1) O documento descreve a história de Nha Bibiana, uma comerciante guineense do século XVII que vivia em Cacheu, um importante porto de tráfico de escravos na Guiné.
2) Após a morte de seu marido, um rico comerciante de escravos, Nha Bibiana liderou uma rebelião contra o comandante militar português em Cacheu, prendendo-o por abuso de poder.
3) A rebelião revelou o conflito entre os interesses comerciais dos mercadores locais e os inter
A história de Nha Bibiana, uma poderosa comerciante guineense do século XVII
1. Fortes imagens emanam dos documentos do século XVII sobre
umamulher comerciante chamada Bibiana Vaz de França,
coloquialmenteconhecida como Nha Bibiana (Nha no crioulo da
Guiné, e também de CaboVerde: senhora). Guineense de nascimento
e membro de uma influenteganmercantil, estabelecida num desses
entrepostos “portugueses” decomércio costeiro, ela ocupa um lugar
especial nos escritos do últimoquarto do século XVII. Cacheu,
situada numa posição estratégica na fozdo rio do mesmo nome,
naquela que hoje é chamada de Guiné-Bissau,mas que, então, era
conhecida como “Guiné de Cabo Verde”, era, então,um importante
porto de atracção para traficantes de escravos, do qualestima-se
que três mil escravos eram exportados anualmente. O lugar,onde
anteriormente existia uma tabanka, ou seja, uma aldeia no território
controlado pelos Pepel matrilineares, foi fortificado, nos anos
1580,por comerciantes privados, os chamados lançados com os
negros etangomaos ou tangomas.Eles geralmente tinham um
ancestral cabo-verdiano na linha masculina, mas eram guineenses
pela linha feminina,embora alguns tivessem ascendência
portuguesa. A permissão para afixação foi dada pelos Pepel,
dunusditchon em crioulo (derivado do português “donos do chão”),
aos ditostangomaos , que viram a construção de uma fortificação
como uma medida de protecção.
Os dunusditchonda comunidade Banhun, noutro lugar ao longo do
Rio Cacheu, supostamente os tinham tratado mal e, além disso, eles
também precisavam seproteger contra os ataques dos
competidores rivais europeus. Os produtores locais forneciam
géneros alimentícios, tais como arroz, milhete,milho, carne,
lacticínios e sal para o sustento de seus habitantes. Apósreceber o
“direito de cidade” da Coroa portuguesa (em 1605) e ter-
seconvertido numa “capitania”, Cacheu logo se tornou o principal
entreposto“português” para o tráfico de escravos, mas também
exportava cera deabelha, marfim, panos de algodão e peles
animais.
Todavia, durante séculos, o reconhecimento do valor deste
distritomilitar (capitania) e fortaleza (presídio), por parte da
monarquia portuguesa foi dificultado devido à objecção desta à
presença de comerciantesprivados que negociavam com nações
europeias rivais e deixavam depagar impostos. Isto se deu
2. precisamente devido ao controle que ostangomaos e seus
descendentes, muitos com raízes sefarditas e perseguidos pela
Inquisição e pela Coroa, exerceram sobre grande parte dastrocas
comerciais na região, o que contrariava os interesses dos
portugueses estabelecidos, que reclamavam direitos de monopólio
sobre talcomércio. A administração dessas cidades-fortalezas
esteve,alternadamente, nas mãos de oficiais portugueses e
africanos, geralmente recrutados no arquipélago de Cabo Verde e
nos gan mercantis locais.
Ao mesmo tempo, comunidades de africanos baptizados, os então
chamados “cristãos por ceremónia” ou kriston que incluíam uma
população heterogénea, desde escravos domésticos até
profissionais e comercianteslivres que tinham se estabelecido em
áreas localizadas em torno da cidade fortificada, tinham seu próprio
governo independente, dirigido pelos“juízes do povo”. No início do
século XVII, Cacheu possuía vinte outrinta “vizinhos” mas, nas
últimas décadas do mesmo século, estimou-se um total de 400 a
500 “vizinhos”, um estatuto limitado aos que viviam como
“portugueses livres”, isto é, que excluía os escravos. Documentos
contemporâneos, entretanto, não deixam dúvidas sobre o seu
alegado estado pecuniário lastimável, sugerindo que os habitantes
ricos eram aqueles que viviam e comerciavam no interior.
A presença de brancos residentes, nascidos na Europa, era ainda
mais ínfima, indicando que os que se intitulavam “brancos” eram
nascidos localmente, e simulavam sua brancura calçando sapatos.
A taxa de mortalidade entre os residentes era apontada como sendo
alta, de tal modo que, no início do segundo quartel do século XVIII
só seis “moradores” estavam ainda registrados. Realçavam-se,
assim, os problemas de aclimatização e das doenças tropicais,
numa zona desprovida de qualquer apoio médico exterior. Essa
camada social afro-atlântica, direccionada para a troca mercantil e
a administração política, efectivamente ganhou o controlo do
comércio regional costeiro e fluvial entre o final do século XVI e o
iníciodo XVII. Nas primeiras décadas do século XVII, as autoridades
cabo-verdianas protestaram contra a presença de “muita gente da
nação”, istoé, judeus sefarditas, que negociavam com os
holandeses, ingleses e franceses, e tinham o seus próprios
exércitos de escravos.
3. Na época, a concorrência entre as nações europeias, incluindo
Portugal, França, Grã-Bretanha e Holanda, pelos lucros do tráfico foi
ainda mais intensa, apósquase um século e meio no qual traficantes
“portugueses” exerceram omonopólio Atlântico. As redes de
tangomaos eram baseadas no parentesco e coabitação com as
linhagens governantes que controlavam osrecursos humanos e
materiais entre os grupos litorâneos, permitindo-lhes monopolizar o
comércio fluvial com acesso baseado na terra. Cronistas
contemporâneos associaram os “portugueses” à camada de
mulatos que garantiam grande parte da renda do comércio regional.
Porvolta da segunda metade do século XVII, tinham emergido
algunsganque combinavam o acesso às rotas para o comércio
Atlântico com vínculos certos com os fornecedores africanos locais.
Os mais poderosos gande Cacheu foram o Gomes, com origens
sefarditas, e o Vaz de França,relacionado aos grupos matrilineares
Banhum e Pepel. Este último controlava as áreas ribeirinhas do Rio
Cacheu e tinha em Farim sua principalfonte de comércio. Farim
encontrava-se no limite das marés, no perímetro ocidental da
confederação de Kaabú. Estando nas mãos dos Soninké,esta se
desvinculou do império do Mali no século XVI, e exerceu umdomínio
incontestado sobre as rotas comerciais com a região do AltoNíger,
no interior, até o século XIX. Redes comerciais marítimas eram,
sobretudo, articuladas para a compra de noz de cola na região de
SerraLeoa, mais ao sul, e a sua troca, com barras de ferro e sal, por
escravose ouro na área de Farim. A criação, por decreto real, mas
com fundos privados, da Companhia de Cacheu, em 1676, tinha
como intenção tomar conta deste lucrativo comércio. Protestos de
várias partes de CaboVerde e da Guiné já sugeriam que a
companhia não era particularmentebem vinda pelos interesses afro-
atlânticos locais.
O principal obstáculo foi a proibição, por parte da companhia, aos
“moradores” de Cabo Verdee das terras firmes, de comerciarem
com os estrangeiros. Isto, a despeito dos apelos dos comerciantes
de Cacheu no sentido de que o rei, D. João IV,deveria se “lembrar
deste povo” e garantir-lhe a liberdade para participardo comércio
transatlântico, como faziam os seus congéneres em Cabo Verde.Por
fim, afirmaram que “como o nosso comércio é somente o resgate
deescravos e senão tivermos saída para elles pela mesma via será
4. impossívelsenhor podermos sustentar as nossas famílias”.
Uma das pessoas mencionadas no decreto de criação da
Companhia foi Ambrósio Gomes, marido de Nha Bibiana, um rico
traficante deescravos, com raízes africanas e sefarditas, que já
tinha ocupado o posto de capitão-mor e era visto como um futuro
director da companhia. Nascido em Cacheu em 1621, as suas raízes
paternas apontam para avila de Arraiolos, no Alentejo, onde passou
uma parte da sua infâncianuma família de origem sefardita. Sua
mãe era originária das IlhasBijagó, situadas defronte à costa da
actual Guiné-Bissau, que duranteséculos foram importantes fontes
de escravos. Ele era tido como alguém capaz de inspirar mais medo
e respeito do que o então governadorde Cacheu, um morgado —
proprietário de terras — em Cabo Verde queestava encarregado da
companhia. Desde os anos 1640, Ambrósio Gomes regularmente fez
ouvir sua voz em Lisboa, reclamando do tratamento desigual
dispensado aos comerciantes guineenses, em comparação comos
cabo-verdianos. Uma fonte francesa descreveu-o, a ele e a seu
filhoLourenço, como “negros, mas civilizados e respeitados em seu
país”.
Embora os dados biográficos sobre a vida de Bibiana sejam muito
sumários, sabemos que ela nasceu no início do século XVII. As
primeirasreferências ao apelido Vaz, de origem cabo-verdiana,
remontam ao século XVI e sempre estiveram associadas ao rio
Gâmbia, conforme atestauma menção ao primo de Nha Bibiana,
Francisco Vaz de França em cartaao Rei escrita pelo então capitão-
mor de Cacheu em 1647. Muito pouco se sabe deNha Bibiana antes
da morte do seu marido Ambrósio Gomes, além do facto de já estar
casada nos anos sessenta. Embora faltem dados conclusivos
acerca do seu casamento com Ambrósio Gomes,a aliança entre os
dois gan foi significativa. Logo após a morte de seumarido, em
1679, uma disputa com o recém-indicado comandante militar de
Cacheu, José de Oliveira, catapultou-a, já em idade avançada,para
os livros de história. Ao fazer cumprir a “regra da exclusão”,
queproibia todo comércio com os “estrangeiros” — holandeses,
ingleses efranceses —, ignorando, assim, a recusa da comunidade
mercantil localem reconhecer o contrato da companhia, o
comandante precipitou a suaprópria queda. Bibiana, seu irmão
Ambrósio Vaz e seu primo Franciscoarmaram uma emboscada e
5. fizeram-no prisioneiro em 25 de Março de1684, assim que saiu da
missa celebrada no hospício católico local. Elefoi algemado como
um escravo e humilhado diante da comunidade deCacheu, quando
Bibiana declarou-o, publicamente, culpado de abuso depoder. A
seguir foi mandado rio acima, para Farim, onde foi mantido pormais
de um ano no apertado e escuro corredor de uma casa que
Bibianatinha lá. Pouco antes do “golpe”, os comerciantes de Cacheu
tinhamfeito uma petição acusando-o de “injustiças, desonras,
tiranias, roubose aleivosias” além de deslealdade e furto.
Relatos posteriores claramente identificam Bibiana como a
dirigente que estava por trás da conspiração. Foi dito que todos os
encontrosdos rebeldes tiveram lugar em sua casa, em Cacheu, e
que foi ela que, efectivamente, recebeu os assessores do
comandante após sua prisão.Apesar disso, a declaração que se
seguiu à prisão, num tom marcadamente“republicano”, trazia a
assinatura de seu irmão, na épocaum dos maisricos comerciantes
afro-atlânticos da região. Em vez de ser uma chefenominal,Nha
Bibiana foi a mais respeitada anciã do clã, mas não
exerceunenhuma função administrativa e não sabia escrever o
português. Emvez de ser uma figura secundária, que permaneceu
nos bastidores comomuitas de suas congéneres, ela, por causa de
sua extensa clientela, quetanto era atlântica quanto africana,
desempenhou um papel-chave nosacontecimentos. Os eventos que
se seguiram demonstram o estreito relacionamento entre ela, seu
irmão e seu sobrinho, que apoiaram seus actos.
Uma vez que o eminente prisioneiro não era somente o
comandantemilitar, mas também o director local do monopólio da
coroa portuguesarepresentado pela companhia comercial, a revolta
revelou o profundo eenraizado conflito entre os interesses
portugueses na região e os dosganmercantis locais. Ao reclamar
poder político, os revoltosos declararam:
1. não admitir capitão desse Reino, nem destas Ilhas [de
CaboVerde], sem primeiro dar conta a Vossa Majestade, e
esperarque saia „resolução‟;
2. nenhum Português negociará com os gentios, mas só com
osmoradores da praça com pena do perdimento das fazendas;
3. não queriam nem haviam de aceitar como não aceitaram
ocontrato da Companhia, instituído por especiais ordens da VM,nem
6. tão pouco admitir na praça, nem ainda como particulares,os
administradores della.
No dia seguinte aos eventos acima narrados, Ambrósio, junto
comoutros notáveis de Cacheu, assumiu o poder sob a forma de
triunvirato,apreendendo todos os bens do comandante e a
propriedade da Companhia. A “república de Cacheu” tinha sido
declarada, segundo os termosusados na sindicância feita depois.
Apesar disto, os rebeldes não esqueceram, ao menos formalmente,
de reiterar sua fidelidade ao rei. Apesardo facto de que uma
multidão, incluindo escravos, tinha tomado parte naprisão do
comandante, a sindicância afirmou que “o povo”, em nome doqual
decerto tinha sido elaborada, não tinha tomado parte nem
tinhaapoiado genuinamente a revolta e, supostamente, tinha sido
conduzidopelo medo e pela ignorância.
Quando a notícia chegou a Lisboa, a situação causou grande
embaraço e preocupação às autoridades portuguesas, temerosas de
perder oseu principal porto continental na costa da Alta Guiné. O
conflito deveser visto como um reflexo da situação de facto , do
acentuado declínio dosnegócios portugueses, sobre o qual
conselheiros e funcionários bem informados vinham alertando
desde o final do século XVI. Desde então, acrescente competição
por parte de outras nações europeias, tais como aFrança, a Holanda
e a Inglaterra, tinha enfraquecido o monopólio afro-atlântico
português. O facto de que os rebeldes de Cacheu estavam
negociando com comerciantes ingleses e franceses, que eram
vistos comoinimigos, sublinha o contexto euro-atlântico do conflito.
O “golpe” deCacheu, se tivesse sucesso, implicaria no abandono de
qualquer esperança portuguesa de competir com os rivais europeus,
além de acarretara perda do lucrativo comércio com o Kaabú, no
interior. E o fato de que,dentre todas as pessoas, uma mulher, e
ainda por cima africana e idosa,estava frustrando os planos
portugueses na região, era outra grande cruza ser carregada pelos
estrategistas políticos de Lisboa. A curta vida daCompanhia, que foi
seguida de outros esforços monopolistas igualmentefracassados
nos anos 1690, só serviu para acentuar esta situação. Intervindo, as
autoridades portuguesas provaram, sem sombra de dúvida,que os
operadores afro-atlânticos, incluindo os crioulos, kriston e
fornecedores africanos, estavam claramente em vantagem, e assim
7. permaneceriam pelos próximos duzentos anos.
A parceria entre Nha Bibiana, viúva, e seu irmão, então com seus
cinquenta e tantos anos, é crucial para a compreensão do espaço
socialno qual os conflitos tiveram lugar. Seus fortes laços
colaterais, estabelecidos por meio da coabitação e dos casamentos
mistos com linhagensafricanas governantes, reproduziram um
padrão de interacção afro-atlântica que facilitou a tessitura das
redes interculturais altamente fluidas,pelas quais a região era
conhecida. Estas encarnavam a efectiva combinação entre
mobilidade geográfica e social, que lhes permitiu assumir ocontrole
do comércio regional. Seus “descendentes mestiços”
representavam a essência do parentesco bilateral num contexto
matrilinear característico dos gan mercantis da região. Foi
precisamente esta configuração que deu a mulheres como Bibiana
uma base de poder sociocultural que elas transformaram em
riqueza económica e influência política.
Seu controle partilhado sobre os recursos e o apoio recebido dos
dignitários africanos locais também ilustra a existência de uma
flexível divisãode responsabilidades, que provou ser um factor
decisivo em sua capacidade de iludir as autoridades portuguesas.
Inúmeros eventos servem paraelucidar o contexto local, por
exemplo, a petição de Lourenço Gomes,filho do casamento anterior
de Ambrósio Gomes, para obter a herançado pai; a sindicância entre
os moradores de Cacheu acerca do papel deBibiana no “golpe”; a
localização de sua propriedade e as suas relaçõescom as linhagens
dirigentes Banhum; sua ida a Cabo Verde e a questão deseu
analfabetismo.Os documentos mostram que Lourenço Matos Gomes
tentou, emvão, obter a herança a que ele, pela lei patriarcal
portuguesa, teria direito. Ele endereçou uma petição ao rei
português, afirmando que, imediatamente após a morte de seu pai,
tinha tentado fazer uma distribuiçãoequitativa (ou que ele via como
tal) do espólio com sua madrasta, o queresultara em fracasso. Isto
é revelador, e particularmente ilustrativo, dastradições de
parentesco bilateral da costa. Na petição, afirmou que «por morte
do seu Pay, AmbrosioGomez, capitão mor que foidaquelle praça,
ficara ellesupplente habilitado por seu herdeiro de muyta
quantidade de fazenda, e em razão o ditto seu Payestar cazadocom
Viviana Vás, se metera de posse della comoCabeça de Cazal,
8. fazendose tão poderosa com dadivas e quedesde o anno de 1679 em
que seu Pay falecera athe o prezente,elle não fora possivel fazer lhe
fazer inventario, e partilha quehiadecipando, e consumindo de
maneira que não viria elle depois a herdar couza alguma».E
acrescentou, significativamente, que «a falta de justiça que
malnaquellas partes, sem poder, se podia administrar, ou por razão
de muitoque grangear a indústria de quem sabia negociar em terras
tão faltas deletrados que só vencia as couzas, que melhor com a
intelligenciaprópria as meneiava”. A despeito de suas repetidas
tentativas e do apoio de Lisboa, ele nunca conseguiu obter o que
pedira.
A sindicância sobre a revolta entre os moradores de Cacheu
(ocorrida em 1687) demonstra o quanto Bibiana foi aviltada e
acusada decomerciar livremente com os africanos e outros
europeus, como os ingleses, especialmente na calada da noite, sem
recolher qualquer impostoaos cofres de Cacheu. Usando estes
argumentos como pretexto — porque, afinal de contas, todos
negociavam com os comerciantes rivais operando na região e que
pagavam mais —, pedia que “aquela mulher” —algumas vezes
também mencionada como “a viúva” — fosse mantidasob custódia e
submetida a julgamento, e que fosse feito um inventário desuas
posses. Os sindicantes acrescentaram que seria também
aconselhável colocar o seu irmão e o seu primo por trás das grades,
pois, do contrário, eles poderiam esconder a riqueza da família
obtida ilegalmente.Enfatizaram que ela deveria ser julgada em Cabo
Verde, não só sugerindoque o então comandante não tinha nenhuma
influência significativa sobrea administração, mas que queriam
remover o gan Vaz do poder.
Quando Bibiana foi, finalmente, feita prisioneira, ela se beneficiou
da hospitalidade de um chefe linhageiroBanhum, ou udjagar
(djagraem kriol), em cuja casa ficou. O relato de sua captura dá-nos
alguma ideia dos problemas encontrados por aqueles enviados para
realizar estatarefa: «Grandemente me fez Deos em me livrar de
Guiné sem que meenchessem a barriga de pssonha, que foy la muito
mal aceito nointerior, mas como eu me vir dessa banda com o favor
de Deosfallarey, e tudo ha de ser verdade; o que direyathéhe que se
aminha lealdade não fora tanta ficara Bibiana Vas em Guinémetida
no gentio porque atirei de caza de hum Rey para ondefugio, fazendo
9. a vir a praça com minhas industrias».O oficial foi obrigado a investir
largas somas de seus própriosrecursos em presentes, a fim de
convencer os parentes e anfitriões aentregá-la. Mas pouco ele
conseguiu ter de volta, uma vez que as possesde Nha Bibiana não
puderam ser encontradas pois os “os bens desta mulher estão todos
em terras de gentios, e por isso se lhe não achou quasinada no
sequestro que se lhe fez”. Embora seu primo Francisco (Vaz de
França) estivesse fora, negociando na costa, não seria possível
persegui-lo “porque os que andam ausentes, não é fácil acolhelos a
mão”,demonstrando mais uma vez a debilidade portuguesa na
região. O oficialainda acrescentou que “de Gambia sahiam dois
navios a esperarme nabarra de Cacheu” — o que conseguiu evitar —
para “tirarme a BibianaVaz, e neste caso é certo havia de pelejar
até morrer”.
Na verdade, durante a ausência deNha Bibiana, toda a sua
riqueza foi guardada por seu primo, convenientemente ausente.
Portanto, sóseus escravos poderiam ser confiscados, porém todas
as tentativas defazê-lo levaram-nos, imediatamente, a fugir para o
“gentio”. Numa petição feita por Bibiana quando estava detida em
Cabo Verde, ela afirmou que levá-la para Portugal, para ser julgada,
não só a mataria, velhae doente como estava, atacada pela malária,
mas que sua contínua ausência da Guiné poderia levá-la a perder,
para seus rivais, todas as suasposses. Neste meio tempo, ela
obteve o apoio dos mais ricos e influentes comerciantes cabo-
verdianos, que garantiram sua segurança e sustento enquanto
esteve no arquipélago. Isto demonstra a dimensão Atlântica de seu
status africano no contexto regional, sua influência e autoridade.
Quando a Nha Bibiana, finalmente, foi concedido o perdão real,após
ter pagado uma soma simbólica como indemnização pelas
perdassofridas pela Coroa, ela retornou à Guiné e moveu uma
vigorosa campanha para libertar seu irmão que, afinal de contas,
fora o seu principalparceiro nos eventos. No fim, tanto seu irmão
quanto seu primo foramperdoados. A lógica por trás desta mudança
de procedimento é significativa. Nem o facto de que o pagamento
de indemnização por parte doprimo tenha se mostrado impossível
de ser efectuado, nem o perdão aoprimo e irmão, por cuja soltura
ela tinha insistentemente lutado, aconselhavam a ser
imprudente:«se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz e aos
10. mais outrosmaiores subsidios, creio que tudo se perderá; porque
nem aspessoas se hão de colher para o castigo, nem se lhes hão
deachar os bens para satisfação das penas pecuniarias, e com
assuas ausencias e emnisios se inquietara a paz da praça,
comoexperimentei no tempo em que alguns deles passaram aos
gentios com o receio de serem prezos.
O mesmo sindicante admitiu que “todo aquelle povo está
reduzidoa excessiva pobreza, assim por occazião do comércio com
osextrangeiros, que lhe esgotarão o mais preciozo, como pela
esterilidadedo negócio com os Portuguezes, e remeças destas Ilhas
[de Cabo Verde]”. Esta sua crítica estava claramente dirigida aos
comerciantes portugueses em geral, às autoridades em Cabo Verde
e, sobretudo, aogovernador que, obsessivamente, tinha perseguido
Nha Bibiana. A fim de resolver este impasse sem perder
completamente a influência naregião, os sindicantes decidiram
obter uma declaração escrita, uma promessa e obrigação , mas
que não foi assinada directamente por ela, jáque se declarou
“analfabeta”. Este documento formalizou o acordoentre a coroa
portuguesa e Bibiana, que prometeu construir uma fortaleza de
pedra em Bolor, defronte a Cacheu, na barra do mesmo rio,
numaposição estratégica que controlava o acesso ao rio. Mas ela
somente ofaria em troca da soltura e do perdão ao seu irmão e
primo. Entretanto,afirmou, com certa ironia, que, por ser mulher,
não poderia levar a caboa construção do forte. Além disto, na região
não havia pedra considerada boa para construção, a qual teria de
ser trazida de Cabo Verde. Todavia, ela se declarou pronta para,
“voluntária e livremente”, pagar pelaconstrução. Levando-se em
conta a perda de bens sofrida durante edevido à sua ausência — ela
disse que tinha sido deixada somente coma posse de alguns
escravos — e o fato de que seu primo estava naposse de todos os
seus bens, ela teve de contar consigo própria parahonrar o
pagamento. A primeira parcela, com a metade do valor, deveriaser
paga quando seu primo chegasse a Cacheu, para o que não foi
fixada uma data, e a segunda deveria ser efectuada um ano depois.
Ela acrescentou que se devia “mandar-lhe restituição ao dito seu
irmão a estapraça soltandose da prizão em que está porque com a
sua pessoa continuara o negocio que não se pode perder por ser
molher”. E, comoforma de assegurar o cumprimento de seu lado na
11. barganha, ela deu emgarantia “todos os seus bens materiais”.
Depois de tudo o que foi dito efeito, pode-se imaginar o que, na
prática, realmente significava esta garantia, já que nenhum desses
bens podia ser acessado por estrangeiros.
Depois de soltos, seu irmão Ambrósio e seu primo Francisco
tornaram-se alvos das autoridades de Lisboa, Cabo Verde e Guiné.
Francisco,referido como “primo de Bibiana”, foi acusado de
crueldades, tais comoter matado brutalmente alguns de seus
escravos e “causado terror atodos e ao gentio” na área do Rio
Nunez mais ao sul. Um inquérito foiordenado para que se pudesse
dar-lhe um “exemplar castigo”. Ambrósio tornar-se-ia um dos
críticos mais abertos das políticas e do apoio — ouda falta de
ambos — de Lisboa, durante os trinta anos seguintes, incluindo a
falta de ajuda para lidar com as ameaças dos africanos. Quasetodas
as petições formuladas pelos comerciantes de Cacheu, nesse
período, traziam sua assinatura. Nada foi mencionado sobre Bibiana
nos documentos após 1694, o que não surpreende, levando-se em
conta asua idade já avançada e o seu estado de saúde.
Fonte:
Philip J. Havik
A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO
COMERCIAL: UM BALANÇO COMPARATIVO DA PRODUÇÃO HISTÓRICA SOBRE
A REGIÃO DA GUINÉ-BISSAU SÉCULOS XVII E XIX
Afro-Ásia, número 027
Universidade Federal da Bahia
Bahía, Brasil
pp. 79-120