1. Os mártires de Cunhaú
Túlio Madson Galvão1
O culto
Em 06 de dezembro de 2006, a então governadora do Estado do Rio Grande do Norte,
Wilma de Faria, sancionava a lei que declara feriado Estadual o dia 03 de outubro, para
culto público e oficial dos mártires de Cunhaú e Uruaçu. Desde o ocorrido haviam
passados 361 anos, mas apenas 6 da beatificação do Papa João Paulo II.
O evento cultuado se deu em 1645, quando a capitania do Rio Grande era um domínio
holandês periférico. Enquanto em Pernambuco desabrochava a cidade Maurícia, do
Conde Renascentista, com suas torres e sua atmosfera cosmopolita, nós permanecíamos,
na arquitetura e na mentalidade, uma decadente aldeia portuguesa com status de cidade.
O domínio holandês não era diverso do português, continuávamos isolados. Mera
Fortaleza permeada por casebres amedrontados.
Antes de outubro, ainda em julho, ocorria dentro da capela do engenho Cunhaú, o
massacre que vitimara o padre André de Soveral juntamente com 29 fiéis, em plena
missa. O engenho Cunhaú era o centro econômico da capitania, residia ali seu maior
núcleo populacional, apesar disso, era modesto em relação aos grandes engenhos de
Pernambuco. Havia uma considerável presença portuguesa na região do engenho,
tornando-o alvo prioritário para tapuias e brasilianos sedentos por sangue lusitano.
Ao serem informados que portugueses em Pernambuco tinham-se rebelado, vingando-se
dos indígenas que se aliaram aos holandeses, tapuias e potiguaras marcharam para
Cunhaú e massacraram praticamente todos os portugueses que por lá haviam, exceto
três que fugiram pelo telhado.
Segundo Diogo Lopes Santiago, Jererera, líder dos tapuias e filho do lendário Rei
Janduí, foi o primeiro a iniciar o massacre. Há elementos miraculosos que narram que
os braços dos indígenas que assassinaram o padre Soveral, após este tê-los ameaçado
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2. com maldições, atrofiaram e foram despedaçados pelos próprios indígenas vitimados
pela raiva.
O imaginário que se criou em torno dos mártires de Cunhaú se originou, em parte, pelo
panfleto feito por Lopo Curado Garro, que mescla o relato com elementos fantásticos:
como uma suposta música que ascendia para o alto, dando “certo pressagio que foram
os Anjos que acompanhavam as almas destes mártires para o Céu”. Assim como uma
mancha de sangue fresco que apareceu na sepultura do padre Vigário Ambrósio Ferro,
quinze dias após sua morte, que segundo o panfleto dava “mostras bastantes, que o tal
[padre] brada ao Céu justiça”. Atestado também por Lopes Santiago, que afirma que
após três meses do ocorrido o sangue derramado pelas vítimas estava “tão vivo e fresco
como se naquela hora fora derramado”.
Após os massacres ocorridos no engenho Cunhaú e, posteriormente, na casa forte de
João Lostão Navarro, os colonos portugueses da Capitania decidiram refugiar-se em um
sítio localizado na beira da Lagoa de Uruaçu, atual município de São Gonçalo do
Amarante, onde ergueram paliçadas e estocaram mantimentos.
Após sitiar as paliçadas por 16 dias e noites os holandeses, juntamente com tapuias e
potiguaras, resolveram atacar, mas foram repelidos, resultando na morte de vinte
holandeses contra nenhuma baixa portuguesa. Em um segundo ataque, dessa vez com
dois canhões, os portugueses capitularam. Tendo sido massacrados posteriormente
enquanto eram levados para o porto de Uruaçu. O uso de emboscadas era parte
fundamental da estratégia militar que ficou conhecida como Guerra Brasílica.
Parte considerável das fontes primárias, que são escassas, atribui o ocorrido à maldade
desmedida e diabólica dos indígenas e batavos, levando para o campo moral e religioso
um conflito de origem muito mais complexa. A forma como os tapuias guerreavam foi
intencionalmente associada, pelas autoridades locais, à forças demoníacas e falta de
humanidade, assim procurava-se legitimar a guerra. O relato de alguns cronistas era
parte integrante desse empreendimento.
A guerra
3. Os tapuias formavam um conglomerado nada homogêneo, composto por diferentes
etnias, culturas e costumes. A denominação Tapuia foi arbitrariamente imposta a todos
as tribos que não falavam Tupi. O Tapuia era antes de tudo um anti-tupi.
Os holandeses estabeleceram forte relação com os tapuias, principalmente com os
Janduís, explorando o interior da Capitania, ávidos pela esperança de encontrar prata e
minerais preciosos. Quando os batavos foram expulsos em 1654, as veredas que se
embrenhavam sertão adentro, foram utilizadas pelos colonos para colonizar o interior.
Os colonos que adentravam cada vez mais no sertão potiguar precisavam de mão-de-
obra para agricultura e terras para a pecuária. Sem recursos para comprar escravos
negros no mercado de Pernambuco, acabavam por capturar índios tapuias no interior
para desempenhar essa função, apropriando-se de suas terras. A legislação vigente
proibia a escravidão indígena com uma ressalva: caso o índio fosse capturado em uma
guerra justa.
Para as autoridades coloniais, desde sempre, a guerra contra os tapuias era considerada
justa. Provocava-se intencionalmente um conflito apenas para suprir a demanda por
mão-de-obra de forma legal. A escravidão indígena tornou-se assim um negocio
lucrativo.
Os tapuias eram o maior empecilho para a emergente economia pastoril que avança
sertão adentro. O governador geral Matias da Cunha convocou o capitão Domingos
Jorge Velho, o mesmo bandeirante que destruiu o Quilombo dos Palmares, para que este
partisse “com todas as forças que tiver sobre aquele bárbaro, e fazer-lhe todo o dano que
puder. Espero que não só terão todas as glórias de degolarem os bárbaros, mas a
utilidade dos que aprisionarem, porque por a guerra ser justa resolvi em Conselho de
Estado, que para isso se fez, que fossem cativos todos os Bárbaros que nela se
aprisionassem”.
Acontece que os tapuias não estavam dispostos a renunciar suas terras e servir como
escravos da forma como esperavam os colonos, para sua surpresa as tribos tapuias se
uniram em uma espécie de confederação bárbara, deflagrando na capitania do Rio
Grande, em 1687, uma guerra que se alastraria pelo Nordeste brasileiro, de Alagoas ao
4. Ceará, até 1700, espalhando terror e destruição pelo sertão nordestino. Fato que ficou
conhecido como Guerra dos Bárbaros.
Entre as tribos Tarairiús, a mais temida pelos portugueses da Capitania eram os Janduís.
Após assimilarem as táticas e os equipamentos de guerra dos holandeses converteram-se
em exímios atiradores e cavaleiros. A rainha, em carta ao governador de Pernambuco,
esboça preocupação a respeito dos Janduís: “... por terem já muita quantia de cavalos
em que se exercitam como doutrinação que lhes deixaram os holandeses”.
O fidalgo, José Lopes Ulhoa, escreve ao rei de Portugal “Estes Tapuyos a que chamam
Jandoins são muitos diferentes dos outros porque não tem aldeias nem parte certa em
que vivam e sempre andam volantes sustentando-se algumas vezes dos frutos da terra e
caça que matam e outras de algum gado que lhes dão os vaqueiros ou eles lhes roubam
[...] Querer castigar estes homens por força das Armas me parece quase impossível e
muito inconveniente [...] os não poderão alcançar pela ligeireza com que este gentio
marcha e pouco peso das armas que levam sem lhes ser necessário carregar os
mantimentos com que se hão de sustentar”.
Os Janduís tornaram-se peritos em cavalos, superando em alguns casos os próprios
vaqueiros, ameaçando a expansão dos pastos sertão adentro. Como relata o conde
Miranda Andrada à rainha de Portugal, em 1659 “e hoje se vão fazendo poderosos, por
terem muita criação de éguas, e com qualquer disciplina nos poderão fazer muito dano”.
Várias nações indígenas adquiriam armas de fogo através de transações com piratas
estrangeiros. Como afirma Matias da Cunha, em carta de 1688 ao bispo governador de
Pernambuco: “Uns afirmam que os navios de Piratas que por vezes entravam o Rio Açu
(navegável de embarcações maiores por distância de oito léguas em cujas ribeiras havia
de uma e outra parte muitos currais de gado) comerciando com tapuias Janduís lhe
deram as armas e munições com que pelejam: e outros, que tendo o mesmo comércio
com eles o Capitão-Mor da Fortaleza do Ceará, lhe dera pólvora, e munições que ainda
lhe duram”.
Em julho de 1694, Morais Navarro em carta ao rei, fala que esses tapuias: “faziam
pazes com qualquer navio estrangeiro que viera aquela costa, pois tanto suspiram pelos
holandeses (...) só eles bastavam para nos conquistarem por terra pois são tantos como
as folhas, e no valor não lhes excedemos mais que na desigualdade das armas”.
5. Os colonos, assustados pelos roubos e massacres, debandaram-se para as capitanias
vizinhas, fazendo com que os tapuias dominassem um vasto território da Capitania. Em
Natal a pena para quem fugisse era a prisão e o confisco dos bens. Os que restaram
erguiam casas fortes improvisadas com paliçadas para defender-se. O capitão-mor
Pascoal Gonçalves emitia apelos desesperados aos governos da Paraíba, Pernambuco e
Bahia. E mesmo com reforços vindos da Paraíba e Pernambuco, os tapuias já se
aproximavam de Ceará-Mirim, a apenas cinco léguas da capital. Nesse momento do
conflito, a Capitania estava a um passo de ser conquistada pelos indígenas.
Em carta do Senado da Câmara de Natal, dirigida ao Rei, contabiliza-se um prejuízo de
duzentos colonos mortos e trinta mil cabeças de gado, além de mil cavalos. O prejuízo
econômico para a Capitania foi imensurável.
Os mártires
No sertão potiguar, haviam dois grupos etnográficos predominantes, os Tarairiús e os
Cariris, ambos eram denominados de tapuias. O nome tarairú deriva do peixe taraíra,
conhecido como traíra. Os Tarairiús habitavam os sertões há séculos, senão milênios, já
os Cariris habitavam inicialmente o litoral, tendo sido expulsos pelos Tupiniquins e
Tupinambás, refugiando-se no interior. A expressão “caboré”, utilizada pelos
natalenses, denominava uma tribo Cariri. Os Caborés, que habitavam originalmente a
região de Apodi, foram aldeados, entre outras localidades, em Macaíba, no engenho
Ferreiro Torto, a 18 km da capital.
A Capitania do Rio Grande abrigava a maior concentração de Tarairiús da colônia,
tendo como epicentro a região de Açu, onde viva a tribo dos Janduís. De acordo com
Câmara Cascudo, o nome Janduí – que em tupi significa aranha pequena – teria
derivado da palavra Nanduí, que significa ema pequena. Durante a invasão holandesa à
Capitania do Rio Grande, época em que os Janduís eram os principais aliados dos
holandeses, o brasão da Capitania era representado por uma Ema.
Janduí tinha 50 mulheres e 70 filhos, viveu mais de 100 anos. Dificilmente faziam
casas, seu acampamento sempre era transitório, sendo queimado após abandonado.
6. Dormiam ao relento, na terra, sem nada por baixo do corpo. Não andavam a noite
devido ao perigo das cobras. Seu nomadismo fazia com que percorressem grandes
distâncias, difundindo sua influência espacial por grande parte do nordeste brasileiro.
O filho de Janduí, Canindé, após a expulsão dos holandeses e um risco iminente de
extinção de sua tribo por parte dos portugueses, rende-se e assina uma trégua. Diante de
uma situação de extermínio, os Janduís souberam com muita destreza garantir
diretamente com a Coroa Portuguesa um acordo de paz único na história brasileira,
obtendo o reconhecimento de reino autônomo, vassalos diretos do próprio El Rei.
Ao Rei interessava manter sob controle essa lendária e temida casta de guerreiros que
podia ser-lhe útil contra outros índios. Utilizando uma estratégia que fora bem sucedida
na África, de acirrar conflitos entre grupos indígenas locais.
Entretanto, o acordo de paz assinado diretamente com Portugal não foi bem quisto pelos
colonos. As autoridades coloniais portuguesas na Capitania durante o século XVII
tinham como principal projeto político o extermínio dos tapuias. Alguns tendiam para o
aldeamento como o governador Bernardo Vieira de Melo, outros para o conflito armado
como o comandante do terço paulista Manuel Navarro.
A partir de então, a guerra passaria a ser de extermínio. Não importa mais se iriam ser
mortos, escravizados, ou gerariam caboclos, os tapuias deveriam desaparecer.
Sentimento compartilhado por autoridades coloniais e religiosas. O frei Manoel da
Ressureição, por exemplo, contra as ordens do Rei, coagia os colonos a não “esperar
defensivamente nos Arraias“, mas sim, seguir os indígenas “até lhes queimarem e
destruírem as Aldeias, e eles ficarem totalmente debelados, e resultar da sua extinção,
não só a memória, e temor do seu castigo, mas a tranquilidade, e segurança com que
Sua Majestade quer que vivam, e se conservem seus vassalos, como por tão duplicadas
ordens tem recomendado a este Governo”.
Em carta de janeiro de 1699, D. João de Lencastro, clama ao capitão-mor da capitania,
Bernardo Vieira, para que este conceda “ao Mestre de Campo todos os que lhe pedir
para a dita conquista, em que Vossa Mercê há de por todas as forças, para que aqueles
Bárbaros fiquem extintos de todo.” O resultado não foi nenhuma surpresa, os que não
foram mortos foram aldeados, como os Ariús, uma tribo Tarairiú, perseguidos sertão
adentro, foram reduzidos em um aldeamento chamado Capina Grande. Para realizar o
7. empreendimento contrataram os melhores mercenários que haviam na colônia, os
paulistas.
Os Janduís e demais Tarairiús remanescentes foram pacificados e aldeados a centenas
de léguas de seu território original. Muitos foram forçados para o litoral, como os
Canindés, que foram aldeados em São João da Ribeira do Cunhaú, não muito distante
de onde ocorreu o primeiro massacre. Seus traços ainda são evidentes na população de
Canguaretama e cercanias, sua marca foi mais persistente do que o sangue santo na
capela. O homem do sertão dilui-se em homem mar, homem cana, homem útil.
Jangadeiro, olhar sereno e mão firme não mais para projetar a lança, mas sim, para
arquear a tarrafa sob o cardume de tainhas, mão forte não mais para golpear sua clava,
mas sim, para cortar a cana que alimenta as usinas.
Na missa de beatificação, o então Papa e futuro Santo João Paulo II, nos lembrou que os
mártires da Capela de Cunhaú pertenciam a uma geração de mártires que regaram o solo
para a geração de novos fiéis. O mártir é aquele que tem fé, aquele que acredita. Morre
pelo que acredita porque não poderia agir de outro modo. Em todo o sertão os Tarairiús
morreram. Secos pela luta e pelo sol podem até não ter regado o solo em que tombaram,
mas regaram a alma e o corpo do nordestino com força e destreza. Sua morte gerou
fiéis, cangaceiros, jangunços, profetas, todos igualmente crentes. Sua morte gerou
Canudos.
Na aridez da caatinga, no rastro dos Tarairiús, surge à civilização do couro, com ela um
novo homem, meio tapuia, meio negro, meio beduíno, completamente nordestino. Esse
homem, posteriormente, viria a construir e povoar todo um país.
Publicado originalmente na Carta Potiguar em 01/10/2013:
http://www.cartapotiguar.com.br/2013/10/01/os-martires/