1. AMISTAD
Em Amistad, o diretor Steven Spielberg toca numa velha ferida norte-
americana: a questão da escravidão e os conflitos étnicos surgidos a partir
deste problema. O roteiro, baseado em fatos verídicos, relata a trajetória de um
grupo de 53 negros, desde o seu aprisionamento por traficantes de escravos
até o retorno ao continente africano. Criticado dentro e fora dos Estados
Unidos, o filme chegou a ser classificado de maniqueísta, pela maneira
romântica como o enredo se desenvolve – com a clássica contraposição entre
o bem e o mal.
O protagonista da trama é o negro Cinque, que lidera um motim no navio-
negreiro Amistad em 1839. A embarcação deveria transportar os escravos para
Cuba, porém, foi parar em águas norte-americanas, onde foi recolhida pela
guarda-costeira. A partir daí é travada uma longa batalha judicial, com a coroa
espanhola, traficantes de escravos e comerciantes americanos reclamando a
posse da "mercadoria humana" (gente negra). Com o seu futuro sendo
decidido nos tribunais, o grupo de negros tem que contar com os serviços de
um ambicioso advogado branco e o auxílio de um negro livre que mantém um
jornal. Com a ampla repercussão do episódio no meio político, o caso foi parar
na Suprema Corte Americana, a mais alta instância judicial do país, onde os
negros foram defendidos pelo ex-presidente John Quincy Adams.
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Baseado em história verídica, tudo se inicia com uma turbulenta jornada
marítimanuma embarcação que é identificada como "La Amistad".
Trata-se de um navio negreiro que mo século XIX, em 1839, sofre um enorme
revés ao ver os prisioneiros se rebelarem e trucidarem grande parte da
tripulação.
2. Isso se deve ao fato de muitos negros, dezenas de africanos, infelizmente,
serem seqüestrados de seus lares na África para servirem de escravos. A
bordo do navio, se libertam das correntes e assumem o comando. Matam a
maior parte da tripulação e obrigam os sobreviventes a leva-los de volta à
África.
Os negros sonhavam retornar à África, mas, os líderes da rebelião,
desconhecendo os caminhos marítimos pelos quais conseguiriam voltar para
casa, mantêm dois prisioneiros que devem levá-los de volta a África. São
traídos e aportam na América do Norte, já que, desordenadamente, navegaram
até a costa de Connecticut.
Na costa americana o navio espanhol é capturado pela guarda-costeira,
contendo 53 escravos negros amotinados a bordo. Ao chegar em território
americano, aprisionados, são levados a um grande julgamento, acusados de
assassinos, ocasião em que se cria uma enorme polêmica entre os
abolicionistas e os conservadores, num período onde as divergências internas
do país, entre o norte abolicionista e o sul escravista, caracterizavam o
prenúncio da Guerra de Secessão.
Os sobreviventes da tripulação pleiteiam a posse da "mercadoria" humana
transportada no Amistad, são contestados pela rainha da Espanha, que
também quer se apropriar do conteúdo daembarcação (com base no fato de
que o navio era de bandeira espanhola); além deles, também os oficiais norte-
americanos que apreenderam o barco e controlaram o motim desejam a posse
dos cativos para vendê-los.
Contra eles se levantam abnegados defensores da liberdade humana, lutando
contra a espoliação e a exploração características da escravidão.
Capitaneados por Theodore Joadson (Morgan Freeman) e defendidos no
3. tribunal pelo jovem e impetuoso advogado Roger Baldwin (Matthew
McConaughey), os escravos liderados por Cinqué (Djimou Hounsou) desafiam
as leis e impingem um recomeço para a história republicana norte-americana.
Contam, para isso, com o auxílio inestimável do ex-presidente John Quincy
Addams (Anthony Hopkins).
A sorte deles depende do jovem advogado que os representa. Porém, como se
trata de uma época de reeleição, o destino dos 53 escravos se torna uma
questão política ainda mais complicada pelas disputas constantes entre o Sul
(escravocrata) e o Norte (menos conservador e aberto ao abolicionismo).
Inicialmente, os africanos são julgados pelo assassinato da tripulação, mas o
caso toma vulto e o presidente americano Martin Van Buren (Nigel Hawthorn),
que sonha ser reeleito, tenta a condenação dos escravos, pois agradaria aos
estados do sul e também fortaleceria os laços com a Espanha, pois a jovem
Rainha Isabella II (Anna Paquin) alega que tanto os escravos quanto o navio
são seus e devem ser devolvidos.
Mas os abolicionistas vencem e, no entanto, ogoverno apela e a causa chega a
Suprema Corte Americana. Este quadro faz o ex-presidente John Quincy
Adams (Anthony Hopkins), um abolicionista não-assumido, sair da sua
aposentadoria voluntária para defender os africanos. Aliás, cena esta que fica
muito marcada no filme, pois se destaca pela busca da Justiça, algo que marca
profundamente, creio, a maior parte dos seres humanos.
Como o navio Amistad é interceptado e sua "carga" – os negros comprados na
Fortaleza de Lomboko, Serra Leoa – aprisionada até o julgamento, a questão
é:
- A quem pertencem os negros do Amistad?
A partir daí, toda a trama do filme se desenrola mostrando, vez por outra,
características dos povos ( membros de várias tribos ) africanos, toda forma de
4. tortura e humilhação por que passavam os negros durante sua penosa viagem
nos navios negreiros e o julgamento do caso pela Corte Norte Americana.
Cenas chocantes que deprimem o público que assiste a trama.
A discriminação racial nos Estados Unidos, questão muito próxima da nossa
realidade, em meados do século XIX, era ainda mais acirrada. Os negros eram,
em sua maioria, ainda escravos. Um ou outro já possuía certa liberdade e,
poderíamos dizer até, certo espaço para a formação de uma comunidade negra
organizada. Essa organização começa a surgir a partir de 1866, logo que a
escravidão é abolida, com a criação da 13a emenda da Constituição Norte
Americana. "Separate but equal".
Já havia, por exemplo, um grupo de alfabetizados no idiomainglês. No filme
aparece uma redação que se ocupa de duas edições do mesmo jornal, ou seja,
uma para brancos que noticia o fato como "O massacre no mar" e outra para
negros, com a manchete "Luta pela liberdade no mar". No Brasil o slogan é
outro: "Juntos, mas diferentes".
Abro aqui um parêntese para enfatizar minha opinião, aproveitando o gancho
do filme, para dizer que negros e brancos são iguais. Separações, sectarismos,
intolerância etc. fazem parte de uma conduta etnocêntrica, presente na
personalidade humana, capaz de esvaziar suas mentes em torno de uma
utópica e relutante superioridade, baseada apenas em aparências.
A organização duma comunidade negra consciente de seu papel social, até
hoje não aconteceu no Brasil. Os poucos negros que assumem sua etnia são
considerados minoria no país, privados normalmente dos seus direitos como
cidadão, agravando-se ainda mais a desigualdade e a injustiça que impera
sobre a maioria afrodescendente da população.
O negro, tanto quanto o branco, seres humanos, necessitam ser respeitados
como cidadãos livres, inseridos numa sociedade justa, em que todos os direitos
5. sejam amplamente respeitados e o leque de leis, presentes na Constituição do
país, se faça valer pela vontade do povo, através de uma democracia limpa e
leal.
Voltando ao caso "Amistad", apesar de racistas, os Estados Unidos não
concordavam com o tráfico de escravos. Cria-se neste episódio, portanto, um
tremendo impasse. Mesmo que de forma implícita, fica claroque a questão
econômica é o pilar daquela Corte americana. Isto também diz respeito ao
posicionamento da Espanha, que reclamava a posse dos escravos, pois o
Amistad se tratava de um navio espanhol que naquela época expandia seu
mercado consumidor, tendo os negros trabalhadores como principal alvo dos
seus negócios.
A questão da escravidão no filme, relacionava-se com a guerra civil americana
entre o norte e o sul, no tocante aos lucros altíssimos auferidos com a mão de
obra escrava pelos grandes escravocratas sulistas.
Durante o julgamento, o advogado de acusação acaba questionando a
legitimidade da escravidão. Ele coloca que os africanos, assim como os
europeus e americanos sempre utilizaram desta arma contra os mais fracos e
em benefício próprio em guerras ou como pagamento de dívidas. E isso não
era nada inédito. Ao contrário, em toda história ouviu-se falar em trabalho
forçado, servidão, etc., o que não justifica nem autoriza moralmente um ato tão
cruel como este, ou seja, além de escravizar um grupo apenas pela cor,
desrespeitavam a ética, já que invadiam países livres para contrabandearem
seres humanos, logrando a todos uma vida prisioneira e dolorosa, totalmente
contradizente com os mínimos valores humanos.
É inadmissível legitimar a escravidão de um povo, muito menos por práticas
econômicas que os resumissem a simples e barata mercadoria. No entanto,
não deve ser apenas umas palavras de ordem, mas sim um profundo
6. aprendizado, necessário a cultura dospovos de todas as raças.
Amistad, diante de tantas mortes, pode se considerar como tendo um final
triste, mas não terminou ainda... Muiá ma muiê...era um canto que os negros
entoavam tanto nas derrotas quanto nas vitórias... muiá ma muiê!
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CONTEXTO HISTÓRICO
O filme mostra o processo de julgamento de negros nos Estados Unidos, 22
anos antes do início da Guerra Civil, num contexto marcado pelo
expansionismo em direção ao Oeste e pelo acirramento das divergências do
norte protecionista, industrial e abolicionista, com o sul livre-cambista, agro-
exportador e escravista.
Na passagem do século XVIII para o XIX, os Estados Unidos recém-
independentes formavam uma pequena nação, que se estendia entre a costa
do Atlântico e o Mississipi. Após a independência, o expansionismo para o
Oeste foi justificado pelo princípio do "Destino Manifesto", que defendia serem
os colonos norte-americanos predestinados por Deus a conquistar os territórios
situados entre os oceanos Atlântico e Pacífico. A crescente densidade
demográfica, a construção de uma vasta rede ferroviária iniciada em 1829 e a
descoberta de ouro na Califórnia em 1848, também representou um estímulo
para conquista do Oeste.
A ação diplomática dos Estados Unidos foi marcada por um grande êxito nas
primeiras décadas do século XIX, quando através de negociações bem
sucedidas os Estados Unidos adquirem os territórios da Lousiana (França),
Flórida (Espanha), além doOregon (Inglaterra) e até o Alasca da Rússia, após
a Guerra de Secessão.
Em 1845, colonos norte-americanos proclamaram a independência do Texas
em relação ao México, iniciando-se a Guerra do México (1845-48), na qual a
ex-colônia espanhola perdia definitivamente o Texas, além dos territórios do
Novo México, Califórnia, Utah, Arizona, Nevada e parte do Colorado. Destaca-
7. se ainda a incorporação de terras indígenas, através de um verdadeiro
genocídio físico e cultural dos nativos.
O intenso crescimento do país, acompanhado de uma grande corrente de
imigrantes europeus atraídos pela facilidade de adquirir terras, torna ainda mais
flagrante, o antagonismo entre o norte e o sul. No norte, o capital acumulado
durante o período colonial, criou condições favoráveis para o desenvolvimento
industrial, cuja mão-de-obra e mercado encontravam-se no trabalho
assalariado. A abundância de energia hidráulica, as riquezas minerais e a
facilidade dos transportes contribuíram muito para o progresso da região, que
defendia uma política econômica protecionista. Já o sul, de clima seco e
quente, permaneceu estagnado com uma economia agro-exportadora de
algodão e tabaco baseada no latifúndio escravista. Industrialmente
dependente, o sul era ferrenho defensor do livre-cambismo, mais um
contraponto com o norte protecionista.
Essas divergências tornam-se praticamente irreconciliáveis com a eleição do
abolicionista moderado Abraham Lincoln em 1860, resultando no separatismo
sulista,iniciando-se assim em 1861 a maior guerra civil do século XIX, a Guerra
de Secessão, também conhecida como "Guerra Civil dos Estados Unidos", que
se estendeu até 1865 deixando um saldo de 600 mil mortos.
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FINAL:
No julgamento em primeira instância a brilhante defesa do jovem advogado,
Roger Baldwin, conseguiu provar, através do Inventário da carga, que os
negros não foram comprados em Cuba, mas eram africanos e tinham sido
capturados na Fortaleza de Lomboko, Serra Leoa – AFRICA - transportados
até Cuba, onde trocaram de navio e embarcaram no navio negreiro espanhol
La Amistad (A Amizade) para mais tarde serem comercializados.
Acrescenta Baldwin: Se a Constituição dos EUA reconhecia a situação de
8. pessoas que prestavam serviços, possuíam direitos e, de nenhuma forma,
poderiam considera-los como propriedade de alguém. Mas se fossem
considerados "como coisa" (escravos eram tidos como coisa) não poderiam
estar sendo julgados.
Assim sendo, o Tribunal Distrital rejeitou a acusação do Governo dos EUA e
negou licença para processar os escravos por assassinato ou para extraditá-los
para a Espanha.
O Executivo americano, então, apelou para o Tribunal de Circuito e,
posteriormente para a Suprema Corte dos EUA. Nesta última fase, a defesa
dos africanos ficou a cargo de John Quincy Adams, antigo Presidente dos EUA
e de Roger Baldwin, que atuara em Connecticut na primeira instância. Todavia,
foi decisiva a sustentação de Adams parao convencimento da Suprema Corte.
John Adams ao iniciar a sua extensa defesa se reporta à noção de Justiça
definida pelas Institutas de Justiniano (obras didáticas, visando à iniciação dos
estudantes no aprendizado sistemático da ciência do direito.) como a vontade
constante e perpétua de assegurar a cada um o seu direito, destacando que a
decisão da Corte incidiria sobre a liberdade e a vida de cada uma das pessoas
que ele estava representando.
A defesa deste nobre advogado, John Adams, é calcada nos valores da
fundação do país, sobre a importância da tradição cívica republicana em Roma
e nos EUA e reflexões sobre o papel da Suprema Corte americana como
guardiã dos valores constitucionais. Sob o ângulo da Constituição estava
implícito o reconhecimento da situação escrava em vários artigos que
dispunham sobre a representação dos Estados no Congresso, princípios de
limitação tributária, medidas relativas aos escravos fugitivos ou a atuação de
tropas federais na repressão de rebeliões de escravos. Reportava-se,
sobretudo, àqueles que haviam idealizado a República em Roma, o período da
Antigüidade em que mais se inspiraram os Fundadores dos EUA, notadamente
Cícero e Tácito. Frisou bem que esta noção de Justiça que figura nas Institutas,
9. teria sido, precisamente, ignorada pelo Executivo norte-americano em
correspondência do Secretário de Estado com o Embaixador da Espanha, na
qual o termo Justiça fora substituído por Simpatia, ou seja, simpatia pela causa
dosbrancos, remanescentes da tripulação, e antipatia pelos negros. Todavia,
enfatizava, a decisão em primeira instância, que julgara os atos de violência de
ambas as partes, mostraram que a Justiça não se deixara levar por impulsos
de simpatia ou de antipatia e dera ganho de causa aos negros.
"Eu não conheço nenhum direito que se aplique ao caso dos meus clientes,
salvo o direito natural e de natureza divina, sob o qual nossos pais colocaram a
nossa própria existência nacional” ·
Salienta que a lei maior a ser aplicada ao caso é o direito natural, pois as
circunstâncias eram tão peculiares, imprevisíveis, que apenas um direito acima
dos códigos e tratados, como o direito natural, poderia ser aplicado a ele: eu
não conheço nenhum direito que se aplique ao caso dos meus clientes, salvo o
direito natural e de natureza divina, sob o qual nossos Pais colocaram a nossa
própria existência nacional. (I know of no other law that reaches the case of my
clients, but the law of nature and of Nature’s God on which our fathers placed
our own national existence). E arremata: acredito que será com base neste
Direito que a Corte decidirá o caso de meus clientes
Adams, no Caso Amistad, em sua defesa perante a Suprema Corte, evoca,
exatamente, aqueles princípios proclamados pelos Pais Fundadores como
sendo os alicerces do Estado norte-americano. Aqueles negros que,
diversamente do alegado, não eram propriedade de ninguém, nem em Cuba,
nem na Espanha, mas provinham da Costa do Marfim,onde haviam sido
capturados, tinham os direitos à vida e à liberdade. Desconhecê-los era
renegar o passado, era romper com a tradição, era fragilizar a autoridade moral
detida pelos continuadores da fundação. O efeito decisivo de tais argumentos
sobre o espírito dos Ministros da Suprema Corte confirmaria a profundidade da
10. convicção de serem eles destinados a preservar os valores que haviam
embasado a fundação dos EUA.
Se na Roma Americana cabia ao Senado exercer a sua autoria moral na
preservação dos valores da fundação, nos EUA é à Suprema Corte que
incumbe velar pela manutenção dos princípios consagrados na Constituição.
Alguns consideram que seria necessário ir além do constitucionalmente
explicitado para identificar a intenção mais profunda dos Pais Fundadores.
Adams, em sua visão ampliada pelo exemplo da longevidade da fundação de
Roma, soube reativar, nos julgadores do Amistad, a consciência de sua
responsabilidade na preservação dos princípios do direito natural, muito acima
dos desígnios imediatistas dos próprios Fundadores.
Assim, após o emocionante discurso proferido pelo brilhante Quincy Adams,
todos os negros são libertados e Cinque, líder do motim, lembra que os seus
ancestrais diziam que todos nós somos o resultado da soma de nossos
ancestrais. Por esse motivo, a defesa que lhes fora concedida, além da
liberdade alcançada, foi fruto da JUSTIÇA que já vinha no sangue de cada um
deles, negros ou brancos, mas que pesava em seus valores humanos.