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CARNAVAL: FATO E FANTASIA
UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL
Marcos Goursand de Araújo
Tese apresentada para concurso de professor titular ao Departamento de Psicologia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Belo Horizonte, setembro de 1991.
Carnaval é movimento, é erotismo,
é comportamento. Evoca as contradições da
própria vida. Ao concretizar as ilusões,
as fantasias, o faz de conta, o carnaval
se torna o palco onde o formal desaparece,
a máscara social cai e as pessoas se
revelam como são; em que a beleza e
grandeza dos personagens ideais convivem
com a insegurança e fraqueza dos atores
reais. Atores que somos nós neste
carnaval que é a vida.
SUMÁRIO
Este trabalho pretende estudar o carnaval brasileiro como um fenômeno de comunicação e,
assim, suas expressões individuais e coletivas, verbais e não-verbais. Comemorações, movimentos
corporais, gestos, rituais, jogos, danças, vestimentas, ornamentos, alegorias, imagens, estão
impregnados por rico e complexo simbolismo, no qual predomina a linguagem não-verbal. Apesar
de ser uma celebração expressiva, o carnaval tem se tornado cada vez mais institucionalizado e
sujeito a influências políticas e econômicas. No entanto, uma análise das suas formas de expressão
nos mostra que o carnaval também é um fenômeno comportamental psicossocial em que cada
elemento é um meio de comunicação para expressar necessidades individuais e coletivas, desejos,
sentimentos, emoções, fantasias.
SUMMARY
This work is intended to study Brazilian carnival as a communicational phenomenon and so
their individual and collective, verbal and non-verbal expressions. Celebrations, body movements,
gestures, rituals, games, dances, clothing, ornaments, allegories, images are impregnated by rich
and complex symbolism, in which predominates the non-verbal language. Despite being a
significant commemoration, carnival has become more and more institutionalized and subject to
political and economic influences. However, an analysis of its forms of expression shows that the
carnival is also a psycho-social behavioral phenomenon in which each element is a medium to
express individual and collective needs, desires, feelings, emotions, fantasies.
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO 5
ETIMOLOGIA 7
UM POUCO DE HISTÓRIA 8
O ENTRUDO, ANTECESSOR DO CARNAVAL BRASILEIRO 11
O MODERNO CARNAVAL BRASILEIRO 12
OBJETIVO 14
ESTRUTURA E DINÂMICA DO CARNAVAL 15
CARNAVAL ORGANIZADO 17
CARNAVAL ESPONTÂNEO 21
CARNAVAL DE SALÃO 22
CARNAVAL POPULAR E DE MASSA 24
REALIZAÇÃO SIMBÓLICA DE NECESSIDADES, DESEJOS E FANTASIAS 26
CARNAVAL É COMUNICAÇÃO SIMBÓLICA 27
FANTASIAS E ALEGORIAS: ELEMENTOS PLÁSTICOS DE
REPRESENTAÇÃO E COMUNICAÇÃO SIMBÓLICAS 29
LIBERAÇÃO DE NECESSIDADES REPRIMIDAS 32
ALGUMAS CONCLUSÕES 35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 38
ANEXO 1 41
ANEXO 2 45
APRESENTAÇÃO
O carnaval tornou-se, sem dúvida, a maior e mais significativa festa popular brasileira. Em
nenhuma outra parte do mundo, uma festa popular atingiu conjuntamente tamanhas proporções em
número de participantes, riqueza, complexidade, extensão, intensidade e originalidade de suas
manifestações. São milhões de pessoas, em todo o País, que dela participam intensamente durante
quatro dias.
Apesar de sua importância e significação, o carnaval tem sido pouco estudado pelos cientistas
sociais, sendo que a maior parte dos trabalhos existentes são de cunho antropológico e sociológico.
Desconhecemos abordagens psicossociais do assunto. Isto parece ocorrer também com outros
fenômenos de multidão, como o comportamento das pessoas em estádios de futebol, "shows" musicais,
apresentações de artistas populares, concentrações religiosas, comícios políticos, passeatas, no que
somos obrigados a concordar com Stoetzel (1963) quando nos diz que "embora se possa facilmente
perceber a riqueza da matéria, a Psicologia Social tem mostrado, indevidamente, um relativo desapreço
pelo estudo dos comportamentos coletivos dos homens".
Existem algumas razões para isto. A primeira e mais importante se refere à metodologia para
a pesquisa do fenômeno. Sua extensão, complexidade, mobilidade e transitoriedade tornam-se um
desestímulo a estudos científicos sistemáticos e a observação de campo torna-se o principal método
aplicável, dado que é difícil criar qualquer tipo de situação controlada. A maior parte dos fenômenos
carnavalescos são os comportamentos não-verbais dos participantes (danças, gestos, expressões) e as
mensagens analógicas transmitidas por fantasias, alegorias e enredos, constituindo-se em material que
sofre perda e modificação de seu significado simbólico ao ser interpretado e transposto para a
linguagem verbal do discurso científico.
Outra dificuldade que encontramos foi com relação à bibliografia. Existem poucos livros e
monografias a respeito do assunto. A maior parte do que existe é constituída de material jornalístico,
principalmente reportagens. Embora sabendo ser este de menor confiabilidade, tivemos que recorrer
também ao mesmo, à falta do outro. Assim, encontramos no decorrer do trabalho referências a este tipo
de material.
Em terceiro lugar, parece que temas como carnaval, candomblé, umbanda, futebol, política e
morte ainda não encontraram seu devido lugar no universo da Psicologia Social e de preocupações dos
psicólogos nativos. No caso específico do carnaval temos notado atitudes preconceituosas de muitos
colegas contra o mesmo, por não considerá-lo suficientemente "sério" para merecer maior atenção.
Muitas vezes um sorriso irônico e um olhar malicioso acompanham a surpresa em relação ao objeto de
nossa pesquisa. Há que se destacar ainda que o desenvolvimento da Psicologia e, em especial, da
Psicologia Social se deu especialmente fora de nossas fronteiras e distante de nossa realidade social.
Como, em geral, os modelos de pesquisa são oriundos dos Estados Unidos e da Europa, onde o
carnaval é desprovido de maior significação, não sendo por isso objeto de maiores estudos, acabamos
por repetir no Brasil, onde o fenômeno é tão importante, o mesmo desinteresse. Só mais recentemente,
a partir de 1980, com a criação da Associação Brasileira de Psicologia Social e o desenvolvimento de
uma postura mais crítica, socialmente engajada e não elitizada, os psicólogos brasileiros têm se
debruçado sobre as questões psico-sócio-culturais de nossa população.
A extensão, a complexidade, a mobilidade e a transitoriedade do fenômeno carnavalesco têm
se caracterizado em desafio e desestímulo a qualquer estudo mais sistemático e se revela desanimador
especialmente aos psicólogos preocupados com dados estatísticos rigorosos e com controle de
variáveis, o que no caso é praticamente impossível. Assim, pois, o primeiro problema que se coloca é o
da dificuldade metodológica. Ora, dentre os tipos de pesquisa mais aceitos e utilizados em Psicologia
Social (Sigelmann, 1984) somente o método descritivo pode ser convenientemente aplicado para
abranger a complexidade dinâmica do carnaval. Com isso, obviamente, perde-se em precisão e
fidedignidade mas, por outro lado, é impraticável fazer-se entrevistas e questionários durante os eventos
carnavalescos para chegar-se a um "survey" descritivo; aplicados após os eventos, para um estudo "ex-
post-facto", tais instrumentos não iriam refletir a realidade perceptual, afetiva e comportamental das
pessoas no momento da festa.
Entre tentar a formalização de uma pesquisa através de uma metodologia mais rigorosa e
precisa, mas que limitaria sobremaneira as possibilidades de seu alcance e riqueza e a ousadia de
livremente fazer observações e reflexões sobre o carnaval, optamos pela segunda direção. Muitas vezes,
a observação do fenômeno tem de ser feita de dentro do próprio contexto, com o observador
participando, vivenciando. É o que ocorre por exemplo nos bailes de salão. Numa atitude puramente
"fria", objetiva, ele pode perder aspectos importantes da comunicação especialmente a analógica, além
de, com sua atitude poder inibir a espontaneidade do indivíduo observado.
Apesar de todos esses percalços, entretanto, acreditamos ser possível, dentro de um enfoque
psicossocial, abordar algumas formas de expressão e comunicação, que são mais especificamente
encontradas no carnaval, com o fim de melhor compreender aspectos do comportamento humano e é o
que estamos tentando com este trabalho. Longe de ter a pretensão de estudar ampla e
aprofundadamente o assunto, estamos cientes de que, por ser esta a primeira tentativa de que temos
conhecimento nesta linha, ela se apresenta incompleta e com falhas. Se conseguirmos despertar o
interesse crítico dos estudiosos do comportamento para tema tão rico e complexo, teremos nos dado
por realizados.
ETIMOLOGIA
A origem do termo CARNAVAL é bastante discutível. Na Enciclopédia Italiana (1949), no
Dicionário Crítico Etimológico de la Lengua Castellana (1954) e no Grande Dicionário Etimológico
Prosódico da Língua Portuguesa (1964), encontramos na expressão latina "carnem levare" ou "carne
levare", que significa "suprimir a carne", a origem do termo italiano "carnavale", que em português e
espanhol resultou em "carnaval". Na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1966) e na Enciclopédia
Universal Ilustrada Europeo-Americana (1968) encontramos "Carnelevamen". Quaisquer dessas formas
seriam derivações do título dado pelo Papa São Gregório Magno, no século VI, ao domingo anterior à
Quaresma - "Dominica ad carnes levandas".
A segunda hipótese etimológica seria a expressão "Carne vale" - "Adeus carne!" - "título que
no início do cristianismo romano se deu à vigília da Quaresma e ao começo de uma fase penitencial em
preparo à Paixão e Ressureição de Cristo" (Athayde -1980). Encontramo-la também na Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura (1966) e na Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana (1968).
Esta última considera, que a etimologia mais sólida é a de "carrus navalis" porque lança luz sobre os
princípios da história do carnaval. Os "carrus navalis" eram barcos ou grandes carros alegóricos
imitando navios. No antigo Egito, as festas de Isis, que depois passaram a Roma, se encerravam com
desfile de embarcações pelo Nilo. Na Grécia existem referências pictóricas a esses carros já no século
VI A.C.. Em Roma faziam o cortejo de abertura das festas saturnais.
O historiador Francisco Martins dos Santos, citado por Bandeira Jr. (1974), descobre étimo
árabe na formação da palavra carnaval, que viria de "qarn" - época, tempo - e "Baal", o deus pagão, o
Osiris do Oriente, resultando em "garnibaal" ou "garnebaal", isto é, tempo de Baal, período de festa
pagã.
A hipótese etimológica mais sólida, a nosso ver, é a de "carrus navalis" porque lança luz sobre
os princípios da história do carnaval. Os "carrus navalis" eram barcos ou grandes carros alegóricos
imitando navios. No antigo Egito, as festas de Isis, que depois passaram a Roma, se encerravam com
desfile de embarcações pelo Nilo. Na Grécia existem referências pictóricas a esses carros já no século
VI A.C.. Em Roma faziam o cortejo de abertura das festas saturnais. Hoje, são a expressão de
grandiosidade, luxo e tecnologia dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Entretanto, independente de qual seja a sua verdadeira etimologia, a palavra carnaval designa,
desde a antiguidade, um tipo de festa de cunho pagão caracterizada por comportamentos licenciosos e
celebrada entre o fim do ano e o início da primavera, tendo, na era cristã, sido delimitada ao período
imediatamente anterior à Quaresma.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Muito se tem escrito sobre a história do carnaval mas, entretanto, não se conseguiu ainda
precisar sua origem. A História atribui a diferentes povos antigos, festas pagãs, que se assemelhavam
com o moderno carnaval. Acredita-se mesmo que tenha existido entre povos primitivos para
comemorar as boas colheitas. "Homens, mulheres e crianças, pintados e cobertos de penas ou pelos,
acendiam fogueiras em volta de seus "habitats" e afugentavam, com caretas, os demônios da má
colheita. A algazarra, que presumivelmente faziam, parecia ter qualquer semelhança com o que hoje
entendemos por Carnaval" (Alarcon, 1980).
A origem do carnaval pode ser situada nas antigas festas e orgias egípcias, gregas e romanas,
como as festas de Ísis, as bacanais e as saturnálias. Com o advento do Cristianismo, a Igreja procurou
regular o carnaval e controlar seus excessos, impondo pesadas sanções e punições aos que o
praticavam. Com isso, o carnaval foi perdendo sua característica de festa orgíaca e na Idade Moderna já
havia se tornado uma festa burguesa. As côrtes européias realizavam bailes magnificentes em luxuosos
salões.
Segundo o já citado historiador Francisco Martins dos Santos, essa festa teria começado no
antigo Egito, há mais de 2.000 anos antes de Cristo, nas comemorações em homenagem a Isis e Osiris.
Transcrevendo Apuleyo, escritor latino, do século II (ao tempo de Marco Antônio), Francisco Martins
conta como era a festa de Isis em Corinto, Grécia, primeira versão do nosso Carnaval:
Uma procissão que se iniciava com as máscaras mais diversas e bizarras, quase todas simbólicas:
diabos, mortes, carrascos, soldados, caçadores gladiadores, hetaíras, magistrados, filósofos, passarinhei-
ros, pescadores, marinheiros, em torno de um andor, levando um caricato gorila, de gorro vermelho e
bota cor de açafrão, com uma grande taça de ouro nas mãos, e, em seguida, um asno de asas (paródia de
Pégaso mitológico) e um velho ao lado. Em seguida a esse grupo, vinha um segundo grupo, mais
brilhante e mais rico, também sobre o carro: mulheres coroadas e vestidas de branco, sacerdotisas ou
camareiras de Isis, que assistiam e proviam à toillette da deusa e lhe atiravam flores e aspergiam
perfumes, gesticulando com espelhos e pentes. Depois desse grupo principal, seguia uma multidão de
homens e mulheres com tochas e círios em honra a todas as divindades astrais, à morte, ao diabo, aos
vícios e às virtudes: músicos, citaristas, flautistas e cantores, um coro de indivíduos de veste totalmente
branca. Por último, ia o Grande Sacerdote apertando contra o peito uma grande urna de ouro com asas
serpentinas, e, logo atrás dele, sobre um carro comprido uma nave grande e barcos de Isis, cheios de
marinheiros e tochas. Ali chegados, entre manifestações de respeito e de alegria, o carro náutico após
cerimônia de purificação era empurrado para a água, até que flutuasse. A grande barca levava, em seu
casco,inscrições egípcias e em seu lançamento ao mar recrudesciam as manifestações populares, os
gritos, vivas, remoques, cabriolas, verificando-se ainda combate de água, esguichadas, imersões,
borrifadas, mergulhos espontâneos ou forçados, combates de lama.
A socióloga Anita Sepilli, também citada por Bandeira Jr. (1974), corrobora a afirmação do
historiador santista quando, baseada em Tácito (Germanorum), relata o culto de Erda (ou Herta) pelos
germânicos, como importado do Egito. Erda (mãe terra) seria Isis da agricultura pré-faraônica.
O culto de Isis, por volta da era vulgar, tinha se espalhado de fato, do Egito, sua pátria, pela Grécia e por todo
o Império Romano. Cada ano, ao reinício da navegação, em honra da deusa era levado em procissão um carro
nau.
Na Grécia, essas comemorações teriam passado a ser realizadas em homenagem a Dionísio
(nome grego de Baco, deus do vinho) nas famosas festas dionisíacas, orgias gregas celebradas nos dias
11, 12 e 13 de fevereiro. Havia total liberdade no comer, no folgar e nos prazeres sexuais; os homens se
disfarçavam de mulheres e vice-versa, cantando em procissão, os senhores davam liberdade aos
escravos; perdoavam-se os devedores; era considerado ofensivo ficar-se sóbrio nessas ocasiões.
Homens e mulheres nus ou seminus, enfeitados com adereços e coroas de louros, cantavam e
dançavam em cima de carros alegóricos. Posteriormente, aparecem em Roma festividades semelhantes,
as bacanais, dedicadas a Baco e realizadas na época da vindima. Contudo, Roma já possuía outras
festas, dentre elas as lupercais, em honra a Lupercus, deus da fertilidade, feitas em fevereiro, nas quais
eram utilizadas máscaras e as saturnais, em honra a Saturno, em dezembro.
As saturnais foram instituídas para comemorar o início da era de Saturno, quando este passou
a habitar o Lácio depois de expulso dos céus por Júpiter. Duravam um dia, mas o imperador Augusto
ampliou-as para três e Calígula para quatro dias. Depois, sua duração foi estendida para uma semana.
Nesses dias, desapareciam todas as diferenças sociais e o povo olvidava suas mágoas na folia, que
culminava no dia dedicado a Ops, mulher de Saturno, deusa da abundância.
Nesse período de liberdade sem limites, o povo nada respeitava e não impunha freio algum às
suas próprias intemperanças. Os poderosos ouviam duras verdades, proferidas por quem, em outras
circunstâncias, não ousaria expressá-las. A "liberdade de dezembro" era uma das prerrogativas
populares contra a qual ninguém por mais poderoso que fosse, pensaria em colocar-se.
Entretanto, nem todos os povos tiveram carnaval. "Os hebreus, tendo inventado o sábado
(isto é, um dia de descanso semanal), não tiveram essa necessidade. Mas as civilizações clássicas
(Grécia e Roma), que não tinham domingos, facilitavam o lazer e a farra a seus cidadãos através de
festivais, de conotação religiosa e realização mundana" (Muricy, 1977).
A história atribui a diferentes povos, outras festas anuais que se assemelhavam com o
moderno carnaval, como por exemplo: Dias de Bairam, na Turquia, que para o povo era a época do
deboche e do prazer; Festa do Buiante celebrada pelos nossos índios Tucunas, que na ocasião usavam
máscaras feitas de folhas e cascas de árvores, de terra e de cabeça de animais; Fastnacht (em alemão:
noite de jejum) ou Fasenacht (noite de folia), antiga festa dos germânicos; Herta (ou Erda, mãe terra),
festa carnavalesca dos povos teotônicos e celtas; Inocentes, festa praticada na idade média gaulesa;
Mãe Louca, festa organizada na França por pessoas de elevada categoria e suprimida pelo rei Luiz
XIII; Festas das Sortes ou Purim, realizada pelos hebreus; Festas Sáceas, efetuada na Babilônia, desde
antes de Ciro, para comemorar uma vitória sobre inimigos.
Com a consolidação do cristianismo, a Igreja instituiu um período de quarenta dias de
abstinência de carne e de jejum, a Quadragésima ou Quaresma. Com o passar do tempo, o calendário
cristão situou o carnaval nos três dias anteriores ao início da Quaresma.
A Idade Média, embora submetida ao fanatismo religioso cristão, teve também o seu carnaval.
Entretanto, a libertinagem e os excessos da época pagã foram reprimidos pela Igreja e a festa passou a
ter caráter mais "sadio", conforme a moral cristã, e até mesmo litúrgico. Foi provavelmente com tal
intenção que, no século XV, o Papa Paulo II procurou discipliná-la. Organizou desfiles de carros
alegóricos, préstitos em Ágora e no Tertaccio e corridas de cavalos pela Via Láctea, hoje Corso (daí o
termo que designa o desfile de carros pelas ruas), que era profusamente iluminada por velas,
canalizando assim as energias dos participantes para atividades mais desportivas.
Bizarras e extravagantes, as festas do fim da Idade Média e início da Idade Moderna
caracterizavam-se frequentemente pela sátira dos costumes, de personalidades de destaque e de fatos
escandalosos. Tivemos dois exemplos disto na Festa dos Loucos ou dos Asnos e na Festa da Mãe
Louca. A primeira, celebrada a partir do dia 26 de dezembro, diante da Catedral de Notre-Dame, em
Paris, consistia em uma bizarra celebração eclesiástica em que se ridicularizava a solene liturgia cristã,
desmascarando a hipocrisia das ações papais contra os antigos ritos e costumes pagãos. Dela
participavam clérigos e outras pessoas fantasiadas de mulheres e animais, dançando e cantando canções
obscenas. O principal personagem da festa era um asno que recebia ridículas homenagens e por fim
participava de uma procissão pelas ruas apinhadas de gente.
Muita analogia com a "Festa dos Loucos" tinha, no século XV, a "Companhia da Mãe
Louca", que era constituída de pessoas consideradas as mais sérias da cidade: médicos, advogados,
professores, funcionários públicos, abastados burgueses, que, bizarramente vestidos, com chapéu de
palhaço e guizos, sacudindo chocalhos em forma de cetros, percorriam as ruas e as praças em carros
fartamente ornamentados, de cores variadas e puxados por cavalos luxuosamente enfeitados. A "Mãe
Louca" surgia no meio de sua corte de magistrados, escudeiros, cortesãos e damas de horror.
Aproveitando a liberdade do carnaval, todos eles, publicamente, faziam a sátira dos costumes e dos
personagens mais em evidência e ofereciam à multidão divertida os fatos mais escandalosos ocorridos
no país, carregando em suas cores e satirizando-os.
As perseguições e proscrições feitas pela Igreja e pelos Papas às festas de cunho pagão
levaram ao desaparecimento de muitas delas, mas o espírito de rebeldia, de crítica aos costumes, de
escárnio aos poderosos e de licenciosidade que imperava nas mesmas continuava sob novas formas de
festividades, algumas sob a égide da própria Igreja.
Tão convencida estava a Igreja que o carnaval era parte de sua própria tradição que quando a Reforma
Protestante do século XVII aboliu as penitências da quaresma, os reformadores cristãos ingenuamente
insistiram em que não havia mais necessidade do carnaval pecaminoso (Orloff, 1981).
Os fatos que deram origem e continuidade à Idade Moderna dentre eles, a invenção da
imprensa, a expansão colonialista, a reforma protestante e mais tarde as revoluções políticas e a
revolução industrial, transformaram o carnaval europeu em uma festa luxuosa, mas sem a tradição, a
espontaneidade e a liberdade que possuía antes.
Séculos de repressão moralista nas mãos de papas, bispos e autoridades estatais, mudando as condições
econômicas e sociais, domaram o libertário e lascivo espírito de licenciosidade que era o coração do carnaval
na antiguidade (Orloff, 1981).
Na França tornaram-se célebres as festas carnavalescas da corte de Luiz XIV, sendo que
numa delas o próprio soberano apresentou-se numa fantasia representando o sol.
Os bailes de máscara parecem ter tido início na corte de Carlos VI, no século XV; esse rei foi
assassinado num desses bailes quando se achava fantasiado de urso.
O poeta Byron diz que, de todos os lugares da terra, Veneza era o que oferecia o carnaval
mais divertido e o mais célebre, pelos cantos e danças, pelos bailes, serenatas e mascarados. Uma
grande multidão de forasteiros ocorria à Veneza de outrora, atraída pelo seu carnaval. Dos balcões
ornamentados, choviam confetes sobre os mascarados, enquanto nas mesas e praça pública, até os
magistrados tomavam parte. À noite, então, o espetáculo assumia aspectos mirabolantes. As gôndolas,
iluminadas com lanternas chinesas e luzes multicores, percorriam os canais e as águas da Laguna. Os
mascarados penetravam, mesmo nas casas das pessoas desconhecidas e, ali, eram amavelmente
recebidos, ou se encontravam todos na Praça de São Marcos, transformada numa imensa sala de
recepção.
Mas nem todas as opiniões eram tão românticas como as de Byron. Squeff (1980) narra que
pintores do século XVIII e XIX como Bartolomeu Pinelli, Domenico Tiepolo e Francisco de Goya e
músicos como Hector Berlioz, se reportam ao carnaval de seu tempo como uma parafernália, onde a
violência, os excessos e as libações não aconteciam por acaso.
O carnaval de Colônia, o maior e mais exuberante da Alemanha, o de Nice, na França com
sua batalha de flores, o de Basel, na Suíça, realizado em plena quaresma, o Mardi Gras de Binche, na
Bélgica, o Corso de Viareggio, na Itália dentre muitos outros, empolgaram a Europa durante o século
XIX.
O ENTRUDO, ANTECESSOR DO CARNAVAL BRASILEIRO
O carnaval chegou ao Brasil em 1641, sob a forma de "entrudo" (entrada na Quaresma), festa
portuguesa violenta que nada tinha de erótica: atacavam-se as pessoas com jatos d'água, farinha, lama,
ovos e legumes podres e, às vezes com objetos mais pesados que chegavam a produzir ferimentos
sérios nos participantes. Os alvos preferidos nestes arremessos eram escravos e serviçais.
É o escritor Júlio Dantas que diz:
Nós, portugueses, nunca compreendemos que o entrudo pudesse ser uma festa de arte como na Itália da
Renascença, ou uma festa de espírito como na França de Luiz XIV; o nosso entrudo, o santo entrudo lisboeta,
foi sempre fundamentalmente e caracteristicamente porco. O século XVIII então, excedeu a todos os outros.
Foi o século típico do entrudo nacional.
Apesar de bárbaros, esses divertimentos apaixonavam nobres, plebeus e escravos, resistindo
por isso a todas as proibições baixadas pelas autoridades da época (Bandeira Jr., 1974). E foi esse o
tipo de carnaval que nos foi transmitido pelos nossos colonizadores, o qual recrudesceu depois que a
corte de D. João VI veio para o Brasil. De fato, segundo os historiadores, o carnaval aparece
oficialmente, na corte de D. João VI, no Rio de Janeiro. No entanto, há, também, uma referência de
que em 1641, foi realizado um carnaval promovido pelo governo do Rio de Janeiro, a fim de celebrar a
ascensão de D. João VI ao trono de Portugal, restaurando a monarquia portuguesa. Esse fato foi tema
de samba-enredo da Portela, em 1977: "O Rei mandou vadiá no dia d'aclamação.
A popularização do carnaval, entretanto, vai acontecer com o passar do tempo, pela
integração, de um lado das brincadeiras do entrudo e, de outro, pela crescente assimilação de elementos
do folclore e de outras festas tradicionais que existiram no Brasil, como nos mostra Louzada (1945).
Conta Vieira Fazenda, em crônica de 1904, reproduzida por Louzada (1945), que "o entrudo
tocou o seu auge por vir o exemplo de cima: o primeiro imperador, dizem, era louco por essa
brincadeira. O segundo seguiu-lhe as pegadas..."
À época do Império, no entanto, o entrudo foi cedendo o lugar a outras formas de brincadeira
menos violentas e já começavam a surgir outras manifestações carnavalescas mais "civilizadas" como os
cordões de Zé Pereira e os bailes de salão no século passado. Mesmo a agressividade do entrudo se
arrefecia e os primitivos "materiais" cediam lugar aos famosos "limões de cheiro", bolas de cera dentro
das quais era colocada água perfumada. Existiam, também, as bisnagas de água, antecessoras do lança-
perfume. Essa nova característica do entrudo provavelmente possibilitou o início dos "flirts" e
conquistas amorosas, quando os "limões" eram atirados entre sexos diferentes, reiniciando o sentido
erótico do carnaval.
Ainda hoje o entrudo é encontrado no carnaval de São Luiz do Maranhão. Podemos também
considerar como entrudesco o comportamento dos participantes dos atuais blocos de sujos, cuja
fantasia dá a impressão de imundice e cujas atitudes são agressivas, críticas e anti-sedutoras, parecendo
com isso querer demonstrar que o carnaval não tem sentido apenas erótico.
O MODERNO CARNAVAL BRASILEIRO
Em 1840, no Rio de Janeiro, teve lugar o primeiro baile carnavalesco. Seu palco foi o Hotel
Itália, já desaparecido e que ficava localizado na atual Praça Tiradentes. O objetivo do baile, "à
veneziana" como era anunciado, foi o de permitir à elite local brincar o carnaval sem a presença do
povo e longe da agressão do entrudo. Um remanescente atual disto é baile do Hotel Copacabana
Palace, frequentado por socialites e pessoas em busca de prestígio social e proximidade com artistas
famosos.
Em 1846, a atriz Clara Delmastro organiza um grande baile de máscaras no Teatro São
Januário, que ficou famoso. Outros bailes vieram a se seguir, distinguindo-se os dois tipos de carnaval e
que não se misturavam: o de rua, para o povo e o de salão, destinado à aristocracia.
Por essa mesma época, surge no carnaval de rua a figura do "Zé Pereira" que representou um
marco no início da substituição do entrudo pelo carnaval atual.
Zé Pereira, apelido com que ficou conhecido um sapateiro português chamado José Nogueira Paredes, teve a
idéia de num domingo de carnaval, convidar alguns patrícios, nesse dia, para um ruidoso desfile pelas ruas do
Rio de Janeiro, a toque de bumbos e um ritmo de chula minhota. Em meio ao cortejo, dezenas de populares
juntaram-se aos alegres portugueses, felizes com o estridor, que parecia conclamar a cidade para a festa. O
desfile do Zé Pereira passou a fazer parte obrigatória dos festejos carnavalescos no Rio (Alarcon, 1980).
Daí outros grupos semelhantes surgiram. Estimulados pelo sucesso dos grupos de "Zé
Pereira" e seguindo o esquema de procissões, apareceram, ainda no século passado, os cordões
carnavalescos, onde as pessoas cantavam e dançavam com acompanhamento de pequenos grupos
instrumentais. Um dos mais famosos foi o "Rosa de Ouro" para o qual Chiquinha Gonzaga compôs, em
1899, a primeira música tipicamente carnavalesca, a "Ó abre-alas".
O carnaval carioca do início do século consistia de batalhas de confete, corsos, blocos e
desfiles das grandes sociedades, além de bailes em recintos fechados. Eram frequentes as brincadeiras
entre fantasiados nas ruas, trotes passados por mascarados, duelos de lança-perfume entre rapazes e
moças, foliões com fantasias grotescas e satíricas e brigas geralmente por causa da acompanhante de
algum cavalheiro.
A partir de 1911 surgem os ranchos, organizações carnavalescas mais complexas, que já
desenvolvem em enredo, criam suas próprias músicas, as "marchas de rancho", apresentam figuras de
rei e rainha e porta-estandarte. Já neste século são criadas as grandes sociedades, das quais ficaram
famosas os Feninos e os Democráticos.
Em 1928 foi fundada, no bairro carioca do Estácio, a primeira escola de samba, a "Deixa
Falar", que durou até 1931. Pouco depois surgiu a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira,
que em 1932 ganhou o 1o
lugar no primeiro concurso de escolas de samba.
Em fevereiro de 1984 é inaugurada, no Rio de Janeiro, a Passarela do Samba, ou
Sambódromo como ficou conhecido, em que pela primeira vez se tem um grande espaço especialmente
construído para o desfile das escolas de samba, embora também aproveitado no restante do ano como
salas de aula e conjuntos pedagógicos e administrativos. Contando com uma pista de 1.700 metros de
extensão e capacidade para 88.500 espectadores, o Sambódromo deu nova dimensão aos desfiles
carnavalescos e institucionalizou o "super-show" das escolas de samba, criando novo modelo para o
carnaval de massa.
Von Simson (1983) distingue três períodos na evolução histórica do carnaval brasileiro: o
primeiro que vai da época colonial até meados do século XIX e que corresponde principalmente ao
entrudo; o segundo de 1870 a 1930, marcado pela diferenciação entre o carnaval popular e o das elites:
de um lado, o aburguesamento da festa e a introdução do carnaval veneziano, com os bailes de
máscaras, os corsos, os préstitos das sociedades carnavalescas e a apresentação de fantasias luxuosas e,
de outro, o surgimento de formas socialmente mais aceitas para os folguedos das camadas populares,
como os zé-pereiras, ranchos, blocos e cordões; e o último a partir de 1930, quando as atividades
festivas são apropriadas pelos meios de comunicação de massa, transformadas em mercadoria cultural
para consumo do grande público e adaptadas ao gosto das classes mais abastadas.
Ainda segundo a citada autora, o que caracteriza o terceiro período é o surgimento das
escolas de samba, criadas na década de 30 pelas camadas populares de origem africana e pelos
habitantes dos morros e subúrbios cariocas. Na sua evolução elas passam gradativamente a ser
encaradas como mercadoria cultural explorada pelos meios de comunicação de massa - inicialmente o
jornal, depois o rádio e por fim a televisão - vendida a turistas nacionais e estrangeiros, atraindo as elites
e utilizada como forma de diversão pelas camadas burguesas e pela classe média. Observa-se, pois,
nessa última fase:
- a reafirmação da criatividade popular;
- o avanço e a apropriação pelo sistema capitalista dos fatos culturais, transformando-os em
mercadorias lucrativas - divertir-se passa a ser cada vez mais um ato de consumo;
- a importância dos meios de comunicação de massa no processo de homogeneização e
mercantilização das expressões culturais;
- a passagem de traços culturais de uma camada social para outra, embora reafirmando a
dominação das camadas mais abastadas sobre as populares.
Parece também ser um aspecto importante no carnaval o ter sido sempre um "rito de
calendário" (Da Matta, 1977) e celebrado para comemorar a entrada do Ano Novo (augurando-se que
o mesmo fosse feliz e proveitoso) ou o início da primavera (simbolizando o renascimento da natureza,
com toda a força de sua beleza e alegria).
O acentuado processo de institucionalização do carnaval vem tirando muito da
espontaneidade e naturalidade de suas manifestações (o sentido de communitas), mas apesar disto a
festa ainda se apresenta como um rico manancial de formas de comunicação não-verbal e simbólica que
procuram traduzir motivações individuais e coletivas.
Em sua forma atual o carnaval carioca é realizado por grande número de escolas de samba,
ranchos, blocos, grandes sociedades e bandas, além de bailes promovidos por quase todos os clubes.
Em muitas outras cidades brasileiras, inclusive Belo Horizonte, procura-se em geral imitar o carnaval
do Rio de Janeiro. E é no carnaval brasileiro que reaparecem os costumes e a licenciosidade pública
existentes nas antigas festas pagãs.
O carnaval brasileiro dura oficialmente quatro dias, iniciando-se no sábado à noite e
terminando na madrugada de quarta-feira da quaresma, embora, de fato, a primeira manifestação de
carnaval ocorra à zero hora do dia 1o
de janeiro, por ocasião do baile de réveillon, com o grito de
carnaval. Esse é o período de intensificação dos preparativos (gritos de carnaval, batucadas de rua,
rodas de samba, divulgação das músicas, etc.) para o clímax, que é atingido nos quatro dias de carnaval.
Face ao que foi exposto até agora, podemos afirmar que a evolução histórica das festas
carnavalescas nos mostra a necessidade que vários povos tiveram de se libertar temporariamente das
normas e restrições impostas pela organização social, o que era, em geral, tolerado pelos governantes e
pela própria Igreja que intuitivamente, pareceram compreender a necessidade dessa descarga coletiva
de tensões. Essa liberação frequentemente incluía o extravasamento da sexualidade, como acontecia nas
antigas festas egípcias, gregas e romanas e, hoje em dia, no carnaval brasileiro. Durante a Idade Média e
no atual carnaval europeu a tónica tem sido a crítica social e política e a sátira dos costumes.
OBJETIVO
Nosso propósito é estudar o carnaval como fenômeno psicossocial, especialmente como
fenômeno comportamental coletivo que possui características e dinâmica próprias.
Porque o carnaval consegue mobilizar e alterar o comportamento de milhões de pessoas?
Será o carnaval uma forma de histeria e alienação coletivas ou um veículo de homeostase social na
medida em que permite a expressão de necessidades e desejos contidos?
O estudo ora proposto abrange questões como o impacto das festas carnavalescas sobre
os hábitos, costumes e atitudes da população; modificações e até inversões de valores e padrões
sociais; liberação de necessidades e desejos reprimidos no restante do ano; efeitos sobre a saúde
mental dos indivíduos; mudanças nas relações de gênero e raça (valorização da mulher e do negro,
diminuição do machismo); alteração nas relações de dominação-submissão dos papéis sociais do
cotidiano.
ESTRUTURA E DINÂMICA DO CARNAVAL
O estudo de sua dinâmica e de seus conteúdos poderá nos ajudar a compreender melhor
o comportamento do homem em grupo e como tal deve vir a merecer maior atenção da Psicologia
Social.
Nosso propósito é estudar o carnaval como fenômeno psicossocial, especialmente como
fenômeno comportamental coletivo que possui características e dinâmica próprias.
Porque o carnaval consegue mobilizar e alterar o comportamento de milhões de pessoas?
Será o carnaval uma forma de histeria e alienação coletivas ou um veículo de homeostase social na
medida em que permite a expressão de necessidades e desejos contidos?
À estrutura social organizada, Turner (1974) contrapõe a noção de "communitas", de anti-
estrutura, que é o da sociedade considerada como um "comitatus" não estruturado, ou
rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo comunhão,
de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos. Da Matta (1977)
aplica tal noção ao carnaval, vendo-o como uma grande "communitas", "o sumário perfeito da visão
anti-cotidiana da vida brasileira. Um ritual que, ao romper com o "continuum" da vida diária, aponta
gritantemente para alguns pontos básicos da nossa ordem social". Já Leopoldi (1978) prefere situar o
carnaval como uma manifestação ritualística que se realiza num momento específico da vida social
brasileira.
O período carnavalesco, portanto, se constituiria o momento adequado à emergência de manifestações rituais
de celebração dos aspectos comunitários da estrutura social, isto é, de congraçamento entre os seus agentes.
(Leopoldi 1978)
A nosso ver, o carnaval apresenta, mais claramente, tais manifestações de tipo anti-estrutural,
comunitário, nas inversões de "status" social e nos papéis representados pelas fantasias, no aspecto
ritualístico dos desfiles de escolas de samba.
Desse modo, o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro passou a influenciar o carnaval
das outras cidades brasileiras, como São Paulo, num processo de homogeneização e padronização de
um desfile organizado para atrair turistas e “vender” espaço para foliões pagantes se divertirem.
Como exemplo da extensão e complexidade do carnaval, vale a pena relacionar o resumo
apenas dos eventos oficiais do carnaval organizado de rua no Rio de Janeiro em 1977:
Abertura do carnaval às 13:00 horas no sábado com o desfile de uma banda de 800 músicos,
acompanhada do Rei Momo e da Rainha do Carnaval e das demais figuras representativas do carnaval.
Concurso de fantasias e baile oficial da Prefeitura do Município. Desfile de 28 blocos de embalo, 140
blocos carnavalescos, 12 grandes escolas de samba, 32 escolas de samba de porte médio, 4 clubes de
frevo, 10 clubes de rancho e 8 grandes sociedades.
O carnaval teve e continua a apresentar formas extremamente variadas em diferentes épocas e
lugares. Um sintético, mas belo e bem cuidado relato ilustrado dessas formas pode ser encontrado em
Orloff (1981). O próprio carnaval brasileiro atual possui expressões bastante distintas nas diversas
regiões do País, cujo único elemento formal comum são os três ou quatro dias antecedentes à
quaresma, embora existam também algumas festas carnavalescas extemporâneas, como a cavalhada do
Bom Jesus, em Minas Gerais e as micaretas de Feira de Santana e Vitória da Conquista, na Bahia,
realizada após a Semana Santa.
Von Simson (1983) afirma que na sua transformação histórico-cultural, tanto o antigo
entrudo quanto o recente carnaval brasileiro foram paulatinamente se separando em dois níveis
diferentes: o do carnaval burguês das classes dominantes, com desfiles luxuosos, bailes nos grandes
salões, apresentação de ricas sociedades carnavalescas e corsos, procurando imitar o carnaval europeu
do século passado, e o das classes populares, com seus zé-pereiras, ranchos, blocos e cordões, criando
novas formas de se divertir. As escolas de samba, etapa mais recente do processo, tendem a representar
um possível amálgama ou congraçamento das diferentes camadas da sociedade brasileira.
Entretanto, o carnaval das cidades brasileiras de médio e grande porte apresenta, em geral,
três tipos de eventos distintos:
- os desfiles públicos, oficiais ou patrocinados pelo poder público ou por órgãos de
comunicação, que congregam as escolas de samba, os blocos, ranchos e sociedades
carnavalescas e outros agrupamentos para os quais se exige ao menos a sua legalização
como pessoa jurídica e que possuem regras e regulamentos próprios para os desfiles e para a
participação dos seus componentes;
- as folias de rua, próprias do carnaval popular, composta de foliões isolados e de agregados
espontâneos ou pouco estruturados e abertos à participação de qualquer pessoa, tais como
os blocos de embalo e de sujos, as bandas e grupos fantasiados;
- os bailes e festas fechados, realizados principalmente pelos clubes e de acesso restrito aos
sócios, convidados e pagantes.
Temos assim, nitidamente, duas formas de carnaval - o organizado e o espontâneo - e dois
espaços onde o mesmo se dá - a rua e o salão.
CARNAVAL ORGANIZADO
O principal acontecimento do carnaval organizado de rua são os desfiles das escolas de
samba, agremiações que chegam a apresentar até 5.000 figurantes como no Rio de Janeiro. Jório e
Araújo (1969) definem a escola de samba como "manifestação do folclore urbano, onde um
agrupamento de pessoas expressa canto e dança, descrevendo um enredo".
Para atender aos faustosos gastos necessários para a sua apresentação, feitos com o fim de
agradar aos assistentes e turistas do "carnaval-show" oficializado e para competir com as demais
concorrentes, as escolas de samba tornaram-se organizações complexas, comercializadas e com papéis
bem definidos, afastando-se de alguns dos aspectos originários do carnaval, tais como, a
espontaneidade, a improvisação e a liberdade de brincar. O luxo de suas apresentações, cujos
participantes pertencem em sua grande maioria às camadas mais pobres da população, representa a
verdadeira e profunda contradição do carnaval: o rico e faustoso personagem representado pelo ator
miserável.
Cada desfilante de uma escola de samba deve arcar com as despesas de sua própria fantasia,
além de pagar a mensalidade de sua agremiação. São, em sua maioria, operários de salário mínimo ou
pouco mais. Assim uma fantasia das mais simples, como as de alas, irá custar-lhes pelo menos um mês
de salário.
Outro aspecto a ser destacado é que elas têm sido procuradas por pessoas de renda e "status"
elevado. Desfilar por uma escola de samba tornou-se sinal de prestígio.
A competição entre as escolas de samba tornou-se acirrada, em algumas situações uma
verdadeira "guerra". Os participantes de uma escola torcem e brigam por ela tanto ou mais intensa e
emocionalmente quanto as disputas de campeonatos entre times de futebol. Futebol e carnaval são hoje
inegavelmente o "circo" do brasileiro.
Esse fato poderá ser observado sob dois ângulos diferentes do problema dentro da mesma
questão:
a) o primeiro é o de que as escolas de samba seriam instrumentos de auto-afirmação da classe
pobre, isto é, propiciam a única oportunidade que os pobres (especialmente os negros) têm de se
sentirem importantes (reis, rainhas, príncipes, figuras de destaque) e poderem assumir o "status" que o
cotidiano lhes nega.
b) o segundo ângulo da questão e que tem sido motivo de interesse de pesquisas de
sociólogos é a entrada das chamadas "classe média" ou "classe alta" nas escolas de samba. Esse
fenômeno, aliás, tem despertado atenção não só de pesquisadores como de leigos e interessados no
assunto. O fato, que é relativamente novo (isto é, a quebra do preconceito é relativamente recente)
apresenta nuances de acordo coma região, local ou a própria estrutura social.
No Rio de Janeiro, onde a estrutura social é definida socialmente como "classista aberta", isto
é, o sistema social em que o indivíduo se encontra inserido lhe permite mudança rápida de "status", sem
muita objeção ou mesmo dificuldades repressivas, a classe média e mesmo a classe alta, têm conseguido
penetrar no interior das escolas consideradas médias ou grandes, sendo bem aceitas pelo grupo.
Procurando copiar o carnaval carioca, os paulistas também organizaram suas escolas de
samba semelhantes às do Rio de Janeiro. O carnaval paulista é chamado satiricamente de "carnaval
empresarial". Falta-lhe, no entanto, tradição carnavalesca, ambiente próprio, clima, entusiasmo popular
e uma organização como a do carnaval carioca. Na opinião do ator Plínio Marcos (1977), a tradição
carnavalesca de São Paulo eram os cordões, que foram se extinguindo ou virando escolas de samba,
copiando os defeitos das do Rio de Janeiro e se desvinculando totalmente das raízes culturais de São
Paulo.
Na sociedade paulista do interior, o fenômeno apresenta característica bem diferente. Devido
à rigidez da estratificação social e ao preconceito ainda muito arraigado, a penetração dos indivíduos de
classes abastadas no carnaval se deu através de grupos fechados ou as chamadas "escuderias". Tanto as
escolas de samba, que agregam pessoas das classes mais pobres e onde há predominância de negros,
como as escuderias que agrupam os membros das classes alta e média, são ainda grupos bastante
fechados.
Dispondo de maiores recursos oriundos dos próprios sócios e de empresas simpatizantes,
além de maior apoio oficial (conseguido graças ao prestígio de seus participantes junto aos órgãos
públicos) as antigas escuderias puderam apresentar-se de forma mais atraente, rica, melhor organizada,
inclusive podendo contratar melhores passistas, bateristas, destaques e outros figurantes para desfilar
em suas alas.
O que seria uma festa popular tem passado a ser um desfile luxuoso em que as verdadeiras
escolas de samba, de raízes populares, são colocadas em segundo plano e tendendo a desaparecer.
Ocorre aí a inversão da situação: a elite desfila para o povo que apenas pode assistir passivamente. Os
elementos de proa de muitas das escolas de samba do interior são indivíduos de grande projeção sócio-
econômica da comunidade, que desfilam em posições de destaque.
É quando então o "patrão" e a "patroa" vão para a passarela desfilar ante os olhares ainda
surpresos do povo, mal acostumado a esse tipo de desfilante.
Apesar dessas sociedades serem essencialmente conservadoras, pode-se notar no Carnaval a
quebra de tradições e tabus sociais. A mulher ou a filha do industrial ou do rico comerciante tem
permissão para desfilar sedutoramente exibindo seu corpo semidesnudo, em flagrante contraste com o
fato de que no restante do ano vive sob um regime patriarcal, machista, fortemente recatado. Mais que
uma liberalidade do marido, porém, isto representa uma falsa liberdade de 3 ou 4 dias a quem vive, no
restante do ano, submetida aos afazeres domésticos.
Um outro exemplo de uma escola de samba de elite é dado pela Raízes, da cidade de
Vespasiano, na região da grande B.H. Organizada e mantida pela burguesia sócio-econômica local, a
agremiação conseguiu atingir um nível de luxo e riqueza nas suas fantasias e alegorias incomum no
carnaval mineiro. Faz um desfile "fechado" em que não apenas os destaques, mas as suas alas são
membros das famílias locais e se conhecem quase todos.
Reações a esse carnaval massificado têm ocorrido no Rio de Janeiro, mas com sucesso
efêmero. Se, a partir de meados dos anos 60, as escolas de samba passaram a investir maciçamente no
luxo e na riqueza de suas apresentações, tornando o "show" dos desfiles cada vez mais suntuosos, em
1988, com a Vila Isabel ganhando o seu primeiro campeonato, tentam retomar o caminho da
criatividade e da arte, utilizando de materiais mais simples e baratos, porém de grande efeito cênico.
Essa tendência é reafirmada em 1989, com a Beija-Flor realizando o mais belo e empolgante desfile já
feito por uma escola de samba, com o tema "Ratos e urubus, larguem minha fantasia", talvez só
comparável à apoteótica apresentação da Mangueira em 1984. Tendo enfatizado o luxo em seus
desfiles a partir de 1976, que lhe valeram cinco campeonatos quase seguidos, a Beija-Flor, através de
seu carnavalesco Joãozinho Trinta e do figurinista Viriato Ferreira, buscou nos mendigos os seus
destaques e na sucata e no lixo os materiais baratos que fizeram o visual de sua apresentação - "o luxo
do lixo".
Em geral, os temas das grandes escolas de samba são o que se poderia chamar de "alienados",
isto é, desvinculados da realidade social e das verdadeiras aspirações - tanto dos seus participantes
quanto dos assistentes.
Sujeitas a um regulamento rígido, sem dispor de maior liberdade para criar, preocupadas com
a classificação no desfile onde pesam mais os critérios de luxo e riqueza, as grandes escolas de samba
apelam para assuntos épicos, míticos, religiosos, africanos, lendas e passagens da História do Brasil.
As agremiações de menor importância, como as pequenas escolas de samba de bairros e
blocos, mostram-se mais autênticos e capazes de oferecer temas ligados ao cotidiano e à realidade
social.
Todavia podemos observar ao longo dos últimos anos, de 1977 a l990, uma certa mudança
nos enredos das escolas de samba do primeiro grupo, no Rio de Janeiro (vide anexo 2). Se a tônica
frequente era a exaltação e a idealização do País, resquícios dos "carnavais de guerra" (Tupy, 1985) e
das imposições da ditadura militar, que inclusive não permitia a crítica política e social, em 1984, o
entusiasmo pela campanha para eleições diretas e pela inauguração do Sambódromo, leva as escolas de
samba a produzirem um super desfile em que dominavam o humor e a coragem (Moura, 1986). Em
1985, às vésperas da posse de Tancredo Neves, os conteúdos dos temas tomam o rumo da crítica, do
humor e da esperança, no chamado "carnaval da democracia".
Hoje em dia as grandes escolas de samba do Rio tornaram-se complexas organizações com
fortes interesses econômicos e políticos. Quase todas têm, nos seus quadros dirigentes, figuras de
famosos contraventores, especialmente do "jogo do bicho". Através da Liga Independente das Escolas
de Samba, dominada por banqueiros do jogo do bicho, são conduzidos todos os entendimentos com a
Riotur (a organizadora dos desfiles oficiais), os assuntos financeiros, a distribuição de verbas, viagens,
apresentações, produção de discos, direitos de teletransmissão.
Em um minucioso estudo antropológico sobre a Escola de Samba Mangueira, Goldwasser
(1975) nos expõe o fato contraditório das escolas de samba, em sua configuração e nos desfiles, revela-
rem-se instituições altamente estruturadas, derivadas porém de uma situação tida como tipicamente não
estruturada, caótica, como é o carnaval.
Para Athayde (1980), o fenômeno da atração pelo luxo, pela evocação de uma vida social
aristocrática e anacrônica é uma deformação psicológica das mais nocivas para o próprio povo. E
adverte para o uso político do carnaval, para a tática maquiavélica da anestesia das forças populares,
para o fato de que "o Carnaval pode ser e já será, para muitos, o melhor meio de anestesiar o povo e de
impedi-lo de lutar pelos seus direitos". Ponto de vista semelhante é esposado por Queiroz (1978), para
quem, o carnaval "refletindo a sociedade em que se insere, age como fator de preservação do „status
quo‟ social".
CARNAVAL ESPONTÂNEO
O carnaval não organizado de rua é constituído por um sem número de bandas, pequenos
blocos ou simples grupos de pessoas que em volta de alguns instrumentos de percussão cantam e
dançam e mesmo pessoas isoladas. Dele participa qualquer pessoa que queira.
À medida em que se afasta do carnaval organizado e se desce no nível de apresentação dos
grupos carnavalescos, começa-se a encontrar temas mais populares e ligados à realidade e ao cotidiano
das pessoas. Um exemplo disso é o carnaval de um bairro operário de São Paulo, a Vila Esperança.
Diferentemente do que acontece com as grandes escolas, no Carnaval da Vila Esperança, que
possui um desfile tradicional, os temas apresentados nos carros alegóricos se referem ao desenvol-
vimento do Brasil e de São Paulo, às perspectivas futuras do país, ao futebol, ao folclore afro-brasileiro,
aos aspectos pitorescos da vida da cidade e os programas "enlatados" da televisão.
Em Santa Cruz, subúrbio do Rio, ainda sobrevivem os "clovis", um grupo que lembra um
pouco o carnaval europeu no seu estilo e o entrudo nas suas origens.
Surgida recentemente, como forma de resgatar o carnaval popular e espontâneo, as bandas
têm atraído um número cada vez maior de foliões interessados em brincar o carnaval, que delas
participam livremente. Não possuem estatutos ou regulamentos e não cobram taxas. A primeira e mais
famosa é a Banda de Ipanema, criada em 1966. Outras vieram posteriormente. Em Belo Horizonte
surgiu, em 1967, a Banda Mole, hoje o carro-chefe do carnaval da cidade.
Apesar da tendência à institucionalização do carnaval, em muitas cidades brasileiras ainda
predominam as festas de cunho popular.
Um dos mais famosos carnavais brasileiros é o de Olinda, em Pernambuco, cuja força maior
está nos eventos espontâneos de rua e onde mesmo os grupos organizados, como os clubes de frevo
desfilam junto com o povo nas ruas.
Outra festa que tem suas peculiaridades próprias é o carnaval de Salvador, com os seus trios
elétricos. O primeiro trio elétrico surgiu em 1950, criado pelos carnavalescos e compositores baianos
Dodó e Osmar que montaram um equipamento de som em um caminhão, em cima do qual um conjunto
de três instrumentistas tocava e cantava. Hoje, um número de quase uma centena de trios elétricos, com
equipamento sofisticado e de altíssima potência anima e ensurdece a capital baiana nos dias momescos.
São também específicos do carnaval baiano os afoxés e blocos afros, dos quais os mais
conhecidos são os Filhos de Ghandi, o Ilê Ayê e o Malê de Balê.
Apesar de seu caráter popular, fica patente no carnaval de Salvador a separação de classes
sociais como, por exemplo, nos desfiles dos trios elétricos. Os integrantes do bloco que possuem ou
contratam um trio elétrico vestem uma fantasia-uniforme, igual para todos, a "mortalha", e dançam na
rua, à frente e atrás do caminhão, cercados por um cordão de isolamento separando-os do povo que
acompanha ou assiste das calçadas, "pegando carona" na música. Entre o povo e os membros do bloco,
os seguradores de corda, negros em sua grande maioria, vestidos de monarca simples, às vezes apenas
de "short" e camiseta, parecem lembrar um cortejo de escravos atados por cordas.
O carnaval "processional", com seus desfiles, divide as pessoas nitidamente em dois grupos
com funções diferentes: os "atores", com papéis definidos previamente e que participam diretamente; e
os expectadores, que se limitam a assistir, manifestando seu agrado ou desagrado e eventualmente
podendo cantar ou dançar ao acompanhamento da música.
No carnaval "circular" como o de Salvador e de outras cidades, a distinção entre participantes
e assistentes é menor ou quase nula; de alguma maneira todos participam em volta da fonte de estímulo,
como o trio elétrico. Embora, ao desfilar, os trios elétricos façam uma sequência processional, quando
parados congregam o povo à sua volta.
Outra interessante manifestação carnavalesca que ainda mantem suas características
populares, apesar de ser fortemente influenciada pelo carnaval carioca, é a de Florianópolis, em Santa
Catarina. No desfile oficial, além das escolas de samba e dos blocos, destacam-se os chamados "carros
de mutação", típicos do carnaval florianopolitano e únicos do seu gênero no carnaval brasileiro.
Montados em carretas ou plataformas móveis, os carros de mutação são verdadeiras obras de arte
sobre rodas, abrindo-se como pequenos castelos povoados de crianças e chegando a vários metros de
altura. Grande parte da população vai para as ruas, que se transformam em um vasto "footing". Nelas
sobressaem-se os travestis, isolados ou em blocos de sujos, e são os elementos preferidos para
destaques das escolas de samba.
Lamentavelmente as manifestações típicas dos carnavais regionais tendem a desaparecer,
sufocadas pela padronização do modelo carioca, pela falta de apoio dos órgãos públicos e até pelo
desinteresse da população local. É o que está ocorrendo com o desfile dos carros de mutação em
Florianópolis, os blocos caricatos, o que existe de mais típico no carnaval de Belo Horizonte, as
batalhas de confete e os corsos de algumas cidades do interior da região centro-sul, os blocos de frevo
em algumas cidades do nordeste, o boi-de-mamão em Santa Catarina.
CARNAVAL DE SALÃO
O carnaval de salão é elitista na sua origem. Lamounier (1979) relata que surgiu para permitir
que as senhoras e moças da sociedade burguesa pudessem desfrutar o carnaval sem a presença de
mestiços e mulatos. Começando como um carnaval de elite, assim se manteve até hoje, ficando o
carnaval de rua para as camadas "inferiores". O carnaval de rua acabou por se distinguir mais tarde, em
dois tipos: o organizado e o não organizado, sendo que o primeiro está sendo ocupado e manipulado
pela elite. Para o citado autor, "o carnaval e, especificamente, as escolas de samba, seu principal
sustentáculo, são um dos raríssimos exemplos de êxito das camadas pobres urbanas no Brasil em se
organizarem autonomamente".
O carnaval de salão é feito em recintos fechados, cujo acesso é reservado aos sócios do clube,
convidados ou pagantes de ingressos. Constitui-se dos grandes bailes, com concursos de fantasias e
prêmios para as melhores, e dos demais bailes, promovidos por cada clube existente em quase todas as
cidades brasileiras. Os clubes geralmente oferecem quatro bailes noturnos para adultos e dois bailes
vespertinos para menores infanto-juvenis. O número de participantes varia de acordo com a capacidade
de cada clube, oscilando em geral entre 1.000 e 4.000 pessoas, alguns chegando a abrigar quase 10.000
pessoas. Um exemplo aberrante de carnaval popular de salão é o baile Anhembi, salão improvisado de
um pavilhão de feiras, promovido pela Prefeitura de São Paulo com o fim de popularizá-lo, mas onde se
concentram até 60.000 pessoas dançando ao som de fitas gravadas.
Nos grandes bailes fechados do Rio, anteriormente reduto do carnaval das classes alta e
média, nota-se a presença cada vez maior de pessoas de nível sócio-econômico mais baixo, fazendo
com que haja dois espaços diferentes: os camarotes, onde fica a burguesia, buscando se excluir e ser
vista, e o salão onde se acotovelam as outras milhares de pessoas.
Enquanto os ocupantes dos camarotes revelam comportamentos que vão do formal ao
ostensivo, do recatado ao promíscuo, mas onde se sobressai a necessidade de se excluir, de se ver visto,
na "selva" do salão o que predomina é o grotesco, o caricatural, o agressivo. São homens sozinhos ou
acompanhados à cata de mulher; mulheres em duplas ou pequenos grupos que parecem procurar
homens, mas se esquivam quando se aproximam; mulheres solitárias, em geral de meia-idade; mulheres
bonitas e seminuas em cima de mesas e cadeiras exibindo-se provocantemente; turistas embasbacados
paquerados por prostitutas e mulheres contratadas pelos clubes; casais que mais ou menos
explicitamente expressam publicamente seus desejos sexuais.
O comportamento do participante no carnaval de salão é bem diferente do desfilante de escola
de samba. Este é um ator que deve se exibir para milhares de pessoas, mostrando suas fantasias, suas
habilidades de dançarino, sendo reconhecido e aplaudido. É membro de uma equipe, uma ala e sua
participação é condicionada pelo seu grupo. Ele deve ensaiar, preparar-se, treinar durante alguns meses,
até estar em condições de desfilar, de representar um papel na peça coletiva que é o enredo da escola de
samba. Seu objetivo é fazer a melhor apresentação possível para ajudar na vitória de sua agremiação e
por isso possui pouca liberdade de expressão. Seu papel é bem definido previamente.
Cada desfilante de uma escola de samba deve arcar com as despesas de sua própria fantasia,
além de pagar a mensalidade de sua agremiação. Em parte com as mensalidades dos sócios e com
rendas obtidas em rodas de samba e bailes, mais as contribuições e ajudas de seus simpatizantes (em
geral os comerciantes do bairro, que são beneficiados pelo aumento do seu movimento comercial
produzido pela escola de samba), é que a escola monta a estrutura para o seu desfile.
O participante do carnaval de salão, o "folião", é simplesmente alguém que procura um salão
para brincar o carnaval. Não faz parte de uma equipe, de um grupo e seus objetivos são inteiramente
individualizados. Seu comportamento, portanto, será marcado por uma procura de satisfação pessoal
exclusivamente. Busca formas de extravasamento de impulsos, onde predominam os sexuais, os
agressivos e os de liberdade social. Sem estar amarrado a um papel ou uma função, ele pode apresentar
o seu verdadeiro "eu" interno, motivado que está pela multidão e com fraca censura sobre si mesmo.
CARNAVAL POPULAR E DE MASSA
Uma das principais polêmicas que envolvem o atual carnaval brasileiro pode ser resumida no
dilema: o carnaval é de fato uma festa popular e, portanto, uma expressão de “folkcomunicação” ou
uma mercadoria cultural vendida pelos meios de comunicação de massa? Ou eventualmente ambas as
coisas?
Tal polêmica remete a uma outra questão mais significativa do ponto de vista psicossocial: o
carnaval é um evento liberador ou anestesiador de tensões sociais e necessidades individuais
reprimidas?
Para tentar responder a tais indagações, devemos primeiramente reconhecer que o chamado
carnaval brasileiro não é um fenômeno unitário e típico. Existem formas bastante variadas e diferentes
de carnaval de região para região. Não temos um carnaval, mas vários, comemorados nos seus dias
oficiais.
Dentre os diversos tipos, há sem dúvida um que se tornou uma fantástica mercadoria cultural
difundida nos mais longínquos recantos do País e exportado para quase todo o mundo: o carnaval
carioca, particularmente o desfile das grandes escolas de samba do grupo especial.
O que deveria ser uma festa verdadeiramente popular, que a todos congregasse numa
manifestação espontânea é socialmente institucionalizada e oficializada pelo Estado, organizada
segundo os interesses da indústria cultural e transformada em mercadoria pelos meios de comunicação
de massa.
No "carnaval-show", produto de consumo da cultura de massas, existem nitidamente três
grupos de papéis ou funções dentro da "ordem carnavalesca" segundo Queiroz (1983): os "atores", que
participam ativa e diretamente da festa; os "espectadores", que se limitam a assistir passivamente os
desfiles e outros eventos carnavalescos; e os "servidores", que trabalham para o bom êxito da festa
(policiais, bombeiros, vendedores, barraqueiros, jornalistas e outros). Poderíamos ainda subdividir a
segunda categoria em duas espécies: "os espectadores diretos", que, como num auditório interagem
com "os atores" e entre si, estimulando, aplaudindo, vaiando: e os "telespectadores", que à distância,
isolados e de modo inteiramente passivo, apenas assistem o que lhes chega pelos meios de comunicação
de massa.
No carnaval popular não há separação de papéis entre participantes e espectadores ou ela
ocorre de forma muito tênue ou momentânea. Todos participam, mais ou menos intensamente, da festa.
É o que ocorre nas bandas, nos pequenos blocos e nas cidades que possuem o carnaval popular como
Olinda (PE), Florianópolis (SC) e algumas cidades do interior de Minas, de São Paulo e do Nordeste.
Em tal tipo, ocorrem os fenômenos característicos do comportamento de multidão e atinge-se o sentido
de "communitas", de festa popular, niveladora, igualitária, espontânea.
REALIZAÇÃO SIMBÓLICA DE NECESSIDADES, DESEJOS E
FANTASIAS
O carnaval, como um enorme palco público, pode ser um instrumento para a realização
simbólica de necessidades, desejos e fantasias individuais e coletivas. O trabalhador braçal, que por uma
noite se veste e atua como um nobre príncipe, sabe que está apenas representando um papel, mas isto
lhe dá, ao nível psicodramático, uma intensa gratificação afetiva, além do aplauso e do reconhecimento
do público assistente. Ele pode ser rei por um dia e artista por uma noite.
Quer seja na rua ou no salão, o carnavalesco está disposto a assumir um papel, a envergar
uma fantasia que lhe vai permitir vivenciar e até mesmo dramatizar um contexto situado parte na
realidade e parte na "fantasia" (aqui usada no sentido psicanalítico).
Freud e outros autores psicanalistas, especialmente Melanie Klein, procuraram mostrar o
paralelo entre o processo de formação das fantasias inconscientes e a elaboração onírica, sendo que,
para Freud (1900) os sonhos são realizações simbólicas de desejos. A censura que atua entre os níveis
pré-consciente e inconsciente do mundo psíquico fica reduzida durante o sono e com isso permite que
os desejos proibidos se tornem novamente ativos, surgindo sob a forma de sonhos.
Semelhantemente, no carnaval, a redução da censura social sobre os desejos proibidos
possibilita a sua reativação, sendo que parte desses poderá ser satisfeita na realidade e parte será
satisfeita simbolicamente.
Embora reconhecendo nos sonhos a existência de um simbolismo onírico, Freud se mostra
cauteloso na interpretação desse simbolismo, apoiando-a nas associações livres do indivíduo que sonha.
A existência de símbolos universais seria algo duvidoso já que um mesmo símbolo poderia ter
significações diferentes para diversas pessoas. A sua significação depende do contexto sócio-cultural
em que se acha incluído. Entretanto, o mesmo Freud não resiste à tentação de expor a significação
genérica de alguns símbolos. Bastões, troncos de árvore, punhais, espadas, gravatas, pistolas,
ferramentas e utensílios em geral seriam representações simbólicas do órgão genital masculino,
enquanto barcos, caixas, estojos, covas e toda a classe de recipientes corresponderiam à genitália
feminina. Note-se que muitos desses objetos aparecem com constância nas alegorias carnavalescas.
Ressaltando o simbolismo no sonho, Freud (1900) afirma que as ideias latentes e o conteúdo
manifesto (do sonho) se apresentam como duas versões do mesmo conteúdo, em dois idiomas distintos
ou, melhor dizendo, o conteúdo manifesto aparece como uma versão das ideias latentes a uma distinta
forma expressiva, cujos signos e regras de construção temos de aprender pela comparação do original
com a tradução.
Ainda no mesmo texto, observa que este simbolismo não pertence exclusivamente ao
sonho, senão que é característico do representar inconsciente, em especial do popular e se
mostra no folclore, nos mitos, nas fábulas, nos modismos, nos provérbios e nos chistes
correntes de um povo, muito mais ampla e completamente ainda que no sonho.
Sintetizando os pontos de vista de Freud, os psicanalistas franceses Laplanche e Pontalis
(1967) dizem que a essência do simbolismo consiste em uma relação constante entre um elemento
manifesto e sua ou suas traduções. Esta constância se encontra não somente nos sonhos, mas nos mais
diversos domínios de expressão (sintomas e outras produções inconsciente: mitos, folclore, religião,
etc.) e em áreas culturais distantes umas das outras. Ela escapa relativamente, como um vocabulário
fixo, às tomadas da iniciativa individual; esta pode escolher entre os sentidos de um símbolo, mas não
em criar novos. Esta relação constante é fundada essencialmente sobre a analogia (de forma, de
tamanho, de função, de ritmo, etc.).
Laplanche e Pontalis (1967) definem o simbolismo segundo dois sentidos:
a) Em senso lato, modo de representação indireto e figurado de uma ideia, um conflito, um
desejo inconsciente; neste sentido, pode-se, em psicanálise, ter por simbólico toda a formação
substitutiva.
b) Em senso estrito, modo de representação que se distingue principalmente pela constância
da relação entre o símbolo e o simbolizado inconsciente, com tal constância encontrando-se não
somente no mesmo indivíduo e de um indivíduo a outro, mas nos domínios mais diversos (mito,
religião, folclore, linguagem) e nos aspectos culturais mais afastados dos outros.
CARNAVAL É COMUNICAÇÃO SIMBÓLICA
Como vimos, carnaval é fenômeno comportamental de comunicação e como tal pode ser
estudado à luz dos princípios que regem os processos comunicacionais. Como ocorre com as demais
formas de comunicação, as expressões carnavalescas individuais e grupais contêm mensagens, cuja
forma pode ser verbal ou não-verbal.
As festas, os jogos, os rituais, as comemorações, como eventos de comunicação, são
impregnados de rico e complexo simbolismo e expressados em linguagem em que predomina o não-
verbal: movimentos corporais, gestos, ritos, vestimentas, paramentos, enfeites, alegorias, imagens, etc.
O que sobressai é, pois, a comunicação não-verbal. De fato, pode-se notar que, num desfile
carnavalesco, os participantes trocam poucas mensagens verbais, já que os papéis são definidos
previamente e é o conjunto visual que deve se destacar. Da mesma maneira, num baile de salão, as
pessoas pouco podem conversar devido ao enorme barulho circunvizinho. Com isso, a linguagem não-
verbal assume a função de ser o principal elemento de comunicação.
Para melhor compreendermos tal processo, tomaremos como referencial teórico as
postulações de Walzlawick, Beavin e Jackson (1973), consubstanciadas na sua obra Pragmática da
comunicação humana. Será de especial utilidade para nosso estudo o quarto axioma conjectural de
comunicação desenvolvido por esses autores: "Os seres humanos comunicam digital e analogicamente.
A linguagem dígita é uma sintaxe lógica sumamente complexa e poderosa, mas carente de adequada
semântica no campo das relações, ao passo que a linguagem analógica possui a semântica, mas não tem
uma sintaxe adequada para a definição não-ambígua da natureza das relações".
A comunicação digital é definida, à semelhança dos computadores digitais e das unidades
funcionais (neurônios) do sistema nervoso, que transmitem informação digital binária (tipo "sim-não"),
por possuir uma sintaxe lógica e cujo material de mensagens é de elevado grau de complexidade,
versatilidade e abstração. É a linguagem lógica escrita e falada como a conhecemos, que utiliza os sinais
convencionais das palavras, sendo a mais adequada para a transmissão do conteúdo da mensagem.
Em contraposição à anterior, ou melhor complementarmente, a linguagem analógica
apresenta uma correspondência aparente por semelhança auto-explicativa, entre aquilo que é usado
para expressar a coisa e a própria coisa em si. É, pois, toda a comunicação não-verbal, mas que inclui
também modo de falar, inflexão de voz, sequência, ritmo e cadência das próprias palavras e qualquer
outra manifestação não-verbal de que o organismo seja capaz. Consequentemente é uma linguagem
muito menos precisa que a digital, mas de compreensão mais ampla e imediata. Uma fotografia ou
pintura pode nos dar rapidamente mais informação sobre uma determinada paisagem do que um
extenso texto descritivo sobre a mesma. Assim, o aspecto relacional da comunicação (incluindo-se os
afetos) será melhor transmitido analogicamente.
Um aspecto a destacar é a grande dificuldade de tradução de um tipo a outro de
comunicação. À mensagem analógica faltam elementos (negação, alternação, implicação, equivalência)
que abrangem a morfologia e a sintaxe da linguagem digital; seu material é antitético e presta-se a
interpretações diferentes.
Sendo, portanto, a comunicação analógica de um tipo evolutivo mais arcaico e mais
apropriada quando a comunicação se faz sobre a relação, ela é a forma por excelência a ser utilizada na
já citada "communitas" de Turner, de que o carnaval seria um exemplo, enquanto a comunicação digital
impera na estrutura social formal e organizada.
Podemos observar que, de início, a comunicação entre os participantes das festas
carnavalescas é do tipo analógico. Os gestos, as expressões, os movimentos de dança, as vestes,
comunicam não-verbalmente intenções, emoções, desejos, simpatias ou antipatias. Posteriormente e,
em geral, fora da pista de dança, é que se passa à comunicação digital, verbal, quando, no caso de
pessoas que não se conheciam antes, são feitas as apresentações "formais" de nome, "status", profissão,
etc. Uma excelente ilustração disso nos é dada pelo compositor Chico Buarque de Holanda, nos versos
de sua música "Noite dos Mascarados", onde, na 3a
parte, duas pessoas, que começaram um diálogo
tentando estabelecer as suas identidades sociais e, ao verem sua relação ameaçada pelas diferenças
mútuas, voltam à "communitas" própria do carnaval e à comunicação analógica:
"Mas é carnaval não me digas mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal
Deixa o tempo parar deixa o barco correr
Deixa o dia raiar que hoje eu sou
Da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou
Seja você quem for seja o que Deus quiser"
A música carnavalesca, assim entendida aquela composta especialmente para a época
momesca, tem a propriedade de ser um grande veículo de comunicação. Alencar (1965) distingue o
samba e a marchinha como as espécies mais abundantes. Considera que o samba é sério, choroso e
romântico. "O desaparecimento de uma tradição da cidade, a descrição entusiástica de um morro, ou a
exaltação da mulher amada, tudo isso no samba de carnaval é paradoxalmente lamentação", enquanto a
maior parte das marchas é brejeira, satírica, maliciosa. Vale a pena ressaltar o paradoxo apontado pelo
autor para o samba.
FANTASIAS E ALEGORIAS: ELEMENTOS PLÁSTICOS DE REPRESENTAÇÃO E
COMUNICAÇÃO SIMBÓLICAS
Os principais elementos envolvidos na comunicação carnavalesca são, além da expressão
corporal (olhares, expressões, gestos, acenos, danças, gingados), os elementos plásticos visuais
(fantasias, alegorias, adornos). Tais elementos plásticos expressam mitos, ideais, tradições, sonhos,
desejos, sentimentos, necessidades e frustrações que motivaram aquelas formas de expressão. É no
carnaval que o indivíduo pode concretizar suas fantasias mentais em fantasias reais, que o favelado
pode se vestir de príncipe, que o obscuro operário pode ser visto e aplaudido por milhões de pessoas.
As mais variadas formas de expressão artística podem ser encontradas não apenas nas
fantasias, mas principalmente na coreografia e alegorias das escolas de samba. Ao lado do seu aspecto
artístico, esses elementos possuem riquíssimos conteúdos simbólicos e significados psicológicos.
As fantasias representam um aspecto fascinante em termos de inversão do "eu social" de cada
um e de representação daquilo que o indivíduo gostaria de ser. Por outro lado também, as fantasias
representam alguns traços da cultura popular, da sociedade e das próprias pessoas escondidas em suas
funções, representando aceitação ou aversão às formas, às regras e às funções estabelecidas.
Ao historiar o carnaval santista, Bandeira Jr. (1974) relata como determinados fatos e
personagens propiciaram o surgimento de certos tipos de fantasias. Na última década do século passado
as preferências são para as fantasias de dominó; por volta de 1918, em um clube santista, um cronista
mundano destaca a grande quantidade de pierrôs e pierretes e surpreende-se com a presença de muitos
cavalheiros fantasiados de pijamas listradinhos e com o peito coberto de alamares, então em grande
voga; a partir de 1920, o reino de Momo começa a ser invadido pelos trajes de baiana, que 20 anos
mais tarde se tornaria o traje representativo da mulher brasileira no exterior, graças à cantora Carmem
Miranda. Segundo este autor, "as fantasias entram e saem de moda, sob o influxo dos acontecimentos
sociais e políticos, da influência cinematográfica ou musical". Assim foi o cinema que imprimiu os
modelos de fantasias de árabes, "cow-boys", legionários, carlitos, tarzans, zorros, sansões, dalilas,
rainhas de sabá, cleópatras e outras, cada uma delas inflacionando o ambiente carnavalesco logo após a
exibição de um filme de sucesso. De outra parte, a música carnavalesca inspirou as fantasias de tirolês e
tirolesa, com a marcha "Lero, Lero", "Nêga maluca" pelo samba do mesmo nome e até a popular e
universal camisa esporte para fora da calça, lançada pelo cantor francês Jean Sablon, em 1943, e que
tomou conta do carnaval desse ano e dos subsequentes. O citado autor se refere ao fato de que em
1963, graças ao lançamento da marcha "Fantasia de Toalha", de cada 10 fantasiados, 5 estavam de
toalha!
Entretanto, se o valor simbólico das fantasias é questionável, pois que, como as vestimentas
usuais, estão sujeitas a modismos e influência de fatos e personagens de uma dada época, não há como
negar uma preferência, quando há a possibilidade de opção, por determinados tipos de roupas e
fantasias. Além de ser o resultado de imposições sociais e modismos culturais, a vestimenta é também
uma expressão de individualidade, sendo o contrário do uniforme, que iguala os seus usuários.
Semelhante a este, temos a "mortalha" baiana e as fantasias padronizadas de alas nas escolas de samba e
nos blocos.
Muitas vezes ao vestir uma fantasia é que o indivíduo se revela verdadeiramente. O uso de
máscaras, fantasias e adereços têm a propriedade de transmutar o indivíduo em um outro personagem.
Praticamente todos os povos, em várias épocas, usaram tais recursos, no teatro, nas festas, nos rituais e
nas cerimônias religiosas, com o fim de identificar-se com o personagem representado ou de ocultar a
própria identidade. Com isso, mais do que um espetáculo de simulação, o carnaval pode mostrar o
verdadeiro eu do indivíduo, livre que está dos papéis e das "máscaras" sociais a que se obriga durante o
ano. "As máscaras ajudam o folião a se libertar da censura da sociedade e da sua própria" (1
).
Da Matta (1977) considera que o uso de fantasias é o instrumento básico para se atingir o
ambiente comunitário do carnaval. Isto pode ser verdade no que toca aos participantes de um grupo
organizado (escola de samba, bloco ou outro) que devem estar fantasiados, mas não é o que ocorre
com o folião de rua ou de clube. Este, no mais das vezes, não possui uma fantasia definida, ou
simplesmente não está fantasiado. Por outro lado, na escola de samba, a fantasia tem, além da
caracterização de um personagem a função principal de uniformização, de padronização. Um
importante aspecto ressaltado por esse autor é que a fantasia carnavalesca reproduz apenas
parcialmente as atitudes e as vestes do personagem representado.
Uma reprodução autêntica (que guardasse uma relação de um-para-um com o original) seria
provavelmente impossível ou, então, cairia na categoria de fantasia autêntica, cujo ambiente apropriado
é muito mais o ambiente não-carnavalesco.
Tal tipo de fantasia, no entanto, pode ser encontrada nos concursos de fantasias e em certos
papéis de destaque nos enredos das escolas de samba, constituindo-se, porém, exceção. A fantasia
tipicamente carnavalesca, que expressa o sincretismo das ações do indivíduo com uma parte das
atitudes e vestes do personagem representado, tem por função a "desqualificação da comunicação"
referida por Watzlawick, Beavin e Jakson (1973), ao apresentar os aspectos contraditórios, incoerentes,
incompletos, obscuros e metafóricos, do personagem. Por causa de sua ambiguidade, a tradução desse
tipo de mensagem analógica é muito mais difícil e imprecisa do que a dos gestos. A desqualificação da
comunicação é um tipo de defesa usado por um indivíduo quando "não pode abandonar o campo, não
pode comunicar mas, presumivelmente, por razões pessoais e íntimas, receia ou tem relutância em
comunicar". E isto parece representar precisamente um dos paradoxos do uso da fantasia no carnaval.
O folião, no mais das vezes, não possui uma fantasia definida, ou simplesmente não está
fantasiado. Por outro lado, na escola de samba, a fantasia tem, além da caracterização de um
personagem, a função principal de uniformização, de padronização. A fantasia carnavalesca deve
reproduzir apenas parcialmente as atitudes e as vestes do personagem representado, embora haja
1
Carnavalesco Fernando Pamplona, em declaração ao jornal O Globo, de 03/02/91.
fantasias autênticas, como as encontradas nos concursos de fantasias e em certos papéis de destaque
nos enredos das escolas de samba, constituindo-se, porém, exceção. A fantasia tipicamente
carnavalesca, que expressa o sincretismo das ações do indivíduo com uma parte das atitudes e vestes do
personagem representado, tem por função a "simulação do personagem", ao apresentar os aspectos
contraditórios, incoerentes, incompletos, obscuros e metafóricos, do representado. Por causa de sua
ambiguidade, a tradução desse tipo de mensagem analógica é muito mais difícil e imprecisa do que a
dos gestos. E isto parece representar precisamente um dos paradoxos do uso da fantasia no carnaval.
Mas, inegavelmente, a fantasia tem também a finalidade específica de permitir ao indivíduo a
concretização simbólica de um desejo. Não fosse isso e não teríamos as inumeráveis "cortes reais",
constituídas de "reis", "rainhas", "príncipes", e "nobres" que desfilam no carnaval e cujas fantasias são
vestidas frequentemente por pessoas dos estratos sociais inferiores da população. Por isso tem sido uma
preocupação dos autores dos enredos carnavalescos a inclusão dessas fantasias preferidas pelos
desfilantes nos seus temas (embora não pareça ser este o motivo principal, mas sim o de exibir fantasias
de luxo para ganhar pontos no desfile).
Houve um ano em que a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, no Rio, montou um
enredo do Brasil colonial com muitos senhores e escravos; foi uma grande dificuldade conseguir
"escravos", pois todos queriam sair de "senhores". Ficou famosa a frase dita por Joãozinho Trinta, o
carnavalesco da Beija-Flor, a um jornalista que o inquiria sobre os gastos exagerados da Escola de
Samba com o desfile: "Quem gosta de miséria é intelectual; pobre quer é luxo" (2
).
Além do que já foi citado, a fantasia carnavalesca apresenta um outro paradoxo que ocorre
entre o conteúdo da informação ("eu sou rei", "eu sou pirata", "eu sou odalisca") e o tipo de relação
(metacomunicação) que deve se estabelecer ("é carnaval, isto é, uma simulação"). Um exemplo
extremo disto é o do homem que sai fantasiado grotescamente de baiana ou de grávida (conteúdo), mas
deixando aparecer o peito e as pernas peludas e a barba mal feita para "não ser mal interpretado"
(relação).
Desde há muito é frequente que os homens se fantasiem de mulher no carnaval. Fazem-no,
entretanto, de uma maneira grotesca, irônica, com o fim deliberado ou oculto de agredir a mulher. Isto
não deixa de representar a liberação de características femininas e não aceitas pelos indivíduos. A
fantasia aí tem a função catártica e o objetivo do indivíduo é mostrar-se repulsivo, anti-sedutor.
Diferentemente, entretanto, são as fantasias femininas usadas pelos homossexuais, os quais
procuram semelhança e identidade com a figura feminina. Aqui há uma grande preocupação pela
beleza, pelo bom gosto e luxo da fantasia. O objetivo é tornar-se o mais "feminino" e "sedutor" possível
como qualquer mulher atraente. Cerceado pelo ambiente social, muitas vezes perseguido e rejeitado, o
homossexual encontra no carnaval o espaço para sua afirmação pessoal. Participa de bailes públicos de
homossexuais (que durante o ano são restritos a ambientes fechados) e que são dos mais procurados
artigos de consumo inclusive por não homossexuais, como artistas famosos. Vestem fantasias,
invariavelmente femininas, as mais atraentes e sensuais possíveis.
2
Jornal do Brasil, 09/02/75.
As alegorias e adereços possuem também seu simbolismo. Mas pelo fato de terem se tornado
ricos e sofisticados, como nos desfiles de escolas de samba e nas chamadas "grandes sociedades",
perdem muito de sua representatividade e valor simbólicos, tornando-se, o mais das vezes, meros
enfeites luxuosos.
Algumas figuras alegóricas têm persistido no carnaval carioca como, por exemplo, cavalos,
elementos naturais, símbolos de realeza e símbolos fálicos. Estes, aliás, parecem ter sido moda nos
antigos carnavais grego e romano. De qualquer maneira tais representações parecem confirmar alguns
desejos simbolicamente realizados pelo carnaval: a sexualidade, busca de prestígio e poder e afirmação.
LIBERAÇÃO DE NECESSIDADES REPRIMIDAS
Segundo Da Matta (1977), a manifestação do comportamento humano nos festejos
carnavalescos seria uma espécie de libertação dos compromissos e obrigações de trabalho, do controle
social, da vida estruturada e obrigatória, da manifestação sexual sem repressão. No carnaval tudo é
permitido espontaneamente. Parece que o único controle é do próprio indivíduo sobre si mesmo. A
mudança de comportamentos e atitudes expressa o que cada um gostaria de ser realmente ou pelo
menos uma tentativa de experimentar uma nova forma de vida mais adequada ao ideal que aspira. Os
mecanismos, regras e símbolos formais do relacionamento humano passam a ter importância secundária
ou quase nenhuma importância. São eliminados ou restringidos, deixando a pessoa em maior liberdade
para aquilo que quer adotar para si mesma. Há uma "mudança radical" que libera a pessoa de seus
símbolos mais arraigados, como posição social, riquezas e prestígios, aproximando os seres humanos,
desinibindo as aspirações e descobrindo a "nudez" reprimida, demonstrando aquilo que é mais íntimo,
secreto e autêntico no relacionamento humano. A "liberação do corpo" de seus deveres regulares de
cabide, de identidades sociais, é também um ato simbólico que equivale a um voto de pobreza e
humildade; um despojamento de tudo aquilo que marca as pessoas como ocupantes de certas posições
permanentes na vida cotidiana. Se na vida diária a prescrição é o resguardo, o comportamento restrito é
altamente consciente do corpo, pois as pessoas devem "ter modos", na folia do carnaval o corpo deve
ser revelado. O recato e parcimônia de gestos, transformaram-se em demonstrações abertas de alegria,
como se todos pudessem, nos três dias de carnaval, finalmente dizer que "comigo vai tudo bem".
Leopoldi (1978) cita a tendência à representação do carnaval como um
momento idealizado da experiência social, no sentido de que o contexto carnavalesco é
antes de tudo propício ao esquecimento das diferenças sociais, em oposição flagrante à
realidade social do período não-carnavalesco. Assim é que, comparadas com o procedimento
próprio do mundo cotidiano, as normas que regulam a vida social sofrem aparentes
reviravoltas no período carnavalesco quando afloram sentimentos de liberdade e de
supressão das barreiras sociais.
A preparação "psicológico-sexual" para o carnaval começa dois meses antes, desde a noite de
"reveillon", onde se dá o grito de carnaval. A partir daí, sucedem-se as festas e os ensaios pré-
carnavalescos cujo envolvimento emocional vai crescendo em intensidade até explodir, no sábado de
carnaval, em verdadeiro "orgasmo carnavalesco coletivo". Na sua sequência temporal, o carnaval imita
o ato sexual.
A ocorrência de comportamentos violentos no carnaval é tão antiga quanto sua existência.
Com os ânimos elevados pelo excesso de estímulos visuais e auditivos, pela ingestão de bebidas
alcóolicas e drogas, e com os freios sociais e superegoicos afrouxados, as pessoas tornam-se também
mais impulsivas e agressivas e menos consequentes (3
).
Em geral, os mais entusiasmados participantes do carnaval e destacados desfilantes de escolas
de samba são justamente aquelas pessoas pertencentes às camadas mais pobres e dominadas da
população, como os negros e os mulatos. Submetidos durante o restante do ano a trabalhos servis ou
domésticos, têm no carnaval uma oportunidade ímpar de afirmar outras qualidades suas que não sejam
apenas os afazeres subalternos.
Como forma menos ostensiva de exibição de "status" podemos encontrar, com mais
frequência, o comportamento dos foliões ricos ou medianamente ricos em camarotes ou mesas
especiais nos clubes. Aqui se nota a grande preocupação dos mesmos em mostrar sua elevada condição
social (às vezes falsa e apenas aparente) e de se sair "bem" na fotografia.
Frequentemente tal necessidade se torna exagerada, chegando ao exibicionismo e à
ostentação, como se pode encontrar nos participantes dos concursos de fantasia, onde se procura exibir
o poder econômico sobre as camadas de classe média e baixa, obter aplausos e fama e despertar a
inveja ou a cobiça dos competidores.
Uma dessas necessidades é a de afirmar a própria individualidade, de buscar o
reconhecimento do seu "eu" pelos demais, através de manifestações de autonomia, de prestígio e
mesmo de exibição. Isto ocorre tanto com os ricos, nos camarotes dos grandes salões, como com os
pobres que têm nas escolas de samba e nos blocos o seu palco de representação.
Como sucessor das orgias e bacanais da antiguidade, o carnaval brasileiro é uma festa
essencialmente erótica. O erotismo, como expressão de suas necessidades e desejos, envolve e colore
praticamente todas as manifestações carnavalescas, embora não sejam as únicas.
No carnaval há uma suspensão das normas sociais e comportamentais que comandam as
relações entre os sexos e as mulheres se exibem, buscam ser vistas e os homens mostram suas mulheres
a todos. O exibicionismo feminino é uma característica da festa, conforme revela o costume típico do
carnaval brasileiro de ter-se nos bailes, as mulheres em cima das mesas e dos balcões em trajes
3
Alguns dados da imprensa são reveladores das consequências de tais excessos:
No carnaval de 1988, na grande São Paulo, a Polícia Militar registrou 79 homicídios, 9 estupros, 3 latrocínios, 2 suicídios e
341 casos de embriaguez. Nas rodovias do estado ocorreram 806 acidentes com a morte de 49 pessoas e ferimentos em
645. Nas estradas do Rio de Janeiro houve 230 acidentes, com 19 mortos e 196 feridos (Jornal do Brasil, 17/02/88). Na
mesma época, no Rio, foram constatados 185 homicídios, 482 furtos de veículos, 651 furtos e roubos de outros tipos, 1106
agressões além de diversas outras ocorrências (O Dia, 18/02/88).
Em 1989, durante o carnaval, em São Paulo ocorreram 42 homicídios, 296 roubos a estabelecimentos e residências, 96
furtos de veículos, 2 estupros, 195 casos de embriaguês e 779 ocorrências de desordens; houve 947 acidentes de trânsito e
atropelamentos provocando a morte de 20 pessoas e ferindo outras 108.
Na mesma época, nas estradas mineiras registraram-se 263 acidentes, com 41 mortos e 383 feridos (Estado de Minas,
09/02/89).
sumários. Outro aspecto a citar é que as mulheres podem ser abraçadas, apalpadas, na medida em que o
recato usualmente presente nas relações pessoais em público é suspenso.
Tanto nos desfiles de escola de samba como brincando nos salões, a mulher procura exibir o
seu corpo da maneira mais sedutora e atraente sexualmente. Os braços abertos e levantados das
mulheres parecem expressar alegria e liberdade, mas também um convite. Entretanto, nem sempre a
cópula é o seu objetivo terminal. Muitas vezes limitam-se a serem parceiras apenas durante o baile,
afastando-se a seguir e com frequência brincam a sós ou com outras mulheres.
Não deixa de constituir um fato pitoresco a imagem de alguns casais em que o homem está
vestido a rigor e a mulher se apresenta quase inteiramente despida. Isto é uma expressão do aspecto
machista da sociedade brasileira em que o homem se apresenta como o senhor, o indivíduo sério e a
mulher o objeto de consumo e sua propriedade.
O ato sexual, a cópula, é o fim buscado por muitos foliões. Em geral para os participantes
masculinos, um baile de carnaval deve terminar com o intercurso sexual com a parceira do baile. Isto é
o que deve acontecer com os casais já existentes antes do baile.
Um outro aspecto propiciado pelo carnaval e que costuma aparecer nas páginas dos jornais,
com frequência de maneira cômica, às vezes tragicamente, é a fuga do folião de seu ambiente
doméstico em busca de novas aventuras. Não seria, pois, por puro acaso que os personagens da
comédia italiana do século XVII - Arlequim, Pierrot e Colombina, o triângulo amoroso do carnaval -
tornaram-se o símbolo da festa em muitos países e os maiores inspiradores de fantasias. Protegidos
pelas máscaras, como nos faustosos bailes das cortes europeias desde o século XVII, os foliões podem
buscar novas ligações e aventuras amorosas sem correrem o risco de serem descobertos.
Em geral, os sociólogos são tendentes a encarar a nudez ou semi-nudez feminina no carnaval
como uma forma falsa e superficial de liberação da mulher. Vivendo em uma sociedade autoritária,
rígida, machista e puritana, a mulher se torna objeto de consumo sexual. Assim, o despir-se no carnaval
fica como manifestação exterior de uma pseudo-liberdade sexual, que pretende ser uma maneira de
escape a uma sociedade alienante.
Da Matta (1979) mostra-nos que no carnaval a representação do corpo não se contenta em
mostrá-lo parado.
Ao contrário, o corpo não só se desnuda, mas se movimenta, revelando todas as suas potencialidades
reprodutivas. O corpo exibido no carnaval, então mesmo quando visto sozinho, exige seu complemento
masculino ou feminino. É um corpo que "chama" o outro, tornando-se sempre abusivo do ato sexual, da forma
mais essencial de confusão e ambiguidade do grotesco, quando - como nos indica Bajtin - dois corpos se
transformam num.
Para o teatrólogo Fernando Arrabal, o carnaval brasileiro, notadamente o carioca, é o maior
espetáculo de simulação do mundo. Um imenso cerimonial público onde tudo é simulado : a alegria, a
luxúria, a suntuosidade. O sexo, como tudo no carnaval, também é representado (4
).
4
Entrevista concedida à revista "Fatos e Fotos, no
812, março de 1977.
ALGUMAS CONCLUSÕES
Pelo que temos visto até agora podemos concluir que:
1. O Carnaval é um fenômeno comportamental coletivo, e como tal, suas manifestações podem ser
estudadas à luz da Psicologia. A compreensão dos eventos carnavalescos poderá trazer à Psicologia
Social dados significativos a respeito de expressões normais e patológicas da conduta humana. O
carnaval pode ser comparado a um grande teatro público, onde os participantes podem ser atores,
personagens ou espectadores, que têm como palco a rua, a passarela ou o salão.
2. Historicamente o período carnavalesco tem possibilitado a liberação coletiva de necessidades
socialmente reprimidas e que, nessa época, encontram condições para seu extravasamento. A
observação pois, dessa manifestação pode nos dar preciosas informações sobre muitos fatos psíquicos
desse tipo de evento, de que talvez não dispuséssemos em outras circunstâncias.
3. Ao afrouxamento da censura externa, social, corresponde também a diminuição da censura interna,
permitindo ao folião nos dias de carnaval, usar uma liberdade de que não dispõe nos demais dias do
ano. A sensação de autonomia e liberdade (parcialmente permitida) é essencial para se brincar no
carnaval. Fugir às regras, normas sociais e regulamentos é a tônica da expressão de qualquer folião. É
possível que seja inclusive esse clima de liberdade aparente, exterior, uma das válvulas de descarga das
tensões sociais produzidas pela repressão social, política e econômica. Se existem autores que vêm no
carnaval uma forma de anestesia dos verdadeiros sentimentos populares de autonomia e uma maneira
de iludir e mascarar a verdadeira liberdade, há outros que vêem nele um hiato de liberdade e autonomia
individuais que não são possíveis no resto do ano e que portanto neste sentido, o carnaval seria
catártico (5
).
4. De certa maneira o carnaval desempenha o papel de equilibrador de tensões sociais. As necessidades
insatisfeitas e socialmente reprimidas encontram uma maneira substitutiva e deslocada de se extravasar
nas expressões erótico-carnavalescas.
5. Em sua origem e na sua forma atual no Brasil, o carnaval tem se caracterizado por ser uma festa
principalmente erótica; esse erotismo, entretanto, tem os seus próprios ritos e expressões. Estes podem
ser notados na maneira com que as pessoas dançam, nos movimentos corporais, na nudez feminina, nos
desfiles das escolas de samba, nos costumes, nas alegorias, músicas, fantasias, etc.
6. A satisfação de necessidades psicológicas, emocionais e sociais no carnaval parece dar-se muito mais
no plano simbólico do que no real.
7. O carnaval é temporariamente, uma festa socialmente niveladora, pois é uma ocasião em que se
podem encontrar pessoas de níveis sócio-econômicos diversos dançando e brincando juntas.
5
Catarse: mecanismo de liberação de sentimentos reprimidos, especialmente os agressivos e sexuais.
Carnaval, fato e fantasia
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Carnaval, fato e fantasia

  • 1. CARNAVAL: FATO E FANTASIA UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL Marcos Goursand de Araújo Tese apresentada para concurso de professor titular ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, setembro de 1991.
  • 2. Carnaval é movimento, é erotismo, é comportamento. Evoca as contradições da própria vida. Ao concretizar as ilusões, as fantasias, o faz de conta, o carnaval se torna o palco onde o formal desaparece, a máscara social cai e as pessoas se revelam como são; em que a beleza e grandeza dos personagens ideais convivem com a insegurança e fraqueza dos atores reais. Atores que somos nós neste carnaval que é a vida.
  • 3. SUMÁRIO Este trabalho pretende estudar o carnaval brasileiro como um fenômeno de comunicação e, assim, suas expressões individuais e coletivas, verbais e não-verbais. Comemorações, movimentos corporais, gestos, rituais, jogos, danças, vestimentas, ornamentos, alegorias, imagens, estão impregnados por rico e complexo simbolismo, no qual predomina a linguagem não-verbal. Apesar de ser uma celebração expressiva, o carnaval tem se tornado cada vez mais institucionalizado e sujeito a influências políticas e econômicas. No entanto, uma análise das suas formas de expressão nos mostra que o carnaval também é um fenômeno comportamental psicossocial em que cada elemento é um meio de comunicação para expressar necessidades individuais e coletivas, desejos, sentimentos, emoções, fantasias. SUMMARY This work is intended to study Brazilian carnival as a communicational phenomenon and so their individual and collective, verbal and non-verbal expressions. Celebrations, body movements, gestures, rituals, games, dances, clothing, ornaments, allegories, images are impregnated by rich and complex symbolism, in which predominates the non-verbal language. Despite being a significant commemoration, carnival has become more and more institutionalized and subject to political and economic influences. However, an analysis of its forms of expression shows that the carnival is also a psycho-social behavioral phenomenon in which each element is a medium to express individual and collective needs, desires, feelings, emotions, fantasies.
  • 4. ÍNDICE APRESENTAÇÃO 5 ETIMOLOGIA 7 UM POUCO DE HISTÓRIA 8 O ENTRUDO, ANTECESSOR DO CARNAVAL BRASILEIRO 11 O MODERNO CARNAVAL BRASILEIRO 12 OBJETIVO 14 ESTRUTURA E DINÂMICA DO CARNAVAL 15 CARNAVAL ORGANIZADO 17 CARNAVAL ESPONTÂNEO 21 CARNAVAL DE SALÃO 22 CARNAVAL POPULAR E DE MASSA 24 REALIZAÇÃO SIMBÓLICA DE NECESSIDADES, DESEJOS E FANTASIAS 26 CARNAVAL É COMUNICAÇÃO SIMBÓLICA 27 FANTASIAS E ALEGORIAS: ELEMENTOS PLÁSTICOS DE REPRESENTAÇÃO E COMUNICAÇÃO SIMBÓLICAS 29 LIBERAÇÃO DE NECESSIDADES REPRIMIDAS 32 ALGUMAS CONCLUSÕES 35 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 38 ANEXO 1 41 ANEXO 2 45
  • 5. APRESENTAÇÃO O carnaval tornou-se, sem dúvida, a maior e mais significativa festa popular brasileira. Em nenhuma outra parte do mundo, uma festa popular atingiu conjuntamente tamanhas proporções em número de participantes, riqueza, complexidade, extensão, intensidade e originalidade de suas manifestações. São milhões de pessoas, em todo o País, que dela participam intensamente durante quatro dias. Apesar de sua importância e significação, o carnaval tem sido pouco estudado pelos cientistas sociais, sendo que a maior parte dos trabalhos existentes são de cunho antropológico e sociológico. Desconhecemos abordagens psicossociais do assunto. Isto parece ocorrer também com outros fenômenos de multidão, como o comportamento das pessoas em estádios de futebol, "shows" musicais, apresentações de artistas populares, concentrações religiosas, comícios políticos, passeatas, no que somos obrigados a concordar com Stoetzel (1963) quando nos diz que "embora se possa facilmente perceber a riqueza da matéria, a Psicologia Social tem mostrado, indevidamente, um relativo desapreço pelo estudo dos comportamentos coletivos dos homens". Existem algumas razões para isto. A primeira e mais importante se refere à metodologia para a pesquisa do fenômeno. Sua extensão, complexidade, mobilidade e transitoriedade tornam-se um desestímulo a estudos científicos sistemáticos e a observação de campo torna-se o principal método aplicável, dado que é difícil criar qualquer tipo de situação controlada. A maior parte dos fenômenos carnavalescos são os comportamentos não-verbais dos participantes (danças, gestos, expressões) e as mensagens analógicas transmitidas por fantasias, alegorias e enredos, constituindo-se em material que sofre perda e modificação de seu significado simbólico ao ser interpretado e transposto para a linguagem verbal do discurso científico. Outra dificuldade que encontramos foi com relação à bibliografia. Existem poucos livros e monografias a respeito do assunto. A maior parte do que existe é constituída de material jornalístico, principalmente reportagens. Embora sabendo ser este de menor confiabilidade, tivemos que recorrer também ao mesmo, à falta do outro. Assim, encontramos no decorrer do trabalho referências a este tipo de material. Em terceiro lugar, parece que temas como carnaval, candomblé, umbanda, futebol, política e morte ainda não encontraram seu devido lugar no universo da Psicologia Social e de preocupações dos psicólogos nativos. No caso específico do carnaval temos notado atitudes preconceituosas de muitos colegas contra o mesmo, por não considerá-lo suficientemente "sério" para merecer maior atenção. Muitas vezes um sorriso irônico e um olhar malicioso acompanham a surpresa em relação ao objeto de nossa pesquisa. Há que se destacar ainda que o desenvolvimento da Psicologia e, em especial, da Psicologia Social se deu especialmente fora de nossas fronteiras e distante de nossa realidade social. Como, em geral, os modelos de pesquisa são oriundos dos Estados Unidos e da Europa, onde o carnaval é desprovido de maior significação, não sendo por isso objeto de maiores estudos, acabamos por repetir no Brasil, onde o fenômeno é tão importante, o mesmo desinteresse. Só mais recentemente, a partir de 1980, com a criação da Associação Brasileira de Psicologia Social e o desenvolvimento de
  • 6. uma postura mais crítica, socialmente engajada e não elitizada, os psicólogos brasileiros têm se debruçado sobre as questões psico-sócio-culturais de nossa população. A extensão, a complexidade, a mobilidade e a transitoriedade do fenômeno carnavalesco têm se caracterizado em desafio e desestímulo a qualquer estudo mais sistemático e se revela desanimador especialmente aos psicólogos preocupados com dados estatísticos rigorosos e com controle de variáveis, o que no caso é praticamente impossível. Assim, pois, o primeiro problema que se coloca é o da dificuldade metodológica. Ora, dentre os tipos de pesquisa mais aceitos e utilizados em Psicologia Social (Sigelmann, 1984) somente o método descritivo pode ser convenientemente aplicado para abranger a complexidade dinâmica do carnaval. Com isso, obviamente, perde-se em precisão e fidedignidade mas, por outro lado, é impraticável fazer-se entrevistas e questionários durante os eventos carnavalescos para chegar-se a um "survey" descritivo; aplicados após os eventos, para um estudo "ex- post-facto", tais instrumentos não iriam refletir a realidade perceptual, afetiva e comportamental das pessoas no momento da festa. Entre tentar a formalização de uma pesquisa através de uma metodologia mais rigorosa e precisa, mas que limitaria sobremaneira as possibilidades de seu alcance e riqueza e a ousadia de livremente fazer observações e reflexões sobre o carnaval, optamos pela segunda direção. Muitas vezes, a observação do fenômeno tem de ser feita de dentro do próprio contexto, com o observador participando, vivenciando. É o que ocorre por exemplo nos bailes de salão. Numa atitude puramente "fria", objetiva, ele pode perder aspectos importantes da comunicação especialmente a analógica, além de, com sua atitude poder inibir a espontaneidade do indivíduo observado. Apesar de todos esses percalços, entretanto, acreditamos ser possível, dentro de um enfoque psicossocial, abordar algumas formas de expressão e comunicação, que são mais especificamente encontradas no carnaval, com o fim de melhor compreender aspectos do comportamento humano e é o que estamos tentando com este trabalho. Longe de ter a pretensão de estudar ampla e aprofundadamente o assunto, estamos cientes de que, por ser esta a primeira tentativa de que temos conhecimento nesta linha, ela se apresenta incompleta e com falhas. Se conseguirmos despertar o interesse crítico dos estudiosos do comportamento para tema tão rico e complexo, teremos nos dado por realizados.
  • 7. ETIMOLOGIA A origem do termo CARNAVAL é bastante discutível. Na Enciclopédia Italiana (1949), no Dicionário Crítico Etimológico de la Lengua Castellana (1954) e no Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa (1964), encontramos na expressão latina "carnem levare" ou "carne levare", que significa "suprimir a carne", a origem do termo italiano "carnavale", que em português e espanhol resultou em "carnaval". Na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1966) e na Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana (1968) encontramos "Carnelevamen". Quaisquer dessas formas seriam derivações do título dado pelo Papa São Gregório Magno, no século VI, ao domingo anterior à Quaresma - "Dominica ad carnes levandas". A segunda hipótese etimológica seria a expressão "Carne vale" - "Adeus carne!" - "título que no início do cristianismo romano se deu à vigília da Quaresma e ao começo de uma fase penitencial em preparo à Paixão e Ressureição de Cristo" (Athayde -1980). Encontramo-la também na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1966) e na Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana (1968). Esta última considera, que a etimologia mais sólida é a de "carrus navalis" porque lança luz sobre os princípios da história do carnaval. Os "carrus navalis" eram barcos ou grandes carros alegóricos imitando navios. No antigo Egito, as festas de Isis, que depois passaram a Roma, se encerravam com desfile de embarcações pelo Nilo. Na Grécia existem referências pictóricas a esses carros já no século VI A.C.. Em Roma faziam o cortejo de abertura das festas saturnais. O historiador Francisco Martins dos Santos, citado por Bandeira Jr. (1974), descobre étimo árabe na formação da palavra carnaval, que viria de "qarn" - época, tempo - e "Baal", o deus pagão, o Osiris do Oriente, resultando em "garnibaal" ou "garnebaal", isto é, tempo de Baal, período de festa pagã. A hipótese etimológica mais sólida, a nosso ver, é a de "carrus navalis" porque lança luz sobre os princípios da história do carnaval. Os "carrus navalis" eram barcos ou grandes carros alegóricos imitando navios. No antigo Egito, as festas de Isis, que depois passaram a Roma, se encerravam com desfile de embarcações pelo Nilo. Na Grécia existem referências pictóricas a esses carros já no século VI A.C.. Em Roma faziam o cortejo de abertura das festas saturnais. Hoje, são a expressão de grandiosidade, luxo e tecnologia dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entretanto, independente de qual seja a sua verdadeira etimologia, a palavra carnaval designa, desde a antiguidade, um tipo de festa de cunho pagão caracterizada por comportamentos licenciosos e celebrada entre o fim do ano e o início da primavera, tendo, na era cristã, sido delimitada ao período imediatamente anterior à Quaresma.
  • 8. UM POUCO DE HISTÓRIA Muito se tem escrito sobre a história do carnaval mas, entretanto, não se conseguiu ainda precisar sua origem. A História atribui a diferentes povos antigos, festas pagãs, que se assemelhavam com o moderno carnaval. Acredita-se mesmo que tenha existido entre povos primitivos para comemorar as boas colheitas. "Homens, mulheres e crianças, pintados e cobertos de penas ou pelos, acendiam fogueiras em volta de seus "habitats" e afugentavam, com caretas, os demônios da má colheita. A algazarra, que presumivelmente faziam, parecia ter qualquer semelhança com o que hoje entendemos por Carnaval" (Alarcon, 1980). A origem do carnaval pode ser situada nas antigas festas e orgias egípcias, gregas e romanas, como as festas de Ísis, as bacanais e as saturnálias. Com o advento do Cristianismo, a Igreja procurou regular o carnaval e controlar seus excessos, impondo pesadas sanções e punições aos que o praticavam. Com isso, o carnaval foi perdendo sua característica de festa orgíaca e na Idade Moderna já havia se tornado uma festa burguesa. As côrtes européias realizavam bailes magnificentes em luxuosos salões. Segundo o já citado historiador Francisco Martins dos Santos, essa festa teria começado no antigo Egito, há mais de 2.000 anos antes de Cristo, nas comemorações em homenagem a Isis e Osiris. Transcrevendo Apuleyo, escritor latino, do século II (ao tempo de Marco Antônio), Francisco Martins conta como era a festa de Isis em Corinto, Grécia, primeira versão do nosso Carnaval: Uma procissão que se iniciava com as máscaras mais diversas e bizarras, quase todas simbólicas: diabos, mortes, carrascos, soldados, caçadores gladiadores, hetaíras, magistrados, filósofos, passarinhei- ros, pescadores, marinheiros, em torno de um andor, levando um caricato gorila, de gorro vermelho e bota cor de açafrão, com uma grande taça de ouro nas mãos, e, em seguida, um asno de asas (paródia de Pégaso mitológico) e um velho ao lado. Em seguida a esse grupo, vinha um segundo grupo, mais brilhante e mais rico, também sobre o carro: mulheres coroadas e vestidas de branco, sacerdotisas ou camareiras de Isis, que assistiam e proviam à toillette da deusa e lhe atiravam flores e aspergiam perfumes, gesticulando com espelhos e pentes. Depois desse grupo principal, seguia uma multidão de homens e mulheres com tochas e círios em honra a todas as divindades astrais, à morte, ao diabo, aos vícios e às virtudes: músicos, citaristas, flautistas e cantores, um coro de indivíduos de veste totalmente branca. Por último, ia o Grande Sacerdote apertando contra o peito uma grande urna de ouro com asas serpentinas, e, logo atrás dele, sobre um carro comprido uma nave grande e barcos de Isis, cheios de marinheiros e tochas. Ali chegados, entre manifestações de respeito e de alegria, o carro náutico após cerimônia de purificação era empurrado para a água, até que flutuasse. A grande barca levava, em seu casco,inscrições egípcias e em seu lançamento ao mar recrudesciam as manifestações populares, os gritos, vivas, remoques, cabriolas, verificando-se ainda combate de água, esguichadas, imersões, borrifadas, mergulhos espontâneos ou forçados, combates de lama. A socióloga Anita Sepilli, também citada por Bandeira Jr. (1974), corrobora a afirmação do historiador santista quando, baseada em Tácito (Germanorum), relata o culto de Erda (ou Herta) pelos germânicos, como importado do Egito. Erda (mãe terra) seria Isis da agricultura pré-faraônica. O culto de Isis, por volta da era vulgar, tinha se espalhado de fato, do Egito, sua pátria, pela Grécia e por todo o Império Romano. Cada ano, ao reinício da navegação, em honra da deusa era levado em procissão um carro nau.
  • 9. Na Grécia, essas comemorações teriam passado a ser realizadas em homenagem a Dionísio (nome grego de Baco, deus do vinho) nas famosas festas dionisíacas, orgias gregas celebradas nos dias 11, 12 e 13 de fevereiro. Havia total liberdade no comer, no folgar e nos prazeres sexuais; os homens se disfarçavam de mulheres e vice-versa, cantando em procissão, os senhores davam liberdade aos escravos; perdoavam-se os devedores; era considerado ofensivo ficar-se sóbrio nessas ocasiões. Homens e mulheres nus ou seminus, enfeitados com adereços e coroas de louros, cantavam e dançavam em cima de carros alegóricos. Posteriormente, aparecem em Roma festividades semelhantes, as bacanais, dedicadas a Baco e realizadas na época da vindima. Contudo, Roma já possuía outras festas, dentre elas as lupercais, em honra a Lupercus, deus da fertilidade, feitas em fevereiro, nas quais eram utilizadas máscaras e as saturnais, em honra a Saturno, em dezembro. As saturnais foram instituídas para comemorar o início da era de Saturno, quando este passou a habitar o Lácio depois de expulso dos céus por Júpiter. Duravam um dia, mas o imperador Augusto ampliou-as para três e Calígula para quatro dias. Depois, sua duração foi estendida para uma semana. Nesses dias, desapareciam todas as diferenças sociais e o povo olvidava suas mágoas na folia, que culminava no dia dedicado a Ops, mulher de Saturno, deusa da abundância. Nesse período de liberdade sem limites, o povo nada respeitava e não impunha freio algum às suas próprias intemperanças. Os poderosos ouviam duras verdades, proferidas por quem, em outras circunstâncias, não ousaria expressá-las. A "liberdade de dezembro" era uma das prerrogativas populares contra a qual ninguém por mais poderoso que fosse, pensaria em colocar-se. Entretanto, nem todos os povos tiveram carnaval. "Os hebreus, tendo inventado o sábado (isto é, um dia de descanso semanal), não tiveram essa necessidade. Mas as civilizações clássicas (Grécia e Roma), que não tinham domingos, facilitavam o lazer e a farra a seus cidadãos através de festivais, de conotação religiosa e realização mundana" (Muricy, 1977). A história atribui a diferentes povos, outras festas anuais que se assemelhavam com o moderno carnaval, como por exemplo: Dias de Bairam, na Turquia, que para o povo era a época do deboche e do prazer; Festa do Buiante celebrada pelos nossos índios Tucunas, que na ocasião usavam máscaras feitas de folhas e cascas de árvores, de terra e de cabeça de animais; Fastnacht (em alemão: noite de jejum) ou Fasenacht (noite de folia), antiga festa dos germânicos; Herta (ou Erda, mãe terra), festa carnavalesca dos povos teotônicos e celtas; Inocentes, festa praticada na idade média gaulesa; Mãe Louca, festa organizada na França por pessoas de elevada categoria e suprimida pelo rei Luiz XIII; Festas das Sortes ou Purim, realizada pelos hebreus; Festas Sáceas, efetuada na Babilônia, desde antes de Ciro, para comemorar uma vitória sobre inimigos. Com a consolidação do cristianismo, a Igreja instituiu um período de quarenta dias de abstinência de carne e de jejum, a Quadragésima ou Quaresma. Com o passar do tempo, o calendário cristão situou o carnaval nos três dias anteriores ao início da Quaresma. A Idade Média, embora submetida ao fanatismo religioso cristão, teve também o seu carnaval. Entretanto, a libertinagem e os excessos da época pagã foram reprimidos pela Igreja e a festa passou a ter caráter mais "sadio", conforme a moral cristã, e até mesmo litúrgico. Foi provavelmente com tal intenção que, no século XV, o Papa Paulo II procurou discipliná-la. Organizou desfiles de carros
  • 10. alegóricos, préstitos em Ágora e no Tertaccio e corridas de cavalos pela Via Láctea, hoje Corso (daí o termo que designa o desfile de carros pelas ruas), que era profusamente iluminada por velas, canalizando assim as energias dos participantes para atividades mais desportivas. Bizarras e extravagantes, as festas do fim da Idade Média e início da Idade Moderna caracterizavam-se frequentemente pela sátira dos costumes, de personalidades de destaque e de fatos escandalosos. Tivemos dois exemplos disto na Festa dos Loucos ou dos Asnos e na Festa da Mãe Louca. A primeira, celebrada a partir do dia 26 de dezembro, diante da Catedral de Notre-Dame, em Paris, consistia em uma bizarra celebração eclesiástica em que se ridicularizava a solene liturgia cristã, desmascarando a hipocrisia das ações papais contra os antigos ritos e costumes pagãos. Dela participavam clérigos e outras pessoas fantasiadas de mulheres e animais, dançando e cantando canções obscenas. O principal personagem da festa era um asno que recebia ridículas homenagens e por fim participava de uma procissão pelas ruas apinhadas de gente. Muita analogia com a "Festa dos Loucos" tinha, no século XV, a "Companhia da Mãe Louca", que era constituída de pessoas consideradas as mais sérias da cidade: médicos, advogados, professores, funcionários públicos, abastados burgueses, que, bizarramente vestidos, com chapéu de palhaço e guizos, sacudindo chocalhos em forma de cetros, percorriam as ruas e as praças em carros fartamente ornamentados, de cores variadas e puxados por cavalos luxuosamente enfeitados. A "Mãe Louca" surgia no meio de sua corte de magistrados, escudeiros, cortesãos e damas de horror. Aproveitando a liberdade do carnaval, todos eles, publicamente, faziam a sátira dos costumes e dos personagens mais em evidência e ofereciam à multidão divertida os fatos mais escandalosos ocorridos no país, carregando em suas cores e satirizando-os. As perseguições e proscrições feitas pela Igreja e pelos Papas às festas de cunho pagão levaram ao desaparecimento de muitas delas, mas o espírito de rebeldia, de crítica aos costumes, de escárnio aos poderosos e de licenciosidade que imperava nas mesmas continuava sob novas formas de festividades, algumas sob a égide da própria Igreja. Tão convencida estava a Igreja que o carnaval era parte de sua própria tradição que quando a Reforma Protestante do século XVII aboliu as penitências da quaresma, os reformadores cristãos ingenuamente insistiram em que não havia mais necessidade do carnaval pecaminoso (Orloff, 1981). Os fatos que deram origem e continuidade à Idade Moderna dentre eles, a invenção da imprensa, a expansão colonialista, a reforma protestante e mais tarde as revoluções políticas e a revolução industrial, transformaram o carnaval europeu em uma festa luxuosa, mas sem a tradição, a espontaneidade e a liberdade que possuía antes. Séculos de repressão moralista nas mãos de papas, bispos e autoridades estatais, mudando as condições econômicas e sociais, domaram o libertário e lascivo espírito de licenciosidade que era o coração do carnaval na antiguidade (Orloff, 1981). Na França tornaram-se célebres as festas carnavalescas da corte de Luiz XIV, sendo que numa delas o próprio soberano apresentou-se numa fantasia representando o sol. Os bailes de máscara parecem ter tido início na corte de Carlos VI, no século XV; esse rei foi assassinado num desses bailes quando se achava fantasiado de urso.
  • 11. O poeta Byron diz que, de todos os lugares da terra, Veneza era o que oferecia o carnaval mais divertido e o mais célebre, pelos cantos e danças, pelos bailes, serenatas e mascarados. Uma grande multidão de forasteiros ocorria à Veneza de outrora, atraída pelo seu carnaval. Dos balcões ornamentados, choviam confetes sobre os mascarados, enquanto nas mesas e praça pública, até os magistrados tomavam parte. À noite, então, o espetáculo assumia aspectos mirabolantes. As gôndolas, iluminadas com lanternas chinesas e luzes multicores, percorriam os canais e as águas da Laguna. Os mascarados penetravam, mesmo nas casas das pessoas desconhecidas e, ali, eram amavelmente recebidos, ou se encontravam todos na Praça de São Marcos, transformada numa imensa sala de recepção. Mas nem todas as opiniões eram tão românticas como as de Byron. Squeff (1980) narra que pintores do século XVIII e XIX como Bartolomeu Pinelli, Domenico Tiepolo e Francisco de Goya e músicos como Hector Berlioz, se reportam ao carnaval de seu tempo como uma parafernália, onde a violência, os excessos e as libações não aconteciam por acaso. O carnaval de Colônia, o maior e mais exuberante da Alemanha, o de Nice, na França com sua batalha de flores, o de Basel, na Suíça, realizado em plena quaresma, o Mardi Gras de Binche, na Bélgica, o Corso de Viareggio, na Itália dentre muitos outros, empolgaram a Europa durante o século XIX. O ENTRUDO, ANTECESSOR DO CARNAVAL BRASILEIRO O carnaval chegou ao Brasil em 1641, sob a forma de "entrudo" (entrada na Quaresma), festa portuguesa violenta que nada tinha de erótica: atacavam-se as pessoas com jatos d'água, farinha, lama, ovos e legumes podres e, às vezes com objetos mais pesados que chegavam a produzir ferimentos sérios nos participantes. Os alvos preferidos nestes arremessos eram escravos e serviçais. É o escritor Júlio Dantas que diz: Nós, portugueses, nunca compreendemos que o entrudo pudesse ser uma festa de arte como na Itália da Renascença, ou uma festa de espírito como na França de Luiz XIV; o nosso entrudo, o santo entrudo lisboeta, foi sempre fundamentalmente e caracteristicamente porco. O século XVIII então, excedeu a todos os outros. Foi o século típico do entrudo nacional. Apesar de bárbaros, esses divertimentos apaixonavam nobres, plebeus e escravos, resistindo por isso a todas as proibições baixadas pelas autoridades da época (Bandeira Jr., 1974). E foi esse o tipo de carnaval que nos foi transmitido pelos nossos colonizadores, o qual recrudesceu depois que a corte de D. João VI veio para o Brasil. De fato, segundo os historiadores, o carnaval aparece oficialmente, na corte de D. João VI, no Rio de Janeiro. No entanto, há, também, uma referência de que em 1641, foi realizado um carnaval promovido pelo governo do Rio de Janeiro, a fim de celebrar a ascensão de D. João VI ao trono de Portugal, restaurando a monarquia portuguesa. Esse fato foi tema de samba-enredo da Portela, em 1977: "O Rei mandou vadiá no dia d'aclamação.
  • 12. A popularização do carnaval, entretanto, vai acontecer com o passar do tempo, pela integração, de um lado das brincadeiras do entrudo e, de outro, pela crescente assimilação de elementos do folclore e de outras festas tradicionais que existiram no Brasil, como nos mostra Louzada (1945). Conta Vieira Fazenda, em crônica de 1904, reproduzida por Louzada (1945), que "o entrudo tocou o seu auge por vir o exemplo de cima: o primeiro imperador, dizem, era louco por essa brincadeira. O segundo seguiu-lhe as pegadas..." À época do Império, no entanto, o entrudo foi cedendo o lugar a outras formas de brincadeira menos violentas e já começavam a surgir outras manifestações carnavalescas mais "civilizadas" como os cordões de Zé Pereira e os bailes de salão no século passado. Mesmo a agressividade do entrudo se arrefecia e os primitivos "materiais" cediam lugar aos famosos "limões de cheiro", bolas de cera dentro das quais era colocada água perfumada. Existiam, também, as bisnagas de água, antecessoras do lança- perfume. Essa nova característica do entrudo provavelmente possibilitou o início dos "flirts" e conquistas amorosas, quando os "limões" eram atirados entre sexos diferentes, reiniciando o sentido erótico do carnaval. Ainda hoje o entrudo é encontrado no carnaval de São Luiz do Maranhão. Podemos também considerar como entrudesco o comportamento dos participantes dos atuais blocos de sujos, cuja fantasia dá a impressão de imundice e cujas atitudes são agressivas, críticas e anti-sedutoras, parecendo com isso querer demonstrar que o carnaval não tem sentido apenas erótico. O MODERNO CARNAVAL BRASILEIRO Em 1840, no Rio de Janeiro, teve lugar o primeiro baile carnavalesco. Seu palco foi o Hotel Itália, já desaparecido e que ficava localizado na atual Praça Tiradentes. O objetivo do baile, "à veneziana" como era anunciado, foi o de permitir à elite local brincar o carnaval sem a presença do povo e longe da agressão do entrudo. Um remanescente atual disto é baile do Hotel Copacabana Palace, frequentado por socialites e pessoas em busca de prestígio social e proximidade com artistas famosos. Em 1846, a atriz Clara Delmastro organiza um grande baile de máscaras no Teatro São Januário, que ficou famoso. Outros bailes vieram a se seguir, distinguindo-se os dois tipos de carnaval e que não se misturavam: o de rua, para o povo e o de salão, destinado à aristocracia. Por essa mesma época, surge no carnaval de rua a figura do "Zé Pereira" que representou um marco no início da substituição do entrudo pelo carnaval atual. Zé Pereira, apelido com que ficou conhecido um sapateiro português chamado José Nogueira Paredes, teve a idéia de num domingo de carnaval, convidar alguns patrícios, nesse dia, para um ruidoso desfile pelas ruas do Rio de Janeiro, a toque de bumbos e um ritmo de chula minhota. Em meio ao cortejo, dezenas de populares juntaram-se aos alegres portugueses, felizes com o estridor, que parecia conclamar a cidade para a festa. O desfile do Zé Pereira passou a fazer parte obrigatória dos festejos carnavalescos no Rio (Alarcon, 1980).
  • 13. Daí outros grupos semelhantes surgiram. Estimulados pelo sucesso dos grupos de "Zé Pereira" e seguindo o esquema de procissões, apareceram, ainda no século passado, os cordões carnavalescos, onde as pessoas cantavam e dançavam com acompanhamento de pequenos grupos instrumentais. Um dos mais famosos foi o "Rosa de Ouro" para o qual Chiquinha Gonzaga compôs, em 1899, a primeira música tipicamente carnavalesca, a "Ó abre-alas". O carnaval carioca do início do século consistia de batalhas de confete, corsos, blocos e desfiles das grandes sociedades, além de bailes em recintos fechados. Eram frequentes as brincadeiras entre fantasiados nas ruas, trotes passados por mascarados, duelos de lança-perfume entre rapazes e moças, foliões com fantasias grotescas e satíricas e brigas geralmente por causa da acompanhante de algum cavalheiro. A partir de 1911 surgem os ranchos, organizações carnavalescas mais complexas, que já desenvolvem em enredo, criam suas próprias músicas, as "marchas de rancho", apresentam figuras de rei e rainha e porta-estandarte. Já neste século são criadas as grandes sociedades, das quais ficaram famosas os Feninos e os Democráticos. Em 1928 foi fundada, no bairro carioca do Estácio, a primeira escola de samba, a "Deixa Falar", que durou até 1931. Pouco depois surgiu a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que em 1932 ganhou o 1o lugar no primeiro concurso de escolas de samba. Em fevereiro de 1984 é inaugurada, no Rio de Janeiro, a Passarela do Samba, ou Sambódromo como ficou conhecido, em que pela primeira vez se tem um grande espaço especialmente construído para o desfile das escolas de samba, embora também aproveitado no restante do ano como salas de aula e conjuntos pedagógicos e administrativos. Contando com uma pista de 1.700 metros de extensão e capacidade para 88.500 espectadores, o Sambódromo deu nova dimensão aos desfiles carnavalescos e institucionalizou o "super-show" das escolas de samba, criando novo modelo para o carnaval de massa. Von Simson (1983) distingue três períodos na evolução histórica do carnaval brasileiro: o primeiro que vai da época colonial até meados do século XIX e que corresponde principalmente ao entrudo; o segundo de 1870 a 1930, marcado pela diferenciação entre o carnaval popular e o das elites: de um lado, o aburguesamento da festa e a introdução do carnaval veneziano, com os bailes de máscaras, os corsos, os préstitos das sociedades carnavalescas e a apresentação de fantasias luxuosas e, de outro, o surgimento de formas socialmente mais aceitas para os folguedos das camadas populares, como os zé-pereiras, ranchos, blocos e cordões; e o último a partir de 1930, quando as atividades festivas são apropriadas pelos meios de comunicação de massa, transformadas em mercadoria cultural para consumo do grande público e adaptadas ao gosto das classes mais abastadas. Ainda segundo a citada autora, o que caracteriza o terceiro período é o surgimento das escolas de samba, criadas na década de 30 pelas camadas populares de origem africana e pelos habitantes dos morros e subúrbios cariocas. Na sua evolução elas passam gradativamente a ser encaradas como mercadoria cultural explorada pelos meios de comunicação de massa - inicialmente o jornal, depois o rádio e por fim a televisão - vendida a turistas nacionais e estrangeiros, atraindo as elites
  • 14. e utilizada como forma de diversão pelas camadas burguesas e pela classe média. Observa-se, pois, nessa última fase: - a reafirmação da criatividade popular; - o avanço e a apropriação pelo sistema capitalista dos fatos culturais, transformando-os em mercadorias lucrativas - divertir-se passa a ser cada vez mais um ato de consumo; - a importância dos meios de comunicação de massa no processo de homogeneização e mercantilização das expressões culturais; - a passagem de traços culturais de uma camada social para outra, embora reafirmando a dominação das camadas mais abastadas sobre as populares. Parece também ser um aspecto importante no carnaval o ter sido sempre um "rito de calendário" (Da Matta, 1977) e celebrado para comemorar a entrada do Ano Novo (augurando-se que o mesmo fosse feliz e proveitoso) ou o início da primavera (simbolizando o renascimento da natureza, com toda a força de sua beleza e alegria). O acentuado processo de institucionalização do carnaval vem tirando muito da espontaneidade e naturalidade de suas manifestações (o sentido de communitas), mas apesar disto a festa ainda se apresenta como um rico manancial de formas de comunicação não-verbal e simbólica que procuram traduzir motivações individuais e coletivas. Em sua forma atual o carnaval carioca é realizado por grande número de escolas de samba, ranchos, blocos, grandes sociedades e bandas, além de bailes promovidos por quase todos os clubes. Em muitas outras cidades brasileiras, inclusive Belo Horizonte, procura-se em geral imitar o carnaval do Rio de Janeiro. E é no carnaval brasileiro que reaparecem os costumes e a licenciosidade pública existentes nas antigas festas pagãs. O carnaval brasileiro dura oficialmente quatro dias, iniciando-se no sábado à noite e terminando na madrugada de quarta-feira da quaresma, embora, de fato, a primeira manifestação de carnaval ocorra à zero hora do dia 1o de janeiro, por ocasião do baile de réveillon, com o grito de carnaval. Esse é o período de intensificação dos preparativos (gritos de carnaval, batucadas de rua, rodas de samba, divulgação das músicas, etc.) para o clímax, que é atingido nos quatro dias de carnaval. Face ao que foi exposto até agora, podemos afirmar que a evolução histórica das festas carnavalescas nos mostra a necessidade que vários povos tiveram de se libertar temporariamente das normas e restrições impostas pela organização social, o que era, em geral, tolerado pelos governantes e pela própria Igreja que intuitivamente, pareceram compreender a necessidade dessa descarga coletiva de tensões. Essa liberação frequentemente incluía o extravasamento da sexualidade, como acontecia nas antigas festas egípcias, gregas e romanas e, hoje em dia, no carnaval brasileiro. Durante a Idade Média e no atual carnaval europeu a tónica tem sido a crítica social e política e a sátira dos costumes.
  • 15. OBJETIVO Nosso propósito é estudar o carnaval como fenômeno psicossocial, especialmente como fenômeno comportamental coletivo que possui características e dinâmica próprias. Porque o carnaval consegue mobilizar e alterar o comportamento de milhões de pessoas? Será o carnaval uma forma de histeria e alienação coletivas ou um veículo de homeostase social na medida em que permite a expressão de necessidades e desejos contidos? O estudo ora proposto abrange questões como o impacto das festas carnavalescas sobre os hábitos, costumes e atitudes da população; modificações e até inversões de valores e padrões sociais; liberação de necessidades e desejos reprimidos no restante do ano; efeitos sobre a saúde mental dos indivíduos; mudanças nas relações de gênero e raça (valorização da mulher e do negro, diminuição do machismo); alteração nas relações de dominação-submissão dos papéis sociais do cotidiano.
  • 16. ESTRUTURA E DINÂMICA DO CARNAVAL O estudo de sua dinâmica e de seus conteúdos poderá nos ajudar a compreender melhor o comportamento do homem em grupo e como tal deve vir a merecer maior atenção da Psicologia Social. Nosso propósito é estudar o carnaval como fenômeno psicossocial, especialmente como fenômeno comportamental coletivo que possui características e dinâmica próprias. Porque o carnaval consegue mobilizar e alterar o comportamento de milhões de pessoas? Será o carnaval uma forma de histeria e alienação coletivas ou um veículo de homeostase social na medida em que permite a expressão de necessidades e desejos contidos? À estrutura social organizada, Turner (1974) contrapõe a noção de "communitas", de anti- estrutura, que é o da sociedade considerada como um "comitatus" não estruturado, ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo comunhão, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos. Da Matta (1977) aplica tal noção ao carnaval, vendo-o como uma grande "communitas", "o sumário perfeito da visão anti-cotidiana da vida brasileira. Um ritual que, ao romper com o "continuum" da vida diária, aponta gritantemente para alguns pontos básicos da nossa ordem social". Já Leopoldi (1978) prefere situar o carnaval como uma manifestação ritualística que se realiza num momento específico da vida social brasileira. O período carnavalesco, portanto, se constituiria o momento adequado à emergência de manifestações rituais de celebração dos aspectos comunitários da estrutura social, isto é, de congraçamento entre os seus agentes. (Leopoldi 1978) A nosso ver, o carnaval apresenta, mais claramente, tais manifestações de tipo anti-estrutural, comunitário, nas inversões de "status" social e nos papéis representados pelas fantasias, no aspecto ritualístico dos desfiles de escolas de samba. Desse modo, o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro passou a influenciar o carnaval das outras cidades brasileiras, como São Paulo, num processo de homogeneização e padronização de um desfile organizado para atrair turistas e “vender” espaço para foliões pagantes se divertirem. Como exemplo da extensão e complexidade do carnaval, vale a pena relacionar o resumo apenas dos eventos oficiais do carnaval organizado de rua no Rio de Janeiro em 1977: Abertura do carnaval às 13:00 horas no sábado com o desfile de uma banda de 800 músicos, acompanhada do Rei Momo e da Rainha do Carnaval e das demais figuras representativas do carnaval. Concurso de fantasias e baile oficial da Prefeitura do Município. Desfile de 28 blocos de embalo, 140 blocos carnavalescos, 12 grandes escolas de samba, 32 escolas de samba de porte médio, 4 clubes de frevo, 10 clubes de rancho e 8 grandes sociedades.
  • 17. O carnaval teve e continua a apresentar formas extremamente variadas em diferentes épocas e lugares. Um sintético, mas belo e bem cuidado relato ilustrado dessas formas pode ser encontrado em Orloff (1981). O próprio carnaval brasileiro atual possui expressões bastante distintas nas diversas regiões do País, cujo único elemento formal comum são os três ou quatro dias antecedentes à quaresma, embora existam também algumas festas carnavalescas extemporâneas, como a cavalhada do Bom Jesus, em Minas Gerais e as micaretas de Feira de Santana e Vitória da Conquista, na Bahia, realizada após a Semana Santa. Von Simson (1983) afirma que na sua transformação histórico-cultural, tanto o antigo entrudo quanto o recente carnaval brasileiro foram paulatinamente se separando em dois níveis diferentes: o do carnaval burguês das classes dominantes, com desfiles luxuosos, bailes nos grandes salões, apresentação de ricas sociedades carnavalescas e corsos, procurando imitar o carnaval europeu do século passado, e o das classes populares, com seus zé-pereiras, ranchos, blocos e cordões, criando novas formas de se divertir. As escolas de samba, etapa mais recente do processo, tendem a representar um possível amálgama ou congraçamento das diferentes camadas da sociedade brasileira. Entretanto, o carnaval das cidades brasileiras de médio e grande porte apresenta, em geral, três tipos de eventos distintos: - os desfiles públicos, oficiais ou patrocinados pelo poder público ou por órgãos de comunicação, que congregam as escolas de samba, os blocos, ranchos e sociedades carnavalescas e outros agrupamentos para os quais se exige ao menos a sua legalização como pessoa jurídica e que possuem regras e regulamentos próprios para os desfiles e para a participação dos seus componentes; - as folias de rua, próprias do carnaval popular, composta de foliões isolados e de agregados espontâneos ou pouco estruturados e abertos à participação de qualquer pessoa, tais como os blocos de embalo e de sujos, as bandas e grupos fantasiados; - os bailes e festas fechados, realizados principalmente pelos clubes e de acesso restrito aos sócios, convidados e pagantes. Temos assim, nitidamente, duas formas de carnaval - o organizado e o espontâneo - e dois espaços onde o mesmo se dá - a rua e o salão. CARNAVAL ORGANIZADO O principal acontecimento do carnaval organizado de rua são os desfiles das escolas de samba, agremiações que chegam a apresentar até 5.000 figurantes como no Rio de Janeiro. Jório e Araújo (1969) definem a escola de samba como "manifestação do folclore urbano, onde um agrupamento de pessoas expressa canto e dança, descrevendo um enredo". Para atender aos faustosos gastos necessários para a sua apresentação, feitos com o fim de agradar aos assistentes e turistas do "carnaval-show" oficializado e para competir com as demais
  • 18. concorrentes, as escolas de samba tornaram-se organizações complexas, comercializadas e com papéis bem definidos, afastando-se de alguns dos aspectos originários do carnaval, tais como, a espontaneidade, a improvisação e a liberdade de brincar. O luxo de suas apresentações, cujos participantes pertencem em sua grande maioria às camadas mais pobres da população, representa a verdadeira e profunda contradição do carnaval: o rico e faustoso personagem representado pelo ator miserável. Cada desfilante de uma escola de samba deve arcar com as despesas de sua própria fantasia, além de pagar a mensalidade de sua agremiação. São, em sua maioria, operários de salário mínimo ou pouco mais. Assim uma fantasia das mais simples, como as de alas, irá custar-lhes pelo menos um mês de salário. Outro aspecto a ser destacado é que elas têm sido procuradas por pessoas de renda e "status" elevado. Desfilar por uma escola de samba tornou-se sinal de prestígio. A competição entre as escolas de samba tornou-se acirrada, em algumas situações uma verdadeira "guerra". Os participantes de uma escola torcem e brigam por ela tanto ou mais intensa e emocionalmente quanto as disputas de campeonatos entre times de futebol. Futebol e carnaval são hoje inegavelmente o "circo" do brasileiro. Esse fato poderá ser observado sob dois ângulos diferentes do problema dentro da mesma questão: a) o primeiro é o de que as escolas de samba seriam instrumentos de auto-afirmação da classe pobre, isto é, propiciam a única oportunidade que os pobres (especialmente os negros) têm de se sentirem importantes (reis, rainhas, príncipes, figuras de destaque) e poderem assumir o "status" que o cotidiano lhes nega. b) o segundo ângulo da questão e que tem sido motivo de interesse de pesquisas de sociólogos é a entrada das chamadas "classe média" ou "classe alta" nas escolas de samba. Esse fenômeno, aliás, tem despertado atenção não só de pesquisadores como de leigos e interessados no assunto. O fato, que é relativamente novo (isto é, a quebra do preconceito é relativamente recente) apresenta nuances de acordo coma região, local ou a própria estrutura social. No Rio de Janeiro, onde a estrutura social é definida socialmente como "classista aberta", isto é, o sistema social em que o indivíduo se encontra inserido lhe permite mudança rápida de "status", sem muita objeção ou mesmo dificuldades repressivas, a classe média e mesmo a classe alta, têm conseguido penetrar no interior das escolas consideradas médias ou grandes, sendo bem aceitas pelo grupo. Procurando copiar o carnaval carioca, os paulistas também organizaram suas escolas de samba semelhantes às do Rio de Janeiro. O carnaval paulista é chamado satiricamente de "carnaval empresarial". Falta-lhe, no entanto, tradição carnavalesca, ambiente próprio, clima, entusiasmo popular e uma organização como a do carnaval carioca. Na opinião do ator Plínio Marcos (1977), a tradição carnavalesca de São Paulo eram os cordões, que foram se extinguindo ou virando escolas de samba,
  • 19. copiando os defeitos das do Rio de Janeiro e se desvinculando totalmente das raízes culturais de São Paulo. Na sociedade paulista do interior, o fenômeno apresenta característica bem diferente. Devido à rigidez da estratificação social e ao preconceito ainda muito arraigado, a penetração dos indivíduos de classes abastadas no carnaval se deu através de grupos fechados ou as chamadas "escuderias". Tanto as escolas de samba, que agregam pessoas das classes mais pobres e onde há predominância de negros, como as escuderias que agrupam os membros das classes alta e média, são ainda grupos bastante fechados. Dispondo de maiores recursos oriundos dos próprios sócios e de empresas simpatizantes, além de maior apoio oficial (conseguido graças ao prestígio de seus participantes junto aos órgãos públicos) as antigas escuderias puderam apresentar-se de forma mais atraente, rica, melhor organizada, inclusive podendo contratar melhores passistas, bateristas, destaques e outros figurantes para desfilar em suas alas. O que seria uma festa popular tem passado a ser um desfile luxuoso em que as verdadeiras escolas de samba, de raízes populares, são colocadas em segundo plano e tendendo a desaparecer. Ocorre aí a inversão da situação: a elite desfila para o povo que apenas pode assistir passivamente. Os elementos de proa de muitas das escolas de samba do interior são indivíduos de grande projeção sócio- econômica da comunidade, que desfilam em posições de destaque. É quando então o "patrão" e a "patroa" vão para a passarela desfilar ante os olhares ainda surpresos do povo, mal acostumado a esse tipo de desfilante. Apesar dessas sociedades serem essencialmente conservadoras, pode-se notar no Carnaval a quebra de tradições e tabus sociais. A mulher ou a filha do industrial ou do rico comerciante tem permissão para desfilar sedutoramente exibindo seu corpo semidesnudo, em flagrante contraste com o fato de que no restante do ano vive sob um regime patriarcal, machista, fortemente recatado. Mais que uma liberalidade do marido, porém, isto representa uma falsa liberdade de 3 ou 4 dias a quem vive, no restante do ano, submetida aos afazeres domésticos. Um outro exemplo de uma escola de samba de elite é dado pela Raízes, da cidade de Vespasiano, na região da grande B.H. Organizada e mantida pela burguesia sócio-econômica local, a agremiação conseguiu atingir um nível de luxo e riqueza nas suas fantasias e alegorias incomum no carnaval mineiro. Faz um desfile "fechado" em que não apenas os destaques, mas as suas alas são membros das famílias locais e se conhecem quase todos. Reações a esse carnaval massificado têm ocorrido no Rio de Janeiro, mas com sucesso efêmero. Se, a partir de meados dos anos 60, as escolas de samba passaram a investir maciçamente no luxo e na riqueza de suas apresentações, tornando o "show" dos desfiles cada vez mais suntuosos, em 1988, com a Vila Isabel ganhando o seu primeiro campeonato, tentam retomar o caminho da criatividade e da arte, utilizando de materiais mais simples e baratos, porém de grande efeito cênico. Essa tendência é reafirmada em 1989, com a Beija-Flor realizando o mais belo e empolgante desfile já feito por uma escola de samba, com o tema "Ratos e urubus, larguem minha fantasia", talvez só
  • 20. comparável à apoteótica apresentação da Mangueira em 1984. Tendo enfatizado o luxo em seus desfiles a partir de 1976, que lhe valeram cinco campeonatos quase seguidos, a Beija-Flor, através de seu carnavalesco Joãozinho Trinta e do figurinista Viriato Ferreira, buscou nos mendigos os seus destaques e na sucata e no lixo os materiais baratos que fizeram o visual de sua apresentação - "o luxo do lixo". Em geral, os temas das grandes escolas de samba são o que se poderia chamar de "alienados", isto é, desvinculados da realidade social e das verdadeiras aspirações - tanto dos seus participantes quanto dos assistentes. Sujeitas a um regulamento rígido, sem dispor de maior liberdade para criar, preocupadas com a classificação no desfile onde pesam mais os critérios de luxo e riqueza, as grandes escolas de samba apelam para assuntos épicos, míticos, religiosos, africanos, lendas e passagens da História do Brasil. As agremiações de menor importância, como as pequenas escolas de samba de bairros e blocos, mostram-se mais autênticos e capazes de oferecer temas ligados ao cotidiano e à realidade social. Todavia podemos observar ao longo dos últimos anos, de 1977 a l990, uma certa mudança nos enredos das escolas de samba do primeiro grupo, no Rio de Janeiro (vide anexo 2). Se a tônica frequente era a exaltação e a idealização do País, resquícios dos "carnavais de guerra" (Tupy, 1985) e das imposições da ditadura militar, que inclusive não permitia a crítica política e social, em 1984, o entusiasmo pela campanha para eleições diretas e pela inauguração do Sambódromo, leva as escolas de samba a produzirem um super desfile em que dominavam o humor e a coragem (Moura, 1986). Em 1985, às vésperas da posse de Tancredo Neves, os conteúdos dos temas tomam o rumo da crítica, do humor e da esperança, no chamado "carnaval da democracia". Hoje em dia as grandes escolas de samba do Rio tornaram-se complexas organizações com fortes interesses econômicos e políticos. Quase todas têm, nos seus quadros dirigentes, figuras de famosos contraventores, especialmente do "jogo do bicho". Através da Liga Independente das Escolas de Samba, dominada por banqueiros do jogo do bicho, são conduzidos todos os entendimentos com a Riotur (a organizadora dos desfiles oficiais), os assuntos financeiros, a distribuição de verbas, viagens, apresentações, produção de discos, direitos de teletransmissão. Em um minucioso estudo antropológico sobre a Escola de Samba Mangueira, Goldwasser (1975) nos expõe o fato contraditório das escolas de samba, em sua configuração e nos desfiles, revela- rem-se instituições altamente estruturadas, derivadas porém de uma situação tida como tipicamente não estruturada, caótica, como é o carnaval. Para Athayde (1980), o fenômeno da atração pelo luxo, pela evocação de uma vida social aristocrática e anacrônica é uma deformação psicológica das mais nocivas para o próprio povo. E adverte para o uso político do carnaval, para a tática maquiavélica da anestesia das forças populares, para o fato de que "o Carnaval pode ser e já será, para muitos, o melhor meio de anestesiar o povo e de impedi-lo de lutar pelos seus direitos". Ponto de vista semelhante é esposado por Queiroz (1978), para
  • 21. quem, o carnaval "refletindo a sociedade em que se insere, age como fator de preservação do „status quo‟ social". CARNAVAL ESPONTÂNEO O carnaval não organizado de rua é constituído por um sem número de bandas, pequenos blocos ou simples grupos de pessoas que em volta de alguns instrumentos de percussão cantam e dançam e mesmo pessoas isoladas. Dele participa qualquer pessoa que queira. À medida em que se afasta do carnaval organizado e se desce no nível de apresentação dos grupos carnavalescos, começa-se a encontrar temas mais populares e ligados à realidade e ao cotidiano das pessoas. Um exemplo disso é o carnaval de um bairro operário de São Paulo, a Vila Esperança. Diferentemente do que acontece com as grandes escolas, no Carnaval da Vila Esperança, que possui um desfile tradicional, os temas apresentados nos carros alegóricos se referem ao desenvol- vimento do Brasil e de São Paulo, às perspectivas futuras do país, ao futebol, ao folclore afro-brasileiro, aos aspectos pitorescos da vida da cidade e os programas "enlatados" da televisão. Em Santa Cruz, subúrbio do Rio, ainda sobrevivem os "clovis", um grupo que lembra um pouco o carnaval europeu no seu estilo e o entrudo nas suas origens. Surgida recentemente, como forma de resgatar o carnaval popular e espontâneo, as bandas têm atraído um número cada vez maior de foliões interessados em brincar o carnaval, que delas participam livremente. Não possuem estatutos ou regulamentos e não cobram taxas. A primeira e mais famosa é a Banda de Ipanema, criada em 1966. Outras vieram posteriormente. Em Belo Horizonte surgiu, em 1967, a Banda Mole, hoje o carro-chefe do carnaval da cidade. Apesar da tendência à institucionalização do carnaval, em muitas cidades brasileiras ainda predominam as festas de cunho popular. Um dos mais famosos carnavais brasileiros é o de Olinda, em Pernambuco, cuja força maior está nos eventos espontâneos de rua e onde mesmo os grupos organizados, como os clubes de frevo desfilam junto com o povo nas ruas. Outra festa que tem suas peculiaridades próprias é o carnaval de Salvador, com os seus trios elétricos. O primeiro trio elétrico surgiu em 1950, criado pelos carnavalescos e compositores baianos Dodó e Osmar que montaram um equipamento de som em um caminhão, em cima do qual um conjunto de três instrumentistas tocava e cantava. Hoje, um número de quase uma centena de trios elétricos, com equipamento sofisticado e de altíssima potência anima e ensurdece a capital baiana nos dias momescos. São também específicos do carnaval baiano os afoxés e blocos afros, dos quais os mais conhecidos são os Filhos de Ghandi, o Ilê Ayê e o Malê de Balê.
  • 22. Apesar de seu caráter popular, fica patente no carnaval de Salvador a separação de classes sociais como, por exemplo, nos desfiles dos trios elétricos. Os integrantes do bloco que possuem ou contratam um trio elétrico vestem uma fantasia-uniforme, igual para todos, a "mortalha", e dançam na rua, à frente e atrás do caminhão, cercados por um cordão de isolamento separando-os do povo que acompanha ou assiste das calçadas, "pegando carona" na música. Entre o povo e os membros do bloco, os seguradores de corda, negros em sua grande maioria, vestidos de monarca simples, às vezes apenas de "short" e camiseta, parecem lembrar um cortejo de escravos atados por cordas. O carnaval "processional", com seus desfiles, divide as pessoas nitidamente em dois grupos com funções diferentes: os "atores", com papéis definidos previamente e que participam diretamente; e os expectadores, que se limitam a assistir, manifestando seu agrado ou desagrado e eventualmente podendo cantar ou dançar ao acompanhamento da música. No carnaval "circular" como o de Salvador e de outras cidades, a distinção entre participantes e assistentes é menor ou quase nula; de alguma maneira todos participam em volta da fonte de estímulo, como o trio elétrico. Embora, ao desfilar, os trios elétricos façam uma sequência processional, quando parados congregam o povo à sua volta. Outra interessante manifestação carnavalesca que ainda mantem suas características populares, apesar de ser fortemente influenciada pelo carnaval carioca, é a de Florianópolis, em Santa Catarina. No desfile oficial, além das escolas de samba e dos blocos, destacam-se os chamados "carros de mutação", típicos do carnaval florianopolitano e únicos do seu gênero no carnaval brasileiro. Montados em carretas ou plataformas móveis, os carros de mutação são verdadeiras obras de arte sobre rodas, abrindo-se como pequenos castelos povoados de crianças e chegando a vários metros de altura. Grande parte da população vai para as ruas, que se transformam em um vasto "footing". Nelas sobressaem-se os travestis, isolados ou em blocos de sujos, e são os elementos preferidos para destaques das escolas de samba. Lamentavelmente as manifestações típicas dos carnavais regionais tendem a desaparecer, sufocadas pela padronização do modelo carioca, pela falta de apoio dos órgãos públicos e até pelo desinteresse da população local. É o que está ocorrendo com o desfile dos carros de mutação em Florianópolis, os blocos caricatos, o que existe de mais típico no carnaval de Belo Horizonte, as batalhas de confete e os corsos de algumas cidades do interior da região centro-sul, os blocos de frevo em algumas cidades do nordeste, o boi-de-mamão em Santa Catarina. CARNAVAL DE SALÃO O carnaval de salão é elitista na sua origem. Lamounier (1979) relata que surgiu para permitir que as senhoras e moças da sociedade burguesa pudessem desfrutar o carnaval sem a presença de mestiços e mulatos. Começando como um carnaval de elite, assim se manteve até hoje, ficando o carnaval de rua para as camadas "inferiores". O carnaval de rua acabou por se distinguir mais tarde, em dois tipos: o organizado e o não organizado, sendo que o primeiro está sendo ocupado e manipulado pela elite. Para o citado autor, "o carnaval e, especificamente, as escolas de samba, seu principal
  • 23. sustentáculo, são um dos raríssimos exemplos de êxito das camadas pobres urbanas no Brasil em se organizarem autonomamente". O carnaval de salão é feito em recintos fechados, cujo acesso é reservado aos sócios do clube, convidados ou pagantes de ingressos. Constitui-se dos grandes bailes, com concursos de fantasias e prêmios para as melhores, e dos demais bailes, promovidos por cada clube existente em quase todas as cidades brasileiras. Os clubes geralmente oferecem quatro bailes noturnos para adultos e dois bailes vespertinos para menores infanto-juvenis. O número de participantes varia de acordo com a capacidade de cada clube, oscilando em geral entre 1.000 e 4.000 pessoas, alguns chegando a abrigar quase 10.000 pessoas. Um exemplo aberrante de carnaval popular de salão é o baile Anhembi, salão improvisado de um pavilhão de feiras, promovido pela Prefeitura de São Paulo com o fim de popularizá-lo, mas onde se concentram até 60.000 pessoas dançando ao som de fitas gravadas. Nos grandes bailes fechados do Rio, anteriormente reduto do carnaval das classes alta e média, nota-se a presença cada vez maior de pessoas de nível sócio-econômico mais baixo, fazendo com que haja dois espaços diferentes: os camarotes, onde fica a burguesia, buscando se excluir e ser vista, e o salão onde se acotovelam as outras milhares de pessoas. Enquanto os ocupantes dos camarotes revelam comportamentos que vão do formal ao ostensivo, do recatado ao promíscuo, mas onde se sobressai a necessidade de se excluir, de se ver visto, na "selva" do salão o que predomina é o grotesco, o caricatural, o agressivo. São homens sozinhos ou acompanhados à cata de mulher; mulheres em duplas ou pequenos grupos que parecem procurar homens, mas se esquivam quando se aproximam; mulheres solitárias, em geral de meia-idade; mulheres bonitas e seminuas em cima de mesas e cadeiras exibindo-se provocantemente; turistas embasbacados paquerados por prostitutas e mulheres contratadas pelos clubes; casais que mais ou menos explicitamente expressam publicamente seus desejos sexuais. O comportamento do participante no carnaval de salão é bem diferente do desfilante de escola de samba. Este é um ator que deve se exibir para milhares de pessoas, mostrando suas fantasias, suas habilidades de dançarino, sendo reconhecido e aplaudido. É membro de uma equipe, uma ala e sua participação é condicionada pelo seu grupo. Ele deve ensaiar, preparar-se, treinar durante alguns meses, até estar em condições de desfilar, de representar um papel na peça coletiva que é o enredo da escola de samba. Seu objetivo é fazer a melhor apresentação possível para ajudar na vitória de sua agremiação e por isso possui pouca liberdade de expressão. Seu papel é bem definido previamente. Cada desfilante de uma escola de samba deve arcar com as despesas de sua própria fantasia, além de pagar a mensalidade de sua agremiação. Em parte com as mensalidades dos sócios e com rendas obtidas em rodas de samba e bailes, mais as contribuições e ajudas de seus simpatizantes (em geral os comerciantes do bairro, que são beneficiados pelo aumento do seu movimento comercial produzido pela escola de samba), é que a escola monta a estrutura para o seu desfile. O participante do carnaval de salão, o "folião", é simplesmente alguém que procura um salão para brincar o carnaval. Não faz parte de uma equipe, de um grupo e seus objetivos são inteiramente individualizados. Seu comportamento, portanto, será marcado por uma procura de satisfação pessoal exclusivamente. Busca formas de extravasamento de impulsos, onde predominam os sexuais, os
  • 24. agressivos e os de liberdade social. Sem estar amarrado a um papel ou uma função, ele pode apresentar o seu verdadeiro "eu" interno, motivado que está pela multidão e com fraca censura sobre si mesmo. CARNAVAL POPULAR E DE MASSA Uma das principais polêmicas que envolvem o atual carnaval brasileiro pode ser resumida no dilema: o carnaval é de fato uma festa popular e, portanto, uma expressão de “folkcomunicação” ou uma mercadoria cultural vendida pelos meios de comunicação de massa? Ou eventualmente ambas as coisas? Tal polêmica remete a uma outra questão mais significativa do ponto de vista psicossocial: o carnaval é um evento liberador ou anestesiador de tensões sociais e necessidades individuais reprimidas? Para tentar responder a tais indagações, devemos primeiramente reconhecer que o chamado carnaval brasileiro não é um fenômeno unitário e típico. Existem formas bastante variadas e diferentes de carnaval de região para região. Não temos um carnaval, mas vários, comemorados nos seus dias oficiais. Dentre os diversos tipos, há sem dúvida um que se tornou uma fantástica mercadoria cultural difundida nos mais longínquos recantos do País e exportado para quase todo o mundo: o carnaval carioca, particularmente o desfile das grandes escolas de samba do grupo especial. O que deveria ser uma festa verdadeiramente popular, que a todos congregasse numa manifestação espontânea é socialmente institucionalizada e oficializada pelo Estado, organizada segundo os interesses da indústria cultural e transformada em mercadoria pelos meios de comunicação de massa. No "carnaval-show", produto de consumo da cultura de massas, existem nitidamente três grupos de papéis ou funções dentro da "ordem carnavalesca" segundo Queiroz (1983): os "atores", que participam ativa e diretamente da festa; os "espectadores", que se limitam a assistir passivamente os desfiles e outros eventos carnavalescos; e os "servidores", que trabalham para o bom êxito da festa (policiais, bombeiros, vendedores, barraqueiros, jornalistas e outros). Poderíamos ainda subdividir a segunda categoria em duas espécies: "os espectadores diretos", que, como num auditório interagem com "os atores" e entre si, estimulando, aplaudindo, vaiando: e os "telespectadores", que à distância, isolados e de modo inteiramente passivo, apenas assistem o que lhes chega pelos meios de comunicação de massa. No carnaval popular não há separação de papéis entre participantes e espectadores ou ela ocorre de forma muito tênue ou momentânea. Todos participam, mais ou menos intensamente, da festa. É o que ocorre nas bandas, nos pequenos blocos e nas cidades que possuem o carnaval popular como Olinda (PE), Florianópolis (SC) e algumas cidades do interior de Minas, de São Paulo e do Nordeste. Em tal tipo, ocorrem os fenômenos característicos do comportamento de multidão e atinge-se o sentido de "communitas", de festa popular, niveladora, igualitária, espontânea.
  • 25. REALIZAÇÃO SIMBÓLICA DE NECESSIDADES, DESEJOS E FANTASIAS O carnaval, como um enorme palco público, pode ser um instrumento para a realização simbólica de necessidades, desejos e fantasias individuais e coletivas. O trabalhador braçal, que por uma noite se veste e atua como um nobre príncipe, sabe que está apenas representando um papel, mas isto lhe dá, ao nível psicodramático, uma intensa gratificação afetiva, além do aplauso e do reconhecimento do público assistente. Ele pode ser rei por um dia e artista por uma noite. Quer seja na rua ou no salão, o carnavalesco está disposto a assumir um papel, a envergar uma fantasia que lhe vai permitir vivenciar e até mesmo dramatizar um contexto situado parte na realidade e parte na "fantasia" (aqui usada no sentido psicanalítico). Freud e outros autores psicanalistas, especialmente Melanie Klein, procuraram mostrar o paralelo entre o processo de formação das fantasias inconscientes e a elaboração onírica, sendo que, para Freud (1900) os sonhos são realizações simbólicas de desejos. A censura que atua entre os níveis pré-consciente e inconsciente do mundo psíquico fica reduzida durante o sono e com isso permite que os desejos proibidos se tornem novamente ativos, surgindo sob a forma de sonhos. Semelhantemente, no carnaval, a redução da censura social sobre os desejos proibidos possibilita a sua reativação, sendo que parte desses poderá ser satisfeita na realidade e parte será satisfeita simbolicamente. Embora reconhecendo nos sonhos a existência de um simbolismo onírico, Freud se mostra cauteloso na interpretação desse simbolismo, apoiando-a nas associações livres do indivíduo que sonha. A existência de símbolos universais seria algo duvidoso já que um mesmo símbolo poderia ter significações diferentes para diversas pessoas. A sua significação depende do contexto sócio-cultural em que se acha incluído. Entretanto, o mesmo Freud não resiste à tentação de expor a significação genérica de alguns símbolos. Bastões, troncos de árvore, punhais, espadas, gravatas, pistolas, ferramentas e utensílios em geral seriam representações simbólicas do órgão genital masculino, enquanto barcos, caixas, estojos, covas e toda a classe de recipientes corresponderiam à genitália feminina. Note-se que muitos desses objetos aparecem com constância nas alegorias carnavalescas. Ressaltando o simbolismo no sonho, Freud (1900) afirma que as ideias latentes e o conteúdo manifesto (do sonho) se apresentam como duas versões do mesmo conteúdo, em dois idiomas distintos ou, melhor dizendo, o conteúdo manifesto aparece como uma versão das ideias latentes a uma distinta forma expressiva, cujos signos e regras de construção temos de aprender pela comparação do original com a tradução. Ainda no mesmo texto, observa que este simbolismo não pertence exclusivamente ao sonho, senão que é característico do representar inconsciente, em especial do popular e se mostra no folclore, nos mitos, nas fábulas, nos modismos, nos provérbios e nos chistes correntes de um povo, muito mais ampla e completamente ainda que no sonho.
  • 26. Sintetizando os pontos de vista de Freud, os psicanalistas franceses Laplanche e Pontalis (1967) dizem que a essência do simbolismo consiste em uma relação constante entre um elemento manifesto e sua ou suas traduções. Esta constância se encontra não somente nos sonhos, mas nos mais diversos domínios de expressão (sintomas e outras produções inconsciente: mitos, folclore, religião, etc.) e em áreas culturais distantes umas das outras. Ela escapa relativamente, como um vocabulário fixo, às tomadas da iniciativa individual; esta pode escolher entre os sentidos de um símbolo, mas não em criar novos. Esta relação constante é fundada essencialmente sobre a analogia (de forma, de tamanho, de função, de ritmo, etc.). Laplanche e Pontalis (1967) definem o simbolismo segundo dois sentidos: a) Em senso lato, modo de representação indireto e figurado de uma ideia, um conflito, um desejo inconsciente; neste sentido, pode-se, em psicanálise, ter por simbólico toda a formação substitutiva. b) Em senso estrito, modo de representação que se distingue principalmente pela constância da relação entre o símbolo e o simbolizado inconsciente, com tal constância encontrando-se não somente no mesmo indivíduo e de um indivíduo a outro, mas nos domínios mais diversos (mito, religião, folclore, linguagem) e nos aspectos culturais mais afastados dos outros. CARNAVAL É COMUNICAÇÃO SIMBÓLICA Como vimos, carnaval é fenômeno comportamental de comunicação e como tal pode ser estudado à luz dos princípios que regem os processos comunicacionais. Como ocorre com as demais formas de comunicação, as expressões carnavalescas individuais e grupais contêm mensagens, cuja forma pode ser verbal ou não-verbal. As festas, os jogos, os rituais, as comemorações, como eventos de comunicação, são impregnados de rico e complexo simbolismo e expressados em linguagem em que predomina o não- verbal: movimentos corporais, gestos, ritos, vestimentas, paramentos, enfeites, alegorias, imagens, etc. O que sobressai é, pois, a comunicação não-verbal. De fato, pode-se notar que, num desfile carnavalesco, os participantes trocam poucas mensagens verbais, já que os papéis são definidos previamente e é o conjunto visual que deve se destacar. Da mesma maneira, num baile de salão, as pessoas pouco podem conversar devido ao enorme barulho circunvizinho. Com isso, a linguagem não- verbal assume a função de ser o principal elemento de comunicação. Para melhor compreendermos tal processo, tomaremos como referencial teórico as postulações de Walzlawick, Beavin e Jackson (1973), consubstanciadas na sua obra Pragmática da comunicação humana. Será de especial utilidade para nosso estudo o quarto axioma conjectural de comunicação desenvolvido por esses autores: "Os seres humanos comunicam digital e analogicamente. A linguagem dígita é uma sintaxe lógica sumamente complexa e poderosa, mas carente de adequada semântica no campo das relações, ao passo que a linguagem analógica possui a semântica, mas não tem uma sintaxe adequada para a definição não-ambígua da natureza das relações".
  • 27. A comunicação digital é definida, à semelhança dos computadores digitais e das unidades funcionais (neurônios) do sistema nervoso, que transmitem informação digital binária (tipo "sim-não"), por possuir uma sintaxe lógica e cujo material de mensagens é de elevado grau de complexidade, versatilidade e abstração. É a linguagem lógica escrita e falada como a conhecemos, que utiliza os sinais convencionais das palavras, sendo a mais adequada para a transmissão do conteúdo da mensagem. Em contraposição à anterior, ou melhor complementarmente, a linguagem analógica apresenta uma correspondência aparente por semelhança auto-explicativa, entre aquilo que é usado para expressar a coisa e a própria coisa em si. É, pois, toda a comunicação não-verbal, mas que inclui também modo de falar, inflexão de voz, sequência, ritmo e cadência das próprias palavras e qualquer outra manifestação não-verbal de que o organismo seja capaz. Consequentemente é uma linguagem muito menos precisa que a digital, mas de compreensão mais ampla e imediata. Uma fotografia ou pintura pode nos dar rapidamente mais informação sobre uma determinada paisagem do que um extenso texto descritivo sobre a mesma. Assim, o aspecto relacional da comunicação (incluindo-se os afetos) será melhor transmitido analogicamente. Um aspecto a destacar é a grande dificuldade de tradução de um tipo a outro de comunicação. À mensagem analógica faltam elementos (negação, alternação, implicação, equivalência) que abrangem a morfologia e a sintaxe da linguagem digital; seu material é antitético e presta-se a interpretações diferentes. Sendo, portanto, a comunicação analógica de um tipo evolutivo mais arcaico e mais apropriada quando a comunicação se faz sobre a relação, ela é a forma por excelência a ser utilizada na já citada "communitas" de Turner, de que o carnaval seria um exemplo, enquanto a comunicação digital impera na estrutura social formal e organizada. Podemos observar que, de início, a comunicação entre os participantes das festas carnavalescas é do tipo analógico. Os gestos, as expressões, os movimentos de dança, as vestes, comunicam não-verbalmente intenções, emoções, desejos, simpatias ou antipatias. Posteriormente e, em geral, fora da pista de dança, é que se passa à comunicação digital, verbal, quando, no caso de pessoas que não se conheciam antes, são feitas as apresentações "formais" de nome, "status", profissão, etc. Uma excelente ilustração disso nos é dada pelo compositor Chico Buarque de Holanda, nos versos de sua música "Noite dos Mascarados", onde, na 3a parte, duas pessoas, que começaram um diálogo tentando estabelecer as suas identidades sociais e, ao verem sua relação ameaçada pelas diferenças mútuas, voltam à "communitas" própria do carnaval e à comunicação analógica: "Mas é carnaval não me digas mais quem é você Amanhã tudo volta ao normal Deixa o tempo parar deixa o barco correr Deixa o dia raiar que hoje eu sou Da maneira que você me quer O que você pedir eu lhe dou Seja você quem for seja o que Deus quiser"
  • 28. A música carnavalesca, assim entendida aquela composta especialmente para a época momesca, tem a propriedade de ser um grande veículo de comunicação. Alencar (1965) distingue o samba e a marchinha como as espécies mais abundantes. Considera que o samba é sério, choroso e romântico. "O desaparecimento de uma tradição da cidade, a descrição entusiástica de um morro, ou a exaltação da mulher amada, tudo isso no samba de carnaval é paradoxalmente lamentação", enquanto a maior parte das marchas é brejeira, satírica, maliciosa. Vale a pena ressaltar o paradoxo apontado pelo autor para o samba. FANTASIAS E ALEGORIAS: ELEMENTOS PLÁSTICOS DE REPRESENTAÇÃO E COMUNICAÇÃO SIMBÓLICAS Os principais elementos envolvidos na comunicação carnavalesca são, além da expressão corporal (olhares, expressões, gestos, acenos, danças, gingados), os elementos plásticos visuais (fantasias, alegorias, adornos). Tais elementos plásticos expressam mitos, ideais, tradições, sonhos, desejos, sentimentos, necessidades e frustrações que motivaram aquelas formas de expressão. É no carnaval que o indivíduo pode concretizar suas fantasias mentais em fantasias reais, que o favelado pode se vestir de príncipe, que o obscuro operário pode ser visto e aplaudido por milhões de pessoas. As mais variadas formas de expressão artística podem ser encontradas não apenas nas fantasias, mas principalmente na coreografia e alegorias das escolas de samba. Ao lado do seu aspecto artístico, esses elementos possuem riquíssimos conteúdos simbólicos e significados psicológicos. As fantasias representam um aspecto fascinante em termos de inversão do "eu social" de cada um e de representação daquilo que o indivíduo gostaria de ser. Por outro lado também, as fantasias representam alguns traços da cultura popular, da sociedade e das próprias pessoas escondidas em suas funções, representando aceitação ou aversão às formas, às regras e às funções estabelecidas. Ao historiar o carnaval santista, Bandeira Jr. (1974) relata como determinados fatos e personagens propiciaram o surgimento de certos tipos de fantasias. Na última década do século passado as preferências são para as fantasias de dominó; por volta de 1918, em um clube santista, um cronista mundano destaca a grande quantidade de pierrôs e pierretes e surpreende-se com a presença de muitos cavalheiros fantasiados de pijamas listradinhos e com o peito coberto de alamares, então em grande voga; a partir de 1920, o reino de Momo começa a ser invadido pelos trajes de baiana, que 20 anos mais tarde se tornaria o traje representativo da mulher brasileira no exterior, graças à cantora Carmem Miranda. Segundo este autor, "as fantasias entram e saem de moda, sob o influxo dos acontecimentos sociais e políticos, da influência cinematográfica ou musical". Assim foi o cinema que imprimiu os modelos de fantasias de árabes, "cow-boys", legionários, carlitos, tarzans, zorros, sansões, dalilas, rainhas de sabá, cleópatras e outras, cada uma delas inflacionando o ambiente carnavalesco logo após a exibição de um filme de sucesso. De outra parte, a música carnavalesca inspirou as fantasias de tirolês e tirolesa, com a marcha "Lero, Lero", "Nêga maluca" pelo samba do mesmo nome e até a popular e universal camisa esporte para fora da calça, lançada pelo cantor francês Jean Sablon, em 1943, e que tomou conta do carnaval desse ano e dos subsequentes. O citado autor se refere ao fato de que em 1963, graças ao lançamento da marcha "Fantasia de Toalha", de cada 10 fantasiados, 5 estavam de toalha!
  • 29. Entretanto, se o valor simbólico das fantasias é questionável, pois que, como as vestimentas usuais, estão sujeitas a modismos e influência de fatos e personagens de uma dada época, não há como negar uma preferência, quando há a possibilidade de opção, por determinados tipos de roupas e fantasias. Além de ser o resultado de imposições sociais e modismos culturais, a vestimenta é também uma expressão de individualidade, sendo o contrário do uniforme, que iguala os seus usuários. Semelhante a este, temos a "mortalha" baiana e as fantasias padronizadas de alas nas escolas de samba e nos blocos. Muitas vezes ao vestir uma fantasia é que o indivíduo se revela verdadeiramente. O uso de máscaras, fantasias e adereços têm a propriedade de transmutar o indivíduo em um outro personagem. Praticamente todos os povos, em várias épocas, usaram tais recursos, no teatro, nas festas, nos rituais e nas cerimônias religiosas, com o fim de identificar-se com o personagem representado ou de ocultar a própria identidade. Com isso, mais do que um espetáculo de simulação, o carnaval pode mostrar o verdadeiro eu do indivíduo, livre que está dos papéis e das "máscaras" sociais a que se obriga durante o ano. "As máscaras ajudam o folião a se libertar da censura da sociedade e da sua própria" (1 ). Da Matta (1977) considera que o uso de fantasias é o instrumento básico para se atingir o ambiente comunitário do carnaval. Isto pode ser verdade no que toca aos participantes de um grupo organizado (escola de samba, bloco ou outro) que devem estar fantasiados, mas não é o que ocorre com o folião de rua ou de clube. Este, no mais das vezes, não possui uma fantasia definida, ou simplesmente não está fantasiado. Por outro lado, na escola de samba, a fantasia tem, além da caracterização de um personagem a função principal de uniformização, de padronização. Um importante aspecto ressaltado por esse autor é que a fantasia carnavalesca reproduz apenas parcialmente as atitudes e as vestes do personagem representado. Uma reprodução autêntica (que guardasse uma relação de um-para-um com o original) seria provavelmente impossível ou, então, cairia na categoria de fantasia autêntica, cujo ambiente apropriado é muito mais o ambiente não-carnavalesco. Tal tipo de fantasia, no entanto, pode ser encontrada nos concursos de fantasias e em certos papéis de destaque nos enredos das escolas de samba, constituindo-se, porém, exceção. A fantasia tipicamente carnavalesca, que expressa o sincretismo das ações do indivíduo com uma parte das atitudes e vestes do personagem representado, tem por função a "desqualificação da comunicação" referida por Watzlawick, Beavin e Jakson (1973), ao apresentar os aspectos contraditórios, incoerentes, incompletos, obscuros e metafóricos, do personagem. Por causa de sua ambiguidade, a tradução desse tipo de mensagem analógica é muito mais difícil e imprecisa do que a dos gestos. A desqualificação da comunicação é um tipo de defesa usado por um indivíduo quando "não pode abandonar o campo, não pode comunicar mas, presumivelmente, por razões pessoais e íntimas, receia ou tem relutância em comunicar". E isto parece representar precisamente um dos paradoxos do uso da fantasia no carnaval. O folião, no mais das vezes, não possui uma fantasia definida, ou simplesmente não está fantasiado. Por outro lado, na escola de samba, a fantasia tem, além da caracterização de um personagem, a função principal de uniformização, de padronização. A fantasia carnavalesca deve reproduzir apenas parcialmente as atitudes e as vestes do personagem representado, embora haja 1 Carnavalesco Fernando Pamplona, em declaração ao jornal O Globo, de 03/02/91.
  • 30. fantasias autênticas, como as encontradas nos concursos de fantasias e em certos papéis de destaque nos enredos das escolas de samba, constituindo-se, porém, exceção. A fantasia tipicamente carnavalesca, que expressa o sincretismo das ações do indivíduo com uma parte das atitudes e vestes do personagem representado, tem por função a "simulação do personagem", ao apresentar os aspectos contraditórios, incoerentes, incompletos, obscuros e metafóricos, do representado. Por causa de sua ambiguidade, a tradução desse tipo de mensagem analógica é muito mais difícil e imprecisa do que a dos gestos. E isto parece representar precisamente um dos paradoxos do uso da fantasia no carnaval. Mas, inegavelmente, a fantasia tem também a finalidade específica de permitir ao indivíduo a concretização simbólica de um desejo. Não fosse isso e não teríamos as inumeráveis "cortes reais", constituídas de "reis", "rainhas", "príncipes", e "nobres" que desfilam no carnaval e cujas fantasias são vestidas frequentemente por pessoas dos estratos sociais inferiores da população. Por isso tem sido uma preocupação dos autores dos enredos carnavalescos a inclusão dessas fantasias preferidas pelos desfilantes nos seus temas (embora não pareça ser este o motivo principal, mas sim o de exibir fantasias de luxo para ganhar pontos no desfile). Houve um ano em que a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, no Rio, montou um enredo do Brasil colonial com muitos senhores e escravos; foi uma grande dificuldade conseguir "escravos", pois todos queriam sair de "senhores". Ficou famosa a frase dita por Joãozinho Trinta, o carnavalesco da Beija-Flor, a um jornalista que o inquiria sobre os gastos exagerados da Escola de Samba com o desfile: "Quem gosta de miséria é intelectual; pobre quer é luxo" (2 ). Além do que já foi citado, a fantasia carnavalesca apresenta um outro paradoxo que ocorre entre o conteúdo da informação ("eu sou rei", "eu sou pirata", "eu sou odalisca") e o tipo de relação (metacomunicação) que deve se estabelecer ("é carnaval, isto é, uma simulação"). Um exemplo extremo disto é o do homem que sai fantasiado grotescamente de baiana ou de grávida (conteúdo), mas deixando aparecer o peito e as pernas peludas e a barba mal feita para "não ser mal interpretado" (relação). Desde há muito é frequente que os homens se fantasiem de mulher no carnaval. Fazem-no, entretanto, de uma maneira grotesca, irônica, com o fim deliberado ou oculto de agredir a mulher. Isto não deixa de representar a liberação de características femininas e não aceitas pelos indivíduos. A fantasia aí tem a função catártica e o objetivo do indivíduo é mostrar-se repulsivo, anti-sedutor. Diferentemente, entretanto, são as fantasias femininas usadas pelos homossexuais, os quais procuram semelhança e identidade com a figura feminina. Aqui há uma grande preocupação pela beleza, pelo bom gosto e luxo da fantasia. O objetivo é tornar-se o mais "feminino" e "sedutor" possível como qualquer mulher atraente. Cerceado pelo ambiente social, muitas vezes perseguido e rejeitado, o homossexual encontra no carnaval o espaço para sua afirmação pessoal. Participa de bailes públicos de homossexuais (que durante o ano são restritos a ambientes fechados) e que são dos mais procurados artigos de consumo inclusive por não homossexuais, como artistas famosos. Vestem fantasias, invariavelmente femininas, as mais atraentes e sensuais possíveis. 2 Jornal do Brasil, 09/02/75.
  • 31. As alegorias e adereços possuem também seu simbolismo. Mas pelo fato de terem se tornado ricos e sofisticados, como nos desfiles de escolas de samba e nas chamadas "grandes sociedades", perdem muito de sua representatividade e valor simbólicos, tornando-se, o mais das vezes, meros enfeites luxuosos. Algumas figuras alegóricas têm persistido no carnaval carioca como, por exemplo, cavalos, elementos naturais, símbolos de realeza e símbolos fálicos. Estes, aliás, parecem ter sido moda nos antigos carnavais grego e romano. De qualquer maneira tais representações parecem confirmar alguns desejos simbolicamente realizados pelo carnaval: a sexualidade, busca de prestígio e poder e afirmação. LIBERAÇÃO DE NECESSIDADES REPRIMIDAS Segundo Da Matta (1977), a manifestação do comportamento humano nos festejos carnavalescos seria uma espécie de libertação dos compromissos e obrigações de trabalho, do controle social, da vida estruturada e obrigatória, da manifestação sexual sem repressão. No carnaval tudo é permitido espontaneamente. Parece que o único controle é do próprio indivíduo sobre si mesmo. A mudança de comportamentos e atitudes expressa o que cada um gostaria de ser realmente ou pelo menos uma tentativa de experimentar uma nova forma de vida mais adequada ao ideal que aspira. Os mecanismos, regras e símbolos formais do relacionamento humano passam a ter importância secundária ou quase nenhuma importância. São eliminados ou restringidos, deixando a pessoa em maior liberdade para aquilo que quer adotar para si mesma. Há uma "mudança radical" que libera a pessoa de seus símbolos mais arraigados, como posição social, riquezas e prestígios, aproximando os seres humanos, desinibindo as aspirações e descobrindo a "nudez" reprimida, demonstrando aquilo que é mais íntimo, secreto e autêntico no relacionamento humano. A "liberação do corpo" de seus deveres regulares de cabide, de identidades sociais, é também um ato simbólico que equivale a um voto de pobreza e humildade; um despojamento de tudo aquilo que marca as pessoas como ocupantes de certas posições permanentes na vida cotidiana. Se na vida diária a prescrição é o resguardo, o comportamento restrito é altamente consciente do corpo, pois as pessoas devem "ter modos", na folia do carnaval o corpo deve ser revelado. O recato e parcimônia de gestos, transformaram-se em demonstrações abertas de alegria, como se todos pudessem, nos três dias de carnaval, finalmente dizer que "comigo vai tudo bem". Leopoldi (1978) cita a tendência à representação do carnaval como um momento idealizado da experiência social, no sentido de que o contexto carnavalesco é antes de tudo propício ao esquecimento das diferenças sociais, em oposição flagrante à realidade social do período não-carnavalesco. Assim é que, comparadas com o procedimento próprio do mundo cotidiano, as normas que regulam a vida social sofrem aparentes reviravoltas no período carnavalesco quando afloram sentimentos de liberdade e de supressão das barreiras sociais. A preparação "psicológico-sexual" para o carnaval começa dois meses antes, desde a noite de "reveillon", onde se dá o grito de carnaval. A partir daí, sucedem-se as festas e os ensaios pré- carnavalescos cujo envolvimento emocional vai crescendo em intensidade até explodir, no sábado de carnaval, em verdadeiro "orgasmo carnavalesco coletivo". Na sua sequência temporal, o carnaval imita o ato sexual.
  • 32. A ocorrência de comportamentos violentos no carnaval é tão antiga quanto sua existência. Com os ânimos elevados pelo excesso de estímulos visuais e auditivos, pela ingestão de bebidas alcóolicas e drogas, e com os freios sociais e superegoicos afrouxados, as pessoas tornam-se também mais impulsivas e agressivas e menos consequentes (3 ). Em geral, os mais entusiasmados participantes do carnaval e destacados desfilantes de escolas de samba são justamente aquelas pessoas pertencentes às camadas mais pobres e dominadas da população, como os negros e os mulatos. Submetidos durante o restante do ano a trabalhos servis ou domésticos, têm no carnaval uma oportunidade ímpar de afirmar outras qualidades suas que não sejam apenas os afazeres subalternos. Como forma menos ostensiva de exibição de "status" podemos encontrar, com mais frequência, o comportamento dos foliões ricos ou medianamente ricos em camarotes ou mesas especiais nos clubes. Aqui se nota a grande preocupação dos mesmos em mostrar sua elevada condição social (às vezes falsa e apenas aparente) e de se sair "bem" na fotografia. Frequentemente tal necessidade se torna exagerada, chegando ao exibicionismo e à ostentação, como se pode encontrar nos participantes dos concursos de fantasia, onde se procura exibir o poder econômico sobre as camadas de classe média e baixa, obter aplausos e fama e despertar a inveja ou a cobiça dos competidores. Uma dessas necessidades é a de afirmar a própria individualidade, de buscar o reconhecimento do seu "eu" pelos demais, através de manifestações de autonomia, de prestígio e mesmo de exibição. Isto ocorre tanto com os ricos, nos camarotes dos grandes salões, como com os pobres que têm nas escolas de samba e nos blocos o seu palco de representação. Como sucessor das orgias e bacanais da antiguidade, o carnaval brasileiro é uma festa essencialmente erótica. O erotismo, como expressão de suas necessidades e desejos, envolve e colore praticamente todas as manifestações carnavalescas, embora não sejam as únicas. No carnaval há uma suspensão das normas sociais e comportamentais que comandam as relações entre os sexos e as mulheres se exibem, buscam ser vistas e os homens mostram suas mulheres a todos. O exibicionismo feminino é uma característica da festa, conforme revela o costume típico do carnaval brasileiro de ter-se nos bailes, as mulheres em cima das mesas e dos balcões em trajes 3 Alguns dados da imprensa são reveladores das consequências de tais excessos: No carnaval de 1988, na grande São Paulo, a Polícia Militar registrou 79 homicídios, 9 estupros, 3 latrocínios, 2 suicídios e 341 casos de embriaguez. Nas rodovias do estado ocorreram 806 acidentes com a morte de 49 pessoas e ferimentos em 645. Nas estradas do Rio de Janeiro houve 230 acidentes, com 19 mortos e 196 feridos (Jornal do Brasil, 17/02/88). Na mesma época, no Rio, foram constatados 185 homicídios, 482 furtos de veículos, 651 furtos e roubos de outros tipos, 1106 agressões além de diversas outras ocorrências (O Dia, 18/02/88). Em 1989, durante o carnaval, em São Paulo ocorreram 42 homicídios, 296 roubos a estabelecimentos e residências, 96 furtos de veículos, 2 estupros, 195 casos de embriaguês e 779 ocorrências de desordens; houve 947 acidentes de trânsito e atropelamentos provocando a morte de 20 pessoas e ferindo outras 108. Na mesma época, nas estradas mineiras registraram-se 263 acidentes, com 41 mortos e 383 feridos (Estado de Minas, 09/02/89).
  • 33. sumários. Outro aspecto a citar é que as mulheres podem ser abraçadas, apalpadas, na medida em que o recato usualmente presente nas relações pessoais em público é suspenso. Tanto nos desfiles de escola de samba como brincando nos salões, a mulher procura exibir o seu corpo da maneira mais sedutora e atraente sexualmente. Os braços abertos e levantados das mulheres parecem expressar alegria e liberdade, mas também um convite. Entretanto, nem sempre a cópula é o seu objetivo terminal. Muitas vezes limitam-se a serem parceiras apenas durante o baile, afastando-se a seguir e com frequência brincam a sós ou com outras mulheres. Não deixa de constituir um fato pitoresco a imagem de alguns casais em que o homem está vestido a rigor e a mulher se apresenta quase inteiramente despida. Isto é uma expressão do aspecto machista da sociedade brasileira em que o homem se apresenta como o senhor, o indivíduo sério e a mulher o objeto de consumo e sua propriedade. O ato sexual, a cópula, é o fim buscado por muitos foliões. Em geral para os participantes masculinos, um baile de carnaval deve terminar com o intercurso sexual com a parceira do baile. Isto é o que deve acontecer com os casais já existentes antes do baile. Um outro aspecto propiciado pelo carnaval e que costuma aparecer nas páginas dos jornais, com frequência de maneira cômica, às vezes tragicamente, é a fuga do folião de seu ambiente doméstico em busca de novas aventuras. Não seria, pois, por puro acaso que os personagens da comédia italiana do século XVII - Arlequim, Pierrot e Colombina, o triângulo amoroso do carnaval - tornaram-se o símbolo da festa em muitos países e os maiores inspiradores de fantasias. Protegidos pelas máscaras, como nos faustosos bailes das cortes europeias desde o século XVII, os foliões podem buscar novas ligações e aventuras amorosas sem correrem o risco de serem descobertos. Em geral, os sociólogos são tendentes a encarar a nudez ou semi-nudez feminina no carnaval como uma forma falsa e superficial de liberação da mulher. Vivendo em uma sociedade autoritária, rígida, machista e puritana, a mulher se torna objeto de consumo sexual. Assim, o despir-se no carnaval fica como manifestação exterior de uma pseudo-liberdade sexual, que pretende ser uma maneira de escape a uma sociedade alienante. Da Matta (1979) mostra-nos que no carnaval a representação do corpo não se contenta em mostrá-lo parado. Ao contrário, o corpo não só se desnuda, mas se movimenta, revelando todas as suas potencialidades reprodutivas. O corpo exibido no carnaval, então mesmo quando visto sozinho, exige seu complemento masculino ou feminino. É um corpo que "chama" o outro, tornando-se sempre abusivo do ato sexual, da forma mais essencial de confusão e ambiguidade do grotesco, quando - como nos indica Bajtin - dois corpos se transformam num. Para o teatrólogo Fernando Arrabal, o carnaval brasileiro, notadamente o carioca, é o maior espetáculo de simulação do mundo. Um imenso cerimonial público onde tudo é simulado : a alegria, a luxúria, a suntuosidade. O sexo, como tudo no carnaval, também é representado (4 ). 4 Entrevista concedida à revista "Fatos e Fotos, no 812, março de 1977.
  • 34. ALGUMAS CONCLUSÕES Pelo que temos visto até agora podemos concluir que: 1. O Carnaval é um fenômeno comportamental coletivo, e como tal, suas manifestações podem ser estudadas à luz da Psicologia. A compreensão dos eventos carnavalescos poderá trazer à Psicologia Social dados significativos a respeito de expressões normais e patológicas da conduta humana. O carnaval pode ser comparado a um grande teatro público, onde os participantes podem ser atores, personagens ou espectadores, que têm como palco a rua, a passarela ou o salão. 2. Historicamente o período carnavalesco tem possibilitado a liberação coletiva de necessidades socialmente reprimidas e que, nessa época, encontram condições para seu extravasamento. A observação pois, dessa manifestação pode nos dar preciosas informações sobre muitos fatos psíquicos desse tipo de evento, de que talvez não dispuséssemos em outras circunstâncias. 3. Ao afrouxamento da censura externa, social, corresponde também a diminuição da censura interna, permitindo ao folião nos dias de carnaval, usar uma liberdade de que não dispõe nos demais dias do ano. A sensação de autonomia e liberdade (parcialmente permitida) é essencial para se brincar no carnaval. Fugir às regras, normas sociais e regulamentos é a tônica da expressão de qualquer folião. É possível que seja inclusive esse clima de liberdade aparente, exterior, uma das válvulas de descarga das tensões sociais produzidas pela repressão social, política e econômica. Se existem autores que vêm no carnaval uma forma de anestesia dos verdadeiros sentimentos populares de autonomia e uma maneira de iludir e mascarar a verdadeira liberdade, há outros que vêem nele um hiato de liberdade e autonomia individuais que não são possíveis no resto do ano e que portanto neste sentido, o carnaval seria catártico (5 ). 4. De certa maneira o carnaval desempenha o papel de equilibrador de tensões sociais. As necessidades insatisfeitas e socialmente reprimidas encontram uma maneira substitutiva e deslocada de se extravasar nas expressões erótico-carnavalescas. 5. Em sua origem e na sua forma atual no Brasil, o carnaval tem se caracterizado por ser uma festa principalmente erótica; esse erotismo, entretanto, tem os seus próprios ritos e expressões. Estes podem ser notados na maneira com que as pessoas dançam, nos movimentos corporais, na nudez feminina, nos desfiles das escolas de samba, nos costumes, nas alegorias, músicas, fantasias, etc. 6. A satisfação de necessidades psicológicas, emocionais e sociais no carnaval parece dar-se muito mais no plano simbólico do que no real. 7. O carnaval é temporariamente, uma festa socialmente niveladora, pois é uma ocasião em que se podem encontrar pessoas de níveis sócio-econômicos diversos dançando e brincando juntas. 5 Catarse: mecanismo de liberação de sentimentos reprimidos, especialmente os agressivos e sexuais.