pouco menos intolerantes em face do espetáculo da paixão humana. Aprendemos com ele, como diz o título de uma de suas peça.s, a aceitar 'la ragione degli altri' (...) O humanismo, com efeito, parece ser o limite e o fim do relativismo pirandclliano. (.) O respeito pelo homem, o desrespeito pelas idéias estabeleci- I . I I' - d IY J II ,,)0 das, eis a ú rima e mais a ta içao e irunoc o . Essas palavras foram escritas em 1967 por nosso crítico, ano em que, como vimos, ele pareceu render-se às qualidades da obra de Brecht. Mas mesmo assim ele ainda parecia dispor de uma alternativa melhor - o dramaturgo italiano. Há coe- rência na opção: como acabamos de aprender, há que aceitar as razões dos outros. Só não entendemos como as qualidades acima enumeradas (humanismo, respeito pelo homem e des- respeito pelas idéias estabelecidas), que qualquer principiante encontraria abundantemente na obra de Brecht, podem ser atribuídas a um dramaturgo que aderiu, mesmo que tempora- riamente, ao fascismo. Eis como Aurora Fornoni Bernardini relata o caso: "quem sabe tenha sido uma tardia exigência de revolta libertária radical a que o aproximou, ainda que de passagem, num dos momentos mais críticos da história da Itália (logo após o assassinato de Matteotti), do mal compreendido 'anarquismo' fascista, em apoio a uma vontade de agir 'forte' e determinada. Do mesmo modo, será igual anseio que o levará mais tarde a certas adesões ao fascismo já instalado, do qual não percebeu o alcance".51 Convenhamos que a um artista assim "distraído" fica difícil atribuir qualidades como "capa- 49 Id., ibid., p. 192. 50 Id., ibid. 51 BERNARDINI, Aurora Fornoni. Henrique N e Pirandello. S5.o Paulo: Edusp, 1990, p. 33. 101
  • 15. SINTA O DRAMA cidade de alargar nossa compreensão" ou de nos tornar mais tolerantes. A menos que a idéia do crítico, usada contra o dra- maturgo alemão, de que o trabalho estético é indissolúvel da opção política só tenha valor quando utilizada para desqualificar comunistas do quilate de Brecht, não valendo para conservado- res, fascistas de férias ou p:1r<l"apolíticos" como Copeau. 102