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MANDINGA
Sebastião Pinheiro
N. prot.: 1176505. Prot. atendimento: 2015-0005025288
Esta história pertence à memória de uma anciã quilombola expulsa
da sua terra na ditadura militar em Aracruz pelos interesses da
Casa de Windsor. Entrevistada por mim em 1983, onde vive, no
Lixão de São Pedro, junto com sua comunidade, na Ilha de Vitória,
capital ES.
Reedição em PDF/Correções/Imagens: Oliver Naves Blanco
setembro 2018
Capítulo I
São Mateus já era um porto turbulento com uma história longínqua com
períodos cimentados sobre morte, desespero, dor e desgraça nos navios negreiros
de propriedade e bandeira de ingleses, holandeses e portugueses, que ali
aportavam com sua carga. Era o quinto maior porto de comércio de escravos, pela
facilidade de transporte pelo rio, que dá nome à cidade, até as Minas Gerais, grande
absorvedora de mão-de-obra na época.
É comum dizermos que o diabo mais sabe por velho que por diabo. Em
paráfrase, podemos, também, afirmar que o "cavalheirismo e civismo ingleses", o
são não por educação, cultura ou humanismo, mas por antiguidade e
aparelhamento na organização do esbulho, guerra, repressão comercial ou através
de seu sistema de justiça. Há muitos capitães-de-mato imitando-os nesta onda de
"solidariedade" e voluntarismo.
Na região de São Mateus, uma das maiores primeiras propriedades era a de
um português de Cintra, de nome Joaquim Pedro com familiares influentes na Corte
lusitana e descendente direto de Vasco Coutinho, Capitão Donatário da região.
O grande negócio da época era a cana-de-açúcar, mas para a produção de
açúcar (!). O que fazia este colonizador comprar constantemente escravos
africanos, devido à sua curta vida útil, pelos maus-tratos no degredo e cativeiro.
Para pagar aos traficantes ingleses, ele possuía uma das mais belas e grandes
plantações de fumo fora da Bahia e um alambique para a produção de aguardente,
ambos, com a devida autorização do rei de Portugal e reconhecimento, agora, do
jovem regime independente brasileiro.
O feitor, embora obeso e afável, era tão tirano e cruel quanto seus pares.
Chegou a ter mais de seiscentos escravos. Sentia-se justo, quando reprimia com
severidade os revoltados. Recompensado, quando recebia a unção dos jesuítas.
Seu pelourinho manchado de sangue cheirava a carne podre. Ele era temido até
por capitães-de-mato, índios, negros fugidos e até mesmo pelos jesuítas.
As milícias portuguesas de segurança dos pioneiros raramente iam além da
varanda da Casa Grande, pois ele a prescindia e o mesmo ocorria com as tropas
com as novas cores imperiais.
Diziam as más línguas que seu pai alimentava seus cães com carne humana
de indígenas após as caçadas.
O novo império brasileiro nascia, e tudo ia às mil maravilhas para o feitor de
escravos. Embora, em suas terras, não houvesse minérios, a produção agrícola
causava ciúmes aos mais poderosos mineradores do novo império.
Sua habilidade na administração das terras, plantações de fumo, engenho
de açúcar e produção de aguardente era invejada em toda a Província ao sul da
Bahia. Em suas terras nasceram as primeiras melancias que os africanos
semeavam por toda parte ao longo dos caminhos. Eram as mais doces e vermelhas
cobiçadas nos calorosos verões à beira-mar e praça do mercado.
Ele, ainda jovem, viu seu pai e toda sua numerosa família ficarem calados
quando foi declarada a independência do Império do Brasil de Portugal, esperando
não arriscar seu patrimônio, pois não entenderam a manobra preventiva articulada
por ingleses e portugueses.
Capítulo II
Os tempos mudavam, e ele pressentia dificuldades na reposição de
escravos, quando os navios ingleses começaram a escassear em suas visitas e
ofertas no porto fluvial. Depois até mesmo os oportunistas navios holandeses que
aceitavam qualquer mercadoria em escambo pelos escravos, faltavam e os preços
da mercadoria humana começaram a aumentar, em função da repressão britânica
ao comércio de escravos africanos, por interesse na capitalização industrial. Era
uma nova fase para seu império, onde o Sol não conhecia crepúsculo nem
escrúpulos. A expressão: "Mais caro que um negro e um cachimbo", passou à
história.
Joaquim Pedro, era seu nome, assumiu com a morte do pai, não hesitou,
pois tinha compromissos a zelar e desejava retornar à Europa o mais rico possível.
Aceitou comprar o navio-negreiro do capitão proprietário holandês, desde
que ele fizesse uma última viagem transportando escravos para a fazenda. Assim
teria pelo menos mais 20 anos de mão-de-obra para seus empreendimentos. O
preço era vantajoso: mil e duzentas arrobas de fumo e cem barris de aguardente
com dez anos de envelhecimento.
O capitão-proprietário holandês queria mudar de ramo, e Joaquim Pedro
sabia o valor do seu pagamento nos mercados europeus e mesmo no Rio de
Janeiro.
No início, o batavo relutou, mas aceitou fazer uma última viagem, trazendo
mais cento e cinquenta escravos, pois Joaquim Pedro compraria o navio cheio, para
depois usá-lo no transporte de açúcar, fumo e peixe seco para Ilhéus, Salvador,
Campos e Rio de Janeiro.
O navio abastecido levantou âncora rumo à costa africana. Lá chegando
encomendou aos traficantes locais 15 casais Benguelas; 15 casais Cabindas; 15
casais Minas; 15 casais Quimbundo e 15 casais Malé.
A maior recomendação aos colonizadores portugueses era dispor de uma
diversidade étnica como garantia de segurança nas fazendas, aliado a um
tratamento diferenciado entre elas, para através da dissidência poder impedir que a
turba de escravos se rebelasse.
Com diferentes idiomas, religiões, costumes e tratamento aplicado, havia
dificuldade de sublevação, e o controle periódico da milícia garantia a segurança do
patrimônio e vida dos habitantes portugueses. O tratamento violento dos feitores ou
dos capitães-de-mato destruía a personalidade dos submissos e os tornava mais
servis, medrosos e covardes. O riso fácil, adulação, mau comportamento e conduta
dúbia são as principais formas de alienação e deformação de caráter encontrados
nas vítimas de tortura e submissão.
Entre os escravos recém-chegados, havia algo estranho no grupo malês que
o experiente comandante negreiro não percebeu, na ansiedade de voltar direto à
segurança da costa brasileira. Eram negros de outra etnia, embora dominassem
sua língua e quisessem parecer maleses.
Na verdade, pertenciam à etnia mandinga, eram membros de uma caravana
que trocava sal por cobre, arroz e couro no Alto Níger. O sal da Ilha de Bioko, antes
conhecida como Ilha de Fernando Pó,
havia deixado a bandeira portuguesa e
estava sob proteção espanhola desde o
reinado de Carlos III. Seus ascendentes
tinham origem no Império Mali, e,
também, no Império de Gana, haviam
sido deslocados para a Ilha por razões
políticas.
Nesta ilha, não havia escravidão
nem comércio negreiro, há mais de vinte
anos, e pequenos reinos africanos viviam
em forma de condomínio.
A caravana fora roubada e
aprisionada por grupos Iorubas na foz
Níger e vendida como escravos para um inglês, que já temeroso de perdas a
mercadejou com o holandês, que veio costeando a África e embarcou os últimos
escravos quimbundos na Costa de Cabinda de onde rumou direto para o Brasil.
Entre eles estava uma jovem princesa e seu séquito, cujo pequeno reino
estava estabelecido ao sul da Ilha de Bioko, que fica próxima ao Arquipélago de
São Tomé um dos principais e temidos centros de tráfico negreiro na região do Golfo
da Guiné, superado apenas pela Ilha de Gorée dominada pelos portugueses.
Capítulo III
Ela tinha, desde muito jovem, o costume de acompanhar os mercadores,
para controlar a venda de pescado seco e sal em toda a região. Sabia falar e
escrever espanhol e árabe. Tinha conhecimento de inglês, holandês e português e
dominava à perfeição doze idiomas nativos do continente africano. Seu nome era
Fanta.
Sua família havia migrado à Ilha. Eram mulçumanos. Ela sabia que se não
ficasse incógnita traria muitos dissabores ao reino pela chantagem dos piratas e
comerciantes negreiros, com o pagamento de resgate por sua vida.
Ela havia aprendido entre as suras do Alcorão: O inesperado somente é
superado em favor daquele que usa o saber e sua organização no tempo e espaço
próprio do seu destino.
Com sua avó, aprendeu no idioma pulaar a história da Federação que deu
origem ao Império do Malí, a Manden Kurufa e como devia orgulhar-se de ser
descendente direta do servo do profeta Maomé, Sindiata Keita. Aprendeu, ainda, as
histórias de Mansa Mari Djata, que sempre exigia repetição, pelos benefícios que
ele trouxe às mulheres. Conheceu a necessidade de transferência para Gana e a
devotar a fidelidade de Kangala entre os seus mais recentes ascendentes.
A vida é o meio e o fim. A sabedoria e conhecimento devem ser seus
instrumentos medidos e controlados por uma ação inteligente. Estes foram os
ensinamentos de seu pai além de suas leituras sagradas.
Figura: Mulher Mandinga Fonte:
http://tomaspegil.blogspot.com/2012/03/senegal-oriental-2012-
cuaderno-de-viaje.html (Acesso 03/09/2018)
O cruzamento do Oceano Atlântico foi tormentoso, vinte e três dias até
chegar às terras do jubiloso Joaquim Pedro, que logo registrou a carga, como
propriedade no cartório de São Mateus, na praça do Porto.
O holandês partiu satisfeito com seus fardos de fumo e barris de aguardente,
esperando não ser assaltados por piratas antes de chegar a Santos em um saveiro,
procurando alugar um barco mercante para levar sua mercadoria para a Amsterdã.
Afinal a Companhia das Índias Ocidentais iniciara seu capital com o roubo de um
galeão espanhol carregado de prata no Golfo do México. Ele fizera bons negócios
e teve sorte, agora ia estabelecer-se bem em sua capital e ser respeitado, podendo
até comprar um título nobiliárquico.
Joaquim Pedro deixou, consciente, o navio ancorado nas margens do rio a
poucos metros da Casa Grande, avistado desde as grades da senzala, apavorando
ainda mais seus cativos. Nele se podia ler o nome Edwiges Heilige*
O séquito da princesa acostumado aos negócios com africanos, árabes e
europeus, agia com grande dissimulação e pronunciavam frases quase inaudíveis,
quase sempre em bambara, mandé, dogón, soninké, senufo, kikongo, bantú,
quimbundo e até mesmo o xisena. Ao desembarcarem, aquela carga humana não
eram um grupo étnico divergente ou antagônico. Tampouco eram homens
deslumbrados ou fascinados aventureiros desterrados.
Durante a viagem, todos foram conscientizados como seria o futuro e como
eles poderiam, se organizados, em pouco tempo, montar as estratégias para voltar
para casa ou atenuar a humilhação, sofrimento e martírio.
No desembarque, havia pouca ansiedade e aflição com a nova situação, no
interior, sabiam que ela seria temporária e isto dependia mais do conjunto que de
cada um por si.
Capítulo IV
Na chegada descansaram à noite e pela manhã iria ser celebrada a
marcação.
Com ferro de marcar gado em brasa, cada um deles iria receber no seu glúteo
direito a marca da fazenda, em suprema humilhação e na presença de dois
sacerdotes jesuítas, indiferentes aos lancinantes gritos de dor e horror. Eles
posteriormente dariam a benção à nova propriedade.
A violência e degradação eram maiores porque os escravos antigos riam,
faziam troça ou eram indiferentes à agonia dos recém-chegados. Seus atos
debochados faziam parte de um "rito de passagem", inconsciente, onde os mais
antigos com seu comportamento mostravam superioridade, antiguidade. Contudo,
também era inveja por haverem caído antes. Tudo isto era alimento para a cizânia
entre etnias.
As cicatrizes do corpo fecham rapidamente, as do espírito sangram durante
muito tempo, algumas eternamente.
* Santa Edwiges
Todos perceberam o porquê e importância da catequese feita pela princesa
e seu grupo durante a tormentosa travessia oceânica.
Os novos escravos, marcados, foram introduzidos em suas atividades.
Embora a selva fosse parecida com a africana, havia muitas peculiaridades na
natureza. Os africanos, acostumados aos seus pequeninos pés de algodão, ficaram
fascinados com os gigantescos pés de algodão, arbóreos maduros, totalmente
diferentes. A qualidade dos fios de algodão e tecidos existentes na fazenda era
muito macia e bonita.
Em pouco tempo, as mulheres, cumprindo uma ordem da princesa,
dedicaram-se freneticamente a colhê-lo, tecê-lo em fios e confeccionar rendas e
tecidos.
As sementes de algodão eram plantadas ao longo do caminho para os
canaviais. E já no final do ano muitos escravos que andavam em andrajos ou
seminus, estavam com lindas túnicas brancas, algumas até com algumas rendas e
bordados. Uns poucos homens começaram a usar sobre a cabeça uma pequena
toca de rendas...
Eles, após sua jornada de trabalho, traziam na volta do eito, folhas de
palmeiras de piaçava e trançavam redes de pesca, com uma disposição, primeiro
no escuro, depois foi permitido que os candeeiros continuassem acesos para
facilitar o trabalho de confecção das redes.
Fanta era muito dedicada e simples. À noite, na senzala, ela contatava,
carinhosamente, a todos e procurava saber os dialetos em que podia comunicar-se.
Em pouco tempo tinha um controle total da situação, quase uma corte no exílio.
Como, até mesmo os escravos não notassem, isto era superior a uma corte, pois
não havia vínculo de sangue ou hierarquia, já que ninguém sabia de sua origem.
Desde as mais jovens crianças até as mais velhas senhoras, entrevadas pela
rudeza do trabalho sofrido, a respeitavam e atendiam seu olhar suave, profundo e
solidário. Ela tinha uma predileção pelos anciãos, cultuando sua sabedoria.
A um velho escravo ganês que estava sempre às voltas com flores e plantio
de árvores, entregou um punhado de sementes de pimenta-do-reino, que trouxera
misturada à sua longa cabeleira e na de algumas de outras companheiras, dizendo:
isto pode ajudar no caminho para a liberdade.
Ele as plantou com carinho e cuidou com muita dedicação. Os ramos da
pimenteira cresciam rapidamente no período de chuva. Como os grãos eram
poucos, ele começou a podar os ramos e plantá-los como mudas, ampliando e
acelerando o seu cultivo.
A princesa, agora escrava, quando podia, saía para longas caminhadas,
acompanhadas de anciãs e trazia muitas ervas, cascas de árvores e cipós para
preparar medicamentos para os mesmos.
Sem convencer novos adeptos, ela conseguia, até mesmo, que muitos
retornassem ao rito islâmico, impedido pelo poder da igreja jesuíta junto aos
portugueses e ritos animistas de outras etnias.
Como era uma rendeira e bordadeira, ficou agregada à Casa Grande
ensinando às sinhazinhas e escravas os pontos de renda, brocados, tecidos, além
de responsável pela costura de roupas para todas as necessidades da fazenda.
Trabalhava muito e aonde ia tinha tecido linhas e agulhas nas mãos ou espetados
na cabeleira.
A segurança de um pioneiro colonizador com escravos era dada por
capitães-de-mato e guardas portugueses contratados, além de visitas periódicas da
Milícia sediada no Porto de São Mateus. Era o controle do Reino, e agora, também,
do novo regime.
Além disso, os portugueses na Casa Grande tinham muito medo de serem
envenenados, o que fazia com que toda a comida, antes de ser servida, na Casa
Grande fosse experimentada por uma criança escrava, obrigada a comer um pouco
de todos os pratos e ficar no ambiente, até que a comida fosse servida e a refeição
dos senhores terminasse, quando, então, podia retirar-se.
Isto não era uma novidade para a princesa, pois em sua corte era adotada a
mesma cerimônia de segurança, mas não se utilizava uma criança e sim os próprios
cozinheiros. Ao saber desta situação, ela tomou suas mãos abertas e olhou-as
profundamente por um instante, pedindo inspiração a Alá.
Fanta estava sempre ativa e levava suas costuras e bordados. Na cozinha,
discretamente ensinou as velhas cozinheiras a prepararem algumas sobremesas
que aprendera com os cozinheiros de navios espanhóis, ingleses, franceses e
holandeses em suas viagens e que aportavam para os negócios de sal e peixe
salgado no reino de sua família. Ser uma boa quituteira lhe dava um acesso fácil
pela gula dos seus senhores.
Ninguém deu importância, quando o menino que experimentava a comida
passou a vestir uma túnica branca, de fio de algodão, rendada no peito e estar com
a cabeça raspada.
A camisa fora tecida e rendada por Fanta e ela também raspara a cabeça do
mesmo...
Como membro da etnia mandinga, ela era conhecedora da antiga arte e
ciência da elaboração de filtros, leitura de mãos, olhos e coração dominada há
milênios por seu povo, o que os tornava respeitados.
Ela começou a atender espiritualmente com uma descrição quase secreta a
todos os escravos, em sua angústia, dor e revolta.
Procurava fechar as feridas do espírito. Era uma pastora e logo as fugas e
brigas entre os escravos desapareceram e uma dignidade interior, com respeito e
solidariedade permeava todas as etnias, pois a cada dia a mais eles tinham
consciência de sua condição.
Os rebeldes a seus conselhos e recomendações eram tratados da mesma
forma, mas se por um acaso ameaçassem contar algo ao senhor ou aos capitães-
de-mato eram vítimas de providenciais acidentes no canavial, plantação de fumo ou
dentro do engenho. E todos sabiam que isto fazia parte da construção dos objetivos
maiores e ajustes na harmonia coletiva. Não havia medo ou terror.
Em pouco tempo, todos trabalhavam de forma respeitosa, sem serem servis,
embora não-conformes, pois não pode haver conformismo ou felicidade na
escravidão. O primeiro passo é quebrar a cadeia de degradação, quando se quer
alcançar um objetivo.
Capítulo V
Os tempos nas terras de Joaquim Pedro eram outros. Já fazia um bom
tempo, desde a chegada dos últimos escravos, que não havia problemas ou
confusões.
Agora, até os velhos escravos eram vistos ativos, mas quem ia importar-se
com velhos improdutivos que se arrastavam de um lado a outro com ramos, flores,
cascas e cipós muitas vezes com pequenas moringas e panelas de barro e vasos
de cerâmica.
Eles preparavam tinturas em aguardente ou licores; faziam pomadas em
gordura de aves; suspensão em água de cinzas; mistura com mel de abelhas e
outros preparados com muitas ervas e plantas medicinais que os mais velhos
haviam aprendido no convívio com os indígenas tupiniquins e tapuias da região
durante as fugas, até as recapturas.
A farmácia da senzala logo passou a ser usada para curar até a família da
Casa Grande e todos os escravos da fazenda e até mesmo os das vizinhanças com
tratamentos para queimaduras, fraturas, cortes, infecções, picadas de insetos e
víboras, alergia a plantas tóxicas, problemas de parto, e principalmente, febres e
doenças infantis.
Tudo era dissimulado com suavidade, disfarçado para evitar as energias
negativas da prepotência e ignorância do poder tanto do feitor e seus filhos, como
dos jesuítas controladores e melhores iluminados pelo saber ordenado e
corporativo.
Em contrapartida, crescia o saber interior na sociedade dos escravos. Este
estava cada vez mais dentro de cada um e à disposição de todos de forma orgânica,
para servir com responsabilidade, pois todas as decisões eram coletivamente
assumidas.
Quem não gostava daquela paz e tranquilidade eram os capitães-de-mato,
recompensados por suas capturas.
Um dos capitães-de-mato, o mais malvado, sofreu uma lição. E esta serviu
para sublimar os escravos menos ativos, aumentando suas ações harmônicas de
coesão.
O facínora gostava de maltratar crianças e anciãos entrevados
impunemente. Teve um fim terrível: certa manhã um dos meninos de cabeça
raspada, que usava a camisa rendada, esgueirou-se da senzala levando uma
pequena moringa de cerâmica lacrada, cheio de licor de jabuticaba por um caminho
rumo à Casa Grande.
O capitão-de-mato exigiu do menino a entrega da moringa. Ante a recusa o
agrediu com cascudos e tomou o vaso.
O menino choramingava, suplicava a devolução, senão ia ser castigado no
Pelourinho. O capitão de mato ria. Tomou um gole. Como era muito gostoso, tomou
mais dois.
O menino deixou de choramingar. Ficou sério. Esperou um momento e
ordenou, no dialeto wolof do próprio capitão-de-mato: - devolva-me a moringa e me
acompanhe. O capitão o fez sem pestanejar ou sequer pensar.
Algumas horas depois chegou à Casa Grande nu. Caiu do cavalo e ficou
apopléctico na entrada da varanda. Seu baixo ventre começava a inchar. As coxas,
logo, mais pareciam um sino. Foi levado para a senzala. Mas começou a feder e
como gritava ininterruptamente foi levado para baixo de uma mangueira onde foi
atendido pelo velho escravo ganês, muito respeitado por seus conhecimentos e
tratamentos.
Ele examinou o desnudo capitão-de-mato. Sua genitália estava maior que as
melancias da fazenda.
Depois de um minucioso exame, foi taxativo: picada de surucucu pico-de-
jaca e bem na ganda - kooy (glande), disse no dialeto wolof para que a vítima
entendera que, este estava maior que um coco.
É raro, filosofou o ancião: essa cobra não ataca. Ele deveria estar "obrando"*
em cima do ninho dela. O velho escravo mina era muito matreiro: ou devia obrar
muito fedido.
O silêncio punitivo se espalhou entre os escravos. Não era um silêncio
risonho, pois uma punição é diferente de repressão. Todos, já há algum tempo,
sabiam que as punições não podem ensejar degradação.
O menino-isca havia lavado muita bem sua vasilha de licor e a enchera de
urina para cortar os efeitos do veneno como fora determinado, nem lembrava mais
dos cascudos que recebera, apenas acariciava o rendado na camisa, da esquerda
para a direita, como se estivesse lendo com os dedos.
Olhava como se nada acontecera.
Apenas refletia sobre a dor, o exemplo e aprendizado para se alcançar o
objetivo. Era a consciência coletiva adensando seu poder, pois não há conformismo
ou felicidade na crença ou ideologia.
O diagnóstico do velho escravo ganês foi: vai aguentar mais uns cinco ou
seis dias mais. Tudo vai apodrecer e cair. O paciente gritou tomado pela febre dia
e noite, até que a gangrena o matou na entrada do sexto dia...
Joaquim Pedro sentiu a perda, pois era o seu melhor capitão-de-mato, mas
como as coisas estavam tranquilas tinha tempo para procurar um substituto.
Sem heresia, parece que muito não adiantou, pois na semana seguinte
quatro escravos dos recém-chegados foram trazidos à senzala com as pernas
inchadas, muito inchadas. No segundo dia Joaquim Pedro foi até eles e o velho
escravo disse não passam desta noite e mostrou onde as duas presas da víbora
haviam perfurado, na verdade fora feito com espinho tóxico e cipó. O cheiro de
podre era insuportável, pois eles haviam mutilado o infeliz capitão-de-mato, antes
de seu enterro e colocado suas partes apodrecidas sob as palhas de suas camas.
Depois do velório, os tambores pararam e o enterro foi pela madrugada, mas,
na verdade o que estava sendo enterrado eram troncos de bananeira enrolados em
palhas e esteiras amarradas, como se fosse gente.
Parecia que a bruxa estava solta. Os jesuítas foram chamados para benzer
a Casa Grande, Senzala, plantações e engenho e levaram suas “patacas” de prata.
Os quatro com a alergia nas pernas provocada por contato com um raríssimo
cipó irritante, foram tratados com gordura de jiboia. O velho escravo mina (ganês)
era um mago.
* defecando
Os “mortos” foram para as grotas, a começar a construir a cidadela
quilombola. Havia muito que fazer e eles eram poucos.
Logo, algumas infelizes surucucus pico de jaca foram mortas e trazidas até
a Casa Grande e expostas como responsáveis pela desgraça e perda do capital
semovente do senhor de escravos, garantia fiduciária aceita pelos bancos britânicos
e reconhecida como poder pelos bancos brasileiros.
Os escravos por livre iniciativa construíram enormes panelas de barro com
tabatinga do fundo do rio pisada. Eram panelas com capacidade de 400 litros. Elas
foram queimadas e levadas para a praia, onde foram cheias com salmoura, já muito
evaporada nas lagoas artificiais à beira do mar.
Com o sol, a água do mar evaporava, mas todos os dias as crianças
repunham a água do mar evaporada e não deixavam a água da chuva entrar
protegendo-as com palmas secas de dendê.
Em duas semanas eles estavam até a metade de puro sal marinho. Era uma
prática tradicional em Bioko.
A propriedade de Joaquim Pedro comercializava algo de peixe salgado, mas
o sal era muito caro e a atividade de pesca era fluvial e salga de peixe era muito
incipiente e a produção de sal era mínima, pois região era chuvosa.
Os carros de bois traziam o sal e novamente os vasos eram cheios com água
do mar. Joaquim Pedro gostou muito da inovação e seus filhos mais ainda, pois o
sal era o ponto nevrálgico para a produção de peixe salgado, que ele conseguia
produzir para o consumo e menos de cem barricas por ano, para venda, todo ele
pescado no rio.
Mandou que os escravos fizessem mais dez panelas gigantes. Contrariados
começaram a recolher a tabatinga do fundo do rio e amassar para atender o sinhô.
Fizeram as dez panelas gigantes e transportaram clandestinamente muita
tabatinga para a cidadela aonde os que iam chegando aprendiam a fazer as
panelas, talhas e utensílios que a população quilombola necessitava para guardar
suas provisões, água limpa e outros.
Agora, na Fazenda, como tinham mais sal do que necessitavam, os escravos
de Fanta sugeriram poder pescar à noite com suas redes, fazendo uma jornada
dupla por vontade própria. As redes eram as primeiras que Joaquim Pedro via.
Eram de piaçava e fibra de cânhamo trançado cultivado cada vez mais em suas
próprias terras com sementes trazida na cabeleira dos escravos.
Autorizou satisfeito, sem perceber a indução, manipulação e condução que
os escravos haviam construído sobre a sua cobiça. Agora eles podiam ir e vir com
maior liberdade até a praia. Ampliando seu espaço vital, sem denotar poder.
Capítulo VI
As sementes de cabaças começaram a ser semeadas. Na colheita, com
grande cuidado uma a uma foram eliminadas as que não tinham sonoridade. Com
muito cuidado a cabaça foi cortada para dar a forma. Foi conseguido um fio de
cobre ligando as extremidades de um arco de madeira e fabricado o primeiro Mvet.
O orgulhoso luthier entregou-a ao "griot". Ele começou a afiná-la. Logo passou a
cantar e afinar e cantar experimentando a qualidade e as modificações necessárias.
Logo todos estavam em silêncio escutando uma saga antiga.
Alguém desafiou o luthier a fabricar um Qanun. Ele sorriu. Foi visto nas
semanas seguintes procurando os escravos marceneiros e recolhendo madeira
seca. Batia nas varinhas e as punha ao ouvido. Depois passava largos períodos no
engenho em suas tarefas controlando a produção de aguardente e
simultaneamente com pedacinhos de madeira fazendo o instrumento. Teve a ajuda
de velhos escravos, já entrevados. Algumas semanas depois apresentou o
instrumento e começou a procurar alguém que soubesse tocá-lo, pois ele apenas o
conhecia, mas não tinha grande experiência.
Houve uma aclamação quando a princesa tomou o instrumento e começou
a tocar e cantar. O som mavioso ia muito além de um lamento ou tristeza. Era um
canto esperançoso. Logo muitos dos velhinhos estavam animados, sorrindo e
cadenciando suas mãos. A Cidadela já não era espaço de escravos fujões, havia
uma nova atmosfera cultural. Fanta solicitou que se ensinasse a todas as crianças
a tocar os instrumentos além da tabla e derbakke*.
Voltaram antes do sol nascer, com mais de seiscentos quilos de peixe, alguns
com trinta e quarenta quilos. Antes a pesca era somente fluvial, pois o mar ficava a
três léguas de distância.
No rio os peixes não superavam nunca mais de dois quilos nas margens do
porto. Eram traíras que tiradas da água logo apodreciam e não serviam para salgar.
Ninguém notou, nem mesmo as crianças que tudo veem. E veem com outros
olhos: uma parte de peixes pequenos estava salgada com sal e cinzas em uma
técnica tradicional mandinga da Ilha de Bioko pouco conhecida. Eles eram a base
para a paçoca, com farinha de milho, gergelim e dendê, dos marinheiros que
passavam vários dias no mar, sem acesso a água-doce.
O trabalho no mar era muito rentável e eles podiam se deslocar até lá pelo
próprio rio. Aquilo seria muito rentável, pois os restos do peixe iam para a refeição
da senzala, já que eles sabiam aproveitar tudo.
Lucro dobrado matutava Joaquim Pedro, que mandou que fosse cortada
madeira especial para fazer um barco de oito metros para auxiliar na pesca, já
pensando que poderia produzir mais de dez mil barricas de peixe salgado por ano
para o Rio de Janeiro ou para o reino, pensando em uma escala, pelas vantagens
comparativas em função da produção própria de sal.
No golfo da Guiné desde a antiguidade, havia muitos estaleiros, então fazer
um barco de oito metros era algo simples para aqueles escravos.
Os escravos cortaram as árvores e serraram a madeira; fizeram os cravos e
recolheram resinas. Fizeram ferramentas, trabalhando dia e noite. Tudo com uma
rapidez que fugiu ao controle do feitor, seus filhos e seguranças. O resultado é que
fizeram um barco perto da Casa Grande e outro gêmeo na cidadela.
Ambos idênticos, pois, também, através do trabalho controlavam o feitor que
pouco e nada entendia de construção e provisões de matéria-prima e sua
transformação. Ele estava acostumado a exigir o produto final e se apropriar dele,
sem avaliar o sacrifício para fazê-lo.
* tambores tradicionais
Os barcos tinham até mesmo encaixe para um mastro central, disfarçado por
um tarugo de madeira, bem justo, apresentado ao feitor como responsável pelo
equilíbrio para evitar que o barco virasse com o vento. Uma explicação convincente.
O que para o feitor era uma boa ideia e dela se apropriou nas conversas e
explicações para os visitantes na Casa Grande, esbanjando bazófia sobre o seu
conhecimento na construção náutica.
Os quilombolas, antes de saírem para a primeira pescaria com o barco
gêmeo, ficaram durante dez dias preparando a grande viagem, treinando as
atribulações que iriam encontrar no mar.
No solo cavaram uma maquete do barco de pesca, em tamanho natural e
com todos os barris de água, alimentos, redes, ali permaneciam durante o dia e à
noite, estudando detalhes e situações, criando dificuldades e trazendo opções para
sua solução. Discutiam as correntes marinhas para o Norte de água fria; a corrente
de água quente que arrasta para o Sul. Mar adentro, há calmaria. Era necessário o
controle cuidadoso das velas, caso avistassem algum navio.
Capítulo VII
Em um canto do engenho com entrada trancada por uma pesada porta havia
uma escadaria que levava a um porão com paredes de pedra e totalmente escuro,
apenas com uma vigia pequena de entrada de luz. Era a adega de Joaquim Pedro.
Ali, ele guardava os seus maiores valores: barris de vinho do Porto e azeite de oliva,
que junto ao bacalhau e cortiça eram das poucas coisas portuguesas que o mundo
não prescindia.
Nela os escravos não podiam entrar, pois recebiam os tonéis à porta para
transportá-los à Casa Grande.
A curiosidade era grande e um dos meninos foi amarrado pela cintura e
desceu até o interior da adega com a finalidade de levantar seu interior e trazer
amostras dos conteúdos.
Os dois litros de vinho do Porto de cinquenta anos, encantou a todos, os dois
litros de azeite de oliva por seu perfume e sabor deixou-os também extasiados.
O velho Mina recebeu o botim e se pôs a trabalhar com frenesi. Era
necessário decodificar aquela riqueza.
Não se impressionava facilmente e quando provou o azeite lembrou-se do
azeite da palmeira de tucumã, logo corrigiu sua sensibilidade e observou que o
mesmo era idêntico ao azeite da palmeira de patauá*.
A ordem que recebeu ao apresentar seu relatório foi de que a produção de
dendê deveria ser suspensa na época de frutificação da palmeira e o prensado de
seu azeite ser prioritário. Não entendeu bem, mas assim foi feito.
Em uma noite de burundanga as pesadas portas da adega foram retiradas e
tonéis de azeite português foram substituídos pelo de palmeira. Na Cidadela
passou-se a utilizar o azeite de oliva, principalmente para a retirada da marcação e
fortalecimento da pele, para o qual era superior ao azeite de dendê. As crianças não
* Oenocarpus bataua Martius
gostaram, pois com o mesmo não havia bambá para sua festa e alegria, mas a
estratégia era elevar o espírito da comunidade quilombola nascente.
O desenvolvimento de inovações tecnológicas garante o sucesso, mas o
velho mandinga estava completamente perdido, fazer um vinho em meio a um
monte de muçulmanos e outros somente tomadores de aguardente recém
elaborada. A estratégia de Fanta foi que, assim que o substituto do vinho do Porto
fosse encontrado, se levaria diretamente à mesa da Casa Grande, substituindo os
mesmos nas licoreiras e se observaria o resultado.
A fórmula encontrada foi fantástica: fruto de pau-ferro, colocado em
aguardente recém elaborada, raspas de pau-de-óleo, poucas flores de cânhamo,
fruto de tintureira*** e armazenamento debaixo da terra por 30 dias.
A tinta do fruto do pau-ferro dissolvida em água dava a cor e o grau de álcool.
A adição de mel de abelha urussu garantia o doce e o aroma. Raspas da madeira
de óleo precipitavam o excesso de tanino sobre a madeira e suavizavam o buquê.
O primeiro uso foi em um domingo normal e todos sentiram a qualidade do
mesmo na sobremesa. O grande teste foi quando o arcebispo português de
Salvador visitou a fazenda e ficou encantando, pois já provara vinho do Porto de
cem anos no Vaticano, mas nunca havia experimentado nada igual. Exigiu levar um
barril para Salvador, para o orgulho e devoção da família de feitores.
A sorte é que o previdente velho Mina já tinha substituído três barris e
enviado para a Cidadela, para os cultos religiosos africanos, onde a aguardente era
substituída pelo famoso vinho deleitado nas mesas mais fartas da Europa e Mundo.
Com autorização, uns escravos saíram para a pesca, seis homens e três
meninos, foram para o norte e chegaram à foz do rio Jequitinhonha em Ilhéus.
Voltaram com peixes medianos. O barco gêmeo saíra durante a noite anterior,
passara frente à casa grande, pois os cães de guarda haviam recebido o resto da
refeição da Casa Grande e como eles dormiam profundamente...
O barco gêmeo com sua tripulação de quilombolas da cidadela foi para o Sul.
Fizeram seu levantamento topográfico e chegaram até o rio Paraíba do Sul e cidade
de Campos dos Goitacás. Ambos voltaram carregados de peixes, cada qual para o
seu destino. O barco gêmeo quilombola passou à noite da mesma forma como fora,
pois, novamente os cães de guarda dormiam.
Depois do levantamento litorâneo exaustivo, eles passavam pela praia e
pescavam com rede miúda alguns peixes pequenos e chegavam com o ar
cansados, desolados, famintos e com pouca pesca. A frase que repetiam para
poderem conseguir mais espaço de liberdade e ficar mais tempo no "mar" "o peixe
grande está mais no fundo" já desnorteava Joaquim Pedro.
** Phytolacca decandra
Capítulo VIII
Duas situações estavam constrangendo os pescadores nas viagens mais
longas, a primeira era a falta de espaço pelos alimentos necessários, que impediam
um bom trabalho. O desenvolvimento de paçocas auxiliou muito, mas ainda era
incomodo os enrolados de folhas de bananeira presos a cintura. A outra era na
hora de defecar.
Preocupados, passaram a estudar um alimento mais concentrado que
solucionasse os dois problemas.
O cozimento de peixes em dendê, sua moenda em pilão com farinha de
milho, gergelim e novamente até a formação de uma pasta que endurecia ao esfriar
foi o caminho. A questão era onde guardá-la.
A casualidade providenciou a solução: os meninos escravos tinham o
costume de colocar o coquinho de jerivá, tucumã ou catolé depois de roídos dentro
do dendê para cozinhar a parte interior que ficava facilmente extraída pelo olho de
germinação. Isto era um dos deleites das crianças.
Observando um destes coquinhos vazios, o velho mago Mina solicitou que
todos os coquinhos vazios fossem entregues a ele.
Lavou-as bem, deixou secar e perfurou com uma agulha em brasa.
Colocou uma a uma em um fio de algodão trancado e mergulhou na pasta
concentrada. A massa penetrava no interior do coquinho. Depois de esfriado, o
mesmo era limpo e mergulhado em cera de abelha derretida.
Alguns escravos passaram a testar o colar na cidadela e com a aprovação,
pois havia diminuído até mesmo o constrangimento, pois diminuíam as defecadas
em alto-mar.
Mas, o que ninguém esperava era a contribuição científica da cozinheira da
Casa Grande que trouxe grande quantidade de tripas de galinhas, lavadas, viradas
e tratadas com limão. Elas eram cheias com a pasta e as rações controladas com
nós e todos formavam um colar. A inovação foi aprovada e seu nome foi dado
“tasbih”.
Nas viagens longas sempre os pescadores levavam colares de bolas de tripa
ou coquinhos.
Faltava o levantamento topográfico do oceano e isto era o mais difícil, mas
não impossível.
A produção de peixe salgado começava a crescer. Na senzala a alimentação
melhorava com os restos dos peixes salgados e os peixes miúdos muito bem
escolhidos. O negócio era cada vez mais lucrativo para ambas as partes.
Mas não há bem que sempre dure ou corda que não se rompa.
Na terceira viagem, o barco da fazenda saiu e não voltou pela manhã, nem
durante o dia. Na senzala a gritaria, lamúria e cantoria de cantos fúnebres cortou
toda a noite. As lamúrias eram tantas que nem sequer Joaquim Pedro teve vontade
de impedir o barulho, mas estava, na verdade, mais preocupado com o valioso
barco que perdera.
Estávamos em outubro, com a família resolveu iniciar uma novena para São
Judas Tadeu na ânsia de recuperar seu patrimônio e semoventes.
Ele, nem os seus notaram os pequenos colares de coquinho no pescoço dos
escravos nem viram carregarem dezenas de cocos frescos na beira da praia antes
de partir.
No final do quarto dia, pela noite o barco gêmeo chegou à cidadela e pela
madrugada o de Joaquim Pedro aportou carregado de peixe fresco de tamanho
mediano.
Estava feito o primeiro levantamento do Oceano.
Em terra houve uma explosão de alegria, felicidade, os atabaques rufaram
avisando a todos. Os escravos orgulhosos carregavam e tagarelavam sobre a
abundância de peixe.
Os que desceram do barco se ajoelhavam pedindo perdão ao patrão: uns
falavam doninké, soninfo, mandinga, outros wolof, kikongo, xichonga. Os
quimbundos sempre mais alegres, fazendo troça cênica dançavam rebolando,
imitando o vento horrível que os havia arrastado para mar adentro e o perigo das
baleias, tubarões e golfinhos e até sereias.
O vento é a natureza, mas São Judas Tadeu é o poder da fé, refletiu Joaquim
Pedro. Pediu à esposa que lembrasse de mandar rezar uma missa especial na
senzala quando os jesuítas chegassem à Casa Grande. Joaquim Pedro discutia
com a família, entusiasmado pois, a informação induzida era que quanto mais mar
adentra, maiores eram os peixes. "Sinhô, os robalos de setenta quilos foram os
últimos pescados. Nós voltamos, quando faltou comida e água e o vento amainou.
A gente tava com muita fome, sinhô."
Uma pequena quantidade de peixinhos espinhentos estava separada dos
outros. Os mesmos, aumentariam a quantidade dos outros iguais que estavam na
Cidadela, onde seriam estudados, pesquisados e usados quando necessário.
Era lá, também, que as cordas e o pequeno mastro ficavam escondidos, junto
com as velas de cânhamo, que permitia aos dois barcos gêmeos aventurarem-se
muito adentro do Oceano.
Joaquim Pedro, muito satisfeito com a explicação, julgou que não havia razão
para castigo, afinal havia peixe fresco e até algumas lagostas vivas que mereciam
a comemoração. Não havia necessidade de intimidação, nem porque relaxar a
ordem: mandou todos trabalharem no eito, antes de comerem.
A produção de açúcar aumentava mais, pois o que antes era feito por oito
escravos, agora bastavam cinco e também, havia menos rebeldia entre os escravos.
Os escravos que foram transferidos para cidadela e que para a Casa Grande
haviam morrido, junto com os atraídos, já somavam mais de trinta. Em sua
totalidade eram velhinhos e velhinhas desgastados pelo trato rude e alimentação
escassa. Eram merecedores de descanso. Estavam rejuvenescidos com o bom
tratamento e alimentação abundante. Eles eram algumas vezes substituídos, por
escravos fugidos famintos e errantes encontrados ao longo do litoral e trazidos pelo
barco gêmeo. Depois de sua adaptação à nova situação os interessados eram
atraídos para a causa trabalhando na Fazenda.
O ato de marcação era o ponto máximo do exercício de poder tirânico, ao
reduzir o indefeso a suprema humilhação e flagelo. Alertando que poderia chegar
ao extremo de proximidade à morte, cuja margem não era ultrapassada somente
por uma questão econômica, nada mais.
Como o controle de escravos na fazenda era feito através das marcas. Cada
Fazenda tinha sua marca, que era a mesma dos bovinos e bestas da Fazenda, que
todos os escravos tinham no glúteo direito.
A marca da Fazenda de Joaquim Pedro era um anagrama das três letras de
seu nome. Uma letra jota maiúscula, da qual saía do mesmo eixo para o outro lado,
na parte superior, mas um pouco abaixo a letra p, também maiúscula. Neste eixo
era cortado pela letra C maiúscula do sobrenome Cintra, mas de forma invertida ou
espelhar no seu terço final.
Joaquim Pedro passara mais de um mês e a refizera três vezes para que sua
marca fosse aceita e registrada no cartório. Isto garantia direitos e evitava as
disputas entre senhores de escravos, roubo ou fuga e abrigo a fujões de outras
fazendas.
A arte de esconder as marcas antigas e fazer marcas novas era a base do
sucesso de introdução de escravos na fazenda de Joaquim Pedro, desde a
cidadela, sem que fossem notadas.
Os que vinham de fora para perder a marca antiga recebiam um tratamento
especial, muito especial.
Para eliminar as cicatrizes da marca anterior, se aplicava uma sequência de
seiva de algumas plantas, que comiam os tecidos das cicatrizes, enquanto os
tecidos sadios eram protegidos com cera de abelha e de palmeiras.
Antes o paciente recebia uma cuia cheia de vinho do Porto de cinquenta
anos, legitimo, da adega de Joaquim Pedro, deleite de bispos, papas e nababos.
Como "anestesia" uma generosa dose de vinho de arac, feito imitando o verdadeiro
de Timbuktu, que leva tâmaras e flores de cânhamo. O vinho de arac quilombola
era feito com frutos de jerivá e as mesmas flores de cânhamo, mas em maior
quantidade.
O tratamento da retirada da marca era tão gostoso que o paciente, queria
logo receber sua nova marca. Mas era obrigado a um descanso e uso de unguentos
para fortalecer a pele e tecidos, quando novamente o velho ganês dava o vinho de
arac e também alguns licores com tinturas de diferentes ervas ao “paciente”, pois o
ferro em brasa era muito mais forte e não havia por que sentir dor. Com a nova
marca sem dor se destruía a primeira marca, vencendo o tirano.
Alguns escravos abusados até sorriam quando o ferro marcava as carnes.
Depois, pomadas, tinturas, ervas e muito azeite de oliva português tratavam, até o
paciente receber alta e ter sua transferência para a fazenda e engenho onde era
introduzido cautelosamente com apoio logístico de todos os outros escravos. Em
paralelo era ensinado o comportamento na fazenda, detalhes da organização e
quem ele substituiria, seu nome e costumes, até mesmo dialeto, para assumir sua
identidade.
O trabalho mais difícil e importante era retirar a dor espiritual da marcação
anterior.
A retirada da marca espiritual era um rito lento que eliminava a revolta, ódio
e substituída pela lenta construção da vingança, onde o indivíduo era apenas um
instrumento dentro de toda uma harmonia.
Mas o que mais levantava a moral, era saber que todos teriam suas marcas
finalmente retiradas antes da viagem e que chegariam de volta a sua terra com a
recuperação da honra e vingados.
Esta era a parte mais importante, pois isto fortalecia a organização
subterrânea. Alcançar a liberdade e muito diferente de alcançar o poder.
Na fazenda de Joaquim Pedro, havia uma atmosfera em desenvolvimento.
Uma situação muito diferente, mas somente os velhinhos e velhinhas entrevados
compreendiam em seus olhares. Eles significavam a cumplicidade de perceber o
imperceptível e com o doce olhar controlavam tudo inclusive os jovens mais afoitos.
Ninguém estranhou quando Joaquim Pedro determinou que mais sal, comida
e água doce fossem colocados no barco a remo que saiu para a pesca nas semanas
seguintes.
Exigir que o peixe fosse limpo em alto mar para que menos alimento
chegasse na senzala e ele obtivesse maior transporte e lucro era seu objetivo, além
de exercício de ódio e tirania.
Tampouco houve desespero, quando o barco não voltou no sétimo dia e
somente chegou no décimo dia com o dobro de peixe a quase totalidade dele já
limpa e salgados, somente alguns peixes eram transportados presos dentro de
covos vivos para agradar a Casa Grande. À noite, a novena foi para São Jorge
padroeiro pela bem-aventurança, pois o feitor logo enterraria mais uma botija de
ouro em algum lugar da Casa Grande.
Capítulo IX
Joaquim Pedro estava tendo sucesso na gestão de seu engenho, terras e
pesca.
A chegada foi, novamente, exultante, pois foram quatro dias sem notícias.
Alguns chegaram fazendo que estavam mortos de fome e doentes. Novamente o
mastro foi dissimulado e as velas levadas pelo barco gêmeo.
O melro tinha mais de cento e cinquenta quilos e chegara vivo à fazenda.
Joaquim Pedro sentiu vontade de enviá-lo para a capital, mas não havia como,
mandou salgá-lo.
Na Casa Grande, uma criança de cabeça raspada fingindo que brincava com
sementes de olho de boi falava sozinho bem baixinho, no chão, ao lado da princesa
que bordava uma manta para Sinhá.
Não era brinquedo, era o relatório da viagem e o que para todos eram
palavras inteligíveis, na verdade era bantú: - foi encontrada a Ilha dos Rochedos e
monte alto. Está inabitada. Foram vistos em alto mar barcos grandes viajando para
o norte e para o sul. Não fora visto nenhum navio negreiro. As velas funcionaram,
era preciso uma cobertura para evitar o Sol escaldante. O cálculo é que se necessita
de comida e água para três dias para ir e vir, então necessitamos de um barco com
o triplo do tamanho deste.
Terminado o relatório, sem desfaçatez, a criança pediu leite, ganhou uma
banana e a princesa o pôs para fora delicadamente. Havia muito que fazer, ela
estava satisfeita com o domínio da nova língua.
Na preparação do almoço era comum a princesa suspender o trabalho com
suas rendas e tecidos e ir ajudar as velhas cozinheiras. Quando percebia, por volta
do meio dia que Joaquim Pedro estava chegando à Casa Grande, colocava mel
misturado com alecrim sobre a chapa quente do fogão, para induzi-lo à cozinha.
E conversava em voz alta com as cozinheiras, pois na Casa Grande só se
podia falar em português, que ela fingia não dominar bem: se pescadô tem barco
grande, pesca por mais tempo e traz mais peixe não pricisa ir a cada lua é só sargar.
Né verdade mãe Ngmena!
Joaquim Pedro fingiu que não ouviu, mas ficou curioso: durante o período de
produção de açúcar a pesca tirava um grupo de escravos importante e isto era ruim,
mas sem os restos de peixes na comida da senzala a produção caía muito.
A solução é construir um barco maior, pensou. Melhor ainda podia pegar o
navio negreiro que estava no porto do rio sem atividade e colocar as velas, ver quais
os escravos que se saiam melhor e ir pescar com eles. Afinal, tinha algum
conhecimento náutico e levaria mais uns quatro ou cinco amigos bem armados e
avisaria a marinha imperial de sua nova empresa.
Antes do jantar, a criança de camisa rendada e cabeça raspada foi trazida
para experimentar a comida. Comeu todos os bocados e aguardou sentada no chão
da cozinha à vista dos senhores, aguardando a ordem de retirar-se.
Saiu e foi direto e devagarzinho para os braços do velho Mina. Ele havia
dado ao menino bambá (farofa de dendê) antes de ele ir para sua tarefa. A criança
recebeu uma cuia de água morna com sal e cinzas de fogão. Imediatamente
começou a vomitar. Vomitou até o bambá.
Foi-lhe servido um chá de farinha de fava de Calabar* e colocado para
dormir.
Na casa grande, na varanda Joaquim Pedro e seus filhos sentados com seus
licores conversavam. Uma voz falando o seu português disse ao seu ouvido: é
melhor construir um barco novo com os escravos. - Repita: e Joaquim Pedro repetia.
O mesmo foi feito com os dois filhos e eles repetiam. Foi dito aos três que
fossem dormir. E eles foram dormir.
Na manhã seguinte, todos, na casa grande acordaram tarde e com muita
fome. E a primeira coisa que disseram foi: é melhor construir um barco novo com
os escravos.
Os filhos queriam comandar a construção do saveiro ou escuna e foram
autorizados para o orgulho do seu pai.
Novamente saíram com escravos para cortar as árvores, serras as tabuas,
mastros, preparar as ferramentas e começar a construção do barco.
Em menos de três meses dois belos saveiros estavam construídos: um na
Casa Grande e outro na Cidadela.
Entretanto, enquanto isso Joaquim Pedro continuava organizando as
pescarias.
O último resultado foram seis dias pescando em alto mar. Com uma carga
de quase uma tonelada de peixe salgado. Os escravos pegaram um cardume de
dourados com as redes de piaçava e cânhamo que haviam levado. Da janela da
Casa Grande a princesa pensava: se eles trouxeram isto para cá, o que não levaram
para a cidadela.
Dias após a volta o grupo de escravos mandingas foi visto defumando
dourado. A cozinheira combinou com a sinhá preparar um peixe defumado assado
* Physostigma venenosum
na Casa Grande, pois a semana fora muito pesada com porco assado, grossas
sopas e gordurosos ensopados e galinhas à cabidela. Antes da comida ser servida
lá estava um menino de carequinhas com a camisa de renda, era parecido com o
que fizera a prova no almoço, mas menos parecido que o que fizera a prova na janta
anterior. Ele depois de cumprir todo o ritual da experimentação dos pratos e esperar
a refeição terminar foi levado para os braços do velho mandinga e seus vomitórios.
Joaquim Pedro, toda a família e até os cães de guarda comeram tanto que
sua sesta foi até a manhã seguinte.
Enquanto toda a casa grande dormia, nove escravos celebravam o início do
mês sagrado do Ramadan. Formando um círculo e com braços enlaçados e passos
compassados dançavam, girando contra os ponteiros do relógio, um mais velho com
uma túnica verde dizia no centro: "Allahu maa es sabirin" e todos repetiam. O chefe
religioso voltava a dizer "Allahu maa es sabirin" e parava como suspenso no ar e
todos continuavam: "Va lihalli el machreq va el maghreb e aceleravam o giro contra
os ponteiro do relógio.
Depois da celebração, a princesa chegou discreta e acompanhada de duas
crianças e fez a saudação: Salamaleicum! Diante do olhar severo de um dos mais
velhos usou o dialeto palaar que aprendera com a avó: são meus olhos, meus
ouvidos e não tem boca. As crianças fingiram não entender as palavras.
O robusto mandinga falou pausadamente: Já fizemos três viagens até as
ilhas dos Rochedos que está a três dias no barco pequeno. É a mesma de nossa
viagem.
O velho marinheiro de Bioko observara que o capitão negreiro holandês
viajava sempre contra o nascimento do Sol. Eles haviam passado naquelas ilhas
cinco dias antes da chegada. Lá não tem nada, só pedras, mas se pode juntar água
doce, pois chove e há uma pedra alta de mais de quinhentos metros, onde se avista
muito longe e se pode ver barcos indo para o sul e para o norte. A ilha está
totalmente abandonada. Nosso barco pequeno pode chegar ao litoral em dez dias,
mas não tem como levar comida e gente para todo este tempo. Quando o novo
barco ficar pronto poderemos começar fazer a travessia, enquanto isto, levemos as
talhas de água e provisões para a Ilha deserta em viagens continuas. Na maior,
conseguimos uma caverna pequena, podemos ampliá-la com ferramentas para
guardar os mantimentos protegidos dos animais.
As viagens dos barcos pequenos de ida e volta à Ilha demoram três dias,
mas é muito cansativo e o sol é muito forte. Salamaaleekuum!
Ela assentiu, sorriu e começou: os jesuítas fizeram a visita e somente
voltaram dentro de uma lua cheia. A milícia de segurança somente chegará em uma
lua deverão ser vigiados até deixarem a região. O barco sai na noite de lua
minguante e não poderá ter uma carga muito grande, para ter velocidade. A comida
e água deverão ser mínimas. Precisamos levar dez casais de velhos de volta para
casa e o barco deve voltar o mais rápido possível, aproveitando os ventos desta
época. Vamos fazer mais sepulturas no cemitério e festejar suas passagens,
enquanto outros ficam escondidos na cidadela esperando a viagem. Os que forem
substituí-los devem ficar sobre os cuidados do velho escravo ganês das medicinas
e tratamentos de marcação. É a primeira grande viagem de retorno, sentenciou.
Capítulo X
O ano estava chuvoso. Joaquim Pedro estava preocupado com a produção
de açúcar que não ia ser maior que a do ano anterior, embora ele houvesse plantado
uma área maior. Assim sendo ele precisava de muito mais peixe para sua produção
e para deixar os escravos contentes e mais produtivos, com seus restos e vísceras.
Entretanto, a cada viagem de pesca os peixes eram menores e o barco
precisava ficar no mar muito mais tempo, pois ia cada vez mais mar adentro.
Autorizou que a jornada de pesca fosse de doze dias, mas exigiu que todo o peixe
chegasse salgado e bem seco. Os escravos adaptaram tendais para redes do lado
do barco para colocá-los para secar e poder permitir melhor situação dentro do
barco. Com os dois barcos em ação conjunta era possível fazer os levantamentos
e ainda abastecer tanto a casa grande quanto à cidadela. Afinal os escravos
necessitavam abastecer mais de cento e cinquenta quilombolas ativos.
A cidadela era nas grotas íngreme e inacessível pela selva densa. Eles nunca
faziam fogo à noite, nem ruídos para não chamar atenção. O sistema de vigilância
e segurança era todo controlado por crianças. Quando crianças carequinhas, depois
de sua experimentação da comida na Casa Grande iam passar dois ou três dias na
Cidadela, para recuperação. As mães escravas não reclamavam e se não eram
notadas, permaneciam na cidadela.
Um dos meninos experimentadores de comida na Casa Grande era um
grande consumidor de pimentas nas refeições. As cozinheiras atenderam quando
ele pediu o molho de pimentas nos bocados a serem servidos.
Comeu e permaneceu sentado no chão esperando que o jantar terminasse
e lhe fosse autorizado a sair.
Sentiu alguns calafrios ao sair rumo à senzala. A meio caminho sentiu uma
tontura e cambaleou, mas foi agarrado pelo velho escravo ganes, que o levou ao
colo.
Imediatamente lhe administrou o vomitório de água morna, cinzas e sal.
Repetiu o tratamento, pois notou o forte cheiro de pimenta e pedaços das mesmas
em seu vômito. Foi muito difícil reanimá-lo.
Duplicou a dose de chá de Calabar.
O menino ficou meio adoentado uns dois dias e foi levado para a cidadela,
onde ficou sob observação durante uma semana.
A primeira recomendação foi diminuir a pimenta vermelha na Comida da
Casa Grande e substituí-la nos temperos por pimenta-do-reino, que era cultivada
na cidadela e pouco conhecida.
A segunda é que era proibido aos meninos comer pimentas três dias antes
da sua escala para provador de comida na Casa Grande.
A situação era delicada e exigia providências. Por mais árdua que seja a
refrega, não é permitido colocar em riscos inocentes mesmo com as mais nobres
intenções, aprendera Fanta no Alcorão.
Fanta e o velho mago Mina passaram horas conversando em soninké. Ela
achava a proposta arriscada, mas o mago ponderava ser necessário o experimento
para dar maior segurança na proteção as crianças e ao mesmo tempo maior eficácia
no uso, sem acidentes.
Finalmente ela concordou, pois não se pode negar ao saber as
oportunidades que trarão maior conhecimento sobre os riscos, sejam quais forem
os resultados.
O mago propunha que os restos de comida destinado para os cães de guarda
na Fazenda, seriam agregadas diferentes quantidades de pimenta. Como cada cão
come sua ração em separado dos outros para evitar brigas, era muito fácil avaliar
os resultados.
Fanta tinha razão o infausto aconteceu, pela manhã havia um cão morto e
dois intoxicados.
Foi fácil administrar gotas de tintura de fava de Calabar aos cães e à água
dos mesmos, mas o morto continuaria morto.
A sinhá, esposa de Joaquim Pedro, se desesperou, pois era o cão de seu
maior afeto. Condoída mandou lavá-lo no rio, fazer um caixão. Ela ia providenciar a
vinda dos jesuítas para encomendar a missa de corpo presente. Joaquim Pedro
antecipou que era proibido pela Santa Igreja encomendar animais e mandou os
escravos enterrarem logo o cachorro.
Foi apresentada uma sepultura, ao pé da mangueira onde agonizou o capitão
de mato, com pedras brancas e muitas flores que agradou a Sinhá, pois não
acompanhara o enterro.
Fanta pediu em nagô que a cozinheira da Casa Grande induzisse a Sinhá a
comer cabrito assado, pois era o prato menos repetido pela família.
Minutos depois aos gritos a sinhá anunciava a todos que escolhera comerem
cabrito assado.
O couro do cachorro foi retirado pois era útil como bucha nas rodas do carro
de boi, por facilitar sua lubrificação com gorduras, diminuindo o ruído e permitindo
ações mais tranquilas, nos transportes noturnos.
O cachorro, sem rabo, patas e cortado na metade do focinho para extrair os
dentes superiores e caninos ficava um cabrito. Uma vez limpo o cão foi mergulhado
em um molho de vinagre, sal, alho e cebolas esmagadas, com manjericão, alecrim
e alfavaca.
Assou lentamente toda a tarde e início da noite, com banhos periódicos do
vinha d'alho.
O cabrito foi muitíssimo elogiado, após a refeição.
Para evitar a desconfiança foi deixada a cabeça, pois muitas vezes nos
porcos assados, Joaquim Pedro notou que os escravos tiravam o rabo, as patas, a
língua, as orelhas para levar para a senzala e ele passou a proibir que isso fosse
feito, evitando um aproveitamento de proteínas pelos mesmos, embora na Casa
Grande não comessem tais partes.
O velho mago mandinga foi buscar o menino provador do dia, que nem
sequer havia tomado azeite de dendê e bambá pois a ceia era uma festa, sem
atividades noturnas extras.
Ansioso o velho escravo perguntou para o menino: que tal o cabrito?
A criança em sua inocência respondeu: comi muito pouquinho. Estava
gostoso, mas bem apimentado. Quem gostou mesmo foi a mãe do Sinhô, que se
atracou na cabeça assada e só largou quando era caveira bem limpa.
O velho Mina matreiro queria rir, mas conhecia a perspicácia das crianças.
Na cidadela chegava um genuíno caprino para a comemoração de cem ano
de uma velhinha e deleite de seus convivas.
Ela não aceitou preparar o cabrito para o seu aniversário, doou para uma
cerimônia de muito mais importância.
Um jovem mestiço, filho de um dos filhos do Sinhô com uma escrava, era
muito revoltado por saber de sua origem, embora não tenha sido criado como os
“filhos de Saladino”* terminou indo para o pelourinho, embora tivesse uma
companheira e um filhinho pequeno. O menino poucos dias depois de cumprir três
anos viu seu pai morrer pendurado no pelourinho.
Por esta razão o menino cresceu extremamente revoltado.
Fez uma traquinice de colocar uma casa de marimbondo tapa-goela dentro
do quarto do seu avô ilegítimo (filho de Joaquim Pedro). Foi brutalmente castigado
com a máscara de folha de flandres em todo o rosto e pendurado no Pelourinho,
donde adquiriu uma pleurisia que nem mesmo o velho mago Mina conseguiu curar.
Este menino foi enterrado como “morto” e depois ressurgiu na Cidadela, mas
tinha poucas chances de viver.
O grupo de velhos ex-escravos resolveu fazer a oferta de troca pelo cabrito
e chamar a avó do menino do inframundo para realizar a cura do mesmo.
Escolheram uma caverna com a boca para o outro lado do vale e que não
ressoava para a Casa Grande, nem para nenhum vizinho pois seria necessária uma
cerimônia durante toda a noite. Foi escolhida uma noite de Iansã (Oyá).
A avó do menino, de nome Rosa foi invocada pelo grupo de escravos com
cantos e toques nos atabaques. Seu espírito baixou no terreiro e começou a dançar
e cantar. Trouxeram-lhe o menino já desfalecido, sem qualquer chance de vida.
O cabrito foi sacrificado. Um pouco de sangue do mesmo foi administrado ao
menino em uma cuia. Um pouco de vinho do Porto de cinquenta anos e aguardente
(marafa) foram queimadas na cuia e das cinzas, o menino foi “cruzado”. Riscado
com traços de pemba e pontos feitos com ponta de punhal, na cabeça.
Recebeu sete cruzes na cabeça e três em cada dorso da mão. As
gargalhadas do espírito da avó eram sinistras, mas todos riam e dançavam como
se vissem outra coisa. O menino acabava de ser batizado naquele terreiro e todos
dançavam.
Antes do Sol nascer, Vovó Rosa desincorporou do cambono (cavalo).
Saravóu, subiu gargalhando e antecipando: - os arcanjos começam a atiçar o fogo.
No dia seguinte o menino estava bem melhor, lhe deram uma dieta de ovo
de pato e cinza de fogão, em uma semana ele estava totalmente sadio, tão alegre
quanto às crianças quimbundas.
As vovós diziam que a "troca" fora para tirar o veneno do sangue do avô
paterno.
Assim o jovem rapaz cresceu, os velhos escravos nas horas de nervosismo
e tensão o viam cantarolando em xisena: “Ela veio sacudir sua saia no Congá. Com
licença de Oxalá é Vovó Rosa que vem saravá.”
O jovem se transformou no braço direito do capitão do saveiro quilombola de
velas negras e o primeiro a chegar na costa africana deixando os velhinhos.
Seguramente no sorriso da avó havia algo mais que ela não quis antecipar.
Capítulo XI
O saveiro da Casa Grande ficou pronto e recebeu o nome de Cintra.
Joaquim Pedro determinou a seus filhos a organização de uma pescaria para
três semanas, pois em breve ia começar a colheita de açúcar e tinha de ter todo o
pessoal na colheita e engenho. Por desconfiança, obrigou que o seu outro capitão-
de-mato comandasse a viagem sem interferir com os escravos. Bem armado, o
capitão-de-mato embarcou.
O irmão gêmeo do Cintra não tinha nome, era quatro vezes o tamanho dos
barcos pequenos, um mastro grande e dois pequenos, tinham o fundo chato, como
o outro e era muito veloz. Tinha espaço interior para trinta pessoas, mas não tinha
como carregar água e alimentos para todos a não ser por a quatro a cinco dias. Os
anciãos não podiam se alimentarem de colares e paçoca durante toda a viagem.
Dedicados à pesca partiam cheio de comida e voltavam cheio de peixe salgado.
A ordem do saveiro quilombola era fazer viagens até a ilha e depositar lá tudo
como entreposto, inclusive os escravos e depois dali os transportá-los diretamente
à África, enquanto o barco pequeno fazia as viagens entre a cidadela e a ilha para
abastecimento continuo de libertos e provisões.
Tinham que levar tábuas serradas, cravos, ferramentas, mastros para
substituição em caso de acidentes, resinas e outros repostos para reparações.
Estava sempre atulhado de talhas com água, azeite de dendê, peixe seco, farinha
de milho e paçoca de amendoim e gergelim. Mais de mil cocos estavam espalhados
pelo seu fundo.
Ele fora transportado durante uma noite que uma das crianças carecas teve
de fazer o vomitório.
O saveiro quilombola zarpou pela noite com vinte casais de escravos da
cidadela e uma tripulação de cinco experimentados pescadores. O barco pequeno
quilombola ficara designado para recolher escravos fugidos para a cidadela e
precisava pescar constantemente para garantir as provisões na cidadela onde já
havia mais de 300 pessoas cuidando os cultivos de pimenta, fumo, cânhamo, cana-
de-açúcar e produção de panelas de cerâmica.
Dois quilombolas que haviam fugido do Sul chegaram à Cidadela. Foram
entrevistados por um comitê de recepção e organização.
Ambos tinham uma história um tanto diferente, mas com morte e desespero.
Seus pais morreram nas charqueadas, uma atividade de matar o gado para tirar a
carne e fazer o charque, carne-seca e similares e aproveitar o couro salgado.
Trabalhavam com o sangue dos animais quente, sobre o sangue apodrecido
dos dias, semanas e meses anteriores sobre moscas, calor, frio, chuvas e um vento
cortante contínuo. Poucos aguentavam mais de cinco anos nessas condições.
Tinham de carregar as mantas de carne salgada nas costas e as
queimaduras eram cada vez maiores pelo sal que não deixava infeccionar, mas
aumentava suas lesões.
Com a eclosão da guerra entre os poderosos locais e o império, fomos
obrigados a ir para a frente de batalha, sem treinamento, para enfrentar as tropas
mercenárias do imperador: eram austríacos, belgas, franceses e suevos todos
soldados atrás de fortuna.
Mas, a dor ensina a gemer e a cada combate mais experiência se adquiria,
ademais quem luta pela vida, sabe o que pode perder.
Os que eram peões nas estâncias ensinaram os outros todas as artes de
montar o cavalo sem sela ou montaria. A necessidade de defender-se levou à
imitação e o uso da lança foi um aperfeiçoamento diário.
Muitas vezes não havia cavalos suficientes e dois lanceiros dividiam um
cavalo. O que causava muita surpresa aos brancos enfeitados. Um colocava a lança
no olho do cavalo e outro levantava o miserável, com um impacto visual forte sobre
os companheiros deles.
Quando os brancos viram que a guerra ia ser resolvida nas salas com
bebidas e conversa. Primeiro, desarmaram todos os lanceiros-negros, que sempre
iam à frente. Depois desmontaram todos e por último estavam tirando a comida e
apetrechos. Então nós fugimos, roubamos um barquinho pequeno e remávamos de
noite e dormíamos de dia escondidos.
Depois de seis dias chegamos ao porto, subimos em um navio estrangeiro.
Entramos entre os fardos de Charque e couros e se escondemos.
Antes molhamos bem o poncho de cada um em água doce e viajamos
escondidos até as grandes minas de Sal (Cabo Frio). Ali os escravos nos
informaram da Cidadela e aqui viemos.
Temos nossas espadas que tomamos dos oficiais que enfrentamos.
Podemos fazer lanças para ajudar na defesa, na pesca, sabemos criar gado.
Conta com a gente em tudo que for para fazer.
O capitão do saveiro quilombola sorriu e perguntou: nasceu antes da
travessia ou depois? Nós fizemos a travessia criança com nossos pais, mas não
somos irmãos, fomos capturados juntos e dominávamos o kikongo e o xichonga
agora só falamos o português. Depois trabalhamos nas Charqueadas e os últimos
dez anos foram na Guerra, por incrível que pareça, foram os melhores. Enganaram-
nos, pois disseram que quem lutasse bem ganharia a liberdade. Pelo que
imaginamos todos os nossos companheiros já estão mortos.
O capitão, assentiu: suas lanças vão ser muito importante para a pesca em
alto mar. Comandante, eu meto uma lança no olho de um cavalo a galope e não
erro. A morte é tão instantânea que ele não se mexe.
Estás acostumado com o mar?
Depois da solidão da travessia do Oceano, nós aprendemos em uma
imensidão verde igual o mar, que não tem fim e é uma solidão pois nunca se
encontra gente ou bichos, só gado e as bestas. O outro quilombola completou: há
uma companhia que é a do chimarrão, quente no inverno frio e muito refrescante no
verão. – É algo de que se sente falta.
Fanta assumiu: bem-vindos, Allahu maa es sabirin. Eles logo responderam
Aleicumsalama.
O velho mina não deixou os dois descansarem, queria saber tudo sobre o
chimarrão. Tudo foi detalhado com minúcias.
Já descobrindo o que era o chimarrão, perguntou: faz urinar? E a resposta
foi: bah!
Nos dias seguintes o velho mina não parava um segundo, buscando folhas,
secando-as. Lembrou da árvore que os negros do Sudão haviam plantado atrás da
senzala e que dava os frutos muito amargos. Foi buscar as folhas, pois delas já
tinha feito a tintura e esta tinha sido usada no batizado do neto do Feitor misturado
no suco de tamarindo com tintura de Cola africana.
Foi a coisa mais alegre, pois ninguém parava de rir até os jesuítas, prefeitos,
vizinhos todos passaram toda a tarde felizes depois de tomarem o suco de
tamarindo.
Foi preparado um chimarrão com as folhas africanas, mas os dois disseram
ele não é amargo no começo. Só no fim, no começo é bem doce.
O velho Mina lhes deu a tintura da árvore africana (Cola nitida)* em suco com
muito açúcar. Ambos tomaram e arrotaram. Bah! este está bem melhor, mas não é
chimarrão.
O velho mina havia descoberto em uma planta africana. Sua tintura
estimulante era imprescindível para a travessia, quando era necessário ficar até três
noites sem dormir.
Os dois mudaram de oceano e foram fazer suas charqueadas com os atuns
e ficaram conhecidos como os lanceiros-do-mar.
Lá havia muito trabalho, organização e conscientização. Como em toda parte
há alguns tão judiados, que ficam irrecuperáveis e podem pôr a perder todo um
trabalho coletivo.
Estes eram tratados com todo o tipo de tinturas e ajudas, mas os que eram
brigões e não respeitavam a comunidade, recebia após muitas admoestações, uma
última refeição preparada com o peixinho espinhento, que era cuidadosamente
recolhido e tratado. Pois após os estudos e experimentações se chegou à conclusão
que ele era o mesmo que existia nas praias do Golfo da Guiné e que era tão
venenoso quanto aquele.
Seu efeito, paralisava todos os músculos e a morte ocorria após oito horas
de agonia, sem o indivíduo poder mexer um músculo sequer. Todos sabiam que
manter os objetivos e metas era o primeiro princípio que todos haviam jurado
cumprir na sua chegada ou transferência para a Cidadela.
Uma primeira admoestação pública era tolerada, mas a segunda era servida
a refeição final.
O saveiro Cintra largou muito antes do Sol nascer com provisão para duas
semanas no mar. O barco a remo de Joaquim Pedro ia auxiliar para alguma
emergência. Ambos tinham o leme amarrado para o local onde nascia o Sol e
poucas horas depois já era possível um avistar o outro.
Antes de colocar o mastro e a vela no barco a remo, o capitão-de-mato foi
convidado a tomar um licor de uvaia. Ficou falante, mas conversava coisas
estranhas, sempre sentado em um canto, como se estivesse em outro mundo. O
barco pequeno era muito mais rápido e logo ultrapassou o Cintra. O capitão-de-
mato foi transferido seu interior junto com sua cabaça de licor, mais parecia um
morto-vivo, pois não sabia onde estava, nem o que estava fazendo. Apenas
obedecia.
Era o efeito da tintura de datura de flor amarela e fruto roxo, que em alguns
dialetos africanos é chamada de burundanga. Esta planta tem a capacidade de
* Esta planta é conhecida como cacau do Sudão, e é a base para a fabricação do vinho e refresco de Coca-
Cola.
fazer que, quem a ingere de perder totalmente a memória do que está acontecendo,
podendo cumprir ordens sem saber o que faz e não se lembrar do que fez,
aconteceu ou sofreu.
A tintura dessa planta africana era misturada aos licores de frutas. Os
escravos riam, pois ele deveria ir e voltar, mas não teria nada para contar.
Chegaram à Ilha (Trindade) ao meio do terceiro dia.
A ilha era imponente e seu pico de mais de 500 metros avistável desde o
nascer daquela manhã, a outra pequena a ela era praticamente inacessível.
Escolheram uma baía e recolheram as velas e começaram a descarregar as
talhas, barris, fardos de fumo.
O escravo-capitão do Cintra fazendo troça mandava o capitão-de-mato
carregar os barris e fardos mais pesados. E o chamava de burundanga, sendo
imediatamente atendido.
Uma das anciãs foi ao comandante com uma ideia: por que não tingem as
velas da cor do mar, para que o barco não seja avistado por outros à grande
distância. Ela mostrou suas roupas negras tingidas com jenipapo e as azuis-
marinhos obtidas com anil. O comandante fascinado agradeceu. Pensou em fazer,
também, túnicas azuis como dos marinheiros ingleses que aportavam em Bioko.
Um dos olhos e ouvido da princesa observou que deveriam ser trazidos
alguns bodoques dos tupiniquins e arco e flechas para se caçar aves, pescar e
também proteger os que iam ficar na ilha. O comandante ficou mais estupefato,
possuía uma tropa e seu conjunto cada vez ficava mais homogêneo e único. Repetiu
sozinho: Allahu maa es sabirin (Alá está com os perseverantes) Sura 2 Vers. 153.
Descansaram um dia todo e pela madrugada partiram da ilha em direção
onde nasce o Sol.
Era a grande aventura, seriam mais de dez dias. Chegavam à costa africana
ou tudo terminaria no fundo do mar. O vento era muito forte e o barco pequeno logo
se distanciou à frente do saveiro distinguido durante o dia como um ponto no
horizonte e à noite por uma lanterna de dendê.
O jovem imediato há muito havia encontrado na praia à beira d' água um belo
cachimbo de raiz de raiz de roseira e bocal de marfim, seguro que era inglês.
Passou a usá-lo durante as viagens, principalmente à noite.
No oitavo dia, os do saveiro começaram a observar aves marinhas de costa
e logo a silhueta do continente. O barco pequeno já estava voltando com guizos e
areia das praias onde havia entregado os anciãos e anciãs e alguns fardos de fumo
e um barril de aguardente como suborno.
O mercador interessado em encaminhar os libertos para suas regiões, tribos
e clãs não queria os fardos de fumo, nem o barril de aguardente. Exigiu o cachimbo
como pagamento.
O capitão imediato ficou desconfiado e fez uma contraproposta para
dobrando o número de libertos que ele deveria encaminhar pelo cachimbo. O que
foi aceito por ambas as partes.
Somente na hora de tocar terra africana, que os ex-escravos mostravam a
marca da fazenda dizendo: diga para ninguém tirar sua marca. Esta é a
comprovação que nossa vitória "xinga" Joaquim Pedro.
Eles reconheceram os idiomas quimbundo, bantú e kikongo dos seus
habitantes. Uma toalha bordada em renda, disfarçando as letras árabes, feito pela
princesa, devia imediatamente chegar ao seu pai em Bioko. Seguramente chegaria,
através dos marinheiros, pois a promessa de recompensa era muito valiosa, foi
entregue mais um fardo de fumo e um barril de aguardente.
No saveiro todos exultaram, pois tudo dera certo, tinham pouco tempo para
voltar para a ilha, passaram para o barco pequeno as provisões necessárias para o
retorno. O capitão-de-mato, ainda sob o efeito da burundanga, acompanhado pela
cabaça de licor subiu a bordo. Eles tinham de voltar para pescar e retornar no prazo.
O barco pequeno e o Cintra chegaram na projeção da foz do rio Doce na lua
nova e isto era bom para a pesca. Em poucas horas os barcos estavam atulhados
de peixes salgados e alguns frescos e dos maiores somente. As redes vinham
penduradas carregadas de peixes gigantes. Deixaram os mastros e velas para
serem recolhidos pelos quilombolas e chegaram ao porto de São Mateus
aparentando cansaço e a pele queimada pelo sol. O saveiro quilombola teria de
esperar a noite e o efeito da datura para poder passar pela casa grande e ir para a
cidadela.
A explicação dada foi de muita calmaria, mas, quando a lua nova entrou, eles
pegaram o peixe e o vento foi trazendo muito velozmente o barco, permitindo que
uma parte chegasse fresca.
Joaquim Pedro exultava com o resultado, mas não conseguia entender seu
capitão-de-mato, transformado em escolta de pescaria, que somente repetia muito
peixe voador, muito peixe voador, muito peixe voador. Tão confundido, passou mais
de uma semana sem saber sequer de que lado montava seu cavalo.
Os velhinhos responsáveis pela marcenaria estavam afoitos. Com machados
e enxadas estavam cavando em volta dos tocos de jacarandá, mogno e cedro. Eles
tinham experiência, que nos tocos de cedro, um pé do solo para cima e para baixo,
há uma madeira totalmente diferente que serve para fazer cachimbos imitando a
raiz de roseira.
Logo, uma centena de belíssimos cachimbos torneados e polidos com cera
de carnaúba estavam à disposição dos marinheiros quilombolas. Sua vantagem era
o valor de troca e ademais que poupavam muito espaço e peso ocupado com as
cargas para o pagamento de subornos e prêmios, permitindo mais carga humana.
O período de corte da cana-de-açúcar era o mais propício para os escravos
fugirem, pois se trabalhava até à noite na colheita, transporte e funcionamento do
engenho de açúcar e alambique, entretanto, nas terras de Joaquim Pedro era
diferente, pois os escravos dele iam buscar nas áreas vizinhas mais famílias para
esconder na sua cidadela.
Alguns eram incorporados às atividades da colheita de cana-de-açúcar,
enquanto esperavam o translado e a viagem de regresso.
O controle de produção de Joaquim Pedro era pelo número de carros de bois
carregados que entravam no engenho. O interessante é que eles estavam
aumentando constantemente e ele nem imaginava que estava transformando em
açúcar e aguardente toda a produção da cidadela, que era trazida e misturada à
dele e depois subtraída para ser transportada à Ilha e servir, junto com o fumo para
pagar os subornos na costa africana.
A produção de pimenteira era toda da cidadela e já ultrapassava a centenas
de barricas, mas poucos sabiam seu valor.
Na primeira refeição onde se serviu para os escravos só angu, abóbora e
beiju, as viagens de carros de bois carregados de cana-de-açúcar diminuíram pela
metade. Desesperado Joaquim Pedro mandou matar seis vacas para remediar o
problema com os bofes. Não adiantou.
Capítulo XII
Ele foi obrigado a organizar mais uma pescaria.
Em paralelo, foi feita a segunda viagem, com trinta casais de anciãos, eles
nem seriam notados, pois já haviam sido substituídos e aguardavam com ansiedade
acampados na cidadela. Ali aprendiam o valor do trabalho livre sem a apropriação
pelo feitor. O prêmio era a viagem e tinham de aguardar a sua vez, que era decidida
por todos em uma assembleia.
Apliquei o aprendido nas aulas na Escola de Navegação de Timbuktu e os
penosos exercícios navegando nas caravanas, nas areias do deserto se orientando
somente pelas estrelas, com mapas mentalizados e desenhados no couro de cabra.
O épico do Almirante Abukbar descobridor do grande rio (Amazonas) mil vezes
maior que o Níger do outro lado do oceano em 1322.
Já temos um mapa dos céus daqui até Bioko, que está entalhado no chão
dos nossos barcos e sextantes que toda a tripulação sabe usar com precisão.
Ademais fizemos o entalhe dos relevos da cidadela e da África entalhado na parte
interna do bombordo e sotavento para correção de curso.
O saveiro quilombola saíra com suas velas negras tingidas com jenipapo,
dois dias de antecedência ao barco pequeno. Contudo, chegou à Ilha, apenas
algumas horas antes. Houve a troca de tripulação e carregamento de provisões.
Ambos continuaram em direção onde nasce o Sol com o cuidado de se saber chegar
ao mesmo local, pois o capitão desenhara e esculpira o relevo do horizonte, no
ponto de interesse.
O jovem comandante-substituto, fora imediato na viagem anterior e sabia
muito bem onde tinha de chegar. Sozinho cantarolava, batendo os dedos no leme
do barco: ela veio sacudir a sua saia no congá. Com licença de Oxalá é Vovó Rosa
que vai saravá.
O barco de pesca, também utilizava velas negras, recebeu todos os anciãos
e a última parte da viagem foi feita à noite. Pela madrugada deixou sua carga
humana no mesmo local da viagem anterior. Ninguém tinha retirado a sua marca.
E todos a exibiam satisfeitos, inclusive alguns dos que receberam a marca da
fazenda sobre outra anterior. Sim eles eram vencedores. Como sempre os
quimbundos eram os mais salientes.
O grupo foi recebido por um dos casais de velhinhos retornados. A
mensagem deles era muito importante: o pai da princesa já sabe e diz que oito dias
para o norte pela costa se chega ao arquipélago de São Tomé e logo a Bioko.
Desde a Ilha dos rochedos, direto os pescadores fazem em cinco dias, mas se deve
passar ao norte de uma ilha grande, onde tem muitos navios militares de bandeira
inglesa com muito cuidado pois é uma prisão.
Não se deve passar de dia, pois eles não toleram barcos pequenos,
identificados como piratas. A velhinha sorridente, entregou uma bússola que o pai
da princesa sabia que eles precisavam e um mapa marítimo em couro de camelo.
Oxalá tenham bom retorno.
O capitão-imediato passou a bússola para as mãos do capitão que
comandava o saveiro quilombola. Ele a reconheceu. Abriu as mãos e olhou
profundamente, agradecendo a Alá. Seu lugar tenente começou instintivamente a
cantarolar: ela veio sacudir sua saia no congá, com licença de Oxalá...
A viagem de retorno foi mais rápida que a anterior, mas houve tempo para o
saveiro ajudar na pesca e transporte, fazendo parte dos peixes chegarem fresco à
fazenda. A única novidade é que eles deveriam usar uma bandeira no saveiro, para
não levantar desconfiança.
Uma bandeira portuguesa ou do império brasileiro não causaria surpresa.
Seria necessário conseguir uma bandeira em Vitória. Era necessário fazer perucas,
ter roupa de marinheiro e pintar os marinheiros quilombolas de branco, para poder
parecer europeus quando algum barco passasse muito perto, pois eles poderiam
ser aprisionados outra vez. Além de terem velas brancas.
Fazer as perucas foi simples com crina de cavalo, pelos de rabo de boi e
palha de piaçava, algumas eram castanhas algumas eram avermelhadas, pois os
marinheiros sempre eram europeus.
O interessante foi que, na cidadela sem entender muito bem, um grupo de
quilombolas passou a untar todo o corpo com uma mistura de polvilho de mandioca
com gordura de coco e um pouco de dendê, que tornou os escravos brancos, meio
amarelados, encardidos, como árabes ou chineses que ficaram muito tempo ao sol.
A solução encontrada, foi levada em potes para os barcos e Ilha dos Rochedos.
Na cidadela havia mais de trezentas famílias fugidas da região, muitos
substituíam os anciãos e a produção de açúcar e aguardente aumentavam. O
trabalho livre enganava o trabalho escravo, da mesma forma que a moeda de valor
afasta a moeda sem valor do mercado.
O saveiro quilombola partiu sozinho com noventa anciãos para a ilha, onde
iam aguardar para serem transportados ao continente africano. Havia provisões
para setenta dias, mas todos sabiam que deveriam pescar e caçar aves, pois as
provisões eram intocáveis, assim como a água.
Não deviam fazer fogueiras à noite, para não atrair a curiosidade de navios
para a ilha e ter sempre um conjunto de pessoas no monte da Ilha dos Rochedos
sob um grande guarda sol de palha, controlando a passagem em ambos os lados
até o horizonte. Quando os barcos quilombolas fossem avistados, uma lanterna
grande de dendê, com espelhos deveria ficar acesa lá em cima após o pôr do Sol.
Durante o dia, gomos de caniço finos e compridos servem como luneta para
observar uma distância até três vezes mais longe no horizonte.
Na senzala, o grupo mais próximo chegou para a reunião com a princesa. O
menino escravo já havia tomado o chá de fava de Calabar e dormia normalmente.
Na Casa Grande, todos haviam ceado e tomavam o licor de jenipapo. As
crianças comiam doce de abóbora enriquecido com burundanga. Conversavam em
voz alta até altas horas.
O relato feito pelo comandante da segunda excursão fora rápido em nagô e
sua recomendação: instalamos a bússola, a prioridade é encontrar a ilha mais ao
nordeste de Trindade, a dois ou três dias de viagem e como foi avisado ter muito
cuidado pois a ilha é cercada por navios militares. Vamos precisar dos dois barcos
pequenos e dos dois saveiros para encontrá-la. Depois somente nosso barco
pequeno. Dali, fica perto o Arquipélago de São Tomé e o caminho é conhecido até
Bioko. Não podemos perder muito tempo procurando a Ilha. Temos de encontrá-la.
Cada barco pequeno vai com uma variação de dez graus. Isto dá os 40 e vinco
graus que foi recomendado.
Antes o saveiro quilombola fez mais seis viagens solitárias à ilha, cada uma,
com mais noventa anciãos e voltou para a cidadela.
Capítulo XIII
O aniversário de Joaquim Pedro se aproximava era o auge da colheita da
cana e ele queria uma festa gigantesca.
Seu navio negreiro, o Santa Edwiges transformado um cargueiro havia
retornado do Rio de Janeiro onde fora deixar uma carga de açúcar, aguardente e
peixe salgado, cujas vendas estavam garantindo uma sobre renda para o feitor.
Logo os escravos mais velhos e descartáveis seriam chamados para fazer uma obra
de alvenaria na Casa Grande e depois seriam trucidados, pois ali seria enterrada
mais uma botija de ouro.
Joaquim Pedro colocou o navio negreiro à disposição dos escravos para
auxiliar na pescaria. Foi carregado com provisões para um mês, sal, água, azeite
de dendê, cocos, até galinhas vivas foram carregadas, pois ele ia acompanhar a
viagem. Seus dois filhos, mais velhos, tomariam conta da fazenda.
No navio cargueiro havia espaço para muitas provisões, e os escravos
aproveitaram todo o espaço dizendo que no mar se fica com muita fome. Joaquim
Pedro, como sempre, levaria um menino escravo para provar antecipadamente todo
o alimento que desejava ingerir.
Então, a princesa que era conhecedora de seus hábitos mais íntimos e
preparara três moringas de vinagre e outras três com tintura de fava de Calabar
africana, para proteger a criança cobaia, pois agora não tinha como trocar de
criança como vinha fazendo desde o começo na Casa Grande.
O licor de jenipapo era a predileção de Joaquim Pedro e o mar convidava.
Ele entrou em transe, e o menino da cabeça raspada, havia tomado dois copos de
dendê e água morna de cinza para vomitar e algumas gotas da tintura de Calabar
para cortar o efeito da datura.
O melhor é que os quilombolas amarravam uma corda na cintura do menino
e o atiravam ao mar em saudável brincadeira, mas na verdade para o choque
térmico é sinérgico com a tintura de fava de Calabar, bloqueando o efeito tóxico da
datura. Ele não ficou nem amuado pela intoxicação, mas o pobre do português,
cantarolava, tirou a roupa e todos fingiam que nada anormal estava passando.
Chegaram à ilha e ele nem mesmo notou a mesma, nem o mundaréu de
anciãos seus escravos. Ele desceu do barco completamente nu. Duas velhinhas
desmaiaram quando o virão, não pela indecência, mas pela presença do feitor.
Ao saberem do estado do mesmo, se urinavam de tanto rir. Escravos faziam
troça uns com os outros e os quimbundos rebolavam.
O plano era ir, como recomendado, na direção ao nordeste. Eles já sabiam,
que saindo da Ilha dos quilombolas, a bússola tinha de estar em 57 graus e antes
da noite apareceria grande Ilha (Santa Helena). O barco pequeno já partira com a
direção anotada pelo nascimento do Sol, marcado em seu leme. O saveiro zarpou
da ilha na metade da tarde com trinta casais de anciãos que haviam estado na ilha
desde a viagem anterior. Todos estavam felizes e mostravam sua marca ao próprio
Joaquim Pedro ao subir a bordo.
O barco de Joaquim Pedro seguiu na manhã seguinte.
O barco pequeno avistou a ilha no final do crepúsculo, suas velas negras
tingidas com tintura de jenipapo o disfarçavam que era invisível a menos de duas
milhas. Ele contornou a ilha a uma distância segura e continuou a viagem. Na noite
do segundo dia, percebeu que estava indo em direção a uma nova ilha, contornou-
a pelo Sul a uma boa distância, pois esta era a sinistra São Tomé e Príncipe,
poderoso centro negreiro no passado.
O saveiro quilombola mantinha-se de dez ou doze milhas no seu rastro.
Depois de cinco dias de viagem, o pequeno barco avistou o litoral era diferente do
litoral das viagens anteriores.
Aproximou-se e deixou sua carga humana, com mais um bordado feito pela
princesa Fanta, para seus pais, entregou fardos de fumo, barris de aguardente e
oito cachimbos genuínos de raiz de jacarandá para pagar o serviço.
Um dos anciãos que havia aprendido um pouco de árabe, iria procurar um
mercador. O pequeno barco voltou na direção inversa e logo encontrou o saveiro,
que rapidamente descarregou seus passageiros. Ele novamente aproveitando o
manto da noite chegou ao litoral e descarregou no mesmo local os ex-escravos,
agora libertos.
O barco pequeno passou pelo barco grande de Joaquim Pedro e somente
deu as diretivas. Ele esperaria na noite do dia seguinte a chegada do saveiro para
descarregar seus passageiros para o mesmo e imediatamente voltaria para
encontrar com o barco pequeno já retornando.
Os noventa ex-escravos não aguentaram chegar às praias, muitos se
atiraram às águas, ao sentirem pouca profundidade. A festa foi muita. O pessoal
do saveiro trocou dois fardos de fumo por três porcos vivos e algumas galinhas na
praia, carregaram as talhas com água e voltaram para o mar.
Todos chegaram ao lugar marcado ao sul da ilha (Santa Helena). Estavam
preocupados, pois cruzaram por barcos de pesca, avistados à noite pelo reflexo das
lanternas nas velas brancas.
Resolveram pescar ali mesmo. Qual não foi a surpresa, quando começaram
a sentir as redes tão pesadas como nunca antes. Ao puxar a mesma, sentiram que
os peixes eram gigantescos. Não eram os melros, nem dourados ou robalos, eram
atuns, peixes com mais de 300 quilos, que necessitavam ser mortos com fisga e
içados para dentro do barco. Os escravos das charqueadas mostravam sua
destreza. Os lançaços iam olho a dentro dos atuns que pouco se mexiam. Ainda
bem que o barco grande de Joaquim Pedro estava ali, pois seria perigoso para o
barco pequeno e mesmo para o saveiro quilombola colocar um peixe daquele
tamanho no seu interior ainda meio vivo.
Em poucos minutos pegaram setenta e quatro atuns e Joaquim Pedro
tomava mais um licor de jenipapo e datura, alheio a tudo e a todos. A pesca estava
terminada, o peixe salgado. O barco pequeno largou na frente com cinco atuns
limpos pois havia acabado o sal e ele tinha condições de chegar à ilha em três dias.
O saveiro saiu com mais cinquenta atuns salgados para cidadela.
Os céus estavam anunciando tempestade para dentro de dois ou três dias e
ficaria perigoso estar em alto mar.
O barco de Joaquim Pedro usou a Ilha dos escravos como referência para o
retorno e ali foram mortos e assados os porquinhos. Depois da comida zarparam.
Todos a bordo lavavam cuidadosamente e tiravam qualquer vestígio de gente no
mesmo.
Joaquim Pedro resolvera colocar roupa e a cada dose de seu licor, o menino
ia ao seu ouvido contando como fora a pesca do atum.
Depois que a ilha dos escravos não era mais vista no horizonte a cabaça de
licor de jenipapo foi trocada e na comida junto à farinha podia se notar alguns
caroços de fava de Calabar para acelerar a desintoxicação.
Joaquim Pedro chegou em casa normal, orgulhoso com os vinte atuns que
pescara.
Na Casa Grande reuniu a todos para contar havia matado um atum de mais
de 300 quilos com um tiro de bodoque e puxado o mesmo sozinho para dentro do
barco e sangrado.
Arrogante, desafiava: esta negrada de merda. São imprestáveis, precisou eu
ir junto para pescar atum, mas com um olhar distante dizia: o porquinho pururuca
estava delicioso. Um flash de memória fugira ao controle da burundanga. Era bem
verdade, os porquinhos trocados por folha de fumo, assados na ilha estavam
deliciosos.
Todos ficaram assustados, como comer porquinho pururuca em alto mar?
Desconfiaram que era potoca do senhor. Seus filhos, esposa, filhas e netos
incrédulos se entreolham, imaginando ele, tão obeso e desajeitado com um
bodoque acertando um peixe na água, mesmo com trezentos quilos e pior ainda o
matando...
Perguntando ao capitão-de-navegação do navio negreiro, como estava o
porco. Ele disse muito educadamente: Nego num comi carni di proco não. Dá
coceira, Sinhá
Os olhos e ouvidos da princesa fingia brincar no chão da cozinha. Tinha a
cabeça raspada e vestia a camisa de renda. Cabia a ele experimentar a comida
naquele dia.
Fora avisado, que comesse tranquilo, pois era dia especial. Mas o menino
nem sequer sorria, apenas se compenetrava. Ele sabia que na luta pela liberdade
um pequeno deslize pode destruir anos e anos de organização e trabalho.
Assim que a tormenta passasse os barcos voltariam ao mar.
As terras de Joaquim Pedro eram uma referência, na cidadela quilombola
chegavam escravos fugidos das Minas Gerais, da cidade de Salvador e até mesmo
das charqueadas do sul do país. Havia mais de cinco mil escravos, todos
disciplinadamente substituindo os anciãos, esperando seu transporte para a ilha e
para o continente. Havia uma consciência fruto do exemplo, respeito e altruísmo.
Cada vez menos os valentões e ignorantes queriam impor sua vontade e
alterar a consciência coletiva e cada vez menos se utilizava a aguardente de datura
ou para os mais recalcitrantes era servida a farofa de bambá de dendê com pedaços
de baiacu.
O veneno nas vísceras do baiacu é muito violento. Em menos de cinco
minutos estavam totalmente paralisados e a morte somente ocorria oito a dez horas
depois. Este peixinho que sempre vinha na rede e que ficava inchado com espinhos
era juntado a pedido da princesa e colocado em azeite de dendê. Com este azeite
era preparada a farofa e frito o peixe da despedida para os que não entendiam o
Allahu maa es sabirin. A toxina do baiacu* é um dos venenos mais poderosos e
muito usados nas costas litorâneas em todo o mundo, também em Bioko e Golfo da
Guiné, onde o mesmo é conhecido como peixe-sapo.
Agora, o saveiro quilombola tinha autonomia e bússola desde a Ilha dos
Escravos, não necessitava mais aguardar o barco pequeno ir pescar, sair ao mar
ou chegar a Bioko.
Sua logística era fazer quatro viagens até a ilha dos ex-escravos e juntar as
provisões necessárias e fazer uma viagem de retorno com carga completa até o
litoral da África.
O relevo da Ilha de Santa Helena visto desde o saveiro fora esculpido ao lado
do primeiro relevo do continente a estibordo. Havia um forte de Pedra sobre um
monte alto com o formato de um pão-de-açúcar.
Já se sabia da viagem com o navio negreiro que se devia sair da ilha dos ex-
escravos muito cedo para chegar às proximidades da ilha na noite e poder passar
ao norte dela sem ser percebido.
Muitas vezes, a sorte não é companheira e coisas estranhas podem ocorrer.
Foi isso que aconteceu. Uma calmaria depois da saída da Ilha de Trindade deixou
o barco meio dia ao largo e chegou a Santa Helena em pleno meio-dia cercado de
barcos pesqueiros.
Providencialmente haviam trocado a vela negra pela branca, que nunca
haviam usado e era guardada para emergência.
Sem se fazerem de rogados, todos estavam com túnicas brancas e os mais
bem vestidos com túnicas azuis, cabeleiras de crina e eram brancos, na verdade
um pouco amarelos e encardidos.
Foram saudados pelos marinheiros ingleses com batidas de sino e gritos e
acenos de mão ao verem a bandeira do império brasileiro subir ao mastro. Até o
relevo da ilha desaparecer no horizonte ultrapassado eles permaneceram em
oração de agradecimento a Alá.
Nas proximidades de Santa Helena havia, também, um banco de atum, que
fazia desnecessária muita provisão para chegar até ao litoral quatro dias depois,
desde que se pudesse matar os mesmo na rede antes de subi-los ao saveiro, tarefa
que os lanceiros realizavam com destreza e sincronismo militar.
Para se ganhar tempo o Cintra era usado em nova logística ia e vinha em
pesca de três ou quatro dias até a Ilha dos Quilombolas, onde deixava gente e
carregava Atum salgado. Voltava à São Mateus e descarregava. Carregava gente.
Assim a cada seis dias havia uma viagem com mais de 90 pessoas, que tinham de
trazer seus enrolados de paçoca de peixe seco com gergelim, dendê e farinha de
milho, colares de tripa, coquinhos e paçocas e três cocos para cada um, por falta
de espaço.
* Tetrodotoxin (TTX)
O saveiro quilombola seu irmão gêmeo, ficava aportado na Ilha (Trindade) e
fazia o transporte entre a ilha e o continente negro na viagem mais larga.
Normalmente cada três viagens do Cintra era uma viagem do quilombola. Por isso
uma das viagens do Cintra era somente de alimentos e água, cocos, dendê e frutas
secas desde o continente americano e também desde o continente africano.
Assim, os escravos tinham de cultivar muito fumo, pimenta do reino e muita
cana-de-açúcar na sua cidadela, para poder pagar os subornos e trocar com o
pessoal do litoral africano.
O problema era introduzir a cana-de-açúcar no engenho da fazenda, destilá-
la e o pior era retirar o barris. A estratégia era ir substituindo barris de aguardente
velha com aguardente nova e até mesmo barris cheios de água, que futuramente
seriam carregados com aguardente.
Joaquim Pedro via que cada vez mais o engenho trabalhava destilando. Não
faltava lenha, embora a produção era um pouco menor.
Ele mandou cortar mais madeira de óleo para fazer mais barris e cada cinco
barris novos que ele via entrar no engenho, não se dava conta que o conteúdo de
três barris velhos era trocado durante as noites de burundanga, levados ao saveiro
quilombola e transportados para a Ilha.
E isto acontecia, quando, nos finais de semana, todos tomavam o licor de
jenipapo, até mesmo os sacerdotes jesuítas que vinham celebrar as missas
dominicais. Um desses sacerdotes subiu em uma árvore e ficou lá durante toda
noite gritando frases em latim e nos intervalos cacarejando como um galo.
As velas negras do saveiro quilombola, tingidas por jenipapo, já eram
reconhecidas no golfo da Guiné. Todos queriam prestar serviços ao mesmo pelo
seu pagamento de uma arroba de fumo e um barril de aguardente.
Esta recompensa permitia colocar vinte ex-escravos, libertos, no litoral para
procurar sua região, tribo, clã ou familiares.
Quando o assunto era mais sofisticado a recompensa era uma pequena
barrica de cinco litros de pimenta do reino.
Fanta havia ordenado que os nativos fossem transportados à ilha e lá
ficassem aguardando viagem por etnias. Assim os cabindas, benguelas, guinés,
minas, malés, quimbundos, iam em viagens em separados, mais próximos, pois a
cada entrega, mais se conheciam as regiões e mais clãs e tribos vinham às praias
para receber os retornados, muitos que já não praticavam seu idioma e outros que
até mesmo não mais os conheciam. Ela conhecia como ninguém gente e respeito.
Sempre avisando que na viagem seguinte qual seria o povo transportado
para facilitar a localização dos parentes, o que sempre era recompensado com
aguardente e fardos de fumo e pimenta-do-reino.
Na terceira viagem, o saveiro das velas negras chegou a Bioko, mais
precisamente a Rialba.
No porto todos já sabiam que ele trazia notícias da princesa desaparecida.
Uma carta bordada de Fanta foi entregue e chegou à corte com descrição, com a
mensagem em árabe: Salamaaleekum. Logo nos reuniremos para regozijo de Alá,
precisaremos de mais dois ou três navios grandes para transportar umas mil
pessoas. Acompanhem o saveiro até a ilha onde estarão todos os escravos. Meu
comandante dirá o caminho a seguir, se necessário posso deixar um navegador
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Mandinga - Sebastião Pinheiro

  • 1. MANDINGA Sebastião Pinheiro N. prot.: 1176505. Prot. atendimento: 2015-0005025288 Esta história pertence à memória de uma anciã quilombola expulsa da sua terra na ditadura militar em Aracruz pelos interesses da Casa de Windsor. Entrevistada por mim em 1983, onde vive, no Lixão de São Pedro, junto com sua comunidade, na Ilha de Vitória, capital ES. Reedição em PDF/Correções/Imagens: Oliver Naves Blanco setembro 2018
  • 2. Capítulo I São Mateus já era um porto turbulento com uma história longínqua com períodos cimentados sobre morte, desespero, dor e desgraça nos navios negreiros de propriedade e bandeira de ingleses, holandeses e portugueses, que ali aportavam com sua carga. Era o quinto maior porto de comércio de escravos, pela facilidade de transporte pelo rio, que dá nome à cidade, até as Minas Gerais, grande absorvedora de mão-de-obra na época. É comum dizermos que o diabo mais sabe por velho que por diabo. Em paráfrase, podemos, também, afirmar que o "cavalheirismo e civismo ingleses", o são não por educação, cultura ou humanismo, mas por antiguidade e aparelhamento na organização do esbulho, guerra, repressão comercial ou através de seu sistema de justiça. Há muitos capitães-de-mato imitando-os nesta onda de "solidariedade" e voluntarismo. Na região de São Mateus, uma das maiores primeiras propriedades era a de um português de Cintra, de nome Joaquim Pedro com familiares influentes na Corte lusitana e descendente direto de Vasco Coutinho, Capitão Donatário da região. O grande negócio da época era a cana-de-açúcar, mas para a produção de açúcar (!). O que fazia este colonizador comprar constantemente escravos africanos, devido à sua curta vida útil, pelos maus-tratos no degredo e cativeiro. Para pagar aos traficantes ingleses, ele possuía uma das mais belas e grandes plantações de fumo fora da Bahia e um alambique para a produção de aguardente, ambos, com a devida autorização do rei de Portugal e reconhecimento, agora, do jovem regime independente brasileiro. O feitor, embora obeso e afável, era tão tirano e cruel quanto seus pares. Chegou a ter mais de seiscentos escravos. Sentia-se justo, quando reprimia com severidade os revoltados. Recompensado, quando recebia a unção dos jesuítas. Seu pelourinho manchado de sangue cheirava a carne podre. Ele era temido até por capitães-de-mato, índios, negros fugidos e até mesmo pelos jesuítas. As milícias portuguesas de segurança dos pioneiros raramente iam além da varanda da Casa Grande, pois ele a prescindia e o mesmo ocorria com as tropas com as novas cores imperiais. Diziam as más línguas que seu pai alimentava seus cães com carne humana de indígenas após as caçadas. O novo império brasileiro nascia, e tudo ia às mil maravilhas para o feitor de escravos. Embora, em suas terras, não houvesse minérios, a produção agrícola causava ciúmes aos mais poderosos mineradores do novo império. Sua habilidade na administração das terras, plantações de fumo, engenho de açúcar e produção de aguardente era invejada em toda a Província ao sul da Bahia. Em suas terras nasceram as primeiras melancias que os africanos semeavam por toda parte ao longo dos caminhos. Eram as mais doces e vermelhas cobiçadas nos calorosos verões à beira-mar e praça do mercado. Ele, ainda jovem, viu seu pai e toda sua numerosa família ficarem calados quando foi declarada a independência do Império do Brasil de Portugal, esperando não arriscar seu patrimônio, pois não entenderam a manobra preventiva articulada por ingleses e portugueses.
  • 3. Capítulo II Os tempos mudavam, e ele pressentia dificuldades na reposição de escravos, quando os navios ingleses começaram a escassear em suas visitas e ofertas no porto fluvial. Depois até mesmo os oportunistas navios holandeses que aceitavam qualquer mercadoria em escambo pelos escravos, faltavam e os preços da mercadoria humana começaram a aumentar, em função da repressão britânica ao comércio de escravos africanos, por interesse na capitalização industrial. Era uma nova fase para seu império, onde o Sol não conhecia crepúsculo nem escrúpulos. A expressão: "Mais caro que um negro e um cachimbo", passou à história. Joaquim Pedro, era seu nome, assumiu com a morte do pai, não hesitou, pois tinha compromissos a zelar e desejava retornar à Europa o mais rico possível. Aceitou comprar o navio-negreiro do capitão proprietário holandês, desde que ele fizesse uma última viagem transportando escravos para a fazenda. Assim teria pelo menos mais 20 anos de mão-de-obra para seus empreendimentos. O preço era vantajoso: mil e duzentas arrobas de fumo e cem barris de aguardente com dez anos de envelhecimento. O capitão-proprietário holandês queria mudar de ramo, e Joaquim Pedro sabia o valor do seu pagamento nos mercados europeus e mesmo no Rio de Janeiro. No início, o batavo relutou, mas aceitou fazer uma última viagem, trazendo mais cento e cinquenta escravos, pois Joaquim Pedro compraria o navio cheio, para depois usá-lo no transporte de açúcar, fumo e peixe seco para Ilhéus, Salvador, Campos e Rio de Janeiro. O navio abastecido levantou âncora rumo à costa africana. Lá chegando encomendou aos traficantes locais 15 casais Benguelas; 15 casais Cabindas; 15 casais Minas; 15 casais Quimbundo e 15 casais Malé. A maior recomendação aos colonizadores portugueses era dispor de uma diversidade étnica como garantia de segurança nas fazendas, aliado a um tratamento diferenciado entre elas, para através da dissidência poder impedir que a turba de escravos se rebelasse. Com diferentes idiomas, religiões, costumes e tratamento aplicado, havia dificuldade de sublevação, e o controle periódico da milícia garantia a segurança do patrimônio e vida dos habitantes portugueses. O tratamento violento dos feitores ou dos capitães-de-mato destruía a personalidade dos submissos e os tornava mais servis, medrosos e covardes. O riso fácil, adulação, mau comportamento e conduta dúbia são as principais formas de alienação e deformação de caráter encontrados nas vítimas de tortura e submissão. Entre os escravos recém-chegados, havia algo estranho no grupo malês que o experiente comandante negreiro não percebeu, na ansiedade de voltar direto à segurança da costa brasileira. Eram negros de outra etnia, embora dominassem sua língua e quisessem parecer maleses. Na verdade, pertenciam à etnia mandinga, eram membros de uma caravana que trocava sal por cobre, arroz e couro no Alto Níger. O sal da Ilha de Bioko, antes
  • 4. conhecida como Ilha de Fernando Pó, havia deixado a bandeira portuguesa e estava sob proteção espanhola desde o reinado de Carlos III. Seus ascendentes tinham origem no Império Mali, e, também, no Império de Gana, haviam sido deslocados para a Ilha por razões políticas. Nesta ilha, não havia escravidão nem comércio negreiro, há mais de vinte anos, e pequenos reinos africanos viviam em forma de condomínio. A caravana fora roubada e aprisionada por grupos Iorubas na foz Níger e vendida como escravos para um inglês, que já temeroso de perdas a mercadejou com o holandês, que veio costeando a África e embarcou os últimos escravos quimbundos na Costa de Cabinda de onde rumou direto para o Brasil. Entre eles estava uma jovem princesa e seu séquito, cujo pequeno reino estava estabelecido ao sul da Ilha de Bioko, que fica próxima ao Arquipélago de São Tomé um dos principais e temidos centros de tráfico negreiro na região do Golfo da Guiné, superado apenas pela Ilha de Gorée dominada pelos portugueses. Capítulo III Ela tinha, desde muito jovem, o costume de acompanhar os mercadores, para controlar a venda de pescado seco e sal em toda a região. Sabia falar e escrever espanhol e árabe. Tinha conhecimento de inglês, holandês e português e dominava à perfeição doze idiomas nativos do continente africano. Seu nome era Fanta. Sua família havia migrado à Ilha. Eram mulçumanos. Ela sabia que se não ficasse incógnita traria muitos dissabores ao reino pela chantagem dos piratas e comerciantes negreiros, com o pagamento de resgate por sua vida. Ela havia aprendido entre as suras do Alcorão: O inesperado somente é superado em favor daquele que usa o saber e sua organização no tempo e espaço próprio do seu destino. Com sua avó, aprendeu no idioma pulaar a história da Federação que deu origem ao Império do Malí, a Manden Kurufa e como devia orgulhar-se de ser descendente direta do servo do profeta Maomé, Sindiata Keita. Aprendeu, ainda, as histórias de Mansa Mari Djata, que sempre exigia repetição, pelos benefícios que ele trouxe às mulheres. Conheceu a necessidade de transferência para Gana e a devotar a fidelidade de Kangala entre os seus mais recentes ascendentes. A vida é o meio e o fim. A sabedoria e conhecimento devem ser seus instrumentos medidos e controlados por uma ação inteligente. Estes foram os ensinamentos de seu pai além de suas leituras sagradas. Figura: Mulher Mandinga Fonte: http://tomaspegil.blogspot.com/2012/03/senegal-oriental-2012- cuaderno-de-viaje.html (Acesso 03/09/2018)
  • 5. O cruzamento do Oceano Atlântico foi tormentoso, vinte e três dias até chegar às terras do jubiloso Joaquim Pedro, que logo registrou a carga, como propriedade no cartório de São Mateus, na praça do Porto. O holandês partiu satisfeito com seus fardos de fumo e barris de aguardente, esperando não ser assaltados por piratas antes de chegar a Santos em um saveiro, procurando alugar um barco mercante para levar sua mercadoria para a Amsterdã. Afinal a Companhia das Índias Ocidentais iniciara seu capital com o roubo de um galeão espanhol carregado de prata no Golfo do México. Ele fizera bons negócios e teve sorte, agora ia estabelecer-se bem em sua capital e ser respeitado, podendo até comprar um título nobiliárquico. Joaquim Pedro deixou, consciente, o navio ancorado nas margens do rio a poucos metros da Casa Grande, avistado desde as grades da senzala, apavorando ainda mais seus cativos. Nele se podia ler o nome Edwiges Heilige* O séquito da princesa acostumado aos negócios com africanos, árabes e europeus, agia com grande dissimulação e pronunciavam frases quase inaudíveis, quase sempre em bambara, mandé, dogón, soninké, senufo, kikongo, bantú, quimbundo e até mesmo o xisena. Ao desembarcarem, aquela carga humana não eram um grupo étnico divergente ou antagônico. Tampouco eram homens deslumbrados ou fascinados aventureiros desterrados. Durante a viagem, todos foram conscientizados como seria o futuro e como eles poderiam, se organizados, em pouco tempo, montar as estratégias para voltar para casa ou atenuar a humilhação, sofrimento e martírio. No desembarque, havia pouca ansiedade e aflição com a nova situação, no interior, sabiam que ela seria temporária e isto dependia mais do conjunto que de cada um por si. Capítulo IV Na chegada descansaram à noite e pela manhã iria ser celebrada a marcação. Com ferro de marcar gado em brasa, cada um deles iria receber no seu glúteo direito a marca da fazenda, em suprema humilhação e na presença de dois sacerdotes jesuítas, indiferentes aos lancinantes gritos de dor e horror. Eles posteriormente dariam a benção à nova propriedade. A violência e degradação eram maiores porque os escravos antigos riam, faziam troça ou eram indiferentes à agonia dos recém-chegados. Seus atos debochados faziam parte de um "rito de passagem", inconsciente, onde os mais antigos com seu comportamento mostravam superioridade, antiguidade. Contudo, também era inveja por haverem caído antes. Tudo isto era alimento para a cizânia entre etnias. As cicatrizes do corpo fecham rapidamente, as do espírito sangram durante muito tempo, algumas eternamente. * Santa Edwiges
  • 6. Todos perceberam o porquê e importância da catequese feita pela princesa e seu grupo durante a tormentosa travessia oceânica. Os novos escravos, marcados, foram introduzidos em suas atividades. Embora a selva fosse parecida com a africana, havia muitas peculiaridades na natureza. Os africanos, acostumados aos seus pequeninos pés de algodão, ficaram fascinados com os gigantescos pés de algodão, arbóreos maduros, totalmente diferentes. A qualidade dos fios de algodão e tecidos existentes na fazenda era muito macia e bonita. Em pouco tempo, as mulheres, cumprindo uma ordem da princesa, dedicaram-se freneticamente a colhê-lo, tecê-lo em fios e confeccionar rendas e tecidos. As sementes de algodão eram plantadas ao longo do caminho para os canaviais. E já no final do ano muitos escravos que andavam em andrajos ou seminus, estavam com lindas túnicas brancas, algumas até com algumas rendas e bordados. Uns poucos homens começaram a usar sobre a cabeça uma pequena toca de rendas... Eles, após sua jornada de trabalho, traziam na volta do eito, folhas de palmeiras de piaçava e trançavam redes de pesca, com uma disposição, primeiro no escuro, depois foi permitido que os candeeiros continuassem acesos para facilitar o trabalho de confecção das redes. Fanta era muito dedicada e simples. À noite, na senzala, ela contatava, carinhosamente, a todos e procurava saber os dialetos em que podia comunicar-se. Em pouco tempo tinha um controle total da situação, quase uma corte no exílio. Como, até mesmo os escravos não notassem, isto era superior a uma corte, pois não havia vínculo de sangue ou hierarquia, já que ninguém sabia de sua origem. Desde as mais jovens crianças até as mais velhas senhoras, entrevadas pela rudeza do trabalho sofrido, a respeitavam e atendiam seu olhar suave, profundo e solidário. Ela tinha uma predileção pelos anciãos, cultuando sua sabedoria. A um velho escravo ganês que estava sempre às voltas com flores e plantio de árvores, entregou um punhado de sementes de pimenta-do-reino, que trouxera misturada à sua longa cabeleira e na de algumas de outras companheiras, dizendo: isto pode ajudar no caminho para a liberdade. Ele as plantou com carinho e cuidou com muita dedicação. Os ramos da pimenteira cresciam rapidamente no período de chuva. Como os grãos eram poucos, ele começou a podar os ramos e plantá-los como mudas, ampliando e acelerando o seu cultivo. A princesa, agora escrava, quando podia, saía para longas caminhadas, acompanhadas de anciãs e trazia muitas ervas, cascas de árvores e cipós para preparar medicamentos para os mesmos. Sem convencer novos adeptos, ela conseguia, até mesmo, que muitos retornassem ao rito islâmico, impedido pelo poder da igreja jesuíta junto aos portugueses e ritos animistas de outras etnias. Como era uma rendeira e bordadeira, ficou agregada à Casa Grande ensinando às sinhazinhas e escravas os pontos de renda, brocados, tecidos, além de responsável pela costura de roupas para todas as necessidades da fazenda. Trabalhava muito e aonde ia tinha tecido linhas e agulhas nas mãos ou espetados na cabeleira.
  • 7. A segurança de um pioneiro colonizador com escravos era dada por capitães-de-mato e guardas portugueses contratados, além de visitas periódicas da Milícia sediada no Porto de São Mateus. Era o controle do Reino, e agora, também, do novo regime. Além disso, os portugueses na Casa Grande tinham muito medo de serem envenenados, o que fazia com que toda a comida, antes de ser servida, na Casa Grande fosse experimentada por uma criança escrava, obrigada a comer um pouco de todos os pratos e ficar no ambiente, até que a comida fosse servida e a refeição dos senhores terminasse, quando, então, podia retirar-se. Isto não era uma novidade para a princesa, pois em sua corte era adotada a mesma cerimônia de segurança, mas não se utilizava uma criança e sim os próprios cozinheiros. Ao saber desta situação, ela tomou suas mãos abertas e olhou-as profundamente por um instante, pedindo inspiração a Alá. Fanta estava sempre ativa e levava suas costuras e bordados. Na cozinha, discretamente ensinou as velhas cozinheiras a prepararem algumas sobremesas que aprendera com os cozinheiros de navios espanhóis, ingleses, franceses e holandeses em suas viagens e que aportavam para os negócios de sal e peixe salgado no reino de sua família. Ser uma boa quituteira lhe dava um acesso fácil pela gula dos seus senhores. Ninguém deu importância, quando o menino que experimentava a comida passou a vestir uma túnica branca, de fio de algodão, rendada no peito e estar com a cabeça raspada. A camisa fora tecida e rendada por Fanta e ela também raspara a cabeça do mesmo... Como membro da etnia mandinga, ela era conhecedora da antiga arte e ciência da elaboração de filtros, leitura de mãos, olhos e coração dominada há milênios por seu povo, o que os tornava respeitados. Ela começou a atender espiritualmente com uma descrição quase secreta a todos os escravos, em sua angústia, dor e revolta. Procurava fechar as feridas do espírito. Era uma pastora e logo as fugas e brigas entre os escravos desapareceram e uma dignidade interior, com respeito e solidariedade permeava todas as etnias, pois a cada dia a mais eles tinham consciência de sua condição. Os rebeldes a seus conselhos e recomendações eram tratados da mesma forma, mas se por um acaso ameaçassem contar algo ao senhor ou aos capitães- de-mato eram vítimas de providenciais acidentes no canavial, plantação de fumo ou dentro do engenho. E todos sabiam que isto fazia parte da construção dos objetivos maiores e ajustes na harmonia coletiva. Não havia medo ou terror. Em pouco tempo, todos trabalhavam de forma respeitosa, sem serem servis, embora não-conformes, pois não pode haver conformismo ou felicidade na escravidão. O primeiro passo é quebrar a cadeia de degradação, quando se quer alcançar um objetivo.
  • 8. Capítulo V Os tempos nas terras de Joaquim Pedro eram outros. Já fazia um bom tempo, desde a chegada dos últimos escravos, que não havia problemas ou confusões. Agora, até os velhos escravos eram vistos ativos, mas quem ia importar-se com velhos improdutivos que se arrastavam de um lado a outro com ramos, flores, cascas e cipós muitas vezes com pequenas moringas e panelas de barro e vasos de cerâmica. Eles preparavam tinturas em aguardente ou licores; faziam pomadas em gordura de aves; suspensão em água de cinzas; mistura com mel de abelhas e outros preparados com muitas ervas e plantas medicinais que os mais velhos haviam aprendido no convívio com os indígenas tupiniquins e tapuias da região durante as fugas, até as recapturas. A farmácia da senzala logo passou a ser usada para curar até a família da Casa Grande e todos os escravos da fazenda e até mesmo os das vizinhanças com tratamentos para queimaduras, fraturas, cortes, infecções, picadas de insetos e víboras, alergia a plantas tóxicas, problemas de parto, e principalmente, febres e doenças infantis. Tudo era dissimulado com suavidade, disfarçado para evitar as energias negativas da prepotência e ignorância do poder tanto do feitor e seus filhos, como dos jesuítas controladores e melhores iluminados pelo saber ordenado e corporativo. Em contrapartida, crescia o saber interior na sociedade dos escravos. Este estava cada vez mais dentro de cada um e à disposição de todos de forma orgânica, para servir com responsabilidade, pois todas as decisões eram coletivamente assumidas. Quem não gostava daquela paz e tranquilidade eram os capitães-de-mato, recompensados por suas capturas. Um dos capitães-de-mato, o mais malvado, sofreu uma lição. E esta serviu para sublimar os escravos menos ativos, aumentando suas ações harmônicas de coesão. O facínora gostava de maltratar crianças e anciãos entrevados impunemente. Teve um fim terrível: certa manhã um dos meninos de cabeça raspada, que usava a camisa rendada, esgueirou-se da senzala levando uma pequena moringa de cerâmica lacrada, cheio de licor de jabuticaba por um caminho rumo à Casa Grande. O capitão-de-mato exigiu do menino a entrega da moringa. Ante a recusa o agrediu com cascudos e tomou o vaso. O menino choramingava, suplicava a devolução, senão ia ser castigado no Pelourinho. O capitão de mato ria. Tomou um gole. Como era muito gostoso, tomou mais dois. O menino deixou de choramingar. Ficou sério. Esperou um momento e ordenou, no dialeto wolof do próprio capitão-de-mato: - devolva-me a moringa e me acompanhe. O capitão o fez sem pestanejar ou sequer pensar. Algumas horas depois chegou à Casa Grande nu. Caiu do cavalo e ficou apopléctico na entrada da varanda. Seu baixo ventre começava a inchar. As coxas,
  • 9. logo, mais pareciam um sino. Foi levado para a senzala. Mas começou a feder e como gritava ininterruptamente foi levado para baixo de uma mangueira onde foi atendido pelo velho escravo ganês, muito respeitado por seus conhecimentos e tratamentos. Ele examinou o desnudo capitão-de-mato. Sua genitália estava maior que as melancias da fazenda. Depois de um minucioso exame, foi taxativo: picada de surucucu pico-de- jaca e bem na ganda - kooy (glande), disse no dialeto wolof para que a vítima entendera que, este estava maior que um coco. É raro, filosofou o ancião: essa cobra não ataca. Ele deveria estar "obrando"* em cima do ninho dela. O velho escravo mina era muito matreiro: ou devia obrar muito fedido. O silêncio punitivo se espalhou entre os escravos. Não era um silêncio risonho, pois uma punição é diferente de repressão. Todos, já há algum tempo, sabiam que as punições não podem ensejar degradação. O menino-isca havia lavado muita bem sua vasilha de licor e a enchera de urina para cortar os efeitos do veneno como fora determinado, nem lembrava mais dos cascudos que recebera, apenas acariciava o rendado na camisa, da esquerda para a direita, como se estivesse lendo com os dedos. Olhava como se nada acontecera. Apenas refletia sobre a dor, o exemplo e aprendizado para se alcançar o objetivo. Era a consciência coletiva adensando seu poder, pois não há conformismo ou felicidade na crença ou ideologia. O diagnóstico do velho escravo ganês foi: vai aguentar mais uns cinco ou seis dias mais. Tudo vai apodrecer e cair. O paciente gritou tomado pela febre dia e noite, até que a gangrena o matou na entrada do sexto dia... Joaquim Pedro sentiu a perda, pois era o seu melhor capitão-de-mato, mas como as coisas estavam tranquilas tinha tempo para procurar um substituto. Sem heresia, parece que muito não adiantou, pois na semana seguinte quatro escravos dos recém-chegados foram trazidos à senzala com as pernas inchadas, muito inchadas. No segundo dia Joaquim Pedro foi até eles e o velho escravo disse não passam desta noite e mostrou onde as duas presas da víbora haviam perfurado, na verdade fora feito com espinho tóxico e cipó. O cheiro de podre era insuportável, pois eles haviam mutilado o infeliz capitão-de-mato, antes de seu enterro e colocado suas partes apodrecidas sob as palhas de suas camas. Depois do velório, os tambores pararam e o enterro foi pela madrugada, mas, na verdade o que estava sendo enterrado eram troncos de bananeira enrolados em palhas e esteiras amarradas, como se fosse gente. Parecia que a bruxa estava solta. Os jesuítas foram chamados para benzer a Casa Grande, Senzala, plantações e engenho e levaram suas “patacas” de prata. Os quatro com a alergia nas pernas provocada por contato com um raríssimo cipó irritante, foram tratados com gordura de jiboia. O velho escravo mina (ganês) era um mago. * defecando
  • 10. Os “mortos” foram para as grotas, a começar a construir a cidadela quilombola. Havia muito que fazer e eles eram poucos. Logo, algumas infelizes surucucus pico de jaca foram mortas e trazidas até a Casa Grande e expostas como responsáveis pela desgraça e perda do capital semovente do senhor de escravos, garantia fiduciária aceita pelos bancos britânicos e reconhecida como poder pelos bancos brasileiros. Os escravos por livre iniciativa construíram enormes panelas de barro com tabatinga do fundo do rio pisada. Eram panelas com capacidade de 400 litros. Elas foram queimadas e levadas para a praia, onde foram cheias com salmoura, já muito evaporada nas lagoas artificiais à beira do mar. Com o sol, a água do mar evaporava, mas todos os dias as crianças repunham a água do mar evaporada e não deixavam a água da chuva entrar protegendo-as com palmas secas de dendê. Em duas semanas eles estavam até a metade de puro sal marinho. Era uma prática tradicional em Bioko. A propriedade de Joaquim Pedro comercializava algo de peixe salgado, mas o sal era muito caro e a atividade de pesca era fluvial e salga de peixe era muito incipiente e a produção de sal era mínima, pois região era chuvosa. Os carros de bois traziam o sal e novamente os vasos eram cheios com água do mar. Joaquim Pedro gostou muito da inovação e seus filhos mais ainda, pois o sal era o ponto nevrálgico para a produção de peixe salgado, que ele conseguia produzir para o consumo e menos de cem barricas por ano, para venda, todo ele pescado no rio. Mandou que os escravos fizessem mais dez panelas gigantes. Contrariados começaram a recolher a tabatinga do fundo do rio e amassar para atender o sinhô. Fizeram as dez panelas gigantes e transportaram clandestinamente muita tabatinga para a cidadela aonde os que iam chegando aprendiam a fazer as panelas, talhas e utensílios que a população quilombola necessitava para guardar suas provisões, água limpa e outros. Agora, na Fazenda, como tinham mais sal do que necessitavam, os escravos de Fanta sugeriram poder pescar à noite com suas redes, fazendo uma jornada dupla por vontade própria. As redes eram as primeiras que Joaquim Pedro via. Eram de piaçava e fibra de cânhamo trançado cultivado cada vez mais em suas próprias terras com sementes trazida na cabeleira dos escravos. Autorizou satisfeito, sem perceber a indução, manipulação e condução que os escravos haviam construído sobre a sua cobiça. Agora eles podiam ir e vir com maior liberdade até a praia. Ampliando seu espaço vital, sem denotar poder. Capítulo VI As sementes de cabaças começaram a ser semeadas. Na colheita, com grande cuidado uma a uma foram eliminadas as que não tinham sonoridade. Com muito cuidado a cabaça foi cortada para dar a forma. Foi conseguido um fio de cobre ligando as extremidades de um arco de madeira e fabricado o primeiro Mvet. O orgulhoso luthier entregou-a ao "griot". Ele começou a afiná-la. Logo passou a
  • 11. cantar e afinar e cantar experimentando a qualidade e as modificações necessárias. Logo todos estavam em silêncio escutando uma saga antiga. Alguém desafiou o luthier a fabricar um Qanun. Ele sorriu. Foi visto nas semanas seguintes procurando os escravos marceneiros e recolhendo madeira seca. Batia nas varinhas e as punha ao ouvido. Depois passava largos períodos no engenho em suas tarefas controlando a produção de aguardente e simultaneamente com pedacinhos de madeira fazendo o instrumento. Teve a ajuda de velhos escravos, já entrevados. Algumas semanas depois apresentou o instrumento e começou a procurar alguém que soubesse tocá-lo, pois ele apenas o conhecia, mas não tinha grande experiência. Houve uma aclamação quando a princesa tomou o instrumento e começou a tocar e cantar. O som mavioso ia muito além de um lamento ou tristeza. Era um canto esperançoso. Logo muitos dos velhinhos estavam animados, sorrindo e cadenciando suas mãos. A Cidadela já não era espaço de escravos fujões, havia uma nova atmosfera cultural. Fanta solicitou que se ensinasse a todas as crianças a tocar os instrumentos além da tabla e derbakke*. Voltaram antes do sol nascer, com mais de seiscentos quilos de peixe, alguns com trinta e quarenta quilos. Antes a pesca era somente fluvial, pois o mar ficava a três léguas de distância. No rio os peixes não superavam nunca mais de dois quilos nas margens do porto. Eram traíras que tiradas da água logo apodreciam e não serviam para salgar. Ninguém notou, nem mesmo as crianças que tudo veem. E veem com outros olhos: uma parte de peixes pequenos estava salgada com sal e cinzas em uma técnica tradicional mandinga da Ilha de Bioko pouco conhecida. Eles eram a base para a paçoca, com farinha de milho, gergelim e dendê, dos marinheiros que passavam vários dias no mar, sem acesso a água-doce. O trabalho no mar era muito rentável e eles podiam se deslocar até lá pelo próprio rio. Aquilo seria muito rentável, pois os restos do peixe iam para a refeição da senzala, já que eles sabiam aproveitar tudo. Lucro dobrado matutava Joaquim Pedro, que mandou que fosse cortada madeira especial para fazer um barco de oito metros para auxiliar na pesca, já pensando que poderia produzir mais de dez mil barricas de peixe salgado por ano para o Rio de Janeiro ou para o reino, pensando em uma escala, pelas vantagens comparativas em função da produção própria de sal. No golfo da Guiné desde a antiguidade, havia muitos estaleiros, então fazer um barco de oito metros era algo simples para aqueles escravos. Os escravos cortaram as árvores e serraram a madeira; fizeram os cravos e recolheram resinas. Fizeram ferramentas, trabalhando dia e noite. Tudo com uma rapidez que fugiu ao controle do feitor, seus filhos e seguranças. O resultado é que fizeram um barco perto da Casa Grande e outro gêmeo na cidadela. Ambos idênticos, pois, também, através do trabalho controlavam o feitor que pouco e nada entendia de construção e provisões de matéria-prima e sua transformação. Ele estava acostumado a exigir o produto final e se apropriar dele, sem avaliar o sacrifício para fazê-lo. * tambores tradicionais
  • 12. Os barcos tinham até mesmo encaixe para um mastro central, disfarçado por um tarugo de madeira, bem justo, apresentado ao feitor como responsável pelo equilíbrio para evitar que o barco virasse com o vento. Uma explicação convincente. O que para o feitor era uma boa ideia e dela se apropriou nas conversas e explicações para os visitantes na Casa Grande, esbanjando bazófia sobre o seu conhecimento na construção náutica. Os quilombolas, antes de saírem para a primeira pescaria com o barco gêmeo, ficaram durante dez dias preparando a grande viagem, treinando as atribulações que iriam encontrar no mar. No solo cavaram uma maquete do barco de pesca, em tamanho natural e com todos os barris de água, alimentos, redes, ali permaneciam durante o dia e à noite, estudando detalhes e situações, criando dificuldades e trazendo opções para sua solução. Discutiam as correntes marinhas para o Norte de água fria; a corrente de água quente que arrasta para o Sul. Mar adentro, há calmaria. Era necessário o controle cuidadoso das velas, caso avistassem algum navio. Capítulo VII Em um canto do engenho com entrada trancada por uma pesada porta havia uma escadaria que levava a um porão com paredes de pedra e totalmente escuro, apenas com uma vigia pequena de entrada de luz. Era a adega de Joaquim Pedro. Ali, ele guardava os seus maiores valores: barris de vinho do Porto e azeite de oliva, que junto ao bacalhau e cortiça eram das poucas coisas portuguesas que o mundo não prescindia. Nela os escravos não podiam entrar, pois recebiam os tonéis à porta para transportá-los à Casa Grande. A curiosidade era grande e um dos meninos foi amarrado pela cintura e desceu até o interior da adega com a finalidade de levantar seu interior e trazer amostras dos conteúdos. Os dois litros de vinho do Porto de cinquenta anos, encantou a todos, os dois litros de azeite de oliva por seu perfume e sabor deixou-os também extasiados. O velho Mina recebeu o botim e se pôs a trabalhar com frenesi. Era necessário decodificar aquela riqueza. Não se impressionava facilmente e quando provou o azeite lembrou-se do azeite da palmeira de tucumã, logo corrigiu sua sensibilidade e observou que o mesmo era idêntico ao azeite da palmeira de patauá*. A ordem que recebeu ao apresentar seu relatório foi de que a produção de dendê deveria ser suspensa na época de frutificação da palmeira e o prensado de seu azeite ser prioritário. Não entendeu bem, mas assim foi feito. Em uma noite de burundanga as pesadas portas da adega foram retiradas e tonéis de azeite português foram substituídos pelo de palmeira. Na Cidadela passou-se a utilizar o azeite de oliva, principalmente para a retirada da marcação e fortalecimento da pele, para o qual era superior ao azeite de dendê. As crianças não * Oenocarpus bataua Martius
  • 13. gostaram, pois com o mesmo não havia bambá para sua festa e alegria, mas a estratégia era elevar o espírito da comunidade quilombola nascente. O desenvolvimento de inovações tecnológicas garante o sucesso, mas o velho mandinga estava completamente perdido, fazer um vinho em meio a um monte de muçulmanos e outros somente tomadores de aguardente recém elaborada. A estratégia de Fanta foi que, assim que o substituto do vinho do Porto fosse encontrado, se levaria diretamente à mesa da Casa Grande, substituindo os mesmos nas licoreiras e se observaria o resultado. A fórmula encontrada foi fantástica: fruto de pau-ferro, colocado em aguardente recém elaborada, raspas de pau-de-óleo, poucas flores de cânhamo, fruto de tintureira*** e armazenamento debaixo da terra por 30 dias. A tinta do fruto do pau-ferro dissolvida em água dava a cor e o grau de álcool. A adição de mel de abelha urussu garantia o doce e o aroma. Raspas da madeira de óleo precipitavam o excesso de tanino sobre a madeira e suavizavam o buquê. O primeiro uso foi em um domingo normal e todos sentiram a qualidade do mesmo na sobremesa. O grande teste foi quando o arcebispo português de Salvador visitou a fazenda e ficou encantando, pois já provara vinho do Porto de cem anos no Vaticano, mas nunca havia experimentado nada igual. Exigiu levar um barril para Salvador, para o orgulho e devoção da família de feitores. A sorte é que o previdente velho Mina já tinha substituído três barris e enviado para a Cidadela, para os cultos religiosos africanos, onde a aguardente era substituída pelo famoso vinho deleitado nas mesas mais fartas da Europa e Mundo. Com autorização, uns escravos saíram para a pesca, seis homens e três meninos, foram para o norte e chegaram à foz do rio Jequitinhonha em Ilhéus. Voltaram com peixes medianos. O barco gêmeo saíra durante a noite anterior, passara frente à casa grande, pois os cães de guarda haviam recebido o resto da refeição da Casa Grande e como eles dormiam profundamente... O barco gêmeo com sua tripulação de quilombolas da cidadela foi para o Sul. Fizeram seu levantamento topográfico e chegaram até o rio Paraíba do Sul e cidade de Campos dos Goitacás. Ambos voltaram carregados de peixes, cada qual para o seu destino. O barco gêmeo quilombola passou à noite da mesma forma como fora, pois, novamente os cães de guarda dormiam. Depois do levantamento litorâneo exaustivo, eles passavam pela praia e pescavam com rede miúda alguns peixes pequenos e chegavam com o ar cansados, desolados, famintos e com pouca pesca. A frase que repetiam para poderem conseguir mais espaço de liberdade e ficar mais tempo no "mar" "o peixe grande está mais no fundo" já desnorteava Joaquim Pedro. ** Phytolacca decandra
  • 14. Capítulo VIII Duas situações estavam constrangendo os pescadores nas viagens mais longas, a primeira era a falta de espaço pelos alimentos necessários, que impediam um bom trabalho. O desenvolvimento de paçocas auxiliou muito, mas ainda era incomodo os enrolados de folhas de bananeira presos a cintura. A outra era na hora de defecar. Preocupados, passaram a estudar um alimento mais concentrado que solucionasse os dois problemas. O cozimento de peixes em dendê, sua moenda em pilão com farinha de milho, gergelim e novamente até a formação de uma pasta que endurecia ao esfriar foi o caminho. A questão era onde guardá-la. A casualidade providenciou a solução: os meninos escravos tinham o costume de colocar o coquinho de jerivá, tucumã ou catolé depois de roídos dentro do dendê para cozinhar a parte interior que ficava facilmente extraída pelo olho de germinação. Isto era um dos deleites das crianças. Observando um destes coquinhos vazios, o velho mago Mina solicitou que todos os coquinhos vazios fossem entregues a ele. Lavou-as bem, deixou secar e perfurou com uma agulha em brasa. Colocou uma a uma em um fio de algodão trancado e mergulhou na pasta concentrada. A massa penetrava no interior do coquinho. Depois de esfriado, o mesmo era limpo e mergulhado em cera de abelha derretida. Alguns escravos passaram a testar o colar na cidadela e com a aprovação, pois havia diminuído até mesmo o constrangimento, pois diminuíam as defecadas em alto-mar. Mas, o que ninguém esperava era a contribuição científica da cozinheira da Casa Grande que trouxe grande quantidade de tripas de galinhas, lavadas, viradas e tratadas com limão. Elas eram cheias com a pasta e as rações controladas com nós e todos formavam um colar. A inovação foi aprovada e seu nome foi dado “tasbih”. Nas viagens longas sempre os pescadores levavam colares de bolas de tripa ou coquinhos. Faltava o levantamento topográfico do oceano e isto era o mais difícil, mas não impossível. A produção de peixe salgado começava a crescer. Na senzala a alimentação melhorava com os restos dos peixes salgados e os peixes miúdos muito bem escolhidos. O negócio era cada vez mais lucrativo para ambas as partes. Mas não há bem que sempre dure ou corda que não se rompa. Na terceira viagem, o barco da fazenda saiu e não voltou pela manhã, nem durante o dia. Na senzala a gritaria, lamúria e cantoria de cantos fúnebres cortou toda a noite. As lamúrias eram tantas que nem sequer Joaquim Pedro teve vontade de impedir o barulho, mas estava, na verdade, mais preocupado com o valioso barco que perdera. Estávamos em outubro, com a família resolveu iniciar uma novena para São Judas Tadeu na ânsia de recuperar seu patrimônio e semoventes.
  • 15. Ele, nem os seus notaram os pequenos colares de coquinho no pescoço dos escravos nem viram carregarem dezenas de cocos frescos na beira da praia antes de partir. No final do quarto dia, pela noite o barco gêmeo chegou à cidadela e pela madrugada o de Joaquim Pedro aportou carregado de peixe fresco de tamanho mediano. Estava feito o primeiro levantamento do Oceano. Em terra houve uma explosão de alegria, felicidade, os atabaques rufaram avisando a todos. Os escravos orgulhosos carregavam e tagarelavam sobre a abundância de peixe. Os que desceram do barco se ajoelhavam pedindo perdão ao patrão: uns falavam doninké, soninfo, mandinga, outros wolof, kikongo, xichonga. Os quimbundos sempre mais alegres, fazendo troça cênica dançavam rebolando, imitando o vento horrível que os havia arrastado para mar adentro e o perigo das baleias, tubarões e golfinhos e até sereias. O vento é a natureza, mas São Judas Tadeu é o poder da fé, refletiu Joaquim Pedro. Pediu à esposa que lembrasse de mandar rezar uma missa especial na senzala quando os jesuítas chegassem à Casa Grande. Joaquim Pedro discutia com a família, entusiasmado pois, a informação induzida era que quanto mais mar adentra, maiores eram os peixes. "Sinhô, os robalos de setenta quilos foram os últimos pescados. Nós voltamos, quando faltou comida e água e o vento amainou. A gente tava com muita fome, sinhô." Uma pequena quantidade de peixinhos espinhentos estava separada dos outros. Os mesmos, aumentariam a quantidade dos outros iguais que estavam na Cidadela, onde seriam estudados, pesquisados e usados quando necessário. Era lá, também, que as cordas e o pequeno mastro ficavam escondidos, junto com as velas de cânhamo, que permitia aos dois barcos gêmeos aventurarem-se muito adentro do Oceano. Joaquim Pedro, muito satisfeito com a explicação, julgou que não havia razão para castigo, afinal havia peixe fresco e até algumas lagostas vivas que mereciam a comemoração. Não havia necessidade de intimidação, nem porque relaxar a ordem: mandou todos trabalharem no eito, antes de comerem. A produção de açúcar aumentava mais, pois o que antes era feito por oito escravos, agora bastavam cinco e também, havia menos rebeldia entre os escravos. Os escravos que foram transferidos para cidadela e que para a Casa Grande haviam morrido, junto com os atraídos, já somavam mais de trinta. Em sua totalidade eram velhinhos e velhinhas desgastados pelo trato rude e alimentação escassa. Eram merecedores de descanso. Estavam rejuvenescidos com o bom tratamento e alimentação abundante. Eles eram algumas vezes substituídos, por escravos fugidos famintos e errantes encontrados ao longo do litoral e trazidos pelo barco gêmeo. Depois de sua adaptação à nova situação os interessados eram atraídos para a causa trabalhando na Fazenda. O ato de marcação era o ponto máximo do exercício de poder tirânico, ao reduzir o indefeso a suprema humilhação e flagelo. Alertando que poderia chegar ao extremo de proximidade à morte, cuja margem não era ultrapassada somente por uma questão econômica, nada mais.
  • 16. Como o controle de escravos na fazenda era feito através das marcas. Cada Fazenda tinha sua marca, que era a mesma dos bovinos e bestas da Fazenda, que todos os escravos tinham no glúteo direito. A marca da Fazenda de Joaquim Pedro era um anagrama das três letras de seu nome. Uma letra jota maiúscula, da qual saía do mesmo eixo para o outro lado, na parte superior, mas um pouco abaixo a letra p, também maiúscula. Neste eixo era cortado pela letra C maiúscula do sobrenome Cintra, mas de forma invertida ou espelhar no seu terço final. Joaquim Pedro passara mais de um mês e a refizera três vezes para que sua marca fosse aceita e registrada no cartório. Isto garantia direitos e evitava as disputas entre senhores de escravos, roubo ou fuga e abrigo a fujões de outras fazendas. A arte de esconder as marcas antigas e fazer marcas novas era a base do sucesso de introdução de escravos na fazenda de Joaquim Pedro, desde a cidadela, sem que fossem notadas. Os que vinham de fora para perder a marca antiga recebiam um tratamento especial, muito especial. Para eliminar as cicatrizes da marca anterior, se aplicava uma sequência de seiva de algumas plantas, que comiam os tecidos das cicatrizes, enquanto os tecidos sadios eram protegidos com cera de abelha e de palmeiras. Antes o paciente recebia uma cuia cheia de vinho do Porto de cinquenta anos, legitimo, da adega de Joaquim Pedro, deleite de bispos, papas e nababos. Como "anestesia" uma generosa dose de vinho de arac, feito imitando o verdadeiro de Timbuktu, que leva tâmaras e flores de cânhamo. O vinho de arac quilombola era feito com frutos de jerivá e as mesmas flores de cânhamo, mas em maior quantidade. O tratamento da retirada da marca era tão gostoso que o paciente, queria logo receber sua nova marca. Mas era obrigado a um descanso e uso de unguentos para fortalecer a pele e tecidos, quando novamente o velho ganês dava o vinho de arac e também alguns licores com tinturas de diferentes ervas ao “paciente”, pois o ferro em brasa era muito mais forte e não havia por que sentir dor. Com a nova marca sem dor se destruía a primeira marca, vencendo o tirano. Alguns escravos abusados até sorriam quando o ferro marcava as carnes. Depois, pomadas, tinturas, ervas e muito azeite de oliva português tratavam, até o paciente receber alta e ter sua transferência para a fazenda e engenho onde era introduzido cautelosamente com apoio logístico de todos os outros escravos. Em paralelo era ensinado o comportamento na fazenda, detalhes da organização e quem ele substituiria, seu nome e costumes, até mesmo dialeto, para assumir sua identidade. O trabalho mais difícil e importante era retirar a dor espiritual da marcação anterior. A retirada da marca espiritual era um rito lento que eliminava a revolta, ódio e substituída pela lenta construção da vingança, onde o indivíduo era apenas um instrumento dentro de toda uma harmonia. Mas o que mais levantava a moral, era saber que todos teriam suas marcas finalmente retiradas antes da viagem e que chegariam de volta a sua terra com a recuperação da honra e vingados.
  • 17. Esta era a parte mais importante, pois isto fortalecia a organização subterrânea. Alcançar a liberdade e muito diferente de alcançar o poder. Na fazenda de Joaquim Pedro, havia uma atmosfera em desenvolvimento. Uma situação muito diferente, mas somente os velhinhos e velhinhas entrevados compreendiam em seus olhares. Eles significavam a cumplicidade de perceber o imperceptível e com o doce olhar controlavam tudo inclusive os jovens mais afoitos. Ninguém estranhou quando Joaquim Pedro determinou que mais sal, comida e água doce fossem colocados no barco a remo que saiu para a pesca nas semanas seguintes. Exigir que o peixe fosse limpo em alto mar para que menos alimento chegasse na senzala e ele obtivesse maior transporte e lucro era seu objetivo, além de exercício de ódio e tirania. Tampouco houve desespero, quando o barco não voltou no sétimo dia e somente chegou no décimo dia com o dobro de peixe a quase totalidade dele já limpa e salgados, somente alguns peixes eram transportados presos dentro de covos vivos para agradar a Casa Grande. À noite, a novena foi para São Jorge padroeiro pela bem-aventurança, pois o feitor logo enterraria mais uma botija de ouro em algum lugar da Casa Grande. Capítulo IX Joaquim Pedro estava tendo sucesso na gestão de seu engenho, terras e pesca. A chegada foi, novamente, exultante, pois foram quatro dias sem notícias. Alguns chegaram fazendo que estavam mortos de fome e doentes. Novamente o mastro foi dissimulado e as velas levadas pelo barco gêmeo. O melro tinha mais de cento e cinquenta quilos e chegara vivo à fazenda. Joaquim Pedro sentiu vontade de enviá-lo para a capital, mas não havia como, mandou salgá-lo. Na Casa Grande, uma criança de cabeça raspada fingindo que brincava com sementes de olho de boi falava sozinho bem baixinho, no chão, ao lado da princesa que bordava uma manta para Sinhá. Não era brinquedo, era o relatório da viagem e o que para todos eram palavras inteligíveis, na verdade era bantú: - foi encontrada a Ilha dos Rochedos e monte alto. Está inabitada. Foram vistos em alto mar barcos grandes viajando para o norte e para o sul. Não fora visto nenhum navio negreiro. As velas funcionaram, era preciso uma cobertura para evitar o Sol escaldante. O cálculo é que se necessita de comida e água para três dias para ir e vir, então necessitamos de um barco com o triplo do tamanho deste. Terminado o relatório, sem desfaçatez, a criança pediu leite, ganhou uma banana e a princesa o pôs para fora delicadamente. Havia muito que fazer, ela estava satisfeita com o domínio da nova língua. Na preparação do almoço era comum a princesa suspender o trabalho com suas rendas e tecidos e ir ajudar as velhas cozinheiras. Quando percebia, por volta do meio dia que Joaquim Pedro estava chegando à Casa Grande, colocava mel misturado com alecrim sobre a chapa quente do fogão, para induzi-lo à cozinha.
  • 18. E conversava em voz alta com as cozinheiras, pois na Casa Grande só se podia falar em português, que ela fingia não dominar bem: se pescadô tem barco grande, pesca por mais tempo e traz mais peixe não pricisa ir a cada lua é só sargar. Né verdade mãe Ngmena! Joaquim Pedro fingiu que não ouviu, mas ficou curioso: durante o período de produção de açúcar a pesca tirava um grupo de escravos importante e isto era ruim, mas sem os restos de peixes na comida da senzala a produção caía muito. A solução é construir um barco maior, pensou. Melhor ainda podia pegar o navio negreiro que estava no porto do rio sem atividade e colocar as velas, ver quais os escravos que se saiam melhor e ir pescar com eles. Afinal, tinha algum conhecimento náutico e levaria mais uns quatro ou cinco amigos bem armados e avisaria a marinha imperial de sua nova empresa. Antes do jantar, a criança de camisa rendada e cabeça raspada foi trazida para experimentar a comida. Comeu todos os bocados e aguardou sentada no chão da cozinha à vista dos senhores, aguardando a ordem de retirar-se. Saiu e foi direto e devagarzinho para os braços do velho Mina. Ele havia dado ao menino bambá (farofa de dendê) antes de ele ir para sua tarefa. A criança recebeu uma cuia de água morna com sal e cinzas de fogão. Imediatamente começou a vomitar. Vomitou até o bambá. Foi-lhe servido um chá de farinha de fava de Calabar* e colocado para dormir. Na casa grande, na varanda Joaquim Pedro e seus filhos sentados com seus licores conversavam. Uma voz falando o seu português disse ao seu ouvido: é melhor construir um barco novo com os escravos. - Repita: e Joaquim Pedro repetia. O mesmo foi feito com os dois filhos e eles repetiam. Foi dito aos três que fossem dormir. E eles foram dormir. Na manhã seguinte, todos, na casa grande acordaram tarde e com muita fome. E a primeira coisa que disseram foi: é melhor construir um barco novo com os escravos. Os filhos queriam comandar a construção do saveiro ou escuna e foram autorizados para o orgulho do seu pai. Novamente saíram com escravos para cortar as árvores, serras as tabuas, mastros, preparar as ferramentas e começar a construção do barco. Em menos de três meses dois belos saveiros estavam construídos: um na Casa Grande e outro na Cidadela. Entretanto, enquanto isso Joaquim Pedro continuava organizando as pescarias. O último resultado foram seis dias pescando em alto mar. Com uma carga de quase uma tonelada de peixe salgado. Os escravos pegaram um cardume de dourados com as redes de piaçava e cânhamo que haviam levado. Da janela da Casa Grande a princesa pensava: se eles trouxeram isto para cá, o que não levaram para a cidadela. Dias após a volta o grupo de escravos mandingas foi visto defumando dourado. A cozinheira combinou com a sinhá preparar um peixe defumado assado * Physostigma venenosum
  • 19. na Casa Grande, pois a semana fora muito pesada com porco assado, grossas sopas e gordurosos ensopados e galinhas à cabidela. Antes da comida ser servida lá estava um menino de carequinhas com a camisa de renda, era parecido com o que fizera a prova no almoço, mas menos parecido que o que fizera a prova na janta anterior. Ele depois de cumprir todo o ritual da experimentação dos pratos e esperar a refeição terminar foi levado para os braços do velho mandinga e seus vomitórios. Joaquim Pedro, toda a família e até os cães de guarda comeram tanto que sua sesta foi até a manhã seguinte. Enquanto toda a casa grande dormia, nove escravos celebravam o início do mês sagrado do Ramadan. Formando um círculo e com braços enlaçados e passos compassados dançavam, girando contra os ponteiros do relógio, um mais velho com uma túnica verde dizia no centro: "Allahu maa es sabirin" e todos repetiam. O chefe religioso voltava a dizer "Allahu maa es sabirin" e parava como suspenso no ar e todos continuavam: "Va lihalli el machreq va el maghreb e aceleravam o giro contra os ponteiro do relógio. Depois da celebração, a princesa chegou discreta e acompanhada de duas crianças e fez a saudação: Salamaleicum! Diante do olhar severo de um dos mais velhos usou o dialeto palaar que aprendera com a avó: são meus olhos, meus ouvidos e não tem boca. As crianças fingiram não entender as palavras. O robusto mandinga falou pausadamente: Já fizemos três viagens até as ilhas dos Rochedos que está a três dias no barco pequeno. É a mesma de nossa viagem. O velho marinheiro de Bioko observara que o capitão negreiro holandês viajava sempre contra o nascimento do Sol. Eles haviam passado naquelas ilhas cinco dias antes da chegada. Lá não tem nada, só pedras, mas se pode juntar água doce, pois chove e há uma pedra alta de mais de quinhentos metros, onde se avista muito longe e se pode ver barcos indo para o sul e para o norte. A ilha está totalmente abandonada. Nosso barco pequeno pode chegar ao litoral em dez dias, mas não tem como levar comida e gente para todo este tempo. Quando o novo barco ficar pronto poderemos começar fazer a travessia, enquanto isto, levemos as talhas de água e provisões para a Ilha deserta em viagens continuas. Na maior, conseguimos uma caverna pequena, podemos ampliá-la com ferramentas para guardar os mantimentos protegidos dos animais. As viagens dos barcos pequenos de ida e volta à Ilha demoram três dias, mas é muito cansativo e o sol é muito forte. Salamaaleekuum! Ela assentiu, sorriu e começou: os jesuítas fizeram a visita e somente voltaram dentro de uma lua cheia. A milícia de segurança somente chegará em uma lua deverão ser vigiados até deixarem a região. O barco sai na noite de lua minguante e não poderá ter uma carga muito grande, para ter velocidade. A comida e água deverão ser mínimas. Precisamos levar dez casais de velhos de volta para casa e o barco deve voltar o mais rápido possível, aproveitando os ventos desta época. Vamos fazer mais sepulturas no cemitério e festejar suas passagens, enquanto outros ficam escondidos na cidadela esperando a viagem. Os que forem substituí-los devem ficar sobre os cuidados do velho escravo ganês das medicinas e tratamentos de marcação. É a primeira grande viagem de retorno, sentenciou.
  • 20. Capítulo X O ano estava chuvoso. Joaquim Pedro estava preocupado com a produção de açúcar que não ia ser maior que a do ano anterior, embora ele houvesse plantado uma área maior. Assim sendo ele precisava de muito mais peixe para sua produção e para deixar os escravos contentes e mais produtivos, com seus restos e vísceras. Entretanto, a cada viagem de pesca os peixes eram menores e o barco precisava ficar no mar muito mais tempo, pois ia cada vez mais mar adentro. Autorizou que a jornada de pesca fosse de doze dias, mas exigiu que todo o peixe chegasse salgado e bem seco. Os escravos adaptaram tendais para redes do lado do barco para colocá-los para secar e poder permitir melhor situação dentro do barco. Com os dois barcos em ação conjunta era possível fazer os levantamentos e ainda abastecer tanto a casa grande quanto à cidadela. Afinal os escravos necessitavam abastecer mais de cento e cinquenta quilombolas ativos. A cidadela era nas grotas íngreme e inacessível pela selva densa. Eles nunca faziam fogo à noite, nem ruídos para não chamar atenção. O sistema de vigilância e segurança era todo controlado por crianças. Quando crianças carequinhas, depois de sua experimentação da comida na Casa Grande iam passar dois ou três dias na Cidadela, para recuperação. As mães escravas não reclamavam e se não eram notadas, permaneciam na cidadela. Um dos meninos experimentadores de comida na Casa Grande era um grande consumidor de pimentas nas refeições. As cozinheiras atenderam quando ele pediu o molho de pimentas nos bocados a serem servidos. Comeu e permaneceu sentado no chão esperando que o jantar terminasse e lhe fosse autorizado a sair. Sentiu alguns calafrios ao sair rumo à senzala. A meio caminho sentiu uma tontura e cambaleou, mas foi agarrado pelo velho escravo ganes, que o levou ao colo. Imediatamente lhe administrou o vomitório de água morna, cinzas e sal. Repetiu o tratamento, pois notou o forte cheiro de pimenta e pedaços das mesmas em seu vômito. Foi muito difícil reanimá-lo. Duplicou a dose de chá de Calabar. O menino ficou meio adoentado uns dois dias e foi levado para a cidadela, onde ficou sob observação durante uma semana. A primeira recomendação foi diminuir a pimenta vermelha na Comida da Casa Grande e substituí-la nos temperos por pimenta-do-reino, que era cultivada na cidadela e pouco conhecida. A segunda é que era proibido aos meninos comer pimentas três dias antes da sua escala para provador de comida na Casa Grande. A situação era delicada e exigia providências. Por mais árdua que seja a refrega, não é permitido colocar em riscos inocentes mesmo com as mais nobres intenções, aprendera Fanta no Alcorão. Fanta e o velho mago Mina passaram horas conversando em soninké. Ela achava a proposta arriscada, mas o mago ponderava ser necessário o experimento para dar maior segurança na proteção as crianças e ao mesmo tempo maior eficácia no uso, sem acidentes.
  • 21. Finalmente ela concordou, pois não se pode negar ao saber as oportunidades que trarão maior conhecimento sobre os riscos, sejam quais forem os resultados. O mago propunha que os restos de comida destinado para os cães de guarda na Fazenda, seriam agregadas diferentes quantidades de pimenta. Como cada cão come sua ração em separado dos outros para evitar brigas, era muito fácil avaliar os resultados. Fanta tinha razão o infausto aconteceu, pela manhã havia um cão morto e dois intoxicados. Foi fácil administrar gotas de tintura de fava de Calabar aos cães e à água dos mesmos, mas o morto continuaria morto. A sinhá, esposa de Joaquim Pedro, se desesperou, pois era o cão de seu maior afeto. Condoída mandou lavá-lo no rio, fazer um caixão. Ela ia providenciar a vinda dos jesuítas para encomendar a missa de corpo presente. Joaquim Pedro antecipou que era proibido pela Santa Igreja encomendar animais e mandou os escravos enterrarem logo o cachorro. Foi apresentada uma sepultura, ao pé da mangueira onde agonizou o capitão de mato, com pedras brancas e muitas flores que agradou a Sinhá, pois não acompanhara o enterro. Fanta pediu em nagô que a cozinheira da Casa Grande induzisse a Sinhá a comer cabrito assado, pois era o prato menos repetido pela família. Minutos depois aos gritos a sinhá anunciava a todos que escolhera comerem cabrito assado. O couro do cachorro foi retirado pois era útil como bucha nas rodas do carro de boi, por facilitar sua lubrificação com gorduras, diminuindo o ruído e permitindo ações mais tranquilas, nos transportes noturnos. O cachorro, sem rabo, patas e cortado na metade do focinho para extrair os dentes superiores e caninos ficava um cabrito. Uma vez limpo o cão foi mergulhado em um molho de vinagre, sal, alho e cebolas esmagadas, com manjericão, alecrim e alfavaca. Assou lentamente toda a tarde e início da noite, com banhos periódicos do vinha d'alho. O cabrito foi muitíssimo elogiado, após a refeição. Para evitar a desconfiança foi deixada a cabeça, pois muitas vezes nos porcos assados, Joaquim Pedro notou que os escravos tiravam o rabo, as patas, a língua, as orelhas para levar para a senzala e ele passou a proibir que isso fosse feito, evitando um aproveitamento de proteínas pelos mesmos, embora na Casa Grande não comessem tais partes. O velho mago mandinga foi buscar o menino provador do dia, que nem sequer havia tomado azeite de dendê e bambá pois a ceia era uma festa, sem atividades noturnas extras. Ansioso o velho escravo perguntou para o menino: que tal o cabrito? A criança em sua inocência respondeu: comi muito pouquinho. Estava gostoso, mas bem apimentado. Quem gostou mesmo foi a mãe do Sinhô, que se atracou na cabeça assada e só largou quando era caveira bem limpa. O velho Mina matreiro queria rir, mas conhecia a perspicácia das crianças.
  • 22. Na cidadela chegava um genuíno caprino para a comemoração de cem ano de uma velhinha e deleite de seus convivas. Ela não aceitou preparar o cabrito para o seu aniversário, doou para uma cerimônia de muito mais importância. Um jovem mestiço, filho de um dos filhos do Sinhô com uma escrava, era muito revoltado por saber de sua origem, embora não tenha sido criado como os “filhos de Saladino”* terminou indo para o pelourinho, embora tivesse uma companheira e um filhinho pequeno. O menino poucos dias depois de cumprir três anos viu seu pai morrer pendurado no pelourinho. Por esta razão o menino cresceu extremamente revoltado. Fez uma traquinice de colocar uma casa de marimbondo tapa-goela dentro do quarto do seu avô ilegítimo (filho de Joaquim Pedro). Foi brutalmente castigado com a máscara de folha de flandres em todo o rosto e pendurado no Pelourinho, donde adquiriu uma pleurisia que nem mesmo o velho mago Mina conseguiu curar. Este menino foi enterrado como “morto” e depois ressurgiu na Cidadela, mas tinha poucas chances de viver. O grupo de velhos ex-escravos resolveu fazer a oferta de troca pelo cabrito e chamar a avó do menino do inframundo para realizar a cura do mesmo. Escolheram uma caverna com a boca para o outro lado do vale e que não ressoava para a Casa Grande, nem para nenhum vizinho pois seria necessária uma cerimônia durante toda a noite. Foi escolhida uma noite de Iansã (Oyá). A avó do menino, de nome Rosa foi invocada pelo grupo de escravos com cantos e toques nos atabaques. Seu espírito baixou no terreiro e começou a dançar e cantar. Trouxeram-lhe o menino já desfalecido, sem qualquer chance de vida. O cabrito foi sacrificado. Um pouco de sangue do mesmo foi administrado ao menino em uma cuia. Um pouco de vinho do Porto de cinquenta anos e aguardente (marafa) foram queimadas na cuia e das cinzas, o menino foi “cruzado”. Riscado com traços de pemba e pontos feitos com ponta de punhal, na cabeça. Recebeu sete cruzes na cabeça e três em cada dorso da mão. As gargalhadas do espírito da avó eram sinistras, mas todos riam e dançavam como se vissem outra coisa. O menino acabava de ser batizado naquele terreiro e todos dançavam. Antes do Sol nascer, Vovó Rosa desincorporou do cambono (cavalo). Saravóu, subiu gargalhando e antecipando: - os arcanjos começam a atiçar o fogo. No dia seguinte o menino estava bem melhor, lhe deram uma dieta de ovo de pato e cinza de fogão, em uma semana ele estava totalmente sadio, tão alegre quanto às crianças quimbundas. As vovós diziam que a "troca" fora para tirar o veneno do sangue do avô paterno. Assim o jovem rapaz cresceu, os velhos escravos nas horas de nervosismo e tensão o viam cantarolando em xisena: “Ela veio sacudir sua saia no Congá. Com licença de Oxalá é Vovó Rosa que vem saravá.” O jovem se transformou no braço direito do capitão do saveiro quilombola de velas negras e o primeiro a chegar na costa africana deixando os velhinhos. Seguramente no sorriso da avó havia algo mais que ela não quis antecipar.
  • 23. Capítulo XI O saveiro da Casa Grande ficou pronto e recebeu o nome de Cintra. Joaquim Pedro determinou a seus filhos a organização de uma pescaria para três semanas, pois em breve ia começar a colheita de açúcar e tinha de ter todo o pessoal na colheita e engenho. Por desconfiança, obrigou que o seu outro capitão- de-mato comandasse a viagem sem interferir com os escravos. Bem armado, o capitão-de-mato embarcou. O irmão gêmeo do Cintra não tinha nome, era quatro vezes o tamanho dos barcos pequenos, um mastro grande e dois pequenos, tinham o fundo chato, como o outro e era muito veloz. Tinha espaço interior para trinta pessoas, mas não tinha como carregar água e alimentos para todos a não ser por a quatro a cinco dias. Os anciãos não podiam se alimentarem de colares e paçoca durante toda a viagem. Dedicados à pesca partiam cheio de comida e voltavam cheio de peixe salgado. A ordem do saveiro quilombola era fazer viagens até a ilha e depositar lá tudo como entreposto, inclusive os escravos e depois dali os transportá-los diretamente à África, enquanto o barco pequeno fazia as viagens entre a cidadela e a ilha para abastecimento continuo de libertos e provisões. Tinham que levar tábuas serradas, cravos, ferramentas, mastros para substituição em caso de acidentes, resinas e outros repostos para reparações. Estava sempre atulhado de talhas com água, azeite de dendê, peixe seco, farinha de milho e paçoca de amendoim e gergelim. Mais de mil cocos estavam espalhados pelo seu fundo. Ele fora transportado durante uma noite que uma das crianças carecas teve de fazer o vomitório. O saveiro quilombola zarpou pela noite com vinte casais de escravos da cidadela e uma tripulação de cinco experimentados pescadores. O barco pequeno quilombola ficara designado para recolher escravos fugidos para a cidadela e precisava pescar constantemente para garantir as provisões na cidadela onde já havia mais de 300 pessoas cuidando os cultivos de pimenta, fumo, cânhamo, cana- de-açúcar e produção de panelas de cerâmica. Dois quilombolas que haviam fugido do Sul chegaram à Cidadela. Foram entrevistados por um comitê de recepção e organização. Ambos tinham uma história um tanto diferente, mas com morte e desespero. Seus pais morreram nas charqueadas, uma atividade de matar o gado para tirar a carne e fazer o charque, carne-seca e similares e aproveitar o couro salgado. Trabalhavam com o sangue dos animais quente, sobre o sangue apodrecido dos dias, semanas e meses anteriores sobre moscas, calor, frio, chuvas e um vento cortante contínuo. Poucos aguentavam mais de cinco anos nessas condições. Tinham de carregar as mantas de carne salgada nas costas e as queimaduras eram cada vez maiores pelo sal que não deixava infeccionar, mas aumentava suas lesões. Com a eclosão da guerra entre os poderosos locais e o império, fomos obrigados a ir para a frente de batalha, sem treinamento, para enfrentar as tropas mercenárias do imperador: eram austríacos, belgas, franceses e suevos todos soldados atrás de fortuna.
  • 24. Mas, a dor ensina a gemer e a cada combate mais experiência se adquiria, ademais quem luta pela vida, sabe o que pode perder. Os que eram peões nas estâncias ensinaram os outros todas as artes de montar o cavalo sem sela ou montaria. A necessidade de defender-se levou à imitação e o uso da lança foi um aperfeiçoamento diário. Muitas vezes não havia cavalos suficientes e dois lanceiros dividiam um cavalo. O que causava muita surpresa aos brancos enfeitados. Um colocava a lança no olho do cavalo e outro levantava o miserável, com um impacto visual forte sobre os companheiros deles. Quando os brancos viram que a guerra ia ser resolvida nas salas com bebidas e conversa. Primeiro, desarmaram todos os lanceiros-negros, que sempre iam à frente. Depois desmontaram todos e por último estavam tirando a comida e apetrechos. Então nós fugimos, roubamos um barquinho pequeno e remávamos de noite e dormíamos de dia escondidos. Depois de seis dias chegamos ao porto, subimos em um navio estrangeiro. Entramos entre os fardos de Charque e couros e se escondemos. Antes molhamos bem o poncho de cada um em água doce e viajamos escondidos até as grandes minas de Sal (Cabo Frio). Ali os escravos nos informaram da Cidadela e aqui viemos. Temos nossas espadas que tomamos dos oficiais que enfrentamos. Podemos fazer lanças para ajudar na defesa, na pesca, sabemos criar gado. Conta com a gente em tudo que for para fazer. O capitão do saveiro quilombola sorriu e perguntou: nasceu antes da travessia ou depois? Nós fizemos a travessia criança com nossos pais, mas não somos irmãos, fomos capturados juntos e dominávamos o kikongo e o xichonga agora só falamos o português. Depois trabalhamos nas Charqueadas e os últimos dez anos foram na Guerra, por incrível que pareça, foram os melhores. Enganaram- nos, pois disseram que quem lutasse bem ganharia a liberdade. Pelo que imaginamos todos os nossos companheiros já estão mortos. O capitão, assentiu: suas lanças vão ser muito importante para a pesca em alto mar. Comandante, eu meto uma lança no olho de um cavalo a galope e não erro. A morte é tão instantânea que ele não se mexe. Estás acostumado com o mar? Depois da solidão da travessia do Oceano, nós aprendemos em uma imensidão verde igual o mar, que não tem fim e é uma solidão pois nunca se encontra gente ou bichos, só gado e as bestas. O outro quilombola completou: há uma companhia que é a do chimarrão, quente no inverno frio e muito refrescante no verão. – É algo de que se sente falta. Fanta assumiu: bem-vindos, Allahu maa es sabirin. Eles logo responderam Aleicumsalama. O velho mina não deixou os dois descansarem, queria saber tudo sobre o chimarrão. Tudo foi detalhado com minúcias. Já descobrindo o que era o chimarrão, perguntou: faz urinar? E a resposta foi: bah! Nos dias seguintes o velho mina não parava um segundo, buscando folhas, secando-as. Lembrou da árvore que os negros do Sudão haviam plantado atrás da senzala e que dava os frutos muito amargos. Foi buscar as folhas, pois delas já
  • 25. tinha feito a tintura e esta tinha sido usada no batizado do neto do Feitor misturado no suco de tamarindo com tintura de Cola africana. Foi a coisa mais alegre, pois ninguém parava de rir até os jesuítas, prefeitos, vizinhos todos passaram toda a tarde felizes depois de tomarem o suco de tamarindo. Foi preparado um chimarrão com as folhas africanas, mas os dois disseram ele não é amargo no começo. Só no fim, no começo é bem doce. O velho Mina lhes deu a tintura da árvore africana (Cola nitida)* em suco com muito açúcar. Ambos tomaram e arrotaram. Bah! este está bem melhor, mas não é chimarrão. O velho mina havia descoberto em uma planta africana. Sua tintura estimulante era imprescindível para a travessia, quando era necessário ficar até três noites sem dormir. Os dois mudaram de oceano e foram fazer suas charqueadas com os atuns e ficaram conhecidos como os lanceiros-do-mar. Lá havia muito trabalho, organização e conscientização. Como em toda parte há alguns tão judiados, que ficam irrecuperáveis e podem pôr a perder todo um trabalho coletivo. Estes eram tratados com todo o tipo de tinturas e ajudas, mas os que eram brigões e não respeitavam a comunidade, recebia após muitas admoestações, uma última refeição preparada com o peixinho espinhento, que era cuidadosamente recolhido e tratado. Pois após os estudos e experimentações se chegou à conclusão que ele era o mesmo que existia nas praias do Golfo da Guiné e que era tão venenoso quanto aquele. Seu efeito, paralisava todos os músculos e a morte ocorria após oito horas de agonia, sem o indivíduo poder mexer um músculo sequer. Todos sabiam que manter os objetivos e metas era o primeiro princípio que todos haviam jurado cumprir na sua chegada ou transferência para a Cidadela. Uma primeira admoestação pública era tolerada, mas a segunda era servida a refeição final. O saveiro Cintra largou muito antes do Sol nascer com provisão para duas semanas no mar. O barco a remo de Joaquim Pedro ia auxiliar para alguma emergência. Ambos tinham o leme amarrado para o local onde nascia o Sol e poucas horas depois já era possível um avistar o outro. Antes de colocar o mastro e a vela no barco a remo, o capitão-de-mato foi convidado a tomar um licor de uvaia. Ficou falante, mas conversava coisas estranhas, sempre sentado em um canto, como se estivesse em outro mundo. O barco pequeno era muito mais rápido e logo ultrapassou o Cintra. O capitão-de- mato foi transferido seu interior junto com sua cabaça de licor, mais parecia um morto-vivo, pois não sabia onde estava, nem o que estava fazendo. Apenas obedecia. Era o efeito da tintura de datura de flor amarela e fruto roxo, que em alguns dialetos africanos é chamada de burundanga. Esta planta tem a capacidade de * Esta planta é conhecida como cacau do Sudão, e é a base para a fabricação do vinho e refresco de Coca- Cola.
  • 26. fazer que, quem a ingere de perder totalmente a memória do que está acontecendo, podendo cumprir ordens sem saber o que faz e não se lembrar do que fez, aconteceu ou sofreu. A tintura dessa planta africana era misturada aos licores de frutas. Os escravos riam, pois ele deveria ir e voltar, mas não teria nada para contar. Chegaram à Ilha (Trindade) ao meio do terceiro dia. A ilha era imponente e seu pico de mais de 500 metros avistável desde o nascer daquela manhã, a outra pequena a ela era praticamente inacessível. Escolheram uma baía e recolheram as velas e começaram a descarregar as talhas, barris, fardos de fumo. O escravo-capitão do Cintra fazendo troça mandava o capitão-de-mato carregar os barris e fardos mais pesados. E o chamava de burundanga, sendo imediatamente atendido. Uma das anciãs foi ao comandante com uma ideia: por que não tingem as velas da cor do mar, para que o barco não seja avistado por outros à grande distância. Ela mostrou suas roupas negras tingidas com jenipapo e as azuis- marinhos obtidas com anil. O comandante fascinado agradeceu. Pensou em fazer, também, túnicas azuis como dos marinheiros ingleses que aportavam em Bioko. Um dos olhos e ouvido da princesa observou que deveriam ser trazidos alguns bodoques dos tupiniquins e arco e flechas para se caçar aves, pescar e também proteger os que iam ficar na ilha. O comandante ficou mais estupefato, possuía uma tropa e seu conjunto cada vez ficava mais homogêneo e único. Repetiu sozinho: Allahu maa es sabirin (Alá está com os perseverantes) Sura 2 Vers. 153. Descansaram um dia todo e pela madrugada partiram da ilha em direção onde nasce o Sol. Era a grande aventura, seriam mais de dez dias. Chegavam à costa africana ou tudo terminaria no fundo do mar. O vento era muito forte e o barco pequeno logo se distanciou à frente do saveiro distinguido durante o dia como um ponto no horizonte e à noite por uma lanterna de dendê. O jovem imediato há muito havia encontrado na praia à beira d' água um belo cachimbo de raiz de raiz de roseira e bocal de marfim, seguro que era inglês. Passou a usá-lo durante as viagens, principalmente à noite. No oitavo dia, os do saveiro começaram a observar aves marinhas de costa e logo a silhueta do continente. O barco pequeno já estava voltando com guizos e areia das praias onde havia entregado os anciãos e anciãs e alguns fardos de fumo e um barril de aguardente como suborno. O mercador interessado em encaminhar os libertos para suas regiões, tribos e clãs não queria os fardos de fumo, nem o barril de aguardente. Exigiu o cachimbo como pagamento. O capitão imediato ficou desconfiado e fez uma contraproposta para dobrando o número de libertos que ele deveria encaminhar pelo cachimbo. O que foi aceito por ambas as partes. Somente na hora de tocar terra africana, que os ex-escravos mostravam a marca da fazenda dizendo: diga para ninguém tirar sua marca. Esta é a comprovação que nossa vitória "xinga" Joaquim Pedro. Eles reconheceram os idiomas quimbundo, bantú e kikongo dos seus habitantes. Uma toalha bordada em renda, disfarçando as letras árabes, feito pela
  • 27. princesa, devia imediatamente chegar ao seu pai em Bioko. Seguramente chegaria, através dos marinheiros, pois a promessa de recompensa era muito valiosa, foi entregue mais um fardo de fumo e um barril de aguardente. No saveiro todos exultaram, pois tudo dera certo, tinham pouco tempo para voltar para a ilha, passaram para o barco pequeno as provisões necessárias para o retorno. O capitão-de-mato, ainda sob o efeito da burundanga, acompanhado pela cabaça de licor subiu a bordo. Eles tinham de voltar para pescar e retornar no prazo. O barco pequeno e o Cintra chegaram na projeção da foz do rio Doce na lua nova e isto era bom para a pesca. Em poucas horas os barcos estavam atulhados de peixes salgados e alguns frescos e dos maiores somente. As redes vinham penduradas carregadas de peixes gigantes. Deixaram os mastros e velas para serem recolhidos pelos quilombolas e chegaram ao porto de São Mateus aparentando cansaço e a pele queimada pelo sol. O saveiro quilombola teria de esperar a noite e o efeito da datura para poder passar pela casa grande e ir para a cidadela. A explicação dada foi de muita calmaria, mas, quando a lua nova entrou, eles pegaram o peixe e o vento foi trazendo muito velozmente o barco, permitindo que uma parte chegasse fresca. Joaquim Pedro exultava com o resultado, mas não conseguia entender seu capitão-de-mato, transformado em escolta de pescaria, que somente repetia muito peixe voador, muito peixe voador, muito peixe voador. Tão confundido, passou mais de uma semana sem saber sequer de que lado montava seu cavalo. Os velhinhos responsáveis pela marcenaria estavam afoitos. Com machados e enxadas estavam cavando em volta dos tocos de jacarandá, mogno e cedro. Eles tinham experiência, que nos tocos de cedro, um pé do solo para cima e para baixo, há uma madeira totalmente diferente que serve para fazer cachimbos imitando a raiz de roseira. Logo, uma centena de belíssimos cachimbos torneados e polidos com cera de carnaúba estavam à disposição dos marinheiros quilombolas. Sua vantagem era o valor de troca e ademais que poupavam muito espaço e peso ocupado com as cargas para o pagamento de subornos e prêmios, permitindo mais carga humana. O período de corte da cana-de-açúcar era o mais propício para os escravos fugirem, pois se trabalhava até à noite na colheita, transporte e funcionamento do engenho de açúcar e alambique, entretanto, nas terras de Joaquim Pedro era diferente, pois os escravos dele iam buscar nas áreas vizinhas mais famílias para esconder na sua cidadela. Alguns eram incorporados às atividades da colheita de cana-de-açúcar, enquanto esperavam o translado e a viagem de regresso. O controle de produção de Joaquim Pedro era pelo número de carros de bois carregados que entravam no engenho. O interessante é que eles estavam aumentando constantemente e ele nem imaginava que estava transformando em açúcar e aguardente toda a produção da cidadela, que era trazida e misturada à dele e depois subtraída para ser transportada à Ilha e servir, junto com o fumo para pagar os subornos na costa africana. A produção de pimenteira era toda da cidadela e já ultrapassava a centenas de barricas, mas poucos sabiam seu valor.
  • 28. Na primeira refeição onde se serviu para os escravos só angu, abóbora e beiju, as viagens de carros de bois carregados de cana-de-açúcar diminuíram pela metade. Desesperado Joaquim Pedro mandou matar seis vacas para remediar o problema com os bofes. Não adiantou. Capítulo XII Ele foi obrigado a organizar mais uma pescaria. Em paralelo, foi feita a segunda viagem, com trinta casais de anciãos, eles nem seriam notados, pois já haviam sido substituídos e aguardavam com ansiedade acampados na cidadela. Ali aprendiam o valor do trabalho livre sem a apropriação pelo feitor. O prêmio era a viagem e tinham de aguardar a sua vez, que era decidida por todos em uma assembleia. Apliquei o aprendido nas aulas na Escola de Navegação de Timbuktu e os penosos exercícios navegando nas caravanas, nas areias do deserto se orientando somente pelas estrelas, com mapas mentalizados e desenhados no couro de cabra. O épico do Almirante Abukbar descobridor do grande rio (Amazonas) mil vezes maior que o Níger do outro lado do oceano em 1322. Já temos um mapa dos céus daqui até Bioko, que está entalhado no chão dos nossos barcos e sextantes que toda a tripulação sabe usar com precisão. Ademais fizemos o entalhe dos relevos da cidadela e da África entalhado na parte interna do bombordo e sotavento para correção de curso. O saveiro quilombola saíra com suas velas negras tingidas com jenipapo, dois dias de antecedência ao barco pequeno. Contudo, chegou à Ilha, apenas algumas horas antes. Houve a troca de tripulação e carregamento de provisões. Ambos continuaram em direção onde nasce o Sol com o cuidado de se saber chegar ao mesmo local, pois o capitão desenhara e esculpira o relevo do horizonte, no ponto de interesse. O jovem comandante-substituto, fora imediato na viagem anterior e sabia muito bem onde tinha de chegar. Sozinho cantarolava, batendo os dedos no leme do barco: ela veio sacudir a sua saia no congá. Com licença de Oxalá é Vovó Rosa que vai saravá. O barco de pesca, também utilizava velas negras, recebeu todos os anciãos e a última parte da viagem foi feita à noite. Pela madrugada deixou sua carga humana no mesmo local da viagem anterior. Ninguém tinha retirado a sua marca. E todos a exibiam satisfeitos, inclusive alguns dos que receberam a marca da fazenda sobre outra anterior. Sim eles eram vencedores. Como sempre os quimbundos eram os mais salientes. O grupo foi recebido por um dos casais de velhinhos retornados. A mensagem deles era muito importante: o pai da princesa já sabe e diz que oito dias para o norte pela costa se chega ao arquipélago de São Tomé e logo a Bioko. Desde a Ilha dos rochedos, direto os pescadores fazem em cinco dias, mas se deve passar ao norte de uma ilha grande, onde tem muitos navios militares de bandeira inglesa com muito cuidado pois é uma prisão. Não se deve passar de dia, pois eles não toleram barcos pequenos, identificados como piratas. A velhinha sorridente, entregou uma bússola que o pai
  • 29. da princesa sabia que eles precisavam e um mapa marítimo em couro de camelo. Oxalá tenham bom retorno. O capitão-imediato passou a bússola para as mãos do capitão que comandava o saveiro quilombola. Ele a reconheceu. Abriu as mãos e olhou profundamente, agradecendo a Alá. Seu lugar tenente começou instintivamente a cantarolar: ela veio sacudir sua saia no congá, com licença de Oxalá... A viagem de retorno foi mais rápida que a anterior, mas houve tempo para o saveiro ajudar na pesca e transporte, fazendo parte dos peixes chegarem fresco à fazenda. A única novidade é que eles deveriam usar uma bandeira no saveiro, para não levantar desconfiança. Uma bandeira portuguesa ou do império brasileiro não causaria surpresa. Seria necessário conseguir uma bandeira em Vitória. Era necessário fazer perucas, ter roupa de marinheiro e pintar os marinheiros quilombolas de branco, para poder parecer europeus quando algum barco passasse muito perto, pois eles poderiam ser aprisionados outra vez. Além de terem velas brancas. Fazer as perucas foi simples com crina de cavalo, pelos de rabo de boi e palha de piaçava, algumas eram castanhas algumas eram avermelhadas, pois os marinheiros sempre eram europeus. O interessante foi que, na cidadela sem entender muito bem, um grupo de quilombolas passou a untar todo o corpo com uma mistura de polvilho de mandioca com gordura de coco e um pouco de dendê, que tornou os escravos brancos, meio amarelados, encardidos, como árabes ou chineses que ficaram muito tempo ao sol. A solução encontrada, foi levada em potes para os barcos e Ilha dos Rochedos. Na cidadela havia mais de trezentas famílias fugidas da região, muitos substituíam os anciãos e a produção de açúcar e aguardente aumentavam. O trabalho livre enganava o trabalho escravo, da mesma forma que a moeda de valor afasta a moeda sem valor do mercado. O saveiro quilombola partiu sozinho com noventa anciãos para a ilha, onde iam aguardar para serem transportados ao continente africano. Havia provisões para setenta dias, mas todos sabiam que deveriam pescar e caçar aves, pois as provisões eram intocáveis, assim como a água. Não deviam fazer fogueiras à noite, para não atrair a curiosidade de navios para a ilha e ter sempre um conjunto de pessoas no monte da Ilha dos Rochedos sob um grande guarda sol de palha, controlando a passagem em ambos os lados até o horizonte. Quando os barcos quilombolas fossem avistados, uma lanterna grande de dendê, com espelhos deveria ficar acesa lá em cima após o pôr do Sol. Durante o dia, gomos de caniço finos e compridos servem como luneta para observar uma distância até três vezes mais longe no horizonte. Na senzala, o grupo mais próximo chegou para a reunião com a princesa. O menino escravo já havia tomado o chá de fava de Calabar e dormia normalmente. Na Casa Grande, todos haviam ceado e tomavam o licor de jenipapo. As crianças comiam doce de abóbora enriquecido com burundanga. Conversavam em voz alta até altas horas. O relato feito pelo comandante da segunda excursão fora rápido em nagô e sua recomendação: instalamos a bússola, a prioridade é encontrar a ilha mais ao nordeste de Trindade, a dois ou três dias de viagem e como foi avisado ter muito cuidado pois a ilha é cercada por navios militares. Vamos precisar dos dois barcos
  • 30. pequenos e dos dois saveiros para encontrá-la. Depois somente nosso barco pequeno. Dali, fica perto o Arquipélago de São Tomé e o caminho é conhecido até Bioko. Não podemos perder muito tempo procurando a Ilha. Temos de encontrá-la. Cada barco pequeno vai com uma variação de dez graus. Isto dá os 40 e vinco graus que foi recomendado. Antes o saveiro quilombola fez mais seis viagens solitárias à ilha, cada uma, com mais noventa anciãos e voltou para a cidadela. Capítulo XIII O aniversário de Joaquim Pedro se aproximava era o auge da colheita da cana e ele queria uma festa gigantesca. Seu navio negreiro, o Santa Edwiges transformado um cargueiro havia retornado do Rio de Janeiro onde fora deixar uma carga de açúcar, aguardente e peixe salgado, cujas vendas estavam garantindo uma sobre renda para o feitor. Logo os escravos mais velhos e descartáveis seriam chamados para fazer uma obra de alvenaria na Casa Grande e depois seriam trucidados, pois ali seria enterrada mais uma botija de ouro. Joaquim Pedro colocou o navio negreiro à disposição dos escravos para auxiliar na pescaria. Foi carregado com provisões para um mês, sal, água, azeite de dendê, cocos, até galinhas vivas foram carregadas, pois ele ia acompanhar a viagem. Seus dois filhos, mais velhos, tomariam conta da fazenda. No navio cargueiro havia espaço para muitas provisões, e os escravos aproveitaram todo o espaço dizendo que no mar se fica com muita fome. Joaquim Pedro, como sempre, levaria um menino escravo para provar antecipadamente todo o alimento que desejava ingerir. Então, a princesa que era conhecedora de seus hábitos mais íntimos e preparara três moringas de vinagre e outras três com tintura de fava de Calabar africana, para proteger a criança cobaia, pois agora não tinha como trocar de criança como vinha fazendo desde o começo na Casa Grande. O licor de jenipapo era a predileção de Joaquim Pedro e o mar convidava. Ele entrou em transe, e o menino da cabeça raspada, havia tomado dois copos de dendê e água morna de cinza para vomitar e algumas gotas da tintura de Calabar para cortar o efeito da datura. O melhor é que os quilombolas amarravam uma corda na cintura do menino e o atiravam ao mar em saudável brincadeira, mas na verdade para o choque térmico é sinérgico com a tintura de fava de Calabar, bloqueando o efeito tóxico da datura. Ele não ficou nem amuado pela intoxicação, mas o pobre do português, cantarolava, tirou a roupa e todos fingiam que nada anormal estava passando. Chegaram à ilha e ele nem mesmo notou a mesma, nem o mundaréu de anciãos seus escravos. Ele desceu do barco completamente nu. Duas velhinhas desmaiaram quando o virão, não pela indecência, mas pela presença do feitor. Ao saberem do estado do mesmo, se urinavam de tanto rir. Escravos faziam troça uns com os outros e os quimbundos rebolavam. O plano era ir, como recomendado, na direção ao nordeste. Eles já sabiam, que saindo da Ilha dos quilombolas, a bússola tinha de estar em 57 graus e antes
  • 31. da noite apareceria grande Ilha (Santa Helena). O barco pequeno já partira com a direção anotada pelo nascimento do Sol, marcado em seu leme. O saveiro zarpou da ilha na metade da tarde com trinta casais de anciãos que haviam estado na ilha desde a viagem anterior. Todos estavam felizes e mostravam sua marca ao próprio Joaquim Pedro ao subir a bordo. O barco de Joaquim Pedro seguiu na manhã seguinte. O barco pequeno avistou a ilha no final do crepúsculo, suas velas negras tingidas com tintura de jenipapo o disfarçavam que era invisível a menos de duas milhas. Ele contornou a ilha a uma distância segura e continuou a viagem. Na noite do segundo dia, percebeu que estava indo em direção a uma nova ilha, contornou- a pelo Sul a uma boa distância, pois esta era a sinistra São Tomé e Príncipe, poderoso centro negreiro no passado. O saveiro quilombola mantinha-se de dez ou doze milhas no seu rastro. Depois de cinco dias de viagem, o pequeno barco avistou o litoral era diferente do litoral das viagens anteriores. Aproximou-se e deixou sua carga humana, com mais um bordado feito pela princesa Fanta, para seus pais, entregou fardos de fumo, barris de aguardente e oito cachimbos genuínos de raiz de jacarandá para pagar o serviço. Um dos anciãos que havia aprendido um pouco de árabe, iria procurar um mercador. O pequeno barco voltou na direção inversa e logo encontrou o saveiro, que rapidamente descarregou seus passageiros. Ele novamente aproveitando o manto da noite chegou ao litoral e descarregou no mesmo local os ex-escravos, agora libertos. O barco pequeno passou pelo barco grande de Joaquim Pedro e somente deu as diretivas. Ele esperaria na noite do dia seguinte a chegada do saveiro para descarregar seus passageiros para o mesmo e imediatamente voltaria para encontrar com o barco pequeno já retornando. Os noventa ex-escravos não aguentaram chegar às praias, muitos se atiraram às águas, ao sentirem pouca profundidade. A festa foi muita. O pessoal do saveiro trocou dois fardos de fumo por três porcos vivos e algumas galinhas na praia, carregaram as talhas com água e voltaram para o mar. Todos chegaram ao lugar marcado ao sul da ilha (Santa Helena). Estavam preocupados, pois cruzaram por barcos de pesca, avistados à noite pelo reflexo das lanternas nas velas brancas. Resolveram pescar ali mesmo. Qual não foi a surpresa, quando começaram a sentir as redes tão pesadas como nunca antes. Ao puxar a mesma, sentiram que os peixes eram gigantescos. Não eram os melros, nem dourados ou robalos, eram atuns, peixes com mais de 300 quilos, que necessitavam ser mortos com fisga e içados para dentro do barco. Os escravos das charqueadas mostravam sua destreza. Os lançaços iam olho a dentro dos atuns que pouco se mexiam. Ainda bem que o barco grande de Joaquim Pedro estava ali, pois seria perigoso para o barco pequeno e mesmo para o saveiro quilombola colocar um peixe daquele tamanho no seu interior ainda meio vivo. Em poucos minutos pegaram setenta e quatro atuns e Joaquim Pedro tomava mais um licor de jenipapo e datura, alheio a tudo e a todos. A pesca estava terminada, o peixe salgado. O barco pequeno largou na frente com cinco atuns
  • 32. limpos pois havia acabado o sal e ele tinha condições de chegar à ilha em três dias. O saveiro saiu com mais cinquenta atuns salgados para cidadela. Os céus estavam anunciando tempestade para dentro de dois ou três dias e ficaria perigoso estar em alto mar. O barco de Joaquim Pedro usou a Ilha dos escravos como referência para o retorno e ali foram mortos e assados os porquinhos. Depois da comida zarparam. Todos a bordo lavavam cuidadosamente e tiravam qualquer vestígio de gente no mesmo. Joaquim Pedro resolvera colocar roupa e a cada dose de seu licor, o menino ia ao seu ouvido contando como fora a pesca do atum. Depois que a ilha dos escravos não era mais vista no horizonte a cabaça de licor de jenipapo foi trocada e na comida junto à farinha podia se notar alguns caroços de fava de Calabar para acelerar a desintoxicação. Joaquim Pedro chegou em casa normal, orgulhoso com os vinte atuns que pescara. Na Casa Grande reuniu a todos para contar havia matado um atum de mais de 300 quilos com um tiro de bodoque e puxado o mesmo sozinho para dentro do barco e sangrado. Arrogante, desafiava: esta negrada de merda. São imprestáveis, precisou eu ir junto para pescar atum, mas com um olhar distante dizia: o porquinho pururuca estava delicioso. Um flash de memória fugira ao controle da burundanga. Era bem verdade, os porquinhos trocados por folha de fumo, assados na ilha estavam deliciosos. Todos ficaram assustados, como comer porquinho pururuca em alto mar? Desconfiaram que era potoca do senhor. Seus filhos, esposa, filhas e netos incrédulos se entreolham, imaginando ele, tão obeso e desajeitado com um bodoque acertando um peixe na água, mesmo com trezentos quilos e pior ainda o matando... Perguntando ao capitão-de-navegação do navio negreiro, como estava o porco. Ele disse muito educadamente: Nego num comi carni di proco não. Dá coceira, Sinhá Os olhos e ouvidos da princesa fingia brincar no chão da cozinha. Tinha a cabeça raspada e vestia a camisa de renda. Cabia a ele experimentar a comida naquele dia. Fora avisado, que comesse tranquilo, pois era dia especial. Mas o menino nem sequer sorria, apenas se compenetrava. Ele sabia que na luta pela liberdade um pequeno deslize pode destruir anos e anos de organização e trabalho. Assim que a tormenta passasse os barcos voltariam ao mar. As terras de Joaquim Pedro eram uma referência, na cidadela quilombola chegavam escravos fugidos das Minas Gerais, da cidade de Salvador e até mesmo das charqueadas do sul do país. Havia mais de cinco mil escravos, todos disciplinadamente substituindo os anciãos, esperando seu transporte para a ilha e para o continente. Havia uma consciência fruto do exemplo, respeito e altruísmo. Cada vez menos os valentões e ignorantes queriam impor sua vontade e alterar a consciência coletiva e cada vez menos se utilizava a aguardente de datura ou para os mais recalcitrantes era servida a farofa de bambá de dendê com pedaços de baiacu.
  • 33. O veneno nas vísceras do baiacu é muito violento. Em menos de cinco minutos estavam totalmente paralisados e a morte somente ocorria oito a dez horas depois. Este peixinho que sempre vinha na rede e que ficava inchado com espinhos era juntado a pedido da princesa e colocado em azeite de dendê. Com este azeite era preparada a farofa e frito o peixe da despedida para os que não entendiam o Allahu maa es sabirin. A toxina do baiacu* é um dos venenos mais poderosos e muito usados nas costas litorâneas em todo o mundo, também em Bioko e Golfo da Guiné, onde o mesmo é conhecido como peixe-sapo. Agora, o saveiro quilombola tinha autonomia e bússola desde a Ilha dos Escravos, não necessitava mais aguardar o barco pequeno ir pescar, sair ao mar ou chegar a Bioko. Sua logística era fazer quatro viagens até a ilha dos ex-escravos e juntar as provisões necessárias e fazer uma viagem de retorno com carga completa até o litoral da África. O relevo da Ilha de Santa Helena visto desde o saveiro fora esculpido ao lado do primeiro relevo do continente a estibordo. Havia um forte de Pedra sobre um monte alto com o formato de um pão-de-açúcar. Já se sabia da viagem com o navio negreiro que se devia sair da ilha dos ex- escravos muito cedo para chegar às proximidades da ilha na noite e poder passar ao norte dela sem ser percebido. Muitas vezes, a sorte não é companheira e coisas estranhas podem ocorrer. Foi isso que aconteceu. Uma calmaria depois da saída da Ilha de Trindade deixou o barco meio dia ao largo e chegou a Santa Helena em pleno meio-dia cercado de barcos pesqueiros. Providencialmente haviam trocado a vela negra pela branca, que nunca haviam usado e era guardada para emergência. Sem se fazerem de rogados, todos estavam com túnicas brancas e os mais bem vestidos com túnicas azuis, cabeleiras de crina e eram brancos, na verdade um pouco amarelos e encardidos. Foram saudados pelos marinheiros ingleses com batidas de sino e gritos e acenos de mão ao verem a bandeira do império brasileiro subir ao mastro. Até o relevo da ilha desaparecer no horizonte ultrapassado eles permaneceram em oração de agradecimento a Alá. Nas proximidades de Santa Helena havia, também, um banco de atum, que fazia desnecessária muita provisão para chegar até ao litoral quatro dias depois, desde que se pudesse matar os mesmo na rede antes de subi-los ao saveiro, tarefa que os lanceiros realizavam com destreza e sincronismo militar. Para se ganhar tempo o Cintra era usado em nova logística ia e vinha em pesca de três ou quatro dias até a Ilha dos Quilombolas, onde deixava gente e carregava Atum salgado. Voltava à São Mateus e descarregava. Carregava gente. Assim a cada seis dias havia uma viagem com mais de 90 pessoas, que tinham de trazer seus enrolados de paçoca de peixe seco com gergelim, dendê e farinha de milho, colares de tripa, coquinhos e paçocas e três cocos para cada um, por falta de espaço. * Tetrodotoxin (TTX)
  • 34. O saveiro quilombola seu irmão gêmeo, ficava aportado na Ilha (Trindade) e fazia o transporte entre a ilha e o continente negro na viagem mais larga. Normalmente cada três viagens do Cintra era uma viagem do quilombola. Por isso uma das viagens do Cintra era somente de alimentos e água, cocos, dendê e frutas secas desde o continente americano e também desde o continente africano. Assim, os escravos tinham de cultivar muito fumo, pimenta do reino e muita cana-de-açúcar na sua cidadela, para poder pagar os subornos e trocar com o pessoal do litoral africano. O problema era introduzir a cana-de-açúcar no engenho da fazenda, destilá- la e o pior era retirar o barris. A estratégia era ir substituindo barris de aguardente velha com aguardente nova e até mesmo barris cheios de água, que futuramente seriam carregados com aguardente. Joaquim Pedro via que cada vez mais o engenho trabalhava destilando. Não faltava lenha, embora a produção era um pouco menor. Ele mandou cortar mais madeira de óleo para fazer mais barris e cada cinco barris novos que ele via entrar no engenho, não se dava conta que o conteúdo de três barris velhos era trocado durante as noites de burundanga, levados ao saveiro quilombola e transportados para a Ilha. E isto acontecia, quando, nos finais de semana, todos tomavam o licor de jenipapo, até mesmo os sacerdotes jesuítas que vinham celebrar as missas dominicais. Um desses sacerdotes subiu em uma árvore e ficou lá durante toda noite gritando frases em latim e nos intervalos cacarejando como um galo. As velas negras do saveiro quilombola, tingidas por jenipapo, já eram reconhecidas no golfo da Guiné. Todos queriam prestar serviços ao mesmo pelo seu pagamento de uma arroba de fumo e um barril de aguardente. Esta recompensa permitia colocar vinte ex-escravos, libertos, no litoral para procurar sua região, tribo, clã ou familiares. Quando o assunto era mais sofisticado a recompensa era uma pequena barrica de cinco litros de pimenta do reino. Fanta havia ordenado que os nativos fossem transportados à ilha e lá ficassem aguardando viagem por etnias. Assim os cabindas, benguelas, guinés, minas, malés, quimbundos, iam em viagens em separados, mais próximos, pois a cada entrega, mais se conheciam as regiões e mais clãs e tribos vinham às praias para receber os retornados, muitos que já não praticavam seu idioma e outros que até mesmo não mais os conheciam. Ela conhecia como ninguém gente e respeito. Sempre avisando que na viagem seguinte qual seria o povo transportado para facilitar a localização dos parentes, o que sempre era recompensado com aguardente e fardos de fumo e pimenta-do-reino. Na terceira viagem, o saveiro das velas negras chegou a Bioko, mais precisamente a Rialba. No porto todos já sabiam que ele trazia notícias da princesa desaparecida. Uma carta bordada de Fanta foi entregue e chegou à corte com descrição, com a mensagem em árabe: Salamaaleekum. Logo nos reuniremos para regozijo de Alá, precisaremos de mais dois ou três navios grandes para transportar umas mil pessoas. Acompanhem o saveiro até a ilha onde estarão todos os escravos. Meu comandante dirá o caminho a seguir, se necessário posso deixar um navegador