Este documento trata de um caso de suposta apropriação indébita contra idoso. O Tribunal de Justiça entendeu que não houve crime, mas sim uma lesão civil, já que o valor do empréstimo foi depositado e o princípio da mínima intervenção estatal não justifica a atuação do Direito Penal neste caso. Os réus tiveram sua condenação revertida em absolvição.
Cumprimento de decisão judicial – Dupla condenada em primeiro grau foi absolvida pelo TJ/RO
1. PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE RONDÔNIA
Tribunal de Justiça
2ª Câmara Criminal
Data de distribuição :11/10/2016
Data de julgamento :25/01/2017
0001175-82.2010.8.22.0004 Apelação
Origem : 00011758220108220004 Ouro Preto do Oeste (1ª Vara Criminal)
Apelantes : Marcondes Marcos Bispo Ramalho
Rosemeire Monteiro Paulino
Advogado : Syrne Lima Felberk de Almeida (OAB/RO 3186)
Apelado : Ministério Público do Estado de Rondônia
Relator : Desembargador Valdeci Castellar Citon
Revisor : Desembargador Miguel Monico Neto
EMENTA
Apelação Criminal. Apropriação indébita contra idoso. Empréstimo. Atipicidade
da conduta. Princípio da Mínima Intervenção estatal. Aplicação.
Em decorrência do princípio da intervenção mínima, não há espaço para a
intervenção do Direito Penal na conduta de empréstimo consignado realizado
por idoso, porquanto o bem jurídico pode ser tutelado pelo instituto da lesão no
campo do direito civil.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os desembargadores da 2ª
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, na
conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, em, POR
UNANIMIDADE, DAR PROVIMENTO À APELAÇÃO NOS TERMOS DO
VOTO DO RELATOR.
Os desembargadores Miguel Monico Neto e Marialva Henriques Daldegan
Bueno acompanharam o voto do relator.
Porto Velho, 25 de janeiro de 2017.
DESEMBARGADOR VALDECI CASTELLAR CITON
2. RELATOR
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE RONDÔNIA
Tribunal de Justiça
2ª Câmara Criminal
Data de distribuição :11/10/2016
Data de julgamento :25/01/2017
0001175-82.2010.8.22.0004 Apelação
Origem : 00011758220108220004 Ouro Preto do Oeste (1ª Vara Criminal)
Apelantes : Marcondes Marcos Bispo Ramalho
Rosemeire Monteiro Paulino
Advogado : Syrne Lima Felberk de Almeida (OAB/RO 3186)
Apelado : Ministério Público do Estado de Rondônia
Relator : Desembargador Valdeci Castellar Citon
Revisor : Desembargador Miguel Monico Neto
RELATÓRIO
Trata-se de apelação criminal interposta por Marcondes Marcos Bispo Ramalho
e Rosimeire Monteiro Paulino, inconformados com a sentença prolatada pelo
Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Ouro Preto, que condenou cada um
à pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de reclusão a ser cumprida em
regime inicial aberto, substituída por restritivas de direitos, bem como 12 (doze)
dias-multa, por infração ao art. 102 da Lei n. 10.741/2003.
Narra a denúncia que no dia 14/01/2010, por volta das 16h, na zona rural de
Ouro Preto do Oeste/RO, os ora apelantes, em unidade de desígnios,
obtiveram para si vantagem ilícita, utilizando-se de ardil, induzindo em erro a
vítima Laurinda Maria de Jesus, aproveitando-se do fato de se tratar de pessoa
idosa (71 anos à época dos fatos), analfabeta e moradora da zona rural, ao
dizer-lhe que havia um dinheiro disponível para ela receber, fazendo com que
contratasse um empréstimo consignado de 60 meses, no valor de R$5.478,00,
tendo sido creditado apenas R$ 4.324,78.
Em suas razões a defesa requer a absolvição, alegando estar provada a
inexistência do fato e/ou (sic) não existir prova suficiente para a condenação.
Em contrarrazões apostas às fls. 297/301, o parquet manifestou-se pelo não
provimento do apelo.
Nesta instância a Procuradoria de Justiça opinou pelo conhecimento do recurso
3. e seu desprovimento (fls. 316/317v.).
É o relatório.
VOTO
DESEMBARGADOR VALDECI CASTELLAR CITON
Inicialmente cumpre esclarecer que os apelantes foram denunciados por
infração ao art. 171, caput, do Código Penal. Porém o juízo a quo entendeu
que o caso se adequaria na tipificação do art. 102 do Estatuto do Idoso (fls.
217/220) facultando-lhes a suspensão condicional do processo, que foi
recusada pela apelante Rosemeire à fl. 24. Assim, o magistrado proferiu
sentença condenatória por infração ao art. 102 da Lei n.10.741/03.
O tipo penal previsto no art. 102 da Lei n. 10.741/2003 tem a seguinte
redação:
Art. 102. Apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro
rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua finalidade:
Pena ¿ reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.
Muito embora seja denominado de apropriação indébita, o tipo possui dois
núcleos com significados diferentes, apropriar e desviar. Sobre o assunto,
Naide Maria Pinheiro, em sua obra Estatuto do Idoso Comentado, leciona que:
Tratam-se, pois, de núcleos com significados distintos: o primeiro (apropriar-se
de) pressupõe que o agente do delito já esteja na posse ou detenção lícita do
bem ou rendimento, inclusive o co-proprietário, ao transformar essa posse da
parte alheia em propriedade. Já no desvio, não necessariamente o agente
chega a possuir ou deter previamente o objeto do crime, uma vez que é
perfeitamente possível a modificação na destinação da coisa sem que o agente
dispusesse da mesma inicialmente. Para que se caracterize essa apropriação
ou desvio, é necessário que seja dada aplicação diversa da finalidade do bem,
provento, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, de modo que este
deixe de usufruir algo que tem a titularidade ou mesmo a posse, como no caso
do núcleo "desviar" acima mencionado. Há, por conseguinte, ou uma
transferência da esfera de propriedade, posse ou detenção, ou uma efetiva
apropriação da coisa ou rendimento, de modo que a vítima deixa de usufruir a
sua destinação principal, seja pela apropriação seja pelo desvio indevido.
(PINHEIRO, Naide Maria (Coord.). Estatuto do Idoso Comentado. Campinas:
4. Servanda Editora, 2008, págs. 578/579
Analisando o conjunto probatório, verifico não haver provas da materialidade do
delito, porquanto não há provas da prática dos núcleos previstos no tipo penal.
Não há que se falar em apropriação, pois nunca houve a posse prévia dos
agentes e também entendo que não houve desvio, porquanto o valor do
empréstimo foi devidamente depositado na conta da vítima.
Apesar de o valor contratado (R$5.478,00) ser diferente do valor efetivamente
depositado (R$4.324,78), verifica-se que pode ter ocorrido uma reanálise do
valor pelo banco, conforme se infere do ofício de fl. 34, em que a gerente
comercial da Montanari Financeira informa que na época foi averiguado que a
margem consignável de 30% jamais alcançaria o valor solicitado.
Ademais, não consta nos autos o comprovante de desconto das parcelas do
empréstimo, a fim de se averiguar o efetivo depósito nos rendimentos da
vítima, não havendo, portanto, prova da materialidade do desvio ou
apropriação de seus rendimentos.
Consta nos autos apenas a autorização de empréstimo (fl. 13) e dois extratos
bancários de fls. 12 e 41, datados de 04/02/2010 e 19/04/2010,
respectivamente, não existindo débito referente ao empréstimo contratado,
constando apenas a operação de crédito no valor de R$4.324,78.
Os apelantes estão sendo acusados de terem ludibriado a vítima, pessoa
idosa, analfabeta e moradora da zona rural, a contratar um empréstimo
consignado no valor de R$5.478,00.
A vítima alega que não sabia que se tratava de empréstimo, pois os acusados
teriam lhe dito que se tratava de ¿um dinheiro disponível no Banco Bom
Sucesso para receber¿ (fl. 08 e mídia de fl. 124v.).
Em juízo foram ouvidas duas testemunhas, Manoel Pereira da Silva, que fez
empréstimo com os apelantes, e José Carlos Reis da Rocha, cuja mãe
contratou o empréstimo. Ambos afirmaram que tinham ciência de que se
tratava de um empréstimo, que os acusados deixaram bem esclarecido que se
tratava de empréstimo e que o que foi contratado foi devidamente cumprido.
A apelante Rosemeire Monteiro Paulino disse na fase inquisitiva (fls. 43/44)
que trabalhava na empresa Montanari Financeira, no ramo de empréstimos
consignados e que esteve na residência da vítima informando-a da existência
de margem para o empréstimo em consignação. Em juízo afirmou que a forma
5. de apresentar seu serviço era: ¿foi aprovado no INSS um empréstimo
consignado pelo governo federal de 30% no salário do senhor¿.
Assim, entendo que pode ter havido uma má interpretação por parte da vítima,
visto tratar-se de pessoa idosa e analfabeta, podendo ter se equivocado sobre
os termos do empréstimo que lhe estava sendo oferecido.
Silvana Cristina de Carvalho, nora da vítima, disse que chegou a advertir a
vítima a não fazer o empréstimo, mas ela não acreditou, confiando tratar-se de
um dinheiro que ela ia ganhar (mídia fl. 124v.).
Conceitualmente, o princípio da intervenção mínima do estado, decorrente da
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é um
instituto de natureza jurídica doutrinária, que afirma ser legítima a intervenção
penal somente quando a criminalização de um fato for meio indispensável para
a proteção de determinado bem ou interesse, sendo insuficiente a tutela do
bem jurídico pelos outros ramos do Direito.
Indica a necessidade de aplicação subsidiária, pois o Direito Penal só poderia
atuar quando os outros meios de proteção estatais mais brandos não se
mostrassem eficientes para a proteção do bem jurídico tutelado. Para ser mais
claro, o crime existe, mas, no plano da realidade, o tipo penal não poderia ser
utilizado, pois não há legitimidade na atuação do Direito Penal.
In casu, entendo que a conduta dos recorrentes não transborda a esfera
meramente civil, não transcendendo a mínima intervenção estatal, sendo
prescindível a atuação do Direito Penal para retomada da paz social e
repressão pelos ilícitos cometidos.
Denota-se que os fatos se subsumem ao instituto da lesão, previsto no art. 157
do Código Civil, in verbis:
Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou
por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao
valor da prestação oposta.
É certo que o contrato de empréstimo consignado encontrava-se irregular, pois,
por tratar-se de pessoa analfabeta, incumbia a observância de formas
contratuais prescritas em lei, tais como assinatura a rogo, leitura do contrato na
presença de duas testemunhas, ou através de procuração pública registrada
em cartório, consoante artigos 215, §2º, e 595, do Código Civil.
6. Assim, entendo que, para este caso, o Direito Civil se mostra suficiente para
tutelar a situação, não havendo necessidade da intervenção do Direito Penal.
Com estas ponderações, diante dos fatos narrados nos autos e, após contida
análise das provas colhidas, dou provimento ao recurso e absolvo os
recorrentes nos termos do art. 386, inc. III, do CPP.
É como voto.