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Editora
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Universidade Federal de Goiás
Reitor
Edward Madureira Brasil
Vice-Reitor
Eriberto Francisco Bevilaqua Marin
Diretora-Geral
Maria das Graças Monteiro Castro
Conselho Editorial
Heleno Godói de Sousa,Jesus Carlos da Mota,Joffre Rezende Filho,
José Antunes Marques,José Rildo de Oliveira Queiroz,
Robervaldo Linhares Rosa,Tadeu Pereira Alencar Arrais. f
l
Nasr Fayad Chaul
Caminhos de Goiás
da construção da decadência
aos limites da modernidade
f
l
Quem te viu...
O conceito de decadência e a
decadência do conceito
Nossas histórias de vida são amontoados de
impressões erráticas, de pulsões incompletas, de
degenerações da memória. Alguém, ao tentar
reconstituir opassado, acaba por transformá-lo em
generalizações, em coisas que existiram e às vezes,
em coisas que sequer existiram. E que passam a
existir, sem que ocorra qualquer espanto com isso.
A história é a grande prostituta de todos nós:
história e desejo de história é o que perseguimos
Paulo Bertran
Os (des)caminhos do ouro
A procura de índios e os indícios de existência de ouro em
Goiás fizeram com que inúmeras bandeiras penetrassem em terras
goianas em busca da ambicionada mão de obra e da potencial
riqueza. De Sebastião Marinho, quando penetrou nas cercanias das
nascentes do Rio Tocantins em 1592, a Bartolomeu Bueno da Silva,
o Anhanguera, os índios e o ouro de Goiás despertavam ambições e
atraíam os bandeirantes e sertanistas que desbravaram esse território
hostil e selvagem. No século XVIII, teve início o povoamento da
região, sendo que as minas começaram a ser exploradas a partir de
1726, ano que marca também a fundação do Arraial de Sant'Anna.
O povoamento chega ao auge na década de 1750 para, daí em diante,
enfrentar um longo declínio, a exemplo de Minas Gerais e Mato
Grosso. Como destacou Bertran, "quando em 1722, Bartolomeu
Bueno da Silva Filho adentrou a região já encontrou sinais de gado,
sentindo-se de todo perdido [...]. Nas bordas de Goiás e Tocantins a
pecuária antecedia a mineração".1
O Arraial de Sant'Anna foi fundado por Bartolomeu Bueno
em sua terceira visita ao sertão goiano, numa viagem que durou seis
meses de São Paulo até aqui. Erguido às margens do RioVermelho, o
arraial receberia, mais tarde, o nome deVila Boa,2
localidade que viria
a ser a capital da futura capitania de Goiás.
Assim como o de Sant'Anna,vários arraiais surgiram às margens
dos rios propícios à mineração. Em 1731, Manoel Rodrigues Tomás,
ao descobrir jazidas de ouro na região dos Pireneus, fundou ali,
junto ao Rio das Almas, o Arraial da Meia Ponte, que se tornou
posteriormente o segundo centro mais importante da capitania de
Goiás.
Considerada como parte da capitania de São Paulo, a região
das minas dos Goyazes foi governada inicialmente por Bartolomeu
Bueno, que ostentava o título de capitão-mor até 1734. No ano de
1744, foi criada a capitania de Goiás (mapa 1.1). No entanto, seu
primeiro governador, dom Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos,
'
só viria a estabelecer-se no local cinco anos mais tarde.
1
BERTRAN, Paulo. Hist6ria da terra e do homem no Planalto Central: eco-história
do Distrito Federal - do indígena ao colonizador. Brasília: Solo1
1994. p. 60.
í
2
Esse nome derivou de Bueno (Bartolomeu) e da nação Goiá.
!
34 Nasr Fayad Chaul
A mineração propriamente dita teve vida breve em Goiás.
Iniciando-se em 1726, declinou após a década de 1750, que marca o
apogeu dessa atividade no estado. O declínio da mineração pode ser
observado por meio da arrecadação do quinto do ouro, que passa de 40
arrobas em 1753 para 22 em 1768 e desaba para 8 arrobas em 1788,para
4 em 1808 e, enfim, para a mísera 0,5 arroba em 1823.
figura 1.1 - Extração de ouro no Rio das Velhas
Fonte: Instituto de Estudos Brasileiros da USP
Como principais razões apresentadas para se entender o declí-
nio da mineração em Goiás, figuram as técnicas rudimentares de ex-
tração e exploração das jazidas (ouro de aluvião), a falta de braços para
uma exploração mais intensa das minas, a carência de capitais e uma
administração preocupada apenas com o rendimento do quinto. As-
sim, todo o potencial da capitania era canalizado para a exploração do
ouro, o que encarecia,.cada vez mais, os bens de primeira necessidade.
Caminhos de Goiás 35
Devido aos motivos já citados, as minas foram escasseando, e o .
quinto acompanhava esse declínio. Ao. que tudo indica, para alguns,
o ano de 1778 é o marco da "abundância" - para outros, o marco é
1770 - e o "princípio da decadência" do ouro goiano. Como observa
Palacín, até aquele ano, "com efeito, o quinto se mantinha por cima
de 15 arrobas, depois decaiu rapidíssimamente". 5
Os mineiros representavam a parcela socialmente mais conside-
rada da população. Ser mineiro era uma constante aspiração dos mo-
radores de Goiás, além de significar um alto título de honra, orgulho
para aqueles que o detinham. "Mas ser mineiro não significava, como
hoje, trabalhar nas minas. O trabalho era coisa exclusiva dos escravos
'
mero instrumento de produção; mineiro era o dono das lavras e dos
escravos que extraíam para ele o ouro." 6
5
PALACÍN, Luis. Goiás (1722-1822)..., p. 91.
6
Ibidem, p. 106.
figura 1.3 - Lavage du
Mineral d'or pres de la
Montagne ltatolumi,
Fonte: 1nstituto de Estudos
Brasileiros da USP
Nasr Fayad Chaul
A população, de dificil quantificação, constituía-se de brancos,
mestiços, índios, pardos e negros. O concubinato era generalizado, 0
que chocou Saint-Hilaire ao percorrer a capitania, que já contava com
quase um século de prática deste costume.Alguns autores atribuem-no
ao alto preço do casamento e à prática já atávica de os casais simples-
mente se "juntarem". O exemplo partia do alto:
Nenhum dos governadores veio a Goiás casado e todos viviam publi-
camente com suas amantes em palácio. O mesmo acontecia com outros
funcionários. O caso mais triste foi o de Fernando Delgado Freire. De-
pois de residir em Goiás durante onze anos e viver maritalmente com
a filha de um carpinteiro, de quem teve vários filhos, foi chamado de
volta à Corte. No Rio, sua mulher negou-se a segui-lo a Portugal se não
legalizasse a união; minado pela doença, e ante esta escolha para ele im-
possível - a mulher ou um casamento humilhante - optou pelo suicídio.7
Em relação à vida administrativa e ao exercício do poder pú-
blico, estes eram cercados por sérias limitações, como a carência de
transportes e estradas, as grandes distâncias, o parco contingente de
pessoas aptas ao exercício dos cargos e a ausência de uma polícia.
Como ressaltou Palacín, lembrando os dizeres de João Carlos Augusto
D'Oyerhaunsen, governador de Mato Grosso e São Paulo,
na vida administrativa de um capitão general havia três fases: a febre com
delírio, a febre sem delírio e a prostração. O general partia para sua capita-
nia sem conhecê-la, sabendo unicamente que se tratava de um território
novo, onde tudo estava ainda por fazer; traçava grandes planos para debelar
o atraso e a miséria; pensava imortalizar-se arrancando aquelas vastidões
da barbárie em que se encontravam. Era a febre com delírio. Chegando
a seu governo, percebia imediatamente que aqueles planos, concebidos
em Lisboa ou no Rio de Janeiro, não eram aplicáveis no interior do Bra-
sil. Procurava reformá-los, conformá-los com a realidade, cheio ainda de
7
PALACÍN,Luis. Goiás (1722 -1822)...,p.113.
Caminhos de Goiás 39
entusiasmo. A febre sem delírio. Os desenganos, a indiferença total com
que eram recebidos seus planos de reforma, acabavam por vencê-lo. Caíà
na prostração geral, no ritmo sêi:n tempo das capitanias do interior.8
Somava-se ao problema administrativo a queda vertiginosa da
produção aurífera,já que, conforme observou o Conde dos Arcos em
1749, a produção do escravo não chegava a uma oitava por semana,
sem dizer que novos veios já não eram descobertos. As dívidas dos
mineiros cresciam e novos investimentos se inviabilizavam. Em 1754,
começa a diminuição do produto bruto,
e o declínio se processa lentamente: em vinte e cinco anos decai de um
terço a arrecadação do quinto. Mas a decadência psicológica e social
antecipava-se ao esgotamento do ouro [...] em 1779, pela primeira vez,
o quinto não alcançou as 15 arrobas ( 52,011 oitavas); recuperou-se um
pouco no ano seguinte (55,738 oitavas), para daí em diante ir caindo
sempre sem descanso[...] nos dez anos seguintes (1809) o quinto experi-
mentou nova redução à metade. Em 1820, às vésperas da Independência,
não chegava sequer a uma arroba; a mineração praticamente tinha desa-
parecido como atividade econômica significativa.9
Para o governo, a culpa era da sonegação; para os mineiros, a
causa do declínio da mineração estava no esgotamento das jazidas. Na
realidade, o ouro já não podia comprar o inexistente. E o existente era,
diante da pouca produtividade, oneroso. De acordo com o naturalista
francês Auguste de Saint-Hilaire, para se obter um alqueire de mi-
lho - o alqueire goiano tem o dobro do paulista, ou seja, 48.000m2
-,
eram necessárias seis oitavas de ouro;10
por um de farinha de mandioca
8
PALACÍN, Luís. Goiás (1722-1822)..., p. 144-145.
9
Ibidem,p. 172-173.
10
Um marco valia cerca de 8 onças; urna arroba, 64 marcos; urna oJça, cerca de 28
gramas; urna oitava, 1/8 onças ou 3,56 gramas, e um grão, entre 70 e 100 oitavas.
40 Nasr Fayad Chaul
pagavam-se dez oitavas; por uma libra de açúcar, duas oitavas. Um por-
co custava o equivalente a oitenta oitavas, enquanto duas libras de ouro
compravam uma vaca.11
A efêmera duração das minas dos Goyazes e a carência de uma
infraestrutura capaz de suportar os reveses sociais de um declínio eco-
nômico de tal porte traçaram o perfil da sociedade goiana que sobre-
viveu ao sonho do ouro. Entretanto, é sobre a sociedade da agrope-
cuária goiana que temos um manancial de informações suficientes
para retratar, perceber, caricaturar e imaginar sua face mais represen-
tativa. Dessa sociedade irá se extrair o conceito que a resumirá em
uma só palavra e a introduzirá numa imagem capaz de eternizações
memoriais na redoma da historiografia que a envolveu por séculos: a
imagem da decadência.
De Silva e Souza (1812) a Cunha Mattos (1823), do dr. Pohl
(1810) a Saint-Hilaire (1816), passando por D'Alincourt (1818), Bur-
chell (1827), Gardner (1836) e Castelnau (1843) e chegando aos his-
toriadores contemporâneos que trataram o período da mineração e da
agropecuária em Goiás, além de intelectuais de outras cepas e anôni-
mos da escrita, a aceitação da decadência da sociedade goiana no pe-
ríodo pós-minerador é unânime. Atualmente, porém, alguns estudos
têm se esforçado em questionar essa visão, como veremos posterior-
mente. Para alguns,
[a] decadência, vezes tantas ressaltada pelos viajantes da época existiu
em termos, [pois] mineração sempre foi um negócio cigano e virulento,
ignorante de fronteiras e de massa demográfica [...] labuta ingrata, o
ouro goiano em si desinteressava. Apenas seu legado foi e é importante,
pela estruturação primária do espaço fisico. Após toda a fase de riqueza
11
SAINT-HILAIRE,Auguste François César Provençal de. Viagens às nascentes do Rio
São Francisco. São Paulo:Edusp, 1975.p.161.
Caminhos de Goiás 41
abundante compreende-se logo o desapontámento e prostração do
pós-aurífero.12
Para chegarmos, quem sabe, a outras estradas capazes de nos
apontar outros caminhos, percorramos os roteiros da construção do
conceito de decadência dos viajantes, governos de província e histo-
riadores. É Silva e Souza quem nos aponta, em 1812, alguns dos mo-
tivos da decadência da capitania de Goiás. Para este padre, que conse-
guiu lançar um olhar de esperança no deserto de possibilidades que a
sociedade goiana lhe oferecia, a razão do descobrimento de Goiás foi
menos o amor da glória e desejo de ser útil, que o interesse próprio e aquela
ambição, que leva muitas vezes os homens por incalculáveis perigos às mais
árduas, mais importantes emprêsas [...] tendo as melhores proporções para se
engrandecer a felicitar os seus colonos, correu em menos de um século do
esplendor do seu princípio para a crise de decadência, seja por se desprezarem
os mais próprios e meios mais enérgicos de promover o seu aumento, seja (o
que me parece mais provável) por ter se enervado nos braços da ociosidade
aquêle amor do trabalho e patriotismo, que prefere ao interêsse pr<'>prio o bem
comum; aquela afoiteza dos primeiros descobridores, que sem mais aprestos
que um ânimo superior a tôdas as fadigas, quase desprovidos de tudo, expostos
à fome, às feras e às nações selvagens, entranharam-se por terras incógnitas.13
Os caminhos dos viajantes
Os viajantes, que passavam por Goiás com seus olhares repletos
de progressos europeus, conseguiam vislumbrar a decadência comum
à opinião de todos, imagem gravada como se fosse a memória de um
povo, como se fosse a realidade vivida por todos, e não corno o desejo
do que não viam: a imagem do progresso invertida na janelc1- do tempo.
12
BERTRAN, Paulo. Desastres ambientais. Cí~ncia Hoje, v. 12, n. 70, p. 47, 1991.
13 SILVA e SOUZA, Luiz Antônio da. O descobrimento da capíta11:ía de Goyaz.
Goiânia: Ed. UFG, 1967. p. 5.
42 Nasr Fayad Chaul
Dentre os mais variados argumentos alegados para justificar a
decadência, temos a precariedade das estradas, a falta de incentivos da
coroa para colocar em funcionamento novos meios de comunicação e
o constante ócio em que vivia o povo de Goiás. Este conjunto de ne-
gativas criou uma imagem do estado que ficou gravada, por intermé-
dio da cultura dos viajantes, como verdade inconteste por todo este
Goiás afora. Em face da repetição dessa imagem pelos historiadores
contemporâneos, Goiás passou a ter um perfil de terra da decadência,
retrato de uma sociedade que parecia não possuir o mínimo básico
para existir devido a sua inoperância, sua carência de tudo, sua solidão
traduzida em isolamento, sua redoma de preguiça.
Os relatos deixavam implícito que Goiás precisava de mão de obra
produtiva, de trabalho livre, de substituição do ócio pelo negócio. Goiás
carecia de povoamento, de gente para produzir, de capital e desenvolvi-
mento. Goiás, portanto, era totalmente diferente da terra que povoava
as ideias dos viajantes, e divergia ao extremo daqueles padrões europeus
de modernidade e progresso, padrões esses que tinham presentes a ética
protestante do capitalismo (ou seja, trabalho, parcimônia, ascetismo) e
a superpopulação do século XIX. Era com esse olhar que os viajantes
descreviam o estado. Eles não vislumbravam a outra face do espelho do
século XIX ao olhar para Goiás, como bem ressaltou Foot Hardman:"o
que parece prestes a ocorrer é a perda dos referenciais óticos na socieda-
de moderna.Já não se sabe ao certo de que lado do espelho se está".14
As principais questões que insistem em permanecer ao longo
do estudo do período são as seguintes: em que aspectos a sociedade
agropecuária, visitada pelos viajantes e demais relatores, era diferente
da sociedade mineradora? Seria possível tachar de decadente uma
sociedade que nem chegara a atingir o padrão de modernidade/
14
HARDMAN, Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Cia.
das Letras, 1988. p. 26.
Caminhos de Goiás 43
progresso dos europeus? Caso se aceite a tese da decadência, ela se deu
em relação a quê? Como se produziu este conceito? Antes que pas-
semos a refletir sobre tais questões, vejamos como os argumentos que
conduziram à conclusão de enquadrar Goiás no rol das sociedades
decadentes foram expostos pelos que viram e analisaram o período.
A primeira questão presente nos vários escritos sobre a época
refere-se ao problema dos caminhos, das estradas, enfim, das co-
municações em Goiás. Deve-se observar aqui que os viajantes eram
provenientes de sociedades em que a dinâmica das comunicações
acabara de atingir o ápice de seu desenvolvimento e a rapidez dos
transportes não conhecia similar. Assim, ao chegar ao sertão goiano,
o seu olhar era o do "eterno Adão":
[...] no caso de terras recém descobertas, lugares ainda sem nome, o
sujeito, "eterno Adão", de fato não pertence a elas, mas caberia a ele dar
nome ao que vê, dar a partida para a inscrição de tais locais no mundo
dos brancos, dos mapas, do tempo histórico. Sua chegada marcaria a
origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudança de um estado
de "pura natureza" para uma corrida em direção ao que este viajante
entendeu por "civilização", semente a ser lançada por ele nessa terra que
crê, paradisíaca ou indiferente, ·em branco.15
A falta de estradas era, então, o argumento inicial para justificar
a decadência. Sobre as dificeis comunicações na capitania, a história
mostra o tortuoso trajeto de Goiás pelos caminhos bandeirantes, pela
estrada oficial do ouro, desaguando nas necessidades de aprimorar a
navegação e chegando às trilhas dos trilhos que poderiam,finalmente,
transportar Goiás ao encontro de seu destino, teleologicamente tra-
çado pela historiografia mais abundante: o desenvolvimen'to, fruto da
modernização.
15
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: C&. das Letras,
1990. p. 13.
44 Nasr Fayad Chaul
Na fase aurífera, a precariedade das estradas era contornada
com dinamismo e aventura pelos homens que "abrindo picadas per-
mitiam a passagem das tropas de animais carregados, único meio de
t " 16 E .
ransporte . stes aventureiros procuravam vencer os obstáculos das
comunicações por meio de um forte elemento estimulador, capaz de
romper barreiras quase intransporúveis e de diminuir distâncias sem
fim: o ouro, que, de Goiás, saía das minas e ganhava as Gerais.
Proibições se fizeram no intuito de tornar a Estrada Real a única
via de acesso consentida, como forma de inibir o contrabando do ouro.
Em vão! A Estrada Real era uma rota oficial montada sobre uma pica-
da aberta por volta de 1765 e que ligava Santa Cruz ao Rio dasVelhas.
A impressão que se tem desse imenso trecho, conhecido em parte ou
no todo, na primeira parte do séc. XIX por D'Alincourt, Saint-Hilaire e
Castelnau, é apenas de intenso abandono, constantes perdas do traçado
original. Saint-Hilaire entretanto relata por ali a passagem de boiadas do
Mato Grnsso havendo o cuidado de envio de vanguardistas a queimarem
antecipadamente as pastagens velhas na rota do rebanho, garantindo a
brota de capim novo.17
Silva e Souza afirma que,após adescoberta dasminas porBartolomeu
Bueno,
soou ao longe a notícia desta grandeza, e a fama ainda lhe deu os
acréscimos que costuma, correram das outras capitanias os homens e em
menos de dois anos era imenso o povo que tinha ajuntado, revezavam-se
as tropas de víveres e de fazendas e não bastavam. É verdade que podemos
chamar a este tempo a idade do ouro em Goiás mas desde então
começaram a evaporar-se as suas grandezas. O ouro fugiu do seu centro
e não tornou, com a mesma facilidade com que se adquiria, se lhe dava
16
PALACÍN,Luís. Goiás (1722-1822)...,p.179.
17
BERTRAN, Paulo. Formação econ6mica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978. p. 26.
Caminhos de Goiás
45
consumo, e sem falar no luxo desregrado, que veio depois a consumar a
decadência.18
Toda essa gente não encontrou falta de caminhos nem obstá-
culos intransponíveis para chegar a Goiás no auge da mineração. As
estradas que se lhe apresentavam não eram muito diferentes das que
estava acostumada a percorrer por onde já houvera ouro. O clamor e
a decepção com relação às estradas goianas só se intensificaram com
o esgotamento do ouro, quando os aventureiros começaram a andar
em direções inversas às que levavam a Goiás; ou seja, eles só reclama-
ram das estradas goianas quando foram trilhar outras paragens. E, à
medida que passava a febre do ouro, os acessos gerais a Goiás foram
se tornando cada vez mais dificultosos.
"Ao acabar-se o ouro, a inevitabilidade das distâncias devia
impor-se com sua realidade brutal. As populações do interior fica-
vam isoladas como náufragos sem possível retorno."19
Mesmo duran-
te a fase áurea da mineração, "agia aqui a Lei das Distâncias. Embora
o ouro seja a liquidez total como meio de troca, como produção era
gravado pelo custo de transporte refletido no custo de comerciali-
zação dos insumos necessários à mobilização de fatores de produção
e consumo".2
º
18 SILVA e SOUZA, Luiz Antônio da. O descobrimento da capitania..., p. 12-13.
Ainda de acordo com o autor, "no aluvião dos homens que concorreram ao
descobrimento de Goiás, vieram pessoas de toda a qualidade, até estrangeiros,
e entre êstes muitos sem costumes, cometeram horrorosos verbi causa: uma
mulher paulista, que sufocou em uma toalha e sepultou nas suas lavras de
Ouro Fino as duas filhas, só por serem vistas e louvada a sua
1
formosura, a
mesma, frenética de zelos, matou o filhinho de uma escrava,julgando ser obra
do marido, e lhe apresentou assado em um espeto a hora da comida".
19 PALACÍN,Luis. Goiás (1722-1822)..., p.179.
f
20 BERTRAN, Paulo. Formação econ8mica..., p. 38. 1
Nasr Fayad Chaul
Referências à distância entre as localidades eram comuns nos
relatos de Saint-Hilaire, que percorreu boa parte do Brasil de 1816 até
1822. Em seu roteiro, ele explorou uma grande faixa do centro-sul do
Brasil, interessado principalmente na flora brasileira, mas deixando im-
portantes impressões de viagem sobre a sociedade em geral (mapa 1.2).
Às vezes surpreso com as distâncias, chegava a afirmar: "as
léguas nessa região são muito extensas, como sempre acontece em
lugares pouco povoados, onde as pessoas estão acostumadas a per-
correr grandes distâncias quando tem de fazer as menores coisas".21
Ao analisar o Arraial de Rio Claro, Saint-Hilaire generalizava
dizendo que ele "encontrava-se em grande decadência e as tropas que
por ali passavam não encontravam víveres para se reabastecerem". Se-
gundo o autor, o cultivo da terra não interessava aos homens da região,
que, "tão imprevidentes quanto os próprios índios, [...] em meio de
tanta riqueza permaneciam sempre na miséria".22
De acordo com as vozes mais ressoantes na historiografia goia-
na, ungido pelo isolamento, Goiás não tinha a menor possibilidade de
uma integração nacional. Nos relatórios presidenciais, a pauta cons-
tante era a busca do desenvolvimento das vias terrestres, fluviais e,
futuramente, das férreas. O panorama da época (final do Império)
apresentava uma insignificante extensão de estradas carroçáveis (3.245
km) - e que dirá no início do século XIX! Ainda assim, foram estas
que atenderam às necessidades da província, apesar da carência de
manutenção e reparo.
21
SAINT-HILAIRE,Auguste de. Viagem às nascentes ..., p. 32. (Parte dos dados
apresentados sobre os viajantes teve por base o texto "Memória da ocupação
e colonização de Goiás na primeira metade do século XIX: a visão dos via-
jantes europeus", das professoras Dalísia Doles e Heliane Prudente, Ci~ncias
Humanas em Revista - História, Goiânia, v. 3, n. 1/2, jan./dez. 1992).
22
SAINT-HILAIRE,Auguste de, op. cit., p. 81.
C a m i n h o s d e G o i, á s 47
As distâncias e as péssimas estradas continuariam por muito
tempo como fortes justificativas para o isolamento da região, a solidão
dos habitantes e a aparente decadência de Goiás. Tais vozes tendem
a ganhar ressonância se ponderarmos que, segundo dados dos arqui-
vos goianos, uma viagem do primeiro governador de Goiás (século
XVIII) do Rio de Janeiro aVila Boa, passando por Minas, levou cerca
de 85 dias. No relato em questão o cálculo levava em conta as boas
condições climáticas; na subida das águas, época de chuvas fortes e
constantes, a conta em dias ficava margeada pelas cheias dos rios e
pelo surpreendente aumento das passagens dos córregos.
Em seus escritos, Saint-Hilaire reclamava dos períodos de chu-
va, que criavam obstáculos ainda maiores aos que iam e vinham, e da
falta de atenção das autoridades para com a reconstrução das pontes,
que acabavam ruindo devido à ação do tempo e das intempéries. Per-
correndo os arredores deVila Boa, o naturalista observava: "as estradas
jamais são reparadas e evidentemente tornam-se piores nas vizinhan-
ças das cidades, onde o trânsito é maior. Mesmo nas estradas menos
trafegadas, a inobservância com as condições é a mesma".23
Não foi exclusividade de Saint-Hilaire enfatizar as péssimas
condições das estradas. Nos relatórios dos governos da província de
Goiás, vários foram os que colocavam a questão como fator de im-
portância crucial no rol das medidas a serem tomadas em relação à
província. Em 1835,José Rodrigues Jardim observava que
as Estradas da Província, sofríveis por decorrerem pela maior parte por
terrenos planos, necessitao de alguns benefícios: ellas estiverao melhores
quando os Fazendeiros erao forçados a concertar a parte que lhe ficava
23
SAINT-HILAIRE,Auguste de. Viagem às nascentes ..., p. 48.
Nasr Fayad Chaul
próxima, os habitantes dos Arraiaes a parte que a estes pertencia, e as. ca-
maras o terreno que lhes era próprio, a isto todos hoje se negao.24
A situação parecia inalterada em 1837, quando o presidente da
província, Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, acusava em seu relatório:
"talvez seja a Província de Goyaz a única do Brasil, que nenhum me-
lhoramento tenha recebido em suas Estradas; ellas se achao todas em
péssimo estado, e causa espanto o perigo a que continuadamente esta
exposto em suas jornadas".25
Como se vê, a precariedade das estradas era um forte argumento
para atestar o estado de decadência em que se encontrava a província de
Goyaz no século XIX. Uma vez isolada, alegava-se, a província não tinha
ligações com a "cidade", com o mundo do trabalho e do capital, com o
desenvolvimento e as relações de trabalho livre. Continuava, assim, longe,
sertão sem fim, distante da prosperidade, afastada da luz e do progresso.
Johann Emmanuel Pohl, naturalista austríaco, chegou ao Brasil
em 1817, na posição de membro da expedição científica oriunda da
corte de Viena e de integrante da comitiva nupcial de dona Leopol-
dina. Sempre adoentado, o "sofrido dr. Pohl" percorreu quase todos
os arraiais goianos (mapa 1.3) e observou que muitos caminhos se
encontravam "trágicos", cheios de água.
[...] os buracos cavados pelos aguaceiros dos dias anteriores e especial-
mente pelo burro dos viajantes que nos precederam não tinham secado
e nem poderiam por causa das cheias constantes, interrompidas apenas
temporariamente, e o caminho esburacado aumentava naturalmente as
dificuldades da marcha.26
24
Relatórios dos governos da província de Goiás (1835-1843). ln:MEMÓRIAS
GOIANAS, 3. Goiânia: Ed. UCG, 1986. p. 29.
25
Ibidem, p. 82.
26
POHL,Johann Emmanuel. Viagem no interior do Brasil. São Paulo: Edusp, 1975.p. 144.
Caminhos de Goiás 49
Luiz D'Alincourt, militar português, transferido em . .. ..... . .
O Rio de Janeiro, também visitou O estado de Goiás numa viagen1-A~::2ttfi:}',:
Porto de Santos para Cuiabá (mapa 1.4). Sua viagem teve início em::~:.c./:.~ __ ,,22}
1818. Chegando à capital de Goiás, teceu considerações sobre a c~ridA-fJi[stI:j;~~{lf ·
ção das estradas com seus traçados imperfeitos, nun1a lógica impratiéáv:~10;?:s:::s:,~~~:
dentro do processo de abertura das estradas goianas. D;Alincóurê tl~["?j2f}
mava em pleno sertão de Goiás contra a falta do uso de técnicas apt~f~)~);
priadas à abertura de estradas. Estava mais .distante do que nunca~:~ijff!~i
motivações que imprimiram rumos aos .caminhos goianos: ·
figura 1.4 • Planta de ColásVelha, e.ritão Vllà.
1782, apresentando acidade tal q~al
50
Outro manancial de informações nos legou William John
Burchell (mapas 1.5 e 1.8), naturalista e desenhista inglês.Aportou no
··· Brasil em agosto de ·1827, produzindo vários desenhos da sociedade
e das paisagens que viu e captou. Foram 22 desenhos da cidade de
._...Góiª~' além de outrós.34 que retrataram a região entre esta cidade e
'>·"'--<~elétn do !?ar~; .:~-~ ;;-~:,": · ...,___
: ·'L:~---'-'-~ _--- De acordo co~~p~;1~:P.Ql~~ rl1~~~e Prudente,
- -.é;_-,a~~~;ês dbs-_d~~e_ril1<:>!i'feitos p~r Bu;cheri tp~ssível visualizar todas as difi-
culdades que os _yiajantes.encontraram durante as suas jornadas no interior
do.Brasil. É senip!~ ~o_m l~Inbrar que as viagens, então, eram feitas alombo
- - d~ besta, por c.arofnhps..9.Pi~e sempr~ t5>rtuosos, debaixo de chuva e sol e
- -:_: :_estes naturalistas. ainda achavàrn tempo para col~tar plantas, anímais, dese-
nhar, escrever s~us diários /notas científicas em pousos que, na melhor das
hipóteses, eram coberturas abertas aos ventos de todos os lados.27
George Gardner, naturalista escocês, também viajou pelo Brasil
(mapa 1.6). Chegando ao país em 1836, percorreu aldeias, arraiais e
yilas goianas, retratando-os como uma região desértica e de penúria.
Gardner também sofreu sérios percalços em sua viagem d~vido ao estado
deplorável dos caminhos. Ele relata que ao descer a Semtió Duro estan-
do o rio Tocantins muito cheio, era impossível faz~,;.,qs êi~alQt,atravessá-
. .. -lo com suas cargas; e·como. â canoa usada para tra.rJportar p~ssageiros e
- b~gagens tinh~ sido levada pelas enchentes da estaçãq.fi~da',' e~a·necessá-
-rió levar tudo para o qutro .lªgq_<,iº rio na cabeça d~.4-imi~n.~• ~m t.oda~ '
. . as localidades pe,:çorridas por Gardner, o quadro desc;itto é, o d~ m,iséria,
•~·.-- ;b;~d9h~;iridôlêri._Jia.28. , : ·:? " "· ·;, · '
;~i;;~ff*~~:JL~J%i~~:>:~: ·.. ;. "-,~~Di.-~J:,;,/:0:~Ii:;
f'.t,~~ftlg~;!~;~;t-~l!12ii~!f~;~;oo
28 Ibidem, p. 9L '",· : )~*~Yili~i;1tt?;'.:
.. ·. .
l'-:·r~F:<·
O que é realmente impressionante ao obsérvarmos as visões dos
viajantes é que,
nesses relatos, o olhar que habitualmente se deseja imparcial, desapai-
xonado, à espera do que vir, do cientista e mesmo do viajante comum,
se converte, desde o início das expedições, em observação interessada,
com itinerário, objetivos e modos-de-ver sabidos de cor. Antes mesmo
de se chegar ao destino, antes de se iniciarem as caçadas, a coleta do
material, os contatos possíveis com tribos indígenas, o levantamento
hidrográfico, as picadas mato a dentro, os chefes da expedição parecem
ter bem clara a definição de uma passagem útil e dos objetos e espé-
cimes a serem colecionados e registrados nas pranchas dos desenhistas
itinerantes.29
Por fim, temos o relato de Francis Castelnau, naturalista francês
que percorreu Goiás em 1843 e cujos reclames contra as pontes e
estradas não diferiram em nada dos apresentados pelos já citados via-
jantes. Penetrando em Goiás pelo Triângulo Mineiro, Castelnau nos
mostrava os caminhos precários da província (mapa 1.7):
Entramos assim na grande mata que precede Goiás, e de que, sob o
nome de Mato Grosso, ouvíamos falar, como sendo impraticável pelo
mau estado dos caminhos, coisa de que pudemos ter uma idéia apro-
ximada durante a noite. Tudo tinha conspirado contra nós. Com efeito
sob torrenciais aguaceiros, numa floresta mais sombria que o forno mais
escuro, e num chão esburacado onde os carros haviam cavado fundas tri-
lhas, só clarão dos relâmpagos nos permitia ir para a frente, sem tropeçar
em cada passada.30
29
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui, p. 114.
3
° CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América qp Sul. São
Paulo: Nacional, 1941. t. 1, p. 240.
52 Nasr Fayad Chaul
CORRKIÇÃO DE VILA IOA
CORREIÇÃO DO NORT&
ESTRADA DO NORTE
ESTRADA DO NASCENTE
ESTRADA DO SUL
mapa 1.1 - Capitania de Goyaz: vila, arraiais do ouro, caminhos
Fonte: PALACÍN, Luiz et ai. História de Goiós em documentos. Goiânia: Ed. UFG, 1995. p.44.
Caminhos de Goiás 53
mapa ,.2 - Viagem de
Fonte: DOLES, Dalísia
ocupação..., p. 76.
54
55
mapa 1.4 - Viagem de D'Alincourt
Fonte: DOLES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da
ocupação..., p. 81. $
Nasr Fayad Chaul
mapa 1.5 - Viagem de Burchell
Fonte: DOLES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da
ocupação..., p. 82.
Caminhos de Goiás 57
mapa 1.6 - Viagem de Gardner
Fonte: DOLES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da
ocupação..., p. 84. '
58
agem de Castelnau
ES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da
... --•~cu0ac:ao.... p. 84,
-de Collls 59
mapa 1.8 - Caminho percorrido por Burchell, de Goiás Velha a Belém do Pará. O mapa,
executado por Eduardo Canabrava Barreiros; é aqui apresentado em duas partes.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado ~isto pelo botânico William John Burche/1
(1825-1829). Rio de janeiro: Fundação joão Moreira Salles: Fundação Nacional Pró-Memória,
1981. p. 140.
60 Nasr Fayad Chaul
Como se pode ver, para estes europeus acostumados a sociedades em
processo de industrialização, com fábricas em pleno vapor e mundos
se interligando através de meios de comunicação mais desenvolvidos,
o interior de Goiás - com seus buracos que abrigavam águas das chu-
vas, com suas intransitáveis estradas para lugar nenhum - não poderia
causar outra sensação senão a de atraso provocado pela decadência das
minas. Chegavam à terra imaginando um Goiás em esplendor devido
à mineração, atividade que atrelara a região à cadeia da produção ca-
pitalista, mas se deparavam com uma província onde a crise imperava
em seus múltiplos aspectos. Os olhares destes viajantes conseguiam
ver apenas um deserto de homens, sem comércio e sem perspectivas,
com estradas fantasmas e ócio correndo nas veias do povo mestiço,
algo longe por demais dos exemplos e do labor anglo-saxões. Não se
perguntavam sobre as razões econômicas e sociais dessa situação, nem
sobre o lugar desse pedaço do "novo mundo" no mercado capitalista.
A representação das estradas nos dá a tônica do conjunto vis-
lumbrado pelos viajantes. Sem estradas, não poderia haver comuni-
cação. Imperava o isolamento. As distâncias mantinham a solidão do
lugar. Sem estradas, nada era pensável, nenhuma ligação possível entre
o "campo" e a "cidade". Por isso, a ausência de estradas, ou as suas
lamentáveis condições, fazia parte de todos os discursos e clamores da
época, desde os dos viajantes até os dos historiadores contemporâneos
que analisaram a província de Goiás.
Os historiadores contemporâneos que estudaram o período
mantiveram a visão dos viajantes sobre a debilidade das comunica-
ções, procurando demonstrar as suas consequências para o parco de-
senvolvimento da agricultura e do comércio. Infrutíferas tentativas de
reabilitação foram feitas, mas o custo que isto traria para o governo
português e o seu descaso para com uma sociedade que, nem no auge
da mineração, representou para a coroa outro interesse que não a ex-
ploração do ouro, deixaram Goiás à margem das atenções reais.
Caminhos de Goiás 61
Os administradores da época tentaram sensibilizar o governo para .
as potencialidades da navegação~ Estudos e análises foram feitos e, poste-
riormente, revisitados pelos historiadores e pesquisadores das causas que
impossibilitaram a navegação de expandir-se através dos Rios Araguaia e
Tocantins. Nota-se, desde essa época, que a navegação era uma ideia fixa
dos administradores de Goiás, o que ajuda a compreender a relutância pos:_
terior dos grupos políticos em aceitar plenamente os projetos ferroviárioi
Governadores de província e viajantes sempre chamaram a
atenção das autoridades para o potencial das vias fluviais em Goiás.
Pohl já destacara a importância das rotas de navegação numa possível
ligação entre Goiás e Pará, através do Rio Maranhão. Todos pediam
maiores investimentos para o desenvolvimento das vias fluviais, enten-
dendo que estas podiam proporcionar a Goiás uma dinâmica comer-
cial coerente com suas possibilidades econômicas.
Os apelos, os zelos, as observações e as análises, por vezes com
detalhes de traçados entre estradas e cachoeiras, foram em vão. N e-
nhuma beira de rio, nenhuma praia de beleza secular, nenhuma rota
promissora eram capazes de sensibilizar a coroa para a realização de
maiores investimentos na navegação de Goiás. Ao que tudo indica,
as 732 léguas de navegação do Araguaia, as cachoeiras do Tocantins,
os índios inimigos, os tempos de navegação - uma canoa de sal levava
dois meses e meio ou três desde Belém a São Pedro de Alcântara no
Maranhão -, os altos salários dos remadores - 50 oitavas por viagem -
fizeram o resto [...] a navegação foi definhando até quase extinguir-se.
Depois desses esforços de recuperação, a Capitania caía de novo, e mais
profundamente que nunca, em seu ritmo letárgico..31
A esse respeito, Dalísia Doles concluiu que,..apesar dos .,......,,,.."
grandiosos[...), o sonho de Couto Magalhães e outros,
31 PALACÍN, Luis. Goiás (1722-1822)...,p. 185.
62
a integração do sul da província ao comércio litorâneo através do
Araguaia e Tocantins, não se realizou".32
--=-~'/: Ilhado por terra e por água, Goiás reforçava a visão dos que
--~--;,, ;~'?iÚ,:: -p~oçlamavam a decadência do lugar. Mas, além das intransitáveis estra-
·>:'4iie da on,erosa..nav,egação, outros argumentos eram adicionados ao
#m~hsÓ caÍdéir~~:'..df'.r;i~~es 4sad.:ispara justificar as crises da província
:~R~fisé-~groe~tGi~~~-{i?e. s{~sboç~va com o esgotamento do ouro.
;t-~:.Qs:_viajantes, aütºridãdes e ·estudiosos reclamavam contra o ócio do
"·'·-'·•_ .// p~vÓ, refletido n~ -preguiça da gente do sertão de Goiás, e contra a
~~f-~f" carência de capital e mão de obra, elementos indispensáveis para se
elevar a produção agrícola e comercial da região. Era de difícil com-
preensão uma terra de tamanho potencial ser envolvida, em todos os
seus aspectos, pelo ócio e pelo marasmo de seu povo.
Em 1835, o presidente da província, em um relatório, afirmava:
hum terreno fértil e productor, que na maior parte da Província retribue
ao Lavrador dusentos por hum, tem estado quasi em perfeito descanço: a
Lavoura verdadeira base da riquesa de hum Paiz tem a tempos a esta parte
descaído em Goyaz, afalta de exportaçao, e de consumo ao supérfluo tem
afrouxado osbraços, que neste honroso exercício se empregavao: o ocío,
e a falta de P9,licia e111 .hum Paiz, onde se pode viver sem traballiar tem
' t~mb~lll.çqriçfar'ia~,.Pfil"~·ª diminuiçao d~ abundancia, que nelle se dis-
; ,}r~cjt~yà)tífrtµJdiJ;'.,~a: ~êi:ra he a mesma: ~ producçao, do presente anno
/!~~. fom.e.:seJé~eiri g◊H~1.eJrez de faltas, não he a P;áví~cia de Goyaz
.•· sujeita a•e'sçe·damno,'por quanto a hum anno de·extr~mada fome, seguio
··,rij1t,hJ.11R,i;i<Ê,:.PJQ~gi9s,~.,al>ifp_g~11çia, não sendo para iss9 preciso mais do
~::,.~,.!.•,.,.'·,;:~--~~;~,~.'~?~;,.-•·-· ·.:·_-:>--~:~':-:}''.:'?;"-'.'=~.. -~-'•":. ,;-,,·, ~)-•• ..,. ·-· .,.. . ,.,_•,.,.::· ·-
.. ue · ·' lica 'ao cio'(Lavradores, excitada pela cares_tia do passado.33
.,,., • ••· , >, • •
/}B'.~:~~§f;R#fü~~:~µ~~*lt~(~~artiiG/~: comunic;ções fluviais pelo. Tocantins e
c:~';ftraguaiaJnti~s~cúfo X1X: Go1an1a: Oriente, 1973. p. 145.
, ,-:~~l~tóri~- do'~r~si~ente·.da província, José Rodrigues Jardim, à Assembléia
tegidatiYade Goyàz-em 1835. ln_: MEMÓRIAS GOIANAS, 3, p. 33.
' ·~· ~ -
···(n':,b'.{f ~;;e ol·á s
·.jitt~~~i1~:.t;:~::.
Aqui, fica claro o atestado de decadência de Goiás, um lugar
que, tendo sido desenvolvido, caíra no completo marasmo, devido ao
declínio do ouro.
Num relato anônimo do início do século XIX, o autor, após
relevar a fertilidade das terras goianas e os frutos nelas produzidos,
centrava sua atenção na carência de mão de obra, observando:
[...] descontadas as pessoas inúteis pela idade e moléstias, restam poucas que
possam prestar trabalhos lucrosos, muito principalmente entregando grande
parte destas ao ócio inevitável no estado atual pelo asilo que lhes ofereceu
os despovoados sertões, que dividem as capitanias confinantes, iludindo-se
assim as mais ativas providências das autoridades públicas, vindo por conse-
qüência a ser esta a principal e imediata causa da decadência observada. 34
Para Saint-Hilaire, eraincompreensível uma região de tamanhas
potencialidades não se desenvolver.Após tecer um rosário de receitas do
que poderia ser feito para tal, exausto, afirmava:"simples conselhos, exor-
tações, talvez mesmo alguns bons exemplos, não serão nunca suficien-
tes para arrancar os lavradores goianos à profunda apatia em que estão
imersos".35 Quando Saint-Hilaire vê a apatia (o campo), gostaria de estar
vendo o trabalho, o progresso, o capital (a cidade), enfim, o conjunto de
razões que lhe explicava o sentido da existência de uma sociedade.
Pohl também gostaria de ver em Goiás a negação do ócio, o ne-
gócio, a prosperidade e o trabalho em prol do capital e do comércio.
Estudando a relação sociocultural entre brancos e negros, por exem-
plo, concluiu, a certa altura:"o ócio é a máxima felicidade dessa gente.
O próprio soldado raso que tem de levar uma carta da Real Fazenda
ao Palácio do Governo, apenas a duzentos passos de distfncia, não a
34 Breve reflexão sobre o meio eficaz de se remediar a decadência da capitania
de Goiaz. Revista do Instituto Hist6rico Brasileiro, t. 44, p. 399-402.
f
35 SAINT-HILAIRE,Auguste de. Viagem às nascentes..., p. 322-330.
Nasr Fayad Chaul
leva ele próprio. Manda-a por um negro escravo e a toma à soleira do
edifício".36
Para esses olhares, não havia outra alternativa de vida social
senão dentro dos padrões capitalistas europeus.
Pohl presenciou a miséria goiana de perto. Impressionou-se
com o fato de que, devido à falta de trajes adequados, uma parcela da
população assistia à missa às cinco horas da manhã, a chamada missa
da madrugada, rezada especificamente para os pobres. Textualizava o
"sofrido doutor": "Nela aparecem principalmente as mulheres bran-
cas, empobrecidas, envoltas num manto de má qualidade, para não se
exporem aos olhares desdenhosos das negras que aparecem mais tarde
e entram altivamente ornadas de correntes de ouro e rendas [...]".37
O austríaco procurava compreender o caráter social e a cultura local,
chegando mais perto do detalhainento cultural da vida do povo goiano:
estes homens, apesar de necessitados, trabalham somente a seu bel-prazer.
Enquanto têm uns vinténs no bolso, não mexem com as mãos. Conheci
alguns .desses elementos que tiravam a roupa suja e ficavam debaixo de
uma árvore até que a negra a lavasse e secasse ao sol; então tornavam a
vesti-la e entregavam-se à ociosidade, sem se animarem a trabalhar para
melhorar a sua sorte.38
Pelos dizeres de Pohl, a sociedade da época tinha algumas se-
melhanças com as comunidades indígenas locais em hábitos e cultura.
Seria o caso de se indagar se o referencial sociocultural, com o fim da
mineração, não deixara de ser europeu para se tornar cada vez mais
indígena nessa sociedade que se sedentarizou nos campos da província
de Goiás. Se isso se confirmar, teremos então um outro prisma para
compreender aquela sociedade: os seus marcos culturais.
36
POHL,Johann Emmanuel. Viagem no interior do Brasil, p. 326-335.
37
Ibidem, p. 326-335.
38
Ibidem.
Caminhos de Goiás
A questão racial também fazia parte das representações usadas
para explicar a decadência de Goiás. "Nesse como em outros casos, a
mestiçagem existente no Brasil não s6 era descrita como adjetivada,
constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possível invia-
bilidade da nação."39
Goiás possuía, à época dos viajantes, cerca de
4% de brancos no norte e 14% no sul - o restante da população era
praticamente composto de mestiços.
Juntamente com as questões envolvendo o progresso, a prospe-
ridade e o capital, rondava as mentes europeias dos viajantes a tese do
trabalho livre, do homem branco, anglo-saxão, oriundo da cidade, do
brilho e da luz. O Brasil e Goiás viviam
em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da
escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país; as
teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justi-
ficação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos
problemas mais prementes relativos à substituição da mão-de-obra ou
mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser
preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania.40
O tipo de vida local, o abandono de um futuro que Pohl via prós-
pero e a ociosidade diante de um quadro onde tudo estava por se fazer
enervavam o doutor, levando-o a deduzir: "o pendor para a ociosidade
sempre foi e permanece igual em ambos os sexos".41
A inércia era, aos
poucos, explicada pela pobreza da economia e vice-versa. Os habitantes
não sabiam contornar as conjunturas que aprofundavam as crises ad-
vindas da mineração e, na visão principalmente dos viajante~, adotavam
39
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p. 13.
40
Ibidem, p. 18.
41
Ibidem, p. 18.
f
l
66 Nasr Fayad Chaul
uma atitude de indolência, conformismo, tédio e ócio. Os viajantes, po-
rém, não tinham uma visão ampla do contexto geral da sociedade e da
economia de Goiás. Muito menos da cultura local. Seus olhares estavam
condicionados a enxergar progresso, desenvolvimento capitalista e lucro,
coisas para as quais a província de Goiás não estava preparada, por falta de
condições de realização ou por um livre culto ao cotidiano de seus dias,
que, soando iguais, mais pareciam "avarezas de Deus".
D'Alincourt era um dos que acreditavam firmemente que a razão
da pobreza e do isolamento estava na inércia e na total incapacidade da
sociedade goiana para encontrar práticas econômicas viáveis com o fim
da mineração. Os goianinhos, dizia,"são pouco industriosos não por fal-
ta de gênio, mas dominados pela preguiça, e demasiadamente entregues
aos prazeres sexuais e bem diferentes são as causas que os têm condu-
zido a tão deplorável estado".42
Ao destacar o lado sexual, D'Alincourt
reforça a ideia do povo que age pelo instinto, pela irracionalidade. O
contraponto, o racional, não existia, pois, caso contrário, o povo estaria
voltado para o lucro e para o comércio, distantes dos prazeres do "irra-
cional".A racionalidade presente na civilização europeia inexistia nesse
pedaço do "novo mundo". A figura 1.5 mostra uma visão estranha e
generalizada sobre os habitantes de Goiás, imagem que sobressaía não
apenas nos relatos dos estrangeiros, mas também em suas obras plásticas..
Por sua vez, Gardner sentia-se incomodado com o indecifrável
mistério da sobrevivência na região. O autor dizia que "todos queixa-
vam da carência de provisões e falta de dinheiro, mas nenhuma palavra
se dizia da indolência e ociosidade, causas, sem dúvida, da fome então
reinante". E arrematava: "é ainda para mim mistério como consegue
viver a grande massa dos habitantes".43
A miséria, portanto, era oriunda
42
D'ALINCOURT, Luiz. Mem6ria sobre a viagem do Porto de Santos à cidade de
Cuíabá. São Paulo: Edusp, 1975. p. 97.
43
GARDNER, George, Viagem ao interior do Brasil.São Paulo:Edusp, 1975.p. 152-168.
Caminhos de Goiás
do não trabalho, do não capital, do ócio - e as ausências se relacionavam
ao mundo da treva, a luz estava distante desse lugar. Os olhos de Gard-
ner viam Goiás na penumbra.
Em suma, o conceito que os viajantes produziram sobre Goiás,
baseados em suas impressões e observações de viagem, foi o da deca-
dência.Temos em Cunha Mattos o resumo das carências goianas:
Falta um poderoso braço, que tire o povo da apatia em que se conserva; falta
restabelecer e restaurar a boa fé nos comerciantes; falta obrigar os homens
ao trabalho da agricultura; falta compeli-los a empregarem-se na navegação;
falta dar nova vida às construções de grandes barcas [...) falta consertar e
desobstruir as estradas e abrir outras [...] falta reformar as pontes agora
arruinadas e as que antigamente existiam; falta dar prêmios aos maiores
exportadores e tirar todos os embaraços aos importadores; falta abolir o
direito do quinto; acabar com as alf'andegas ou registros internos; repelir os
índios ferozes [...) em conclusão, falta quase tudo para dar algum vigor ao
comércio da comarca de Goiás;mas os elementos existem na Província; nada
carece de fora dela; nada é impossível, urna vez que possível for ressuscitar ou
criar algum patriotismo no coração dos governantes e governados.44
Mas é oVisconde deTaunay, em fins do século XIX (1876), que
vê Goiás de uma perspectiva menos europeia, ou seja, mais regional,
mais nacional:
Goiás não tem população para bem povoar uma zona sequer de seu imen-
so território; não tem hábitos de trabalho constante, pois não vê a retribui-
ção imediata do labor; não sente em si a evolução do progresso; vive vida
lânguida e desanimada e, prostrado sobre minas riquíssimas de ouro, não
possui um real de seu[...) vai nisso uma increpação, uma censura, um quei-
xume? Não, até certo ponto. Ninguém pode ser culpado das ,desvantagens
topográficas com que luta a Província; ninguém pode de chofre remediá-
44 MATTOS, Cunha. Chorographia histórica da província de Goás. Revista do
Instituto Hist6rico do Brasil, Rio de Janeiro, t. 37, parte 1, p. 278-281, 1874.
68 Nasr Fayad Chaul
-las. Ela tem irremessivelmente que esperar que as irmãs que a cercam ga-
nhem forças e progridam, a fim de receber a influição externa e, cobrando
robustez, concorrer também para o engrandecimento da pátria comum.45
A ideia de progresso também aí se fazia presente, e o futuro de
Goiás dependia, na opinião do Visconde, de outras órfãs do mesmo
Brasil. Goiás necessitava, assim, do outro, do vizinho, do despertar do
Brasil rumo ao estado. Por si só não era possível desenvolver-se, pois a
topografia, a economia e outros fatores não abriam as portas da pro-
víncia para o progresso. Aquele presente não conduziria, então, ao fu-
turo desejado. O "próprio" só era visto pelo "outro", que o descreveu
mais do que o interpretou. Em síntese, suscitava-se, por intermédio
dos relatos citados, uma ideia de isolamento, de amargura, de tristeza
atávica, de letargia social, de marasmo econômico, de dias irreme-
diavelmente iguais. Criava-se uma imagem de solidão, que tinha no
sertão o cenário ideal, a expressão mais exata, o preço mais caro.
Esta imagem de Goiás-sertão, deixada pelos viajantes, marcou
demais os olhares europeus. Este campo típico do cerrado, este de-
serto de homens e perspectivas, criaram uma forma de representação
espacial tão rígida que os estudiosos da história de Goiás quase não
saíram do enorme labirinto de ideias que envolvia o sertão goiano do
período pós-mineratório. Oscar Leal, por exemplo, legou-nos uma
reflexão própria sobre a índole do povo goiano - visto por ele como
sertanejo - que nos dá a ideia de um lento caminhar do tempo em
Goiás, na época imperial. Dizia o escritor lusitano:
Ah, meu caro leitor, se tendes percorrido os nossos sertões, os lugares onde
a vida é fácil por causa da caça e da pesca, deveis saber que essa gente
caminha para o entorpecimento,para o túmulo.Esta gente não fala - boceja,
45
MATOS, Odilon Nogueira de. Visconde de Taunay: considerações sobre
Goiás. Notícia Biblíogrijica e Hist6rica, Campinas: Departamento de História da
Unicamp, p. 250-251,1991.
Caminhos de Goiás 69
não anda - arrasta-se, não vive - vegeta. Para ela não há ambição, nem luxo,
nem dinheiro, nem conforto: não há nada. e que c:orra a vida como o barco
à mercê da corrente [...] Palavras que lhes dirijamos no sentido de os guiar
por melhor caminho são pérolas que deitamos aos porcos.46
O sertão constitui um tema que, por si só, daria uma disserta-
ção, e exatamente devido a sua riqueza e atualidade, não achamos que
este seja o lugar mais adequado para o aprofundamento desta análise.
Pode-se dizer, no entanto, que o sertão está dentro de Goiás, que é
difícil imaginar o território goiano do período pós-mineratório sem
as imagens sequenciais de hectares infinitos de terras desabitadas, de
lugares ermos, de aridez e abandono. O sertão está para o goiano
como o deserto para o árabe e as florestas para os britânicos. Ele está
presente também, e de forma peculiar, na observação de Le Goff so-
bre outras sociedades quando afirma que "a história do deserto aqui e
além, agora e logo, foi sempre feita de realidades espirituais e materiais
misturadas entre si, um vaivém constante entre o geográfico e o sim-
bólico, o imaginário e o econômico, o social e o ideológico". 47
Para Selma Sena, antropóloga que aborda a temática, "o ser-
tão é, simultaneamente, singular e plural, é um e é muitos, é geral
e específico, é um lugar e um tempo, um modo de ser e um modo
de viver, é o passado sempre presente, o fim do tempo, o que não
está nunca onde está".48
Os viajantes não conseguiam compreender
esta multiplicidade de imagens específicas de Goiás. Registraram a
adversidade do meio e a incapacidade do homem de enfrentá-la.
46
LEAL, Oscar. Viagem às terras goyanas: Brasil Central. Goiânia: Ed. UFG, 1980.
p. 26. (Coleção Documentos Goianos, 4).
47
LE GOFF, Jacques. O deserto: floresta no Ocidente medieval. ln: _. O
maravilhoso e o quotidiano no Oddente medieval. Lisboa: Ed. 70, 1983. p. 46.
48
SENA, Custódia Selma. A categoria sertão: um exercício de ~maginação
antropológica. Brasília: Ed. UnB, 1986. Mimeografado.
70 Nasr Fayad Chaul
Traduziram este conjunto com a imagem da decadência - uma face
inversa ao brilho do ouro que esperavam encontrar. A realidade
do sertão e suas representações locais não foram captadas por eles.
Como bem observou Denise Maldi,
a percepção do que é sertão se expressa amplamente, de forma dicotô-
mica, na oposição litoral/sertão [um sucedâneo do par cidade-campo].
Tal representação parece ter sido forjada dentro das transformações do
advento da República no Brasil, que implicaram numa profunda reorga-
nização do espaço urbano, geográfico e político. A unificação política e
a formação de um Estado moderno tiveram como bandeira ideológica a
integração, na busca de uma identidade nacional.49
É esta a imagem de sertão gravada na literatura e na história de
Goiás, nos romances e nos causas passados entre as gerações. Para a
antropóloga CandiceVidal, porém,
é inviável pensar a concepção de alteridades plenas para o caso brasileiro.
Afinal, sertão e litoral são regiões espacialmente contíguas, apenas con-
sideradas como fragmentos de um mesmo território nacional. Ambas as
partes são habitadas por nacionais, o pertencimento à mesma brasilidade
os unifica. [...] Inexistem diferenças essenciais capazes de fundamentar
diferenças totais: a distinção relatada na sociografia é, por princípio, pro-
visória e deve ser dispersada. Se não o fosse como pensar no futuro de
integração do Brasil todo pela nacionalização?5º
Compreendidos assim, sertão e litoral são partes de um todo: o
Brasil. Desta forma, ganha coerência a ideia de que
49
MALDI, Denise. Pantanais, planícies, sertões: uma reflexão antropológica sobre
espaços brasileiros. Cuiabá: UFMT, 1994. p. 15. Mimeografado.
50
VIDAL, Candice. A pátria geogrófica: as representações de sertão e litoral e
a construção da Nação no pensamento social brasileiro. 1996. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, 1996. p. 133.
Caminhos de Goiás 71
o ponto zero do Brasil não é, portanto, a chegada das caravelas portu-
guesas. Este é apenas o marco factual de aposs~ento da colônia lusa na
terra dos papagaios. O evento fundante do Brasil-jé-nação é o abandono
da costa rumo ao deserto das terras interiores. O português se contenta
em navegar por águas e estanca no litoral a sua vontade de conquista e
movimento. O brasileiro navega em mares de sertão. 51
Ou seja, uma enorme ponte passa pelo sertão com a finalida-
de básica de servir aos ideólogos nacionalistas que ligarão Rondon a
Vargas na Marcha para o Oeste, em busca da modernidade. O Brasil,
diante de seus domínios territoriais, torna-se o "império de si mes-
mo", e o sertão "tranqüiliza o expansionismo externo porque para
ele apontam as ações de civilização e 'pilhagem' que dariam sentido à
virilidade de um povo. Para o pensamento social é sorte nossa dispor-
mos de eldorado tão próximo e de propriedade garantida".52
Por fim, no referencial de nosso imaginário, mesclam-se as con-
cepções de colônia e metrópole, confundindo, por vezes, nossa ideia
geográfica, uma vez que ambas fazem parte da nação brasileira. O
vazio perturbador da dimensão territorial brasileira
continua a se operar pela crença de que sua motivação - o sertão - não
se acaba de verdade. Quando finge deixar de ser logo reaparece como a
relembrar da marcha por recomeçar.Assim se conta como é o Brasil entre
os nossos inventores intelectuais: semelhante a outras nações continente
em seus quilômetros quadrados, mas único a possuir uma vastidão inter-
minável. Sertão se procura sempre, não se amansa nunca.53
Assim, a construção da modernidade em Goiás, nos anos 30,
será também a reconstrução do sertão, a necessidade de il}tegrá-lo
51 VIDAL, Candice. A pátria geográfica ..., p. 135.
52
Ibidem,p. 136.
53
Ibidem, p. 136.
72
f
l
Nasr Fayad Chaul
nacionalmente, de pôr um fim à decadência e ao atraso. Erguer a
cidade (Goiânia) dentro do campo (Goiás) é a tarefa dessa década.
"Nesse sentido, é paradoxal que o discurso político integracionista e
nacionalista utilize o rumo ao sertão como bandeira [...]."54
Como bem observou Foot Hardman,
a combinação entre imaginação romântica, espírito empreendedor e
especulação financeira produziu um tipo característico de capitalista,
que [...] desenhou um mundo homogêneo e unificado de forma mais
ampla e sólida do que os navegantes do Renascimento. Tais homens
pensavam em termos de continentes e oceanos. Para eles, o mundo
era uma única coisa, interligado por trilhos de ferro e máquinas a
vapor, pois seus horizontes comerciais eram como seus sonhos sobre
o mundo. Para tais homens, destino, história e lucro eram uma e a
mesma coisa.55
O pequeno número de estradas e sua precariedade isola-
vam Goiás, a carência das comunicações isolava o comércio (Pohl),
e a incapacidade do povo em se superar igualmente o isolava
(D'Alincourt). As casas abandonadas nos arraiais, para onde o povo
ia apenas por ocasião das festas religiosas (Saint-Hilaire), eram o
retrato do sertão de Goiás, rural e sem produção agrícola, rico em
ouro e pobre em alimentos, carente de tudo e sem forças para sàir
do marasmo (Cunha Mattos e Taunay). Reino do ócio e da pregui-
ça, terra em que se plantando tudo dá, mas sem braços ou interesses
capazes de justificá-la, natureza pródiga, mas sem o necessário ele-
mento humano capaz de elevá-la.
Da parte dos produtores do saber científico, como costumam
dizer os sociólogos, a questão da decadência esbanjou interpreta-
ções. Tendo como fonte a documentação básica existente, ou seja,
os relatórios dos presidentes de província, os arquivos cartoriais e
54
MALDI, Denise. Pantanais, plan{des, sertões...,p. 19.
55
HARDMAN,Foot. Tremfantasma...,p.119-120.
Caminhos de Goiás 73
paroqma1s, as observações dos v1aJantes e outras fontes esparsas, a
produção historiográfica contribuiu para reforçar a ideia de uma so-
ciedade do ouro repleta de esplendor, fausto eriqueza, em oposição
à posterior, a da agropecuária, senhora de todas as mazelas, exemplo
da decadência de uma província chamada Goiás.
figura 1.5 - Habitantes de Goiás. Como se vê, da prancha de Rugendas, surgiu lima visão dos
habitantes de Goiás em que estes eram descritos com características um tanto estranhas e
generalizadas. Talvez pelo fato de Rugendas nunca haver estado em Goiás.
f
l
74 Nasr Fayad Chaul
Quem te vê...
Os historiadores na trilha dos viajantes
Após os viajantes europeus e governadores de província, e ou-
tros, terem sedimentado a ideia de decadência nas análises sobre Goiás
no período pós-mineratório, outros estudiosos, muitos deles historia-
dores, com base naquelas análises, reproduziram a referida conceituali-
zação, dando-lhe roupagens teóricas e metodológicas atualizadas, sem
escapar, no entanto, da questão básica da decadência.
Fundamentando-se em pesquisas desenvolvidas na região, a his-
toriografia goiana produziu algumas obras que se tornaram leitura
obrigatória para aqueles que se iniciavam na história de Goiás. Do
conjunto dessas produções, temos alguns estudos sobre a colonização
de Goiás e a época do ouro, bem como sobre a decadência da provín-
cia. Cabe indicar os exemplos mais significativos dentro dos temas de
que estamos tratando, principalmente, no tocante à questão da deca-
dência da sociedade mineradora.
Luis Palacín, à semelhança de Pohl, tratou a questão da deca-
dência numa perspectiva relativista, própria dos que desconfiam das
verdades taxativas. Em seu Goiás (1722-1822), afirma:
de forma alguma podemos representar a decadência de Goiás como uma
transição brusca de uma situação brilhante de prosperidade para uma
ruína opaca. Pohl, que mal tolerava as contínuas lamúrias dos habitantes
de Goiás sobre a tristeza de sua situação presente e os desmedidos exage-
ros sobre a riqueza dos tempos idos, chega a assegurar que não acreditava
nem na pintura da grandeza passada, nem no conceito de decadência;
para ele, as diferenças, meramente quantitativas, não constituíam um mar-
co diferenciativo.56
56
PALACÍN,Luis,op.cit.,p.195.
Caminhos de Goiás 75
Retomando as observações dos viajantes europeus parajustificar
sua análise da decadência de Goiás, Palacín considera que, com o fim
da mineração, houve um processo de ruralização no estado. A popula-
ção, antes urbana, passou a concentrar-se nos campos, deixando as an-
tigas povoações numa situação de penúria - com destaque para o norte
de Goiás, que, segundo o autor, levou mais de século para recuperar-se.
Na conclusão analítica, embora coloque ênfase na colonização e
na escravidão - o que representa uma novidade -, termina por incorpo-
rar a visão expressa nos relatos daqueles viajantes sobre as causas primei-
ras da decadência da sociedade goiana da época: o ócio. Em sua visão,
o mal mais profundo da decadência, e que está na raiz de todos os outros,
é o desprezo pelo trabalho, o gosto da ociosidade. Nem se pode dizer que
fosse uma doença privativa de Goiás, nem causada pela decadência da mi-
neração, é um mal constitutivo da colonização do Brasil, alimentado pela
instituição da escravatura. Mas nas minas, a decadência, se não criou, pôs
em evidência todo seu poder dissolvente. Todas as análises da decadência
em Minas assinalam o desprezo pelo trabalho como a principal causa.57
Segundo Palacín, o trabalho em Goiás, por tradição, era uma das
formas de diferenciar brancos e mulatos de negros escravos. Um dos
modos de os negros libertos se sentirem socialmente menos escravos
era não trabalhar, como o branco, como o mulato. Praticavam o ócio
como estágio de vida alcançado, como defesa de seus direitos, como
negação de seu estado de oprimido. O trabalho era executado apenas
como forma de sobrevivência, dentro do que Paulo Bertran batizou
de "economia de abastância". A questão não estava em ser ou não
ocioso, e sim em ser coerente com as condições socioeconômicas e
!
culturais do lugar, diante das condições históricas definidas pela época
e pela situação da província.
f
57
PALACÍN, Luis. Goiás (1722-1822)..., p. 198-199.
1
Nasr Fayad Chaul
Na análise de Maria Sylvia de Carvalho Franco, a decadên-
cia aparece como fruto da desagregação não só da mineração, mas
também do sistema escravocrata. Discorrendo sobre o tema, a autora
afirma ainda que,
na desagregação de todo esse conjunto, qualquer de seus componentes
só revela suas implicações deletérias quando exposta sua relação com o
sistema capitalista. Quando se revela esse nexo, ressalta a contradição que
minou o sistema: a exigência de criar mais significou sempre o impera-
tivo de destruir mais.58
Palacín entende que a decadência pode ser caracterizada tam-
bém como uma atitude coletiva, absorvida pela sociedade, através de
um sentimento de fracasso e de derrota, de inevitabilidade dos males e da
incongruência de qualquer esforço para superá-los.Traduzia-se isto num
estado permanente de apatia, de resignação muito próxima da desespe-
rança. E a tradução exterior desta atitude: a tristeza".59
A análise de Palacín é considerada
a primeira contribuição expressiva da Universidade à História da região.
Elaborada com grande zelo pela pesquisa· documental, Palacín procura
reconstituir a vida econômica, social e política de Goiás. Através dos da-
dos documentais obtidos, discute a função sócio-econômica da capitania,
penetrando em questões fundamentais: a dinâmica da população, início
da crise do ouro, a vida social em Goiás e o quadro de decadência insta-
lado localmente graças à exaustão das minas, a partir da segunda metade
do século XVIII. 6
º
58
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São
Paulo:Ática, 1974. p. 216.
59
PALACÍN,Luís. Goiás (1722-1822)..., p.200.
60
SANDES, Noé Freire; RIBEIRO, José Eustáquio. Dezoito anos de Goiás
(1722-1822). Cadernos de Pesquisa do ICHL, Goiânia, n. 3, p. 25, 1991.
Caminhos de Goiás 77
Apesar disso, mantém a tese da inferiorídade do povo do "novo
mundo" e releva a questão da decadência como interpretação de Goiás;
após o declínio aurífero.
Seguindo a mesma interpretação de Palacín, Maria Augus-
ta Sant'Anna de Moraes reafirma a tese da decadência da sociedade
goiana pós-mineração e observa que,
na capital e demais cidades goianas, as famílias de relativa projeção social
e econômica estiveram entrelaçadas desde os primórdios da descoberta
e do povoamento. Já na Bandeira do Anhangüera eram aparentados os
respectivos chefes e até pelo isolamento de Goiás, formou-se como que
uma tradição de casamentos endogâmicos, que levam à evidência o fato
de que os grupos familiais - quase diríamos tribais - estão na própria gê-
nese das oligarquias que tem predominado na história política regional.61
Segundo a autora, as formas de casamento endogâmico de-
monstram que a sociedade local tendia a se fechar numa espécie de
familiocracia, aspecto que perdurou por séculos em Goiás. Daí tería-
mos, então, a formação dos grupos oligárquicos fechados política e
culturalmente, criando um atavismo de dominação que se moldou
desde o irúcio, por intermédio da sociedade portuguesa, excluindo de
qualquer miscigenação os índios.
Dalísia Doles também atestou a decadência da sociedade goiana
quando analisou a problemática das comunicações fluviais pelos Rios
Araguaia e Tocantins no século XIX.A propósito, a ênfase na questão
das comunicações era constante entre os viajantes e governadores de
província.
[...] a conjunção de fatores naturais e técnicos, a escasse:i: de capitais, o
fracasso da política do povoamento e de pacificação do índio e o longo
61 SANT'ANNA DE MORAES, Maria Augusta. História de u,a oligarquia: os
Bulhões. Goiânia: Oriente, 1978. p. 21. 1
78 Nasr Fayad Chaul
período de colonialismo, condicionaram o subdesenvolvimento e a fra-
gilidade das comunicações e do comércio fluviais até o final do período
colonial, impedindo a abertura do Centro-Oeste ao mundo exterior e
que o Tocantins e oAraguaia cumprissem o seu destino histórico na tarefa de
integração inter-regional e de reerguimento econômico da tão decadente
província de Goiás (grifo nosso).62
Como se vê, a geração de historiadores que procurou analisar
a história da província de Goiás manteve a tese da decadência, não
obstante o posterior surgimento de uma diversificação nas razões
explicativas do fenômeno. Alguns passaram a colocar ênfase nos as-
pectos econômicos, outros, na política e administração da época, e
muitos, na formação do povo, na questão da raça, destacando pontos
levantados pelos viajantes, como o ócio, o marasmo, a preguiça. Em
todos eles, a ideia fixa da decadência permaneceu como um marco
inquestionável até os anos 90. Desta safra, destaca-se Paulo Bertran,
que, já em fins dos anos 70, relativizava a questão, afirmando que
a decadência, tão ressaltada pelos viajantes da época, existiu, mas
em termos. Para este autor, que, tempos depois, passou a repudiar
totalmente a ideia de decadência, "caracterizar como decadência o
fim da mineração em Goiás equivale con:siderar a extração aurífera
atividade criativa e não predatória, como sempre foi em toda parte
do mundo".63
O Goiás do pós-mineração simbolizava, segundo Bertran, um
painel em que figuravam "cidades em deterioração", aspectos viru-
lentos de ruralidade,"uma idade agrícola rudimentar" diante da "agri-
cultura de abastância" e muitos, muitos índios.64
62
DOLES, Dalísia Elisabeth Martins. As comunicações.fluviais...,p. 49-50.
63
BERTRAN, Paulo. Formação econ8mica de Goiás, p. 47.
64
Ibidem, p. 42.
Caminhos de Goiás 79
Posteriormente, tivemos o trabalho de Eurípedes Funes sobre
o século XIX em Goiás, no qual ele analisa a transição da mineração
para a agropecuária.Apoiado na ideia da transição para uma economia
de subsistência, o autor concentra sua análise na fase de declínio da
mineração, observando que, após essa queda,
não há, de imediato, uma nova atividade econômica capaz de dar conti-
nuidade ao processo de desenvolvimento da província, o que gerou pro-
funda crise econômica [...] durante esta fase crítica, a qual só começou
a ser superada na segunda metade do século XIX, em Goiás ocorreram
importantes mudanças tais como: o predomínio de uma economia de
subsistência com base na agropecuária, alterações na estrutura fundiária
e profundas transformações nas relações de produção até então predomi-
nantes - o sistema escravista cede lugar, gradativamente, às novas relações
de produção, não capitalistas, fundamentadas na força de trabalho familiar,
do agregado, em menor escala do camarada.65
Mesmo fazendo uma pormenorizada análise, Funes não descarta
a tese atávica do processo de decadência da província quando afirma
que este "se iniciou de maneira mais clara a partir de 1776 [e] prolon-
gou-se por todo o fim do século XVIII e primeira metade do século
XIX".66 Apesar dos novos elementos de abordagem, o autor coloca no
rol dos culpados pela decadência os mesmos elementos apontados pelos
cronistas e governadores nos séculos XVIII e XIX, ou seja, as distâncias,
o desânimo (preguiça), as estradas sem condições de tráfego, a carência
de braços e o naufrágio da ideia de fomentar.a navegação fluvial.
65 FUNES, Eurípedes. Goiás (1800-1850): um período de trans1çao da
mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. UFG, 1986. p. 16-17. (Coleção
Teses Universitárias, 40). O autor observa que, em 1800, Goiás possuía cerca
de cinquenta mil cristãos e sessenta mil índios, o que nos dá uma ideia da
importância e da influência das comunidades indígenas na vida e no cotidiano
dos habitantes da província.
f
66 Ibidem, p.16-17. l
80 Nasr Fayad Chaul
Embora se valha das categorias analíticas que caracterizaram a
produção historiográfica brasileira da segunda metade do século XX
(muitas delas de fundamento marxista, definido pelo sistema capitalis-
ta com inúmeras variantes, mas sempre enfocando a problemática do
capital, da mão de obra, da escravidão etc.), Funes assevera que, além
da falta de "capital e mão-de-obra que dinamizassem a agropecuária
e o comércio, atividades às quais se resumia a economia goiana, havia
ainda como agravante a desfavorável situação geográfica da capitania -
Goiás dista mais de 300 léguas de qualquer porto marítimo".67
Como se não bastasse, continua ele, os altos custos da melhoria
das estradas ou os onerosos investimentos em navegação fluvial torna-
vam tais empreendimentos algo de difícil execução para a província.68
Consequentemente, a produção não se fazia elevada, e a exportação
não chegava a ser algo compensatório.Além da precariedade dos trans-
portes, o autor dá destaque à questão da imobilidade comercial da pro-
víncia. Em sua opinião, o gado exportado era insuficiente para manter
o equilíbrio da balança comercial de Goiás. Funes lembra também que,
se o comércio externo era precário, o interno não ficava nada a dever.
Limitando-se à circulação de produtos agrícolas, tornava-se ainda mais
restrito, uma vez que os produtos básicos da alimentação em Goiás, o
milho, o feijão, arroz e a farinha, eram produzidos em todas as vilas. 69
Tal nível de produção abastecia o comércio local e não gerava
qualquer concorrência devido à falta de diversidade da produção geral.
67
FUNES, Eurípedes. Goiás (1800-1850)...,p. 39.
68
Ibidem, p. 40. Às inúmeras corredeiras e cachoeiras dos Rios Araguaia e
Tocantins, somavam-se os elevados custos da necessária produção de pequenas
barcas. Estes elementos, mais os constantes ataques de índios que habitavam
as margens dos rios, a carência de abastecimentos nos trajetos e a ausência de
capitais, faziam da navegação algo inviável financeiramente.
69
Ibidem, p. 61.
Caminhos de Goiás 81
i
1
1
1
Os períodos de abundância e escassez oscilavam em torno das mazelas
da natureza e desencorajavam o agricultor diante do quadro geral da
província. Não resta dúvida de que estes problemas se tornavam capitais
e desmotivadores para qualquer ascensão econômica, mas havia outras
questões que buliam com a mentalidade do agricultor goiano, diferen-
tes das que sempre nos foram apresentadas pela historiografia regional.
Em decorrência destes fatores, atesta Funes, Goiás ficou
isolado do contexto econômico e viu predominar uma economia de sub-
sistência que teve por base a agropecuária. Entende-se aqui por economia
de subsistência, não de pura subsistência, mas sim uma economia em que
havia produção para o mercado, seja externo ou interno, mas não em grau
suficiente para fazer frente às necessidades básicas da Província.
70
Em nome de que desenvolvimento ou progresso se afirmam as
necessidades de uma sociedade? Acreditamos que a ideia de progresso,
que premeditava um futuro determinado para a província, impedia
os olhares dos que a viam de enxergar algo além da pobreza e da
decadência, de um cotidiano de miséria vivido pela sociedade local.
O tema da decadência, cuja face inversa é o progresso, despertava o
anseio de uma sociedade ideal, construída nos moldes europeus, com
conotações de desenvolvimento. As análises então se faziam com base
no futuro e no passado, e nunca no presente. Futuro não de possibi-
lidades, mas determinado, a priori, pelo modelo de desenvolvimento
dos países ditos modernos, progressistas, desenvolvidos.
Quem te revê...
Os caminhos da história/historiografia
Uma nova leva de estudiosos, historiadores, socióldgos e eco-
nomistas tem questionado os parâmetros básicos que nortearam a
historiografia regional em seus diversos pilares, principalmente, o da
f
l
7° FUNES,Eurípedes. Goiás (1800-1850)...,p.61.
82 Nasr Fayad Chaul
decadência. Em fins de 1991, os historiadores Noé Freire Sandes e
José Eustáquio Ribeiro escreviam para a revista Teoria e Praxis um
instigante artigo sobre Goiás no século XIX, abordando a análise de
nação e região na obra de Cunha Mattos. Nesse breve trabalho, os au-
tores começam a apontar outros nortes explicativos para a questão da
decadência. Dando ênfase à reconstrução da nação, expressa nas ideias
de Cunha Mattos, afirmam, inicialmente, que a leitura da Chorographia
dirige-se para o olhar rígido do militar português que optou pela nacio-
nalidade brasileira, que, cego às avessas, via o que desejava. E é em tor-
no do entendimento do desejo, projeto civilizatório de Cunha Mattos,
elemento ordenador dos olhos deste estrangeiro, que buscamos rever 0
desejo, os olhos do estrangeiro que sonhou com um outro Goiás.71
Recorrendo a trechos da Chorographia, os autores observam o
estilo, as viagens, a análise em que Mattos via, ao mesmo tempo, o fu-
turo do Império e a miséria de Goiás.Verificam que a decadência era a
marca da vida em Goiás, atentando para algumas impressões de Mattos,
como:"a comarca de Goiásjá foi povoada de gente rica: no dia de hoje a
maior parte de seus habitantes deve ser considerada como proletária".72
O ponto-chave, porém, que marca uma diferenciação entre esses au-
tores e a historiografia regional relacionada neste estudo está na visão
que têm da decadência, por intermédio da obra de Cunha Mattos. Os
autores deitam seus olhares sobre a análise da região assinalando:
[...] o quadro traçado para Goiás permite que nos arrisquemos em algu-
mas questões. Região pobre e decadente, com um pé no passado e outro
no futuro [...] região fora do tempo onde nada prospera [...] os homens
parecem espectros dominados pela síndrome do desânimo. O espaço é
fantasmagórico: pontes caídas, estradas e fazendas abandonadas. No lugar
71
SANDES, Noé Freire; RIBEIRO,José Eustáquio. Nação e região: Goiás no
século XIX. Teoria e Praxis, Goiânia, n. 3, p. 42, 1991.
72
Ibidem, p. 62.
Caminhos de Goiás
da antiga prosperidade o vazio. Em Goiás pobreza não é apenas o con-
trário de riqueza, significa também o vazio que descaracteriza parte da ·
história da região no século XIX.73
Até aqui, o que os autores observam não é diferente da visão
que de Goiás tiveram os viajantes, os governadores de província, os
historiadores antigos e os contemporâneos que pudemos analisar. Mas
o que parece ser uma concordância com as ideias propagadas pela his-
toriografia regional torna-se discordância geral quando eles afirmam,
mudando o curso da questão da decadência:
a imagem de uma época não é mera reprodução da realidade, mas envolve
significativamente o sujeito que a elaborou. Selecionar a imagem da pobre-
za - homens indolentes, regiões vazias, cumpre um objetivo fundamental:
condenar ao esquecimento tudo que não coincide com a visão de nação,
de progresso que deveria estabelecer-se [...] há um projeto de nação em
curso. Há um projeto disciplinar em andamento. Há um horizonte mental
que não era o de Cunha Mattos e que precisava ser negado.74
Para os autores, o que estava sendo reclamado por Cunha Mat-
tos, o que ele considerava de fato necessário, era o poderoso braço do
Estado imperial com o seu poder coercitivo. A questão se torna com-
plexa quando os dois historiadores afirmam que o projeto de nação es-
tava,já na época, presente em Cunha Mattos.Acreditamos, porém, que
ele estivesse mais na visão dos autores do que na do próprio Cunha
Mattos. Estará presente, sim, em Pedro Ludovico, algum tempo depois.
Apesar de não aprofundar a análise sobre a inserção de Goiás
num projeto de nação, o estudo de Sandes e Ribeiro se mostrou
relevante, pois tiveram a precedência de questionar, em'bora dentro
dos limites do artigo proposto, a questão da decadênciai como fator
73 BERTRAN, Paulo, apud SANDES, Noé Freire; RIBEIRO,José Eustáquio.
Nação e região..., p. 43. f
l
74 Ibidem, p. 44-45.
Nasr Fayad Chaul
explicativo da realidade da província de Goiás. Concluindo, os autores
acentuam que "é preciso olhar com cuidado para 'o olho que vê o
mundo' e que elabora uma representação sobre o social em consonân-
cia com o horizonte visual/mental daquele que vê".75
Outro autor preocupado com as conceituações e análises por
demais consolidadas na historiografia goiana é Paulo Bertran. Aqui,
bem distante dos temas e posicionamentos que marcaram a formação
econômica de Goiás, temos um estudioso envolvido com a eco-his-
tória e com a busca de uma revisão crítica dos conceitos que prevale-
ceram na história e na historiografia de Goiás.
Trabalhando também com a história do Centro-Oeste, pode-
mos encontrá-lo às voltas com a revisão da questão da decadência de
Goiás quando esclarece:
[...] há duas ou três coisas sobre a história de Goiás que é oportuno despoluir
para obtermos objetos mais úteis e iluminados,para nosso deleite e sapiência e
consumo de futuras gerações. Um deles é o paradigma da decadência de Goiás
no passado, que ao sentir de alguns escritores iria desde a abrupta queda da
mineração em 1780 até um variável fim, segundo uns até 1914 com a entrada
da estrada de ferro, segundo outros até 1937 com o Estado Novo e a constru-
ção de Goiânia. Haja decadência! No caso extremo nada menos do que 157
anos de decadência. Deve ser erro de denominação ou erro de conceito.76
.Na realidade, além da carência de pesquisas sobre o século XIX
em Goiás, há um equívoco secular em que se associou a decadência
do ouro com a da própria província. Como bem ressaltou Bertran,
"em dois e meio séculos de história de Goiás quase que de todo
ignora-se um inteiro século, o da 'decadência',justo quando em todos
os quadrantes nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados".77
75
SANDES, Noé Freire; RIBEIRO,José Eustáquio. Nação e região..., p. 45.
76
Ibidem, p. 46.
77
BERTRAN, Paulo.A memória consútil e a goianidade. Ciêndas Humanas em
Revista, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 6,jan./jun. 1994.
Caminhos de Goiás
Ressalte-se também que o que assegurou de fato o povoamento de
Goiás não foi o ouro, e sim a agropecuária.78
O próprio Bertran, em trabalho anterior, afirmava que
a economia agrícola, propriamente, surge como um regime de transição en-
tre a economia mineradora e a economia de exportação pecuária, pelo me-
nos em Goiás. Nem tanto economia de subsistência, nem tanto comercial,
a agricultura do século XIX poderia caracterizar-se como de abastância vez
que seu mercado, com localizadas exceções, só raras vezes ultrapassava as bar-
reiras extra-regionais, pelo proibitivo da relação preço/custo de transporte.79
Como se vê, a economia de abastância seria aqui o viés interpretativo para
se compreender Goiás na transição da mineração para a agropecuária.
Tomando, por partes, o imenso painel interpretativo da pro-
víncia de Goiás, podemos tecer algumas considerações sobre as ideias
disseminadas ao longo do tempo e herdadas pela historiografia goiana
de forma geral. Segundo os autores analisados em nosso percurso,
o comércio era desenvolvido devido à riqueza gerada pelo ouro, os
lavradores tinham consumidores de seus produtos e havia também
um promissor mercado para o gado. Atestam ainda que, embora he-
terogeneamente distribuída, a riqueza atingia os vários estratos sociais
da província. Devido à carência de dados documentais, não é possível
detectar com mais propriedade esse tempo que os autores chamam de
"tempo de esplendor". Da mesma forma, não é possível investigar, a
não ser pelos registros seculares da arquitetura urbana de Goiás e pela
fabricação de ferramentas de ouro (figural.6), como a dita riqueza ge-
rada foi aplicada.Tais registros demonstram que, afora algumas igrejas,
por vezes reconstruídas, poucas marcas se sustentam no tempo como
marcas do "esplendor do tempo do ouro".
78
BERTRAN, Paulo.A memória consútil ..., p. 7.
79
Para uma análise do peso da agropecuária no povoamento de Goiás,verTIBALLI,
Elianda Arantes. A expansão do povoamento em Goiás: século XIX. h991. Disserta-
i
86
ção (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1991. Mimeografado.
,
Nasr Fayad Chaul
O PLANALTO AURIFERO
Apparrllw/ ,p111lq11rrd,vlrtHlw,
6roeo.r, ou •·errttnin✓• ••111111!#-••-+-•-•lllii•-•
figura 1.6 · Métodos e instrumentos de mineração no século XVIII. Desenho da época.
Fonte: BERTRAN, Paulo. História da terra..., p. 105.
Caminhos de Goiás
A partir de 1770, o quadro de declínio da produção aurífera é
explicitado pelo pequeno vulto dos impostos coletados, pela queda (do
pagamento? do valor?) das taxas comerciais e pelo reduzido fluxo dos
produtos agropecuários, em perfeita harmonia com o refluxo popula-
cional.Abrangendo dos arraiais aos escravos, a província mostrava a sua
cara, uma face de incontestável recessão econômica.
Neste conjunto de negativas visto como absoluto por grande
parte da historiografia do período, vários autores nos apresentaram o
seguinte quadro da sociedade goiana, fruto da crise do ouro: diminui-
ção dos lucros dos funcionários reais, paralisação do comércio, carência
de capital, produção para a subsistência diante de um reduzido merca-
do, ausência de empregos, fome, letargia da população, ócio, carência
de tudo, falta de todos, perdas gerais.
O processo histórico a que se refere tal quadro socioeconômico
vai do fim da colônia ao início do Império. Ou seja, a ideia de decadência
vigorou desde o final do século XVIII, sendo expressa nos documentos
goianos, divulgada nos livros e jornais, clamada nas poesias e nas músicas,
exposta nos discursos e nas conversas informais. É, sem dúvida, um dos
mais constantes elementos simbólicos presentes na historiografia goiana,
dando margem a outros sinônimos interpretativos, como, por exemplo, a
questão do atraso, com base na qual se interpretou boa parte da Primeira
República em Goiás até que se abrissem as possibilidades para se pensar
na sua antítese ao longo dos anos 30: a ideia de modernidade.
Muitos autores não deixam de ter razão, pelo que pudemos ob-
servar, quando apontam as dificuldades de uma sociedade transitando
da fase mineradora para uma economia baseada na agropecuária.Acre-
ditamos, porém, que devemos minimizar a questão do faus'to e de ri-
queza de tempos outros.A carência documental pode ter-nos ocultado
!
tal dimensão de riqueza de Goiás, mas a face goiana mais concreta não
expressa grandes heranças dos tempos do ouro.
Para a maioria dos autores, a consequência direta da ideia de de-
cadência foi a construção de um outro estado para Goiás, ~ estado de
vítima, a vitirnização da região.Visão repassada, em grande
1
parte, pelas
88 Nasr Fayad Chaul
autoridades do período, com variados fins, entre eles, o de ampliar os re-
cursos destinados pela corte à província. Propagou-se a ideia da transição
da região de uma fase em que havia de tudo, ou quase tudo, para uma ou-
tra fase resumida pelo nada. Ora, torna-se bastante difícil acreditar num
esplendor social e econômico em Goiás na fase da mineração, bem como
atestar a prolongada decadência do estado provocada pela crise do ouro.
Temos de ter em conta que as vozes que entoaram os cânticos da
vitirnização eram quase sempre estrangeiras, pessoas ligadas à burocracia
provincial ou à Igreja, por vezes, administradores lusitanos, saudosos dos
cais e dos portos, homens desejosos de ver o "progresso" em Goiás com
os mesmos olhos com que haviam visto o desenvolvimento das terras
d'além-mar. Desta forma, é necessário um certo cuidado ao tratar a ques-
tão, pois as supostas vítimas não chegaram a manifestar tal imagem, e não
acreditamos que se sentissem vítimas do descaso, abandonadas pela sorte
ou herdeiras da desatenção do rei, como poderemos ver posteriormente
no relatório da Câmara de Santa Luzia.Mas a imagem da vitirnização, com
isto concordamos, serviu para corroborar a questão da decadência, sendo
ambas siamesas do mesmo corpo ideológico, ao qual viriam se somar ou-
tras tantas ideias, como a do isolamento, a do atraso e a da modernidade.
Quanto ao isolamento, diversos autores observam a sua persistência
tanto na colônia quanto no Goiás contemporâneo e apontam-no como o
principal motivo da decadência da província. Isolada de todo o progresso,
de Lisboa ao resto do mundo, esta não possuía meios eficazes para superar
tais barreiras,já que parecia não valer os gastos que requeria. O isolamento
e a vitirnização passaram a ser faces de uma mesma moeda sem aceitação
na corte lusitana, perdendo seus simbolismos para um valor maior, capaz
de expandi-los: a decadência. Gestado nos inúmeros relatos dos viajantes,
nos relatórios de governadores de província e nos demais documentos
analisados, o conceito de decadência, com o tempo, absorveu os demais.
A província experimentou também o inverso do isolamento, a
proximidade com a corte, mas isso não chegou a ser uma constante
na vida administrativa, política ou social de Goiás, mesmo no auge da
mineração. Da mesma forma, torna-se dificil sustentar que um lugar
Caminhos de Goiás 89
que não se desenvolvera (Goiás no auge do tempo do ouro) possa ter,
posteriormente, caído na decadência - este mesmo lugar, sem maiores
proximidades com o mundo administrativo lusitano, não se tornou de
todo isolado com o fim da mineração. Ele continuou tão isolado, "tão
decadente", como antes fora, pois o que se podia chamar de desenvol-
vimento ou de progresso não fazia parte da realidade de Goiás, mesmo
na fase do boom aurífero. Por exemplo, seriam as estradas da época do
ouro distintas das da sua fase pecuarista? Claro que continuaram tão
carentes de <recursos como antes. Só que, com o ouro, não havia estra-
da dificil nem isolamento tão grande. Sem o ouro, as mesmas estradas
tornaram-se intrafegáveis; apenas o gado conseguia transitá-las.
Na verdade, os administradores, que incorporavam a figura do
rei ao dirigir a capitania e a província, sentiam-se isolados e transferiam
tal isolamento para a terra dirigida. Sentiam-se impossibilitados de
qualquer atitude que consistisse em mudanças fundamentais na estru-
tura de sua administração. O povo, por sua vez, não se via representado
por esses homens de língua outra, comandantes de navios fantasmas,
guerreiros medievais perdidos na solidão do sertão de Goiás. Por isso, as
disputas e alianças ocorriam dentro da estrutura de poder, sem chegar
jamais à população. A administração lusa parecia conhecer os proble-
mas de Goiás, mas não a cultura do povo do lugar.
A par dos aspectos referidos, outro por demais enfatizado, como,
aliás, já se mencionou, foi a questão do ócio, da preguiça goiana, da
gente letárgica de uma terra parada no tempo. Não se levava em conta
que uma economia agrária pautada pela agricultura e pela pecuária ex-
tensivas dispensa o trabalho diário [...] para o europeu, vindo de um
1
mundo capitalista, era impossível perceber que o goiano do século XIX,
antes de ser indolente, era um trabalhador condicionado pelo 1
estágio em
que se encontrava, o modo pelo qual produzia os bens necessários para
sua sobrevivência.80
80
BERTRAN, Paulo. Uma introdução à história econ8mica do Centío-Oeste do
l
Brasil. Brasília: Codeplan; Goiânia: Ed. UCG, 1988. p. 43.
90 Nasr Fayad Chaul
Diante de um governo não reconhecido ou indiferente aos
olhos da população, a sociedade local parecia formar um mundo à
parte, construindo seus hábitos e sua cultura por meio de elementos
próprios, de tradições locais e atávicas, de memórias seculares, distan-
tes da cultura europeia. Contrabando, cachaça, rituais afro, caminhos
por estradas não permitidas, não pagamento de impostos, descaso para
com a lei, entre outras, foram atitudes notórias no cotidiano do povo
do lugar. Estas atitudes começaram a ser vistas como desobediência.
A desobediência civil da época, apesar de não documenmda, pode ser
imaginada com pinceladas de realidade.
Assim, dissociado da ordem legal lusitana, o mundo do povo
da capitania, da gente da província, mantinha-se longe dos litorais
europeu e brasileiro, distante do progresso ansiado pelos cronistas,
alheio ao desenvolvimento que as potencialidades de Goiás podiam
imprimir. Enfim, diante da insignificante ajuda real, a situação daquele
povo era crítica, e, aos olhos alheios, ele era decadente, mas, aos seus
próprios olhos_, sua realidade era satisfatória. Seu cotidiano bastava-lhe
e satisfazia suas necessidades básicas dentro do resumido universo de
possibilidades ofertadas pela capitania e, posteriormente, pela provín-
cia. O que fazer diante das carências de mão de obra e capitais, diante
do desprezo das instituições régias perante a inviabilidade das comu-
nicações, diante do "sertão sem fim" de sua economia, das barreiras
de toda ordem? A vida, a economia, os ímpetos da política só seriam
modificados aos poucos, com o desenvolver do processo histórico
externo e interno, com as mudanças ocorridas na política nacional e
que absorveriam Goiás dentro das necessidades de desenvolvimento
do país, lá pelos fins dos anos 20 e início da década de 1930.
Tomemos como exemplo desta aceitação da realidade um do-
cumento de 1883 intitulado Relatório da Cilmara de Santa Luzia (atual
Luziânia), que apresentava ao vice-presidente da província,Theodoro
Rodrigues de Moraes, a situação daquela gente e daquela localida-
de. O documento fazia menção à tranquilidade e segurança pública,
assinalando: "acha-se o Município em paz e gosa de tranqüilidade,
Caminhos de Goiás 91
devido isso, em grande parte, à índole pacífica do povo".81
Sobre a
segurança individual, afirmava ser satisfatória em todo o município.
Atestava também que o estado das três igrejas do município era bom,
mostrando uma "decência compatível com o lugar", e que não falta-
vam ao povo devoção, zelo e sentimento religioso.
Em contrapartida, o documento referendava que o estado sani-
tário ficava a desejar, sujeitando a salubridade pública a sérios perigos,
e aproveitava para inserir em seu rol de reivindicações a construção de
um cemitério, ação que se entendia capaz de diminuir tal problema.
A instrução pública, porém, com apenas duas escolas, funcio-
nava a contento, mas, "no intuito de difundir a instrução por seus
municípios", a Câmara decidira
estabelecer uma aula noturna de instrução primária para adultos do sexo
masculino. Para este fim, [dizia o relatório], consignará em suas despesas a
necessária vista, deduzidas das respectivas rendas, e conta, com um prédio
oferecido pelo Presidente da mesma Câmara, o Cel. Antônio Machado
de Araújo, para nelle gratuitamente funcionar as aulas.82
De acordo com o relatório citado, também a vida econômica,
nas palavras do povo, expressas por um de seus órgãos representativos,
tinha suas necessidades cotidianas razoavelmente satisfeitas.
o estado financeiro do Município longe de ser desanimador promette,
dadas as condições de uma rigorosa observância das regras econômicas,
e de uma boa fiscalisação na arrecadação de suas rendas, promover em
maior escala seus melhoramentos materiais.83
Um desses melhoramentos concernia à atividade agríc
1
ola, difi-
cultada pela falta de braços escravos no município, o que, segundo o
81
TIBALLI, Elianda Arantes. A expansão do povoamento..., p. 65.
82
Relatório da Câmara de Santa Luzia, 1883.
83
Ibidem.
f
1
92 Nasr Fayad Chaul
relatório, teria feito cair sensivelmente a produção da lavoura. O cal-
canhar de aquiles da região estava, porém, no comércio, uma vez que
as pontes, as estradas e as distâncias não cooperavam para uma maior
e melhor dinâmica do setor. Reivindicava-se, portanto, a construção
de um mercado como forma de fiscalizar melhor "a arrecadação das
rendas provinciais municipais". Requeria-se, além disso, uma maior
atenção para com as condições sanitárias da cadeia pública.
De modo geral, as condições vitais do municípi_o estavam um
tanto distantes da visão de decadência, cantada, decantada e reclamada
por tantos em tantos lugares de Goiás. E, como Santa Luzia, tínhamos
outras localidades com o mesmo padrão de vida e o mesmo desenvol-
vimento, sem dizer que, em relação àpopulação e àurbanização, locais
como Vila Boa e Meia Ponte aproximavam-se daquele município ou
o superavam.
Acreditamos, assim, que o conceito de decadência é uma repre-
sentação que foi gestada pelos cronistas e governadores de província e,
posteriormertte, reproduzida pela historiografia goiana, com base no
isolamento da província, na visão europeizante dos estrangeiros que
vieram a Goiás e na ilusão daquilo que pensavam ter existido (o faus-
to e a riqueza) na sociedade mineradora. Encontraram, porém, uma
sociedade em transição para a agropecuária, senhora de seus limites e
de suas carências de toda ordem. Consideramos que muito pouca di-
ferença havia entre as duas sociedades no tocante à vida sociopolítica e
econômica, pensando no que ficou para Goiás em termos de herança
do período áureo da mineração. Aqui se encontra, em nossa opinião,
o caminho para se entenderem aspectos como a goianidade e para se
compreender a ponte que liga a decadência de antes à modernidade
dos anos 30.
A reprodução da ideia de decadência vai atravessar o Império
e penetrar camaleonicamente na Primeira República sob o manto
do atraso. A interpretação política da Primeira República em Goiás
estrutura-se por intermédio da análise de Francisco Itami Campos,
Caminhos de Goiás 93
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CRUZADINHA - Leitura e escrita dos números
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32-_O_CONCEITO_DE_DECADE770NCIA__E_A_DECADE770NCIA_DO_CONCEITO__PAG_33-94.pdf

  • 1. ,, •• UFG L Editora UFG Universidade Federal de Goiás Reitor Edward Madureira Brasil Vice-Reitor Eriberto Francisco Bevilaqua Marin Diretora-Geral Maria das Graças Monteiro Castro Conselho Editorial Heleno Godói de Sousa,Jesus Carlos da Mota,Joffre Rezende Filho, José Antunes Marques,José Rildo de Oliveira Queiroz, Robervaldo Linhares Rosa,Tadeu Pereira Alencar Arrais. f l Nasr Fayad Chaul Caminhos de Goiás da construção da decadência aos limites da modernidade
  • 2. f l Quem te viu... O conceito de decadência e a decadência do conceito Nossas histórias de vida são amontoados de impressões erráticas, de pulsões incompletas, de degenerações da memória. Alguém, ao tentar reconstituir opassado, acaba por transformá-lo em generalizações, em coisas que existiram e às vezes, em coisas que sequer existiram. E que passam a existir, sem que ocorra qualquer espanto com isso. A história é a grande prostituta de todos nós: história e desejo de história é o que perseguimos Paulo Bertran Os (des)caminhos do ouro A procura de índios e os indícios de existência de ouro em Goiás fizeram com que inúmeras bandeiras penetrassem em terras goianas em busca da ambicionada mão de obra e da potencial riqueza. De Sebastião Marinho, quando penetrou nas cercanias das nascentes do Rio Tocantins em 1592, a Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, os índios e o ouro de Goiás despertavam ambições e atraíam os bandeirantes e sertanistas que desbravaram esse território
  • 3. hostil e selvagem. No século XVIII, teve início o povoamento da região, sendo que as minas começaram a ser exploradas a partir de 1726, ano que marca também a fundação do Arraial de Sant'Anna. O povoamento chega ao auge na década de 1750 para, daí em diante, enfrentar um longo declínio, a exemplo de Minas Gerais e Mato Grosso. Como destacou Bertran, "quando em 1722, Bartolomeu Bueno da Silva Filho adentrou a região já encontrou sinais de gado, sentindo-se de todo perdido [...]. Nas bordas de Goiás e Tocantins a pecuária antecedia a mineração".1 O Arraial de Sant'Anna foi fundado por Bartolomeu Bueno em sua terceira visita ao sertão goiano, numa viagem que durou seis meses de São Paulo até aqui. Erguido às margens do RioVermelho, o arraial receberia, mais tarde, o nome deVila Boa,2 localidade que viria a ser a capital da futura capitania de Goiás. Assim como o de Sant'Anna,vários arraiais surgiram às margens dos rios propícios à mineração. Em 1731, Manoel Rodrigues Tomás, ao descobrir jazidas de ouro na região dos Pireneus, fundou ali, junto ao Rio das Almas, o Arraial da Meia Ponte, que se tornou posteriormente o segundo centro mais importante da capitania de Goiás. Considerada como parte da capitania de São Paulo, a região das minas dos Goyazes foi governada inicialmente por Bartolomeu Bueno, que ostentava o título de capitão-mor até 1734. No ano de 1744, foi criada a capitania de Goiás (mapa 1.1). No entanto, seu primeiro governador, dom Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, ' só viria a estabelecer-se no local cinco anos mais tarde. 1 BERTRAN, Paulo. Hist6ria da terra e do homem no Planalto Central: eco-história do Distrito Federal - do indígena ao colonizador. Brasília: Solo1 1994. p. 60. í 2 Esse nome derivou de Bueno (Bartolomeu) e da nação Goiá. ! 34 Nasr Fayad Chaul A mineração propriamente dita teve vida breve em Goiás. Iniciando-se em 1726, declinou após a década de 1750, que marca o apogeu dessa atividade no estado. O declínio da mineração pode ser observado por meio da arrecadação do quinto do ouro, que passa de 40 arrobas em 1753 para 22 em 1768 e desaba para 8 arrobas em 1788,para 4 em 1808 e, enfim, para a mísera 0,5 arroba em 1823. figura 1.1 - Extração de ouro no Rio das Velhas Fonte: Instituto de Estudos Brasileiros da USP Como principais razões apresentadas para se entender o declí- nio da mineração em Goiás, figuram as técnicas rudimentares de ex- tração e exploração das jazidas (ouro de aluvião), a falta de braços para uma exploração mais intensa das minas, a carência de capitais e uma administração preocupada apenas com o rendimento do quinto. As- sim, todo o potencial da capitania era canalizado para a exploração do ouro, o que encarecia,.cada vez mais, os bens de primeira necessidade. Caminhos de Goiás 35
  • 4. Devido aos motivos já citados, as minas foram escasseando, e o . quinto acompanhava esse declínio. Ao. que tudo indica, para alguns, o ano de 1778 é o marco da "abundância" - para outros, o marco é 1770 - e o "princípio da decadência" do ouro goiano. Como observa Palacín, até aquele ano, "com efeito, o quinto se mantinha por cima de 15 arrobas, depois decaiu rapidíssimamente". 5 Os mineiros representavam a parcela socialmente mais conside- rada da população. Ser mineiro era uma constante aspiração dos mo- radores de Goiás, além de significar um alto título de honra, orgulho para aqueles que o detinham. "Mas ser mineiro não significava, como hoje, trabalhar nas minas. O trabalho era coisa exclusiva dos escravos ' mero instrumento de produção; mineiro era o dono das lavras e dos escravos que extraíam para ele o ouro." 6 5 PALACÍN, Luis. Goiás (1722-1822)..., p. 91. 6 Ibidem, p. 106. figura 1.3 - Lavage du Mineral d'or pres de la Montagne ltatolumi, Fonte: 1nstituto de Estudos Brasileiros da USP Nasr Fayad Chaul A população, de dificil quantificação, constituía-se de brancos, mestiços, índios, pardos e negros. O concubinato era generalizado, 0 que chocou Saint-Hilaire ao percorrer a capitania, que já contava com quase um século de prática deste costume.Alguns autores atribuem-no ao alto preço do casamento e à prática já atávica de os casais simples- mente se "juntarem". O exemplo partia do alto: Nenhum dos governadores veio a Goiás casado e todos viviam publi- camente com suas amantes em palácio. O mesmo acontecia com outros funcionários. O caso mais triste foi o de Fernando Delgado Freire. De- pois de residir em Goiás durante onze anos e viver maritalmente com a filha de um carpinteiro, de quem teve vários filhos, foi chamado de volta à Corte. No Rio, sua mulher negou-se a segui-lo a Portugal se não legalizasse a união; minado pela doença, e ante esta escolha para ele im- possível - a mulher ou um casamento humilhante - optou pelo suicídio.7 Em relação à vida administrativa e ao exercício do poder pú- blico, estes eram cercados por sérias limitações, como a carência de transportes e estradas, as grandes distâncias, o parco contingente de pessoas aptas ao exercício dos cargos e a ausência de uma polícia. Como ressaltou Palacín, lembrando os dizeres de João Carlos Augusto D'Oyerhaunsen, governador de Mato Grosso e São Paulo, na vida administrativa de um capitão general havia três fases: a febre com delírio, a febre sem delírio e a prostração. O general partia para sua capita- nia sem conhecê-la, sabendo unicamente que se tratava de um território novo, onde tudo estava ainda por fazer; traçava grandes planos para debelar o atraso e a miséria; pensava imortalizar-se arrancando aquelas vastidões da barbárie em que se encontravam. Era a febre com delírio. Chegando a seu governo, percebia imediatamente que aqueles planos, concebidos em Lisboa ou no Rio de Janeiro, não eram aplicáveis no interior do Bra- sil. Procurava reformá-los, conformá-los com a realidade, cheio ainda de 7 PALACÍN,Luis. Goiás (1722 -1822)...,p.113. Caminhos de Goiás 39
  • 5. entusiasmo. A febre sem delírio. Os desenganos, a indiferença total com que eram recebidos seus planos de reforma, acabavam por vencê-lo. Caíà na prostração geral, no ritmo sêi:n tempo das capitanias do interior.8 Somava-se ao problema administrativo a queda vertiginosa da produção aurífera,já que, conforme observou o Conde dos Arcos em 1749, a produção do escravo não chegava a uma oitava por semana, sem dizer que novos veios já não eram descobertos. As dívidas dos mineiros cresciam e novos investimentos se inviabilizavam. Em 1754, começa a diminuição do produto bruto, e o declínio se processa lentamente: em vinte e cinco anos decai de um terço a arrecadação do quinto. Mas a decadência psicológica e social antecipava-se ao esgotamento do ouro [...] em 1779, pela primeira vez, o quinto não alcançou as 15 arrobas ( 52,011 oitavas); recuperou-se um pouco no ano seguinte (55,738 oitavas), para daí em diante ir caindo sempre sem descanso[...] nos dez anos seguintes (1809) o quinto experi- mentou nova redução à metade. Em 1820, às vésperas da Independência, não chegava sequer a uma arroba; a mineração praticamente tinha desa- parecido como atividade econômica significativa.9 Para o governo, a culpa era da sonegação; para os mineiros, a causa do declínio da mineração estava no esgotamento das jazidas. Na realidade, o ouro já não podia comprar o inexistente. E o existente era, diante da pouca produtividade, oneroso. De acordo com o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, para se obter um alqueire de mi- lho - o alqueire goiano tem o dobro do paulista, ou seja, 48.000m2 -, eram necessárias seis oitavas de ouro;10 por um de farinha de mandioca 8 PALACÍN, Luís. Goiás (1722-1822)..., p. 144-145. 9 Ibidem,p. 172-173. 10 Um marco valia cerca de 8 onças; urna arroba, 64 marcos; urna oJça, cerca de 28 gramas; urna oitava, 1/8 onças ou 3,56 gramas, e um grão, entre 70 e 100 oitavas. 40 Nasr Fayad Chaul pagavam-se dez oitavas; por uma libra de açúcar, duas oitavas. Um por- co custava o equivalente a oitenta oitavas, enquanto duas libras de ouro compravam uma vaca.11 A efêmera duração das minas dos Goyazes e a carência de uma infraestrutura capaz de suportar os reveses sociais de um declínio eco- nômico de tal porte traçaram o perfil da sociedade goiana que sobre- viveu ao sonho do ouro. Entretanto, é sobre a sociedade da agrope- cuária goiana que temos um manancial de informações suficientes para retratar, perceber, caricaturar e imaginar sua face mais represen- tativa. Dessa sociedade irá se extrair o conceito que a resumirá em uma só palavra e a introduzirá numa imagem capaz de eternizações memoriais na redoma da historiografia que a envolveu por séculos: a imagem da decadência. De Silva e Souza (1812) a Cunha Mattos (1823), do dr. Pohl (1810) a Saint-Hilaire (1816), passando por D'Alincourt (1818), Bur- chell (1827), Gardner (1836) e Castelnau (1843) e chegando aos his- toriadores contemporâneos que trataram o período da mineração e da agropecuária em Goiás, além de intelectuais de outras cepas e anôni- mos da escrita, a aceitação da decadência da sociedade goiana no pe- ríodo pós-minerador é unânime. Atualmente, porém, alguns estudos têm se esforçado em questionar essa visão, como veremos posterior- mente. Para alguns, [a] decadência, vezes tantas ressaltada pelos viajantes da época existiu em termos, [pois] mineração sempre foi um negócio cigano e virulento, ignorante de fronteiras e de massa demográfica [...] labuta ingrata, o ouro goiano em si desinteressava. Apenas seu legado foi e é importante, pela estruturação primária do espaço fisico. Após toda a fase de riqueza 11 SAINT-HILAIRE,Auguste François César Provençal de. Viagens às nascentes do Rio São Francisco. São Paulo:Edusp, 1975.p.161. Caminhos de Goiás 41
  • 6. abundante compreende-se logo o desapontámento e prostração do pós-aurífero.12 Para chegarmos, quem sabe, a outras estradas capazes de nos apontar outros caminhos, percorramos os roteiros da construção do conceito de decadência dos viajantes, governos de província e histo- riadores. É Silva e Souza quem nos aponta, em 1812, alguns dos mo- tivos da decadência da capitania de Goiás. Para este padre, que conse- guiu lançar um olhar de esperança no deserto de possibilidades que a sociedade goiana lhe oferecia, a razão do descobrimento de Goiás foi menos o amor da glória e desejo de ser útil, que o interesse próprio e aquela ambição, que leva muitas vezes os homens por incalculáveis perigos às mais árduas, mais importantes emprêsas [...] tendo as melhores proporções para se engrandecer a felicitar os seus colonos, correu em menos de um século do esplendor do seu princípio para a crise de decadência, seja por se desprezarem os mais próprios e meios mais enérgicos de promover o seu aumento, seja (o que me parece mais provável) por ter se enervado nos braços da ociosidade aquêle amor do trabalho e patriotismo, que prefere ao interêsse pr<'>prio o bem comum; aquela afoiteza dos primeiros descobridores, que sem mais aprestos que um ânimo superior a tôdas as fadigas, quase desprovidos de tudo, expostos à fome, às feras e às nações selvagens, entranharam-se por terras incógnitas.13 Os caminhos dos viajantes Os viajantes, que passavam por Goiás com seus olhares repletos de progressos europeus, conseguiam vislumbrar a decadência comum à opinião de todos, imagem gravada como se fosse a memória de um povo, como se fosse a realidade vivida por todos, e não corno o desejo do que não viam: a imagem do progresso invertida na janelc1- do tempo. 12 BERTRAN, Paulo. Desastres ambientais. Cí~ncia Hoje, v. 12, n. 70, p. 47, 1991. 13 SILVA e SOUZA, Luiz Antônio da. O descobrimento da capíta11:ía de Goyaz. Goiânia: Ed. UFG, 1967. p. 5. 42 Nasr Fayad Chaul Dentre os mais variados argumentos alegados para justificar a decadência, temos a precariedade das estradas, a falta de incentivos da coroa para colocar em funcionamento novos meios de comunicação e o constante ócio em que vivia o povo de Goiás. Este conjunto de ne- gativas criou uma imagem do estado que ficou gravada, por intermé- dio da cultura dos viajantes, como verdade inconteste por todo este Goiás afora. Em face da repetição dessa imagem pelos historiadores contemporâneos, Goiás passou a ter um perfil de terra da decadência, retrato de uma sociedade que parecia não possuir o mínimo básico para existir devido a sua inoperância, sua carência de tudo, sua solidão traduzida em isolamento, sua redoma de preguiça. Os relatos deixavam implícito que Goiás precisava de mão de obra produtiva, de trabalho livre, de substituição do ócio pelo negócio. Goiás carecia de povoamento, de gente para produzir, de capital e desenvolvi- mento. Goiás, portanto, era totalmente diferente da terra que povoava as ideias dos viajantes, e divergia ao extremo daqueles padrões europeus de modernidade e progresso, padrões esses que tinham presentes a ética protestante do capitalismo (ou seja, trabalho, parcimônia, ascetismo) e a superpopulação do século XIX. Era com esse olhar que os viajantes descreviam o estado. Eles não vislumbravam a outra face do espelho do século XIX ao olhar para Goiás, como bem ressaltou Foot Hardman:"o que parece prestes a ocorrer é a perda dos referenciais óticos na socieda- de moderna.Já não se sabe ao certo de que lado do espelho se está".14 As principais questões que insistem em permanecer ao longo do estudo do período são as seguintes: em que aspectos a sociedade agropecuária, visitada pelos viajantes e demais relatores, era diferente da sociedade mineradora? Seria possível tachar de decadente uma sociedade que nem chegara a atingir o padrão de modernidade/ 14 HARDMAN, Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 26. Caminhos de Goiás 43
  • 7. progresso dos europeus? Caso se aceite a tese da decadência, ela se deu em relação a quê? Como se produziu este conceito? Antes que pas- semos a refletir sobre tais questões, vejamos como os argumentos que conduziram à conclusão de enquadrar Goiás no rol das sociedades decadentes foram expostos pelos que viram e analisaram o período. A primeira questão presente nos vários escritos sobre a época refere-se ao problema dos caminhos, das estradas, enfim, das co- municações em Goiás. Deve-se observar aqui que os viajantes eram provenientes de sociedades em que a dinâmica das comunicações acabara de atingir o ápice de seu desenvolvimento e a rapidez dos transportes não conhecia similar. Assim, ao chegar ao sertão goiano, o seu olhar era o do "eterno Adão": [...] no caso de terras recém descobertas, lugares ainda sem nome, o sujeito, "eterno Adão", de fato não pertence a elas, mas caberia a ele dar nome ao que vê, dar a partida para a inscrição de tais locais no mundo dos brancos, dos mapas, do tempo histórico. Sua chegada marcaria a origem dessas ilhas aos olhos do Ocidente e sua mudança de um estado de "pura natureza" para uma corrida em direção ao que este viajante entendeu por "civilização", semente a ser lançada por ele nessa terra que crê, paradisíaca ou indiferente, ·em branco.15 A falta de estradas era, então, o argumento inicial para justificar a decadência. Sobre as dificeis comunicações na capitania, a história mostra o tortuoso trajeto de Goiás pelos caminhos bandeirantes, pela estrada oficial do ouro, desaguando nas necessidades de aprimorar a navegação e chegando às trilhas dos trilhos que poderiam,finalmente, transportar Goiás ao encontro de seu destino, teleologicamente tra- çado pela historiografia mais abundante: o desenvolvimen'to, fruto da modernização. 15 SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: C&. das Letras, 1990. p. 13. 44 Nasr Fayad Chaul Na fase aurífera, a precariedade das estradas era contornada com dinamismo e aventura pelos homens que "abrindo picadas per- mitiam a passagem das tropas de animais carregados, único meio de t " 16 E . ransporte . stes aventureiros procuravam vencer os obstáculos das comunicações por meio de um forte elemento estimulador, capaz de romper barreiras quase intransporúveis e de diminuir distâncias sem fim: o ouro, que, de Goiás, saía das minas e ganhava as Gerais. Proibições se fizeram no intuito de tornar a Estrada Real a única via de acesso consentida, como forma de inibir o contrabando do ouro. Em vão! A Estrada Real era uma rota oficial montada sobre uma pica- da aberta por volta de 1765 e que ligava Santa Cruz ao Rio dasVelhas. A impressão que se tem desse imenso trecho, conhecido em parte ou no todo, na primeira parte do séc. XIX por D'Alincourt, Saint-Hilaire e Castelnau, é apenas de intenso abandono, constantes perdas do traçado original. Saint-Hilaire entretanto relata por ali a passagem de boiadas do Mato Grnsso havendo o cuidado de envio de vanguardistas a queimarem antecipadamente as pastagens velhas na rota do rebanho, garantindo a brota de capim novo.17 Silva e Souza afirma que,após adescoberta dasminas porBartolomeu Bueno, soou ao longe a notícia desta grandeza, e a fama ainda lhe deu os acréscimos que costuma, correram das outras capitanias os homens e em menos de dois anos era imenso o povo que tinha ajuntado, revezavam-se as tropas de víveres e de fazendas e não bastavam. É verdade que podemos chamar a este tempo a idade do ouro em Goiás mas desde então começaram a evaporar-se as suas grandezas. O ouro fugiu do seu centro e não tornou, com a mesma facilidade com que se adquiria, se lhe dava 16 PALACÍN,Luís. Goiás (1722-1822)...,p.179. 17 BERTRAN, Paulo. Formação econ6mica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978. p. 26. Caminhos de Goiás 45
  • 8. consumo, e sem falar no luxo desregrado, que veio depois a consumar a decadência.18 Toda essa gente não encontrou falta de caminhos nem obstá- culos intransponíveis para chegar a Goiás no auge da mineração. As estradas que se lhe apresentavam não eram muito diferentes das que estava acostumada a percorrer por onde já houvera ouro. O clamor e a decepção com relação às estradas goianas só se intensificaram com o esgotamento do ouro, quando os aventureiros começaram a andar em direções inversas às que levavam a Goiás; ou seja, eles só reclama- ram das estradas goianas quando foram trilhar outras paragens. E, à medida que passava a febre do ouro, os acessos gerais a Goiás foram se tornando cada vez mais dificultosos. "Ao acabar-se o ouro, a inevitabilidade das distâncias devia impor-se com sua realidade brutal. As populações do interior fica- vam isoladas como náufragos sem possível retorno."19 Mesmo duran- te a fase áurea da mineração, "agia aqui a Lei das Distâncias. Embora o ouro seja a liquidez total como meio de troca, como produção era gravado pelo custo de transporte refletido no custo de comerciali- zação dos insumos necessários à mobilização de fatores de produção e consumo".2 º 18 SILVA e SOUZA, Luiz Antônio da. O descobrimento da capitania..., p. 12-13. Ainda de acordo com o autor, "no aluvião dos homens que concorreram ao descobrimento de Goiás, vieram pessoas de toda a qualidade, até estrangeiros, e entre êstes muitos sem costumes, cometeram horrorosos verbi causa: uma mulher paulista, que sufocou em uma toalha e sepultou nas suas lavras de Ouro Fino as duas filhas, só por serem vistas e louvada a sua 1 formosura, a mesma, frenética de zelos, matou o filhinho de uma escrava,julgando ser obra do marido, e lhe apresentou assado em um espeto a hora da comida". 19 PALACÍN,Luis. Goiás (1722-1822)..., p.179. f 20 BERTRAN, Paulo. Formação econ8mica..., p. 38. 1 Nasr Fayad Chaul Referências à distância entre as localidades eram comuns nos relatos de Saint-Hilaire, que percorreu boa parte do Brasil de 1816 até 1822. Em seu roteiro, ele explorou uma grande faixa do centro-sul do Brasil, interessado principalmente na flora brasileira, mas deixando im- portantes impressões de viagem sobre a sociedade em geral (mapa 1.2). Às vezes surpreso com as distâncias, chegava a afirmar: "as léguas nessa região são muito extensas, como sempre acontece em lugares pouco povoados, onde as pessoas estão acostumadas a per- correr grandes distâncias quando tem de fazer as menores coisas".21 Ao analisar o Arraial de Rio Claro, Saint-Hilaire generalizava dizendo que ele "encontrava-se em grande decadência e as tropas que por ali passavam não encontravam víveres para se reabastecerem". Se- gundo o autor, o cultivo da terra não interessava aos homens da região, que, "tão imprevidentes quanto os próprios índios, [...] em meio de tanta riqueza permaneciam sempre na miséria".22 De acordo com as vozes mais ressoantes na historiografia goia- na, ungido pelo isolamento, Goiás não tinha a menor possibilidade de uma integração nacional. Nos relatórios presidenciais, a pauta cons- tante era a busca do desenvolvimento das vias terrestres, fluviais e, futuramente, das férreas. O panorama da época (final do Império) apresentava uma insignificante extensão de estradas carroçáveis (3.245 km) - e que dirá no início do século XIX! Ainda assim, foram estas que atenderam às necessidades da província, apesar da carência de manutenção e reparo. 21 SAINT-HILAIRE,Auguste de. Viagem às nascentes ..., p. 32. (Parte dos dados apresentados sobre os viajantes teve por base o texto "Memória da ocupação e colonização de Goiás na primeira metade do século XIX: a visão dos via- jantes europeus", das professoras Dalísia Doles e Heliane Prudente, Ci~ncias Humanas em Revista - História, Goiânia, v. 3, n. 1/2, jan./dez. 1992). 22 SAINT-HILAIRE,Auguste de, op. cit., p. 81. C a m i n h o s d e G o i, á s 47
  • 9. As distâncias e as péssimas estradas continuariam por muito tempo como fortes justificativas para o isolamento da região, a solidão dos habitantes e a aparente decadência de Goiás. Tais vozes tendem a ganhar ressonância se ponderarmos que, segundo dados dos arqui- vos goianos, uma viagem do primeiro governador de Goiás (século XVIII) do Rio de Janeiro aVila Boa, passando por Minas, levou cerca de 85 dias. No relato em questão o cálculo levava em conta as boas condições climáticas; na subida das águas, época de chuvas fortes e constantes, a conta em dias ficava margeada pelas cheias dos rios e pelo surpreendente aumento das passagens dos córregos. Em seus escritos, Saint-Hilaire reclamava dos períodos de chu- va, que criavam obstáculos ainda maiores aos que iam e vinham, e da falta de atenção das autoridades para com a reconstrução das pontes, que acabavam ruindo devido à ação do tempo e das intempéries. Per- correndo os arredores deVila Boa, o naturalista observava: "as estradas jamais são reparadas e evidentemente tornam-se piores nas vizinhan- ças das cidades, onde o trânsito é maior. Mesmo nas estradas menos trafegadas, a inobservância com as condições é a mesma".23 Não foi exclusividade de Saint-Hilaire enfatizar as péssimas condições das estradas. Nos relatórios dos governos da província de Goiás, vários foram os que colocavam a questão como fator de im- portância crucial no rol das medidas a serem tomadas em relação à província. Em 1835,José Rodrigues Jardim observava que as Estradas da Província, sofríveis por decorrerem pela maior parte por terrenos planos, necessitao de alguns benefícios: ellas estiverao melhores quando os Fazendeiros erao forçados a concertar a parte que lhe ficava 23 SAINT-HILAIRE,Auguste de. Viagem às nascentes ..., p. 48. Nasr Fayad Chaul próxima, os habitantes dos Arraiaes a parte que a estes pertencia, e as. ca- maras o terreno que lhes era próprio, a isto todos hoje se negao.24 A situação parecia inalterada em 1837, quando o presidente da província, Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, acusava em seu relatório: "talvez seja a Província de Goyaz a única do Brasil, que nenhum me- lhoramento tenha recebido em suas Estradas; ellas se achao todas em péssimo estado, e causa espanto o perigo a que continuadamente esta exposto em suas jornadas".25 Como se vê, a precariedade das estradas era um forte argumento para atestar o estado de decadência em que se encontrava a província de Goyaz no século XIX. Uma vez isolada, alegava-se, a província não tinha ligações com a "cidade", com o mundo do trabalho e do capital, com o desenvolvimento e as relações de trabalho livre. Continuava, assim, longe, sertão sem fim, distante da prosperidade, afastada da luz e do progresso. Johann Emmanuel Pohl, naturalista austríaco, chegou ao Brasil em 1817, na posição de membro da expedição científica oriunda da corte de Viena e de integrante da comitiva nupcial de dona Leopol- dina. Sempre adoentado, o "sofrido dr. Pohl" percorreu quase todos os arraiais goianos (mapa 1.3) e observou que muitos caminhos se encontravam "trágicos", cheios de água. [...] os buracos cavados pelos aguaceiros dos dias anteriores e especial- mente pelo burro dos viajantes que nos precederam não tinham secado e nem poderiam por causa das cheias constantes, interrompidas apenas temporariamente, e o caminho esburacado aumentava naturalmente as dificuldades da marcha.26 24 Relatórios dos governos da província de Goiás (1835-1843). ln:MEMÓRIAS GOIANAS, 3. Goiânia: Ed. UCG, 1986. p. 29. 25 Ibidem, p. 82. 26 POHL,Johann Emmanuel. Viagem no interior do Brasil. São Paulo: Edusp, 1975.p. 144. Caminhos de Goiás 49
  • 10. Luiz D'Alincourt, militar português, transferido em . .. ..... . . O Rio de Janeiro, também visitou O estado de Goiás numa viagen1-A~::2ttfi:}',: Porto de Santos para Cuiabá (mapa 1.4). Sua viagem teve início em::~:.c./:.~ __ ,,22} 1818. Chegando à capital de Goiás, teceu considerações sobre a c~ridA-fJi[stI:j;~~{lf · ção das estradas com seus traçados imperfeitos, nun1a lógica impratiéáv:~10;?:s:::s:,~~~: dentro do processo de abertura das estradas goianas. D;Alincóurê tl~["?j2f} mava em pleno sertão de Goiás contra a falta do uso de técnicas apt~f~)~); priadas à abertura de estradas. Estava mais .distante do que nunca~:~ijff!~i motivações que imprimiram rumos aos .caminhos goianos: · figura 1.4 • Planta de ColásVelha, e.ritão Vllà. 1782, apresentando acidade tal q~al 50 Outro manancial de informações nos legou William John Burchell (mapas 1.5 e 1.8), naturalista e desenhista inglês.Aportou no ··· Brasil em agosto de ·1827, produzindo vários desenhos da sociedade e das paisagens que viu e captou. Foram 22 desenhos da cidade de ._...Góiª~' além de outrós.34 que retrataram a região entre esta cidade e '>·"'--<~elétn do !?ar~; .:~-~ ;;-~:,": · ...,___ : ·'L:~---'-'-~ _--- De acordo co~~p~;1~:P.Ql~~ rl1~~~e Prudente, - -.é;_-,a~~~;ês dbs-_d~~e_ril1<:>!i'feitos p~r Bu;cheri tp~ssível visualizar todas as difi- culdades que os _yiajantes.encontraram durante as suas jornadas no interior do.Brasil. É senip!~ ~o_m l~Inbrar que as viagens, então, eram feitas alombo - - d~ besta, por c.arofnhps..9.Pi~e sempr~ t5>rtuosos, debaixo de chuva e sol e - -:_: :_estes naturalistas. ainda achavàrn tempo para col~tar plantas, anímais, dese- nhar, escrever s~us diários /notas científicas em pousos que, na melhor das hipóteses, eram coberturas abertas aos ventos de todos os lados.27 George Gardner, naturalista escocês, também viajou pelo Brasil (mapa 1.6). Chegando ao país em 1836, percorreu aldeias, arraiais e yilas goianas, retratando-os como uma região desértica e de penúria. Gardner também sofreu sérios percalços em sua viagem d~vido ao estado deplorável dos caminhos. Ele relata que ao descer a Semtió Duro estan- do o rio Tocantins muito cheio, era impossível faz~,;.,qs êi~alQt,atravessá- . .. -lo com suas cargas; e·como. â canoa usada para tra.rJportar p~ssageiros e - b~gagens tinh~ sido levada pelas enchentes da estaçãq.fi~da',' e~a·necessá- -rió levar tudo para o qutro .lªgq_<,iº rio na cabeça d~.4-imi~n.~• ~m t.oda~ ' . . as localidades pe,:çorridas por Gardner, o quadro desc;itto é, o d~ m,iséria, •~·.-- ;b;~d9h~;iridôlêri._Jia.28. , : ·:? " "· ·;, · ' ;~i;;~ff*~~:JL~J%i~~:>:~: ·.. ;. "-,~~Di.-~J:,;,/:0:~Ii:; f'.t,~~ftlg~;!~;~;t-~l!12ii~!f~;~;oo 28 Ibidem, p. 9L '",· : )~*~Yili~i;1tt?;'.: .. ·. . l'-:·r~F:<·
  • 11. O que é realmente impressionante ao obsérvarmos as visões dos viajantes é que, nesses relatos, o olhar que habitualmente se deseja imparcial, desapai- xonado, à espera do que vir, do cientista e mesmo do viajante comum, se converte, desde o início das expedições, em observação interessada, com itinerário, objetivos e modos-de-ver sabidos de cor. Antes mesmo de se chegar ao destino, antes de se iniciarem as caçadas, a coleta do material, os contatos possíveis com tribos indígenas, o levantamento hidrográfico, as picadas mato a dentro, os chefes da expedição parecem ter bem clara a definição de uma passagem útil e dos objetos e espé- cimes a serem colecionados e registrados nas pranchas dos desenhistas itinerantes.29 Por fim, temos o relato de Francis Castelnau, naturalista francês que percorreu Goiás em 1843 e cujos reclames contra as pontes e estradas não diferiram em nada dos apresentados pelos já citados via- jantes. Penetrando em Goiás pelo Triângulo Mineiro, Castelnau nos mostrava os caminhos precários da província (mapa 1.7): Entramos assim na grande mata que precede Goiás, e de que, sob o nome de Mato Grosso, ouvíamos falar, como sendo impraticável pelo mau estado dos caminhos, coisa de que pudemos ter uma idéia apro- ximada durante a noite. Tudo tinha conspirado contra nós. Com efeito sob torrenciais aguaceiros, numa floresta mais sombria que o forno mais escuro, e num chão esburacado onde os carros haviam cavado fundas tri- lhas, só clarão dos relâmpagos nos permitia ir para a frente, sem tropeçar em cada passada.30 29 SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui, p. 114. 3 ° CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América qp Sul. São Paulo: Nacional, 1941. t. 1, p. 240. 52 Nasr Fayad Chaul CORRKIÇÃO DE VILA IOA CORREIÇÃO DO NORT& ESTRADA DO NORTE ESTRADA DO NASCENTE ESTRADA DO SUL mapa 1.1 - Capitania de Goyaz: vila, arraiais do ouro, caminhos Fonte: PALACÍN, Luiz et ai. História de Goiós em documentos. Goiânia: Ed. UFG, 1995. p.44. Caminhos de Goiás 53
  • 12. mapa ,.2 - Viagem de Fonte: DOLES, Dalísia ocupação..., p. 76. 54 55
  • 13. mapa 1.4 - Viagem de D'Alincourt Fonte: DOLES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da ocupação..., p. 81. $ Nasr Fayad Chaul mapa 1.5 - Viagem de Burchell Fonte: DOLES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da ocupação..., p. 82. Caminhos de Goiás 57
  • 14. mapa 1.6 - Viagem de Gardner Fonte: DOLES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da ocupação..., p. 84. ' 58 agem de Castelnau ES, Dalísia Elisabeth Martins; NUNES, Heliane Prudente. Memória da ... --•~cu0ac:ao.... p. 84, -de Collls 59
  • 15. mapa 1.8 - Caminho percorrido por Burchell, de Goiás Velha a Belém do Pará. O mapa, executado por Eduardo Canabrava Barreiros; é aqui apresentado em duas partes. Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do Primeiro Reinado ~isto pelo botânico William John Burche/1 (1825-1829). Rio de janeiro: Fundação joão Moreira Salles: Fundação Nacional Pró-Memória, 1981. p. 140. 60 Nasr Fayad Chaul Como se pode ver, para estes europeus acostumados a sociedades em processo de industrialização, com fábricas em pleno vapor e mundos se interligando através de meios de comunicação mais desenvolvidos, o interior de Goiás - com seus buracos que abrigavam águas das chu- vas, com suas intransitáveis estradas para lugar nenhum - não poderia causar outra sensação senão a de atraso provocado pela decadência das minas. Chegavam à terra imaginando um Goiás em esplendor devido à mineração, atividade que atrelara a região à cadeia da produção ca- pitalista, mas se deparavam com uma província onde a crise imperava em seus múltiplos aspectos. Os olhares destes viajantes conseguiam ver apenas um deserto de homens, sem comércio e sem perspectivas, com estradas fantasmas e ócio correndo nas veias do povo mestiço, algo longe por demais dos exemplos e do labor anglo-saxões. Não se perguntavam sobre as razões econômicas e sociais dessa situação, nem sobre o lugar desse pedaço do "novo mundo" no mercado capitalista. A representação das estradas nos dá a tônica do conjunto vis- lumbrado pelos viajantes. Sem estradas, não poderia haver comuni- cação. Imperava o isolamento. As distâncias mantinham a solidão do lugar. Sem estradas, nada era pensável, nenhuma ligação possível entre o "campo" e a "cidade". Por isso, a ausência de estradas, ou as suas lamentáveis condições, fazia parte de todos os discursos e clamores da época, desde os dos viajantes até os dos historiadores contemporâneos que analisaram a província de Goiás. Os historiadores contemporâneos que estudaram o período mantiveram a visão dos viajantes sobre a debilidade das comunica- ções, procurando demonstrar as suas consequências para o parco de- senvolvimento da agricultura e do comércio. Infrutíferas tentativas de reabilitação foram feitas, mas o custo que isto traria para o governo português e o seu descaso para com uma sociedade que, nem no auge da mineração, representou para a coroa outro interesse que não a ex- ploração do ouro, deixaram Goiás à margem das atenções reais. Caminhos de Goiás 61
  • 16. Os administradores da época tentaram sensibilizar o governo para . as potencialidades da navegação~ Estudos e análises foram feitos e, poste- riormente, revisitados pelos historiadores e pesquisadores das causas que impossibilitaram a navegação de expandir-se através dos Rios Araguaia e Tocantins. Nota-se, desde essa época, que a navegação era uma ideia fixa dos administradores de Goiás, o que ajuda a compreender a relutância pos:_ terior dos grupos políticos em aceitar plenamente os projetos ferroviárioi Governadores de província e viajantes sempre chamaram a atenção das autoridades para o potencial das vias fluviais em Goiás. Pohl já destacara a importância das rotas de navegação numa possível ligação entre Goiás e Pará, através do Rio Maranhão. Todos pediam maiores investimentos para o desenvolvimento das vias fluviais, enten- dendo que estas podiam proporcionar a Goiás uma dinâmica comer- cial coerente com suas possibilidades econômicas. Os apelos, os zelos, as observações e as análises, por vezes com detalhes de traçados entre estradas e cachoeiras, foram em vão. N e- nhuma beira de rio, nenhuma praia de beleza secular, nenhuma rota promissora eram capazes de sensibilizar a coroa para a realização de maiores investimentos na navegação de Goiás. Ao que tudo indica, as 732 léguas de navegação do Araguaia, as cachoeiras do Tocantins, os índios inimigos, os tempos de navegação - uma canoa de sal levava dois meses e meio ou três desde Belém a São Pedro de Alcântara no Maranhão -, os altos salários dos remadores - 50 oitavas por viagem - fizeram o resto [...] a navegação foi definhando até quase extinguir-se. Depois desses esforços de recuperação, a Capitania caía de novo, e mais profundamente que nunca, em seu ritmo letárgico..31 A esse respeito, Dalísia Doles concluiu que,..apesar dos .,......,,,.." grandiosos[...), o sonho de Couto Magalhães e outros, 31 PALACÍN, Luis. Goiás (1722-1822)...,p. 185. 62 a integração do sul da província ao comércio litorâneo através do Araguaia e Tocantins, não se realizou".32 --=-~'/: Ilhado por terra e por água, Goiás reforçava a visão dos que --~--;,, ;~'?iÚ,:: -p~oçlamavam a decadência do lugar. Mas, além das intransitáveis estra- ·>:'4iie da on,erosa..nav,egação, outros argumentos eram adicionados ao #m~hsÓ caÍdéir~~:'..df'.r;i~~es 4sad.:ispara justificar as crises da província :~R~fisé-~groe~tGi~~~-{i?e. s{~sboç~va com o esgotamento do ouro. ;t-~:.Qs:_viajantes, aütºridãdes e ·estudiosos reclamavam contra o ócio do "·'·-'·•_ .// p~vÓ, refletido n~ -preguiça da gente do sertão de Goiás, e contra a ~~f-~f" carência de capital e mão de obra, elementos indispensáveis para se elevar a produção agrícola e comercial da região. Era de difícil com- preensão uma terra de tamanho potencial ser envolvida, em todos os seus aspectos, pelo ócio e pelo marasmo de seu povo. Em 1835, o presidente da província, em um relatório, afirmava: hum terreno fértil e productor, que na maior parte da Província retribue ao Lavrador dusentos por hum, tem estado quasi em perfeito descanço: a Lavoura verdadeira base da riquesa de hum Paiz tem a tempos a esta parte descaído em Goyaz, afalta de exportaçao, e de consumo ao supérfluo tem afrouxado osbraços, que neste honroso exercício se empregavao: o ocío, e a falta de P9,licia e111 .hum Paiz, onde se pode viver sem traballiar tem ' t~mb~lll.çqriçfar'ia~,.Pfil"~·ª diminuiçao d~ abundancia, que nelle se dis- ; ,}r~cjt~yà)tífrtµJdiJ;'.,~a: ~êi:ra he a mesma: ~ producçao, do presente anno /!~~. fom.e.:seJé~eiri g◊H~1.eJrez de faltas, não he a P;áví~cia de Goyaz .•· sujeita a•e'sçe·damno,'por quanto a hum anno de·extr~mada fome, seguio ··,rij1t,hJ.11R,i;i<Ê,:.PJQ~gi9s,~.,al>ifp_g~11çia, não sendo para iss9 preciso mais do ~::,.~,.!.•,.,.'·,;:~--~~;~,~.'~?~;,.-•·-· ·.:·_-:>--~:~':-:}''.:'?;"-'.'=~.. -~-'•":. ,;-,,·, ~)-•• ..,. ·-· .,.. . ,.,_•,.,.::· ·- .. ue · ·' lica 'ao cio'(Lavradores, excitada pela cares_tia do passado.33 .,,., • ••· , >, • • /}B'.~:~~§f;R#fü~~:~µ~~*lt~(~~artiiG/~: comunic;ções fluviais pelo. Tocantins e c:~';ftraguaiaJnti~s~cúfo X1X: Go1an1a: Oriente, 1973. p. 145. , ,-:~~l~tóri~- do'~r~si~ente·.da província, José Rodrigues Jardim, à Assembléia tegidatiYade Goyàz-em 1835. ln_: MEMÓRIAS GOIANAS, 3, p. 33. ' ·~· ~ - ···(n':,b'.{f ~;;e ol·á s ·.jitt~~~i1~:.t;:~::.
  • 17. Aqui, fica claro o atestado de decadência de Goiás, um lugar que, tendo sido desenvolvido, caíra no completo marasmo, devido ao declínio do ouro. Num relato anônimo do início do século XIX, o autor, após relevar a fertilidade das terras goianas e os frutos nelas produzidos, centrava sua atenção na carência de mão de obra, observando: [...] descontadas as pessoas inúteis pela idade e moléstias, restam poucas que possam prestar trabalhos lucrosos, muito principalmente entregando grande parte destas ao ócio inevitável no estado atual pelo asilo que lhes ofereceu os despovoados sertões, que dividem as capitanias confinantes, iludindo-se assim as mais ativas providências das autoridades públicas, vindo por conse- qüência a ser esta a principal e imediata causa da decadência observada. 34 Para Saint-Hilaire, eraincompreensível uma região de tamanhas potencialidades não se desenvolver.Após tecer um rosário de receitas do que poderia ser feito para tal, exausto, afirmava:"simples conselhos, exor- tações, talvez mesmo alguns bons exemplos, não serão nunca suficien- tes para arrancar os lavradores goianos à profunda apatia em que estão imersos".35 Quando Saint-Hilaire vê a apatia (o campo), gostaria de estar vendo o trabalho, o progresso, o capital (a cidade), enfim, o conjunto de razões que lhe explicava o sentido da existência de uma sociedade. Pohl também gostaria de ver em Goiás a negação do ócio, o ne- gócio, a prosperidade e o trabalho em prol do capital e do comércio. Estudando a relação sociocultural entre brancos e negros, por exem- plo, concluiu, a certa altura:"o ócio é a máxima felicidade dessa gente. O próprio soldado raso que tem de levar uma carta da Real Fazenda ao Palácio do Governo, apenas a duzentos passos de distfncia, não a 34 Breve reflexão sobre o meio eficaz de se remediar a decadência da capitania de Goiaz. Revista do Instituto Hist6rico Brasileiro, t. 44, p. 399-402. f 35 SAINT-HILAIRE,Auguste de. Viagem às nascentes..., p. 322-330. Nasr Fayad Chaul leva ele próprio. Manda-a por um negro escravo e a toma à soleira do edifício".36 Para esses olhares, não havia outra alternativa de vida social senão dentro dos padrões capitalistas europeus. Pohl presenciou a miséria goiana de perto. Impressionou-se com o fato de que, devido à falta de trajes adequados, uma parcela da população assistia à missa às cinco horas da manhã, a chamada missa da madrugada, rezada especificamente para os pobres. Textualizava o "sofrido doutor": "Nela aparecem principalmente as mulheres bran- cas, empobrecidas, envoltas num manto de má qualidade, para não se exporem aos olhares desdenhosos das negras que aparecem mais tarde e entram altivamente ornadas de correntes de ouro e rendas [...]".37 O austríaco procurava compreender o caráter social e a cultura local, chegando mais perto do detalhainento cultural da vida do povo goiano: estes homens, apesar de necessitados, trabalham somente a seu bel-prazer. Enquanto têm uns vinténs no bolso, não mexem com as mãos. Conheci alguns .desses elementos que tiravam a roupa suja e ficavam debaixo de uma árvore até que a negra a lavasse e secasse ao sol; então tornavam a vesti-la e entregavam-se à ociosidade, sem se animarem a trabalhar para melhorar a sua sorte.38 Pelos dizeres de Pohl, a sociedade da época tinha algumas se- melhanças com as comunidades indígenas locais em hábitos e cultura. Seria o caso de se indagar se o referencial sociocultural, com o fim da mineração, não deixara de ser europeu para se tornar cada vez mais indígena nessa sociedade que se sedentarizou nos campos da província de Goiás. Se isso se confirmar, teremos então um outro prisma para compreender aquela sociedade: os seus marcos culturais. 36 POHL,Johann Emmanuel. Viagem no interior do Brasil, p. 326-335. 37 Ibidem, p. 326-335. 38 Ibidem. Caminhos de Goiás
  • 18. A questão racial também fazia parte das representações usadas para explicar a decadência de Goiás. "Nesse como em outros casos, a mestiçagem existente no Brasil não s6 era descrita como adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possível invia- bilidade da nação."39 Goiás possuía, à época dos viajantes, cerca de 4% de brancos no norte e 14% no sul - o restante da população era praticamente composto de mestiços. Juntamente com as questões envolvendo o progresso, a prospe- ridade e o capital, rondava as mentes europeias dos viajantes a tese do trabalho livre, do homem branco, anglo-saxão, oriundo da cidade, do brilho e da luz. O Brasil e Goiás viviam em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país; as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justi- ficação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à substituição da mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania.40 O tipo de vida local, o abandono de um futuro que Pohl via prós- pero e a ociosidade diante de um quadro onde tudo estava por se fazer enervavam o doutor, levando-o a deduzir: "o pendor para a ociosidade sempre foi e permanece igual em ambos os sexos".41 A inércia era, aos poucos, explicada pela pobreza da economia e vice-versa. Os habitantes não sabiam contornar as conjunturas que aprofundavam as crises ad- vindas da mineração e, na visão principalmente dos viajante~, adotavam 39 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p. 13. 40 Ibidem, p. 18. 41 Ibidem, p. 18. f l 66 Nasr Fayad Chaul uma atitude de indolência, conformismo, tédio e ócio. Os viajantes, po- rém, não tinham uma visão ampla do contexto geral da sociedade e da economia de Goiás. Muito menos da cultura local. Seus olhares estavam condicionados a enxergar progresso, desenvolvimento capitalista e lucro, coisas para as quais a província de Goiás não estava preparada, por falta de condições de realização ou por um livre culto ao cotidiano de seus dias, que, soando iguais, mais pareciam "avarezas de Deus". D'Alincourt era um dos que acreditavam firmemente que a razão da pobreza e do isolamento estava na inércia e na total incapacidade da sociedade goiana para encontrar práticas econômicas viáveis com o fim da mineração. Os goianinhos, dizia,"são pouco industriosos não por fal- ta de gênio, mas dominados pela preguiça, e demasiadamente entregues aos prazeres sexuais e bem diferentes são as causas que os têm condu- zido a tão deplorável estado".42 Ao destacar o lado sexual, D'Alincourt reforça a ideia do povo que age pelo instinto, pela irracionalidade. O contraponto, o racional, não existia, pois, caso contrário, o povo estaria voltado para o lucro e para o comércio, distantes dos prazeres do "irra- cional".A racionalidade presente na civilização europeia inexistia nesse pedaço do "novo mundo". A figura 1.5 mostra uma visão estranha e generalizada sobre os habitantes de Goiás, imagem que sobressaía não apenas nos relatos dos estrangeiros, mas também em suas obras plásticas.. Por sua vez, Gardner sentia-se incomodado com o indecifrável mistério da sobrevivência na região. O autor dizia que "todos queixa- vam da carência de provisões e falta de dinheiro, mas nenhuma palavra se dizia da indolência e ociosidade, causas, sem dúvida, da fome então reinante". E arrematava: "é ainda para mim mistério como consegue viver a grande massa dos habitantes".43 A miséria, portanto, era oriunda 42 D'ALINCOURT, Luiz. Mem6ria sobre a viagem do Porto de Santos à cidade de Cuíabá. São Paulo: Edusp, 1975. p. 97. 43 GARDNER, George, Viagem ao interior do Brasil.São Paulo:Edusp, 1975.p. 152-168. Caminhos de Goiás
  • 19. do não trabalho, do não capital, do ócio - e as ausências se relacionavam ao mundo da treva, a luz estava distante desse lugar. Os olhos de Gard- ner viam Goiás na penumbra. Em suma, o conceito que os viajantes produziram sobre Goiás, baseados em suas impressões e observações de viagem, foi o da deca- dência.Temos em Cunha Mattos o resumo das carências goianas: Falta um poderoso braço, que tire o povo da apatia em que se conserva; falta restabelecer e restaurar a boa fé nos comerciantes; falta obrigar os homens ao trabalho da agricultura; falta compeli-los a empregarem-se na navegação; falta dar nova vida às construções de grandes barcas [...) falta consertar e desobstruir as estradas e abrir outras [...] falta reformar as pontes agora arruinadas e as que antigamente existiam; falta dar prêmios aos maiores exportadores e tirar todos os embaraços aos importadores; falta abolir o direito do quinto; acabar com as alf'andegas ou registros internos; repelir os índios ferozes [...) em conclusão, falta quase tudo para dar algum vigor ao comércio da comarca de Goiás;mas os elementos existem na Província; nada carece de fora dela; nada é impossível, urna vez que possível for ressuscitar ou criar algum patriotismo no coração dos governantes e governados.44 Mas é oVisconde deTaunay, em fins do século XIX (1876), que vê Goiás de uma perspectiva menos europeia, ou seja, mais regional, mais nacional: Goiás não tem população para bem povoar uma zona sequer de seu imen- so território; não tem hábitos de trabalho constante, pois não vê a retribui- ção imediata do labor; não sente em si a evolução do progresso; vive vida lânguida e desanimada e, prostrado sobre minas riquíssimas de ouro, não possui um real de seu[...) vai nisso uma increpação, uma censura, um quei- xume? Não, até certo ponto. Ninguém pode ser culpado das ,desvantagens topográficas com que luta a Província; ninguém pode de chofre remediá- 44 MATTOS, Cunha. Chorographia histórica da província de Goás. Revista do Instituto Hist6rico do Brasil, Rio de Janeiro, t. 37, parte 1, p. 278-281, 1874. 68 Nasr Fayad Chaul -las. Ela tem irremessivelmente que esperar que as irmãs que a cercam ga- nhem forças e progridam, a fim de receber a influição externa e, cobrando robustez, concorrer também para o engrandecimento da pátria comum.45 A ideia de progresso também aí se fazia presente, e o futuro de Goiás dependia, na opinião do Visconde, de outras órfãs do mesmo Brasil. Goiás necessitava, assim, do outro, do vizinho, do despertar do Brasil rumo ao estado. Por si só não era possível desenvolver-se, pois a topografia, a economia e outros fatores não abriam as portas da pro- víncia para o progresso. Aquele presente não conduziria, então, ao fu- turo desejado. O "próprio" só era visto pelo "outro", que o descreveu mais do que o interpretou. Em síntese, suscitava-se, por intermédio dos relatos citados, uma ideia de isolamento, de amargura, de tristeza atávica, de letargia social, de marasmo econômico, de dias irreme- diavelmente iguais. Criava-se uma imagem de solidão, que tinha no sertão o cenário ideal, a expressão mais exata, o preço mais caro. Esta imagem de Goiás-sertão, deixada pelos viajantes, marcou demais os olhares europeus. Este campo típico do cerrado, este de- serto de homens e perspectivas, criaram uma forma de representação espacial tão rígida que os estudiosos da história de Goiás quase não saíram do enorme labirinto de ideias que envolvia o sertão goiano do período pós-mineratório. Oscar Leal, por exemplo, legou-nos uma reflexão própria sobre a índole do povo goiano - visto por ele como sertanejo - que nos dá a ideia de um lento caminhar do tempo em Goiás, na época imperial. Dizia o escritor lusitano: Ah, meu caro leitor, se tendes percorrido os nossos sertões, os lugares onde a vida é fácil por causa da caça e da pesca, deveis saber que essa gente caminha para o entorpecimento,para o túmulo.Esta gente não fala - boceja, 45 MATOS, Odilon Nogueira de. Visconde de Taunay: considerações sobre Goiás. Notícia Biblíogrijica e Hist6rica, Campinas: Departamento de História da Unicamp, p. 250-251,1991. Caminhos de Goiás 69
  • 20. não anda - arrasta-se, não vive - vegeta. Para ela não há ambição, nem luxo, nem dinheiro, nem conforto: não há nada. e que c:orra a vida como o barco à mercê da corrente [...] Palavras que lhes dirijamos no sentido de os guiar por melhor caminho são pérolas que deitamos aos porcos.46 O sertão constitui um tema que, por si só, daria uma disserta- ção, e exatamente devido a sua riqueza e atualidade, não achamos que este seja o lugar mais adequado para o aprofundamento desta análise. Pode-se dizer, no entanto, que o sertão está dentro de Goiás, que é difícil imaginar o território goiano do período pós-mineratório sem as imagens sequenciais de hectares infinitos de terras desabitadas, de lugares ermos, de aridez e abandono. O sertão está para o goiano como o deserto para o árabe e as florestas para os britânicos. Ele está presente também, e de forma peculiar, na observação de Le Goff so- bre outras sociedades quando afirma que "a história do deserto aqui e além, agora e logo, foi sempre feita de realidades espirituais e materiais misturadas entre si, um vaivém constante entre o geográfico e o sim- bólico, o imaginário e o econômico, o social e o ideológico". 47 Para Selma Sena, antropóloga que aborda a temática, "o ser- tão é, simultaneamente, singular e plural, é um e é muitos, é geral e específico, é um lugar e um tempo, um modo de ser e um modo de viver, é o passado sempre presente, o fim do tempo, o que não está nunca onde está".48 Os viajantes não conseguiam compreender esta multiplicidade de imagens específicas de Goiás. Registraram a adversidade do meio e a incapacidade do homem de enfrentá-la. 46 LEAL, Oscar. Viagem às terras goyanas: Brasil Central. Goiânia: Ed. UFG, 1980. p. 26. (Coleção Documentos Goianos, 4). 47 LE GOFF, Jacques. O deserto: floresta no Ocidente medieval. ln: _. O maravilhoso e o quotidiano no Oddente medieval. Lisboa: Ed. 70, 1983. p. 46. 48 SENA, Custódia Selma. A categoria sertão: um exercício de ~maginação antropológica. Brasília: Ed. UnB, 1986. Mimeografado. 70 Nasr Fayad Chaul Traduziram este conjunto com a imagem da decadência - uma face inversa ao brilho do ouro que esperavam encontrar. A realidade do sertão e suas representações locais não foram captadas por eles. Como bem observou Denise Maldi, a percepção do que é sertão se expressa amplamente, de forma dicotô- mica, na oposição litoral/sertão [um sucedâneo do par cidade-campo]. Tal representação parece ter sido forjada dentro das transformações do advento da República no Brasil, que implicaram numa profunda reorga- nização do espaço urbano, geográfico e político. A unificação política e a formação de um Estado moderno tiveram como bandeira ideológica a integração, na busca de uma identidade nacional.49 É esta a imagem de sertão gravada na literatura e na história de Goiás, nos romances e nos causas passados entre as gerações. Para a antropóloga CandiceVidal, porém, é inviável pensar a concepção de alteridades plenas para o caso brasileiro. Afinal, sertão e litoral são regiões espacialmente contíguas, apenas con- sideradas como fragmentos de um mesmo território nacional. Ambas as partes são habitadas por nacionais, o pertencimento à mesma brasilidade os unifica. [...] Inexistem diferenças essenciais capazes de fundamentar diferenças totais: a distinção relatada na sociografia é, por princípio, pro- visória e deve ser dispersada. Se não o fosse como pensar no futuro de integração do Brasil todo pela nacionalização?5º Compreendidos assim, sertão e litoral são partes de um todo: o Brasil. Desta forma, ganha coerência a ideia de que 49 MALDI, Denise. Pantanais, planícies, sertões: uma reflexão antropológica sobre espaços brasileiros. Cuiabá: UFMT, 1994. p. 15. Mimeografado. 50 VIDAL, Candice. A pátria geogrófica: as representações de sertão e litoral e a construção da Nação no pensamento social brasileiro. 1996. Dissertação (Mestrado) - Universidade Nacional de Brasília, Brasília, 1996. p. 133. Caminhos de Goiás 71
  • 21. o ponto zero do Brasil não é, portanto, a chegada das caravelas portu- guesas. Este é apenas o marco factual de aposs~ento da colônia lusa na terra dos papagaios. O evento fundante do Brasil-jé-nação é o abandono da costa rumo ao deserto das terras interiores. O português se contenta em navegar por águas e estanca no litoral a sua vontade de conquista e movimento. O brasileiro navega em mares de sertão. 51 Ou seja, uma enorme ponte passa pelo sertão com a finalida- de básica de servir aos ideólogos nacionalistas que ligarão Rondon a Vargas na Marcha para o Oeste, em busca da modernidade. O Brasil, diante de seus domínios territoriais, torna-se o "império de si mes- mo", e o sertão "tranqüiliza o expansionismo externo porque para ele apontam as ações de civilização e 'pilhagem' que dariam sentido à virilidade de um povo. Para o pensamento social é sorte nossa dispor- mos de eldorado tão próximo e de propriedade garantida".52 Por fim, no referencial de nosso imaginário, mesclam-se as con- cepções de colônia e metrópole, confundindo, por vezes, nossa ideia geográfica, uma vez que ambas fazem parte da nação brasileira. O vazio perturbador da dimensão territorial brasileira continua a se operar pela crença de que sua motivação - o sertão - não se acaba de verdade. Quando finge deixar de ser logo reaparece como a relembrar da marcha por recomeçar.Assim se conta como é o Brasil entre os nossos inventores intelectuais: semelhante a outras nações continente em seus quilômetros quadrados, mas único a possuir uma vastidão inter- minável. Sertão se procura sempre, não se amansa nunca.53 Assim, a construção da modernidade em Goiás, nos anos 30, será também a reconstrução do sertão, a necessidade de il}tegrá-lo 51 VIDAL, Candice. A pátria geográfica ..., p. 135. 52 Ibidem,p. 136. 53 Ibidem, p. 136. 72 f l Nasr Fayad Chaul nacionalmente, de pôr um fim à decadência e ao atraso. Erguer a cidade (Goiânia) dentro do campo (Goiás) é a tarefa dessa década. "Nesse sentido, é paradoxal que o discurso político integracionista e nacionalista utilize o rumo ao sertão como bandeira [...]."54 Como bem observou Foot Hardman, a combinação entre imaginação romântica, espírito empreendedor e especulação financeira produziu um tipo característico de capitalista, que [...] desenhou um mundo homogêneo e unificado de forma mais ampla e sólida do que os navegantes do Renascimento. Tais homens pensavam em termos de continentes e oceanos. Para eles, o mundo era uma única coisa, interligado por trilhos de ferro e máquinas a vapor, pois seus horizontes comerciais eram como seus sonhos sobre o mundo. Para tais homens, destino, história e lucro eram uma e a mesma coisa.55 O pequeno número de estradas e sua precariedade isola- vam Goiás, a carência das comunicações isolava o comércio (Pohl), e a incapacidade do povo em se superar igualmente o isolava (D'Alincourt). As casas abandonadas nos arraiais, para onde o povo ia apenas por ocasião das festas religiosas (Saint-Hilaire), eram o retrato do sertão de Goiás, rural e sem produção agrícola, rico em ouro e pobre em alimentos, carente de tudo e sem forças para sàir do marasmo (Cunha Mattos e Taunay). Reino do ócio e da pregui- ça, terra em que se plantando tudo dá, mas sem braços ou interesses capazes de justificá-la, natureza pródiga, mas sem o necessário ele- mento humano capaz de elevá-la. Da parte dos produtores do saber científico, como costumam dizer os sociólogos, a questão da decadência esbanjou interpreta- ções. Tendo como fonte a documentação básica existente, ou seja, os relatórios dos presidentes de província, os arquivos cartoriais e 54 MALDI, Denise. Pantanais, plan{des, sertões...,p. 19. 55 HARDMAN,Foot. Tremfantasma...,p.119-120. Caminhos de Goiás 73
  • 22. paroqma1s, as observações dos v1aJantes e outras fontes esparsas, a produção historiográfica contribuiu para reforçar a ideia de uma so- ciedade do ouro repleta de esplendor, fausto eriqueza, em oposição à posterior, a da agropecuária, senhora de todas as mazelas, exemplo da decadência de uma província chamada Goiás. figura 1.5 - Habitantes de Goiás. Como se vê, da prancha de Rugendas, surgiu lima visão dos habitantes de Goiás em que estes eram descritos com características um tanto estranhas e generalizadas. Talvez pelo fato de Rugendas nunca haver estado em Goiás. f l 74 Nasr Fayad Chaul Quem te vê... Os historiadores na trilha dos viajantes Após os viajantes europeus e governadores de província, e ou- tros, terem sedimentado a ideia de decadência nas análises sobre Goiás no período pós-mineratório, outros estudiosos, muitos deles historia- dores, com base naquelas análises, reproduziram a referida conceituali- zação, dando-lhe roupagens teóricas e metodológicas atualizadas, sem escapar, no entanto, da questão básica da decadência. Fundamentando-se em pesquisas desenvolvidas na região, a his- toriografia goiana produziu algumas obras que se tornaram leitura obrigatória para aqueles que se iniciavam na história de Goiás. Do conjunto dessas produções, temos alguns estudos sobre a colonização de Goiás e a época do ouro, bem como sobre a decadência da provín- cia. Cabe indicar os exemplos mais significativos dentro dos temas de que estamos tratando, principalmente, no tocante à questão da deca- dência da sociedade mineradora. Luis Palacín, à semelhança de Pohl, tratou a questão da deca- dência numa perspectiva relativista, própria dos que desconfiam das verdades taxativas. Em seu Goiás (1722-1822), afirma: de forma alguma podemos representar a decadência de Goiás como uma transição brusca de uma situação brilhante de prosperidade para uma ruína opaca. Pohl, que mal tolerava as contínuas lamúrias dos habitantes de Goiás sobre a tristeza de sua situação presente e os desmedidos exage- ros sobre a riqueza dos tempos idos, chega a assegurar que não acreditava nem na pintura da grandeza passada, nem no conceito de decadência; para ele, as diferenças, meramente quantitativas, não constituíam um mar- co diferenciativo.56 56 PALACÍN,Luis,op.cit.,p.195. Caminhos de Goiás 75
  • 23. Retomando as observações dos viajantes europeus parajustificar sua análise da decadência de Goiás, Palacín considera que, com o fim da mineração, houve um processo de ruralização no estado. A popula- ção, antes urbana, passou a concentrar-se nos campos, deixando as an- tigas povoações numa situação de penúria - com destaque para o norte de Goiás, que, segundo o autor, levou mais de século para recuperar-se. Na conclusão analítica, embora coloque ênfase na colonização e na escravidão - o que representa uma novidade -, termina por incorpo- rar a visão expressa nos relatos daqueles viajantes sobre as causas primei- ras da decadência da sociedade goiana da época: o ócio. Em sua visão, o mal mais profundo da decadência, e que está na raiz de todos os outros, é o desprezo pelo trabalho, o gosto da ociosidade. Nem se pode dizer que fosse uma doença privativa de Goiás, nem causada pela decadência da mi- neração, é um mal constitutivo da colonização do Brasil, alimentado pela instituição da escravatura. Mas nas minas, a decadência, se não criou, pôs em evidência todo seu poder dissolvente. Todas as análises da decadência em Minas assinalam o desprezo pelo trabalho como a principal causa.57 Segundo Palacín, o trabalho em Goiás, por tradição, era uma das formas de diferenciar brancos e mulatos de negros escravos. Um dos modos de os negros libertos se sentirem socialmente menos escravos era não trabalhar, como o branco, como o mulato. Praticavam o ócio como estágio de vida alcançado, como defesa de seus direitos, como negação de seu estado de oprimido. O trabalho era executado apenas como forma de sobrevivência, dentro do que Paulo Bertran batizou de "economia de abastância". A questão não estava em ser ou não ocioso, e sim em ser coerente com as condições socioeconômicas e ! culturais do lugar, diante das condições históricas definidas pela época e pela situação da província. f 57 PALACÍN, Luis. Goiás (1722-1822)..., p. 198-199. 1 Nasr Fayad Chaul Na análise de Maria Sylvia de Carvalho Franco, a decadên- cia aparece como fruto da desagregação não só da mineração, mas também do sistema escravocrata. Discorrendo sobre o tema, a autora afirma ainda que, na desagregação de todo esse conjunto, qualquer de seus componentes só revela suas implicações deletérias quando exposta sua relação com o sistema capitalista. Quando se revela esse nexo, ressalta a contradição que minou o sistema: a exigência de criar mais significou sempre o impera- tivo de destruir mais.58 Palacín entende que a decadência pode ser caracterizada tam- bém como uma atitude coletiva, absorvida pela sociedade, através de um sentimento de fracasso e de derrota, de inevitabilidade dos males e da incongruência de qualquer esforço para superá-los.Traduzia-se isto num estado permanente de apatia, de resignação muito próxima da desespe- rança. E a tradução exterior desta atitude: a tristeza".59 A análise de Palacín é considerada a primeira contribuição expressiva da Universidade à História da região. Elaborada com grande zelo pela pesquisa· documental, Palacín procura reconstituir a vida econômica, social e política de Goiás. Através dos da- dos documentais obtidos, discute a função sócio-econômica da capitania, penetrando em questões fundamentais: a dinâmica da população, início da crise do ouro, a vida social em Goiás e o quadro de decadência insta- lado localmente graças à exaustão das minas, a partir da segunda metade do século XVIII. 6 º 58 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo:Ática, 1974. p. 216. 59 PALACÍN,Luís. Goiás (1722-1822)..., p.200. 60 SANDES, Noé Freire; RIBEIRO, José Eustáquio. Dezoito anos de Goiás (1722-1822). Cadernos de Pesquisa do ICHL, Goiânia, n. 3, p. 25, 1991. Caminhos de Goiás 77
  • 24. Apesar disso, mantém a tese da inferiorídade do povo do "novo mundo" e releva a questão da decadência como interpretação de Goiás; após o declínio aurífero. Seguindo a mesma interpretação de Palacín, Maria Augus- ta Sant'Anna de Moraes reafirma a tese da decadência da sociedade goiana pós-mineração e observa que, na capital e demais cidades goianas, as famílias de relativa projeção social e econômica estiveram entrelaçadas desde os primórdios da descoberta e do povoamento. Já na Bandeira do Anhangüera eram aparentados os respectivos chefes e até pelo isolamento de Goiás, formou-se como que uma tradição de casamentos endogâmicos, que levam à evidência o fato de que os grupos familiais - quase diríamos tribais - estão na própria gê- nese das oligarquias que tem predominado na história política regional.61 Segundo a autora, as formas de casamento endogâmico de- monstram que a sociedade local tendia a se fechar numa espécie de familiocracia, aspecto que perdurou por séculos em Goiás. Daí tería- mos, então, a formação dos grupos oligárquicos fechados política e culturalmente, criando um atavismo de dominação que se moldou desde o irúcio, por intermédio da sociedade portuguesa, excluindo de qualquer miscigenação os índios. Dalísia Doles também atestou a decadência da sociedade goiana quando analisou a problemática das comunicações fluviais pelos Rios Araguaia e Tocantins no século XIX.A propósito, a ênfase na questão das comunicações era constante entre os viajantes e governadores de província. [...] a conjunção de fatores naturais e técnicos, a escasse:i: de capitais, o fracasso da política do povoamento e de pacificação do índio e o longo 61 SANT'ANNA DE MORAES, Maria Augusta. História de u,a oligarquia: os Bulhões. Goiânia: Oriente, 1978. p. 21. 1 78 Nasr Fayad Chaul período de colonialismo, condicionaram o subdesenvolvimento e a fra- gilidade das comunicações e do comércio fluviais até o final do período colonial, impedindo a abertura do Centro-Oeste ao mundo exterior e que o Tocantins e oAraguaia cumprissem o seu destino histórico na tarefa de integração inter-regional e de reerguimento econômico da tão decadente província de Goiás (grifo nosso).62 Como se vê, a geração de historiadores que procurou analisar a história da província de Goiás manteve a tese da decadência, não obstante o posterior surgimento de uma diversificação nas razões explicativas do fenômeno. Alguns passaram a colocar ênfase nos as- pectos econômicos, outros, na política e administração da época, e muitos, na formação do povo, na questão da raça, destacando pontos levantados pelos viajantes, como o ócio, o marasmo, a preguiça. Em todos eles, a ideia fixa da decadência permaneceu como um marco inquestionável até os anos 90. Desta safra, destaca-se Paulo Bertran, que, já em fins dos anos 70, relativizava a questão, afirmando que a decadência, tão ressaltada pelos viajantes da época, existiu, mas em termos. Para este autor, que, tempos depois, passou a repudiar totalmente a ideia de decadência, "caracterizar como decadência o fim da mineração em Goiás equivale con:siderar a extração aurífera atividade criativa e não predatória, como sempre foi em toda parte do mundo".63 O Goiás do pós-mineração simbolizava, segundo Bertran, um painel em que figuravam "cidades em deterioração", aspectos viru- lentos de ruralidade,"uma idade agrícola rudimentar" diante da "agri- cultura de abastância" e muitos, muitos índios.64 62 DOLES, Dalísia Elisabeth Martins. As comunicações.fluviais...,p. 49-50. 63 BERTRAN, Paulo. Formação econ8mica de Goiás, p. 47. 64 Ibidem, p. 42. Caminhos de Goiás 79
  • 25. Posteriormente, tivemos o trabalho de Eurípedes Funes sobre o século XIX em Goiás, no qual ele analisa a transição da mineração para a agropecuária.Apoiado na ideia da transição para uma economia de subsistência, o autor concentra sua análise na fase de declínio da mineração, observando que, após essa queda, não há, de imediato, uma nova atividade econômica capaz de dar conti- nuidade ao processo de desenvolvimento da província, o que gerou pro- funda crise econômica [...] durante esta fase crítica, a qual só começou a ser superada na segunda metade do século XIX, em Goiás ocorreram importantes mudanças tais como: o predomínio de uma economia de subsistência com base na agropecuária, alterações na estrutura fundiária e profundas transformações nas relações de produção até então predomi- nantes - o sistema escravista cede lugar, gradativamente, às novas relações de produção, não capitalistas, fundamentadas na força de trabalho familiar, do agregado, em menor escala do camarada.65 Mesmo fazendo uma pormenorizada análise, Funes não descarta a tese atávica do processo de decadência da província quando afirma que este "se iniciou de maneira mais clara a partir de 1776 [e] prolon- gou-se por todo o fim do século XVIII e primeira metade do século XIX".66 Apesar dos novos elementos de abordagem, o autor coloca no rol dos culpados pela decadência os mesmos elementos apontados pelos cronistas e governadores nos séculos XVIII e XIX, ou seja, as distâncias, o desânimo (preguiça), as estradas sem condições de tráfego, a carência de braços e o naufrágio da ideia de fomentar.a navegação fluvial. 65 FUNES, Eurípedes. Goiás (1800-1850): um período de trans1çao da mineração à agropecuária. Goiânia: Ed. UFG, 1986. p. 16-17. (Coleção Teses Universitárias, 40). O autor observa que, em 1800, Goiás possuía cerca de cinquenta mil cristãos e sessenta mil índios, o que nos dá uma ideia da importância e da influência das comunidades indígenas na vida e no cotidiano dos habitantes da província. f 66 Ibidem, p.16-17. l 80 Nasr Fayad Chaul Embora se valha das categorias analíticas que caracterizaram a produção historiográfica brasileira da segunda metade do século XX (muitas delas de fundamento marxista, definido pelo sistema capitalis- ta com inúmeras variantes, mas sempre enfocando a problemática do capital, da mão de obra, da escravidão etc.), Funes assevera que, além da falta de "capital e mão-de-obra que dinamizassem a agropecuária e o comércio, atividades às quais se resumia a economia goiana, havia ainda como agravante a desfavorável situação geográfica da capitania - Goiás dista mais de 300 léguas de qualquer porto marítimo".67 Como se não bastasse, continua ele, os altos custos da melhoria das estradas ou os onerosos investimentos em navegação fluvial torna- vam tais empreendimentos algo de difícil execução para a província.68 Consequentemente, a produção não se fazia elevada, e a exportação não chegava a ser algo compensatório.Além da precariedade dos trans- portes, o autor dá destaque à questão da imobilidade comercial da pro- víncia. Em sua opinião, o gado exportado era insuficiente para manter o equilíbrio da balança comercial de Goiás. Funes lembra também que, se o comércio externo era precário, o interno não ficava nada a dever. Limitando-se à circulação de produtos agrícolas, tornava-se ainda mais restrito, uma vez que os produtos básicos da alimentação em Goiás, o milho, o feijão, arroz e a farinha, eram produzidos em todas as vilas. 69 Tal nível de produção abastecia o comércio local e não gerava qualquer concorrência devido à falta de diversidade da produção geral. 67 FUNES, Eurípedes. Goiás (1800-1850)...,p. 39. 68 Ibidem, p. 40. Às inúmeras corredeiras e cachoeiras dos Rios Araguaia e Tocantins, somavam-se os elevados custos da necessária produção de pequenas barcas. Estes elementos, mais os constantes ataques de índios que habitavam as margens dos rios, a carência de abastecimentos nos trajetos e a ausência de capitais, faziam da navegação algo inviável financeiramente. 69 Ibidem, p. 61. Caminhos de Goiás 81
  • 26. i 1 1 1 Os períodos de abundância e escassez oscilavam em torno das mazelas da natureza e desencorajavam o agricultor diante do quadro geral da província. Não resta dúvida de que estes problemas se tornavam capitais e desmotivadores para qualquer ascensão econômica, mas havia outras questões que buliam com a mentalidade do agricultor goiano, diferen- tes das que sempre nos foram apresentadas pela historiografia regional. Em decorrência destes fatores, atesta Funes, Goiás ficou isolado do contexto econômico e viu predominar uma economia de sub- sistência que teve por base a agropecuária. Entende-se aqui por economia de subsistência, não de pura subsistência, mas sim uma economia em que havia produção para o mercado, seja externo ou interno, mas não em grau suficiente para fazer frente às necessidades básicas da Província. 70 Em nome de que desenvolvimento ou progresso se afirmam as necessidades de uma sociedade? Acreditamos que a ideia de progresso, que premeditava um futuro determinado para a província, impedia os olhares dos que a viam de enxergar algo além da pobreza e da decadência, de um cotidiano de miséria vivido pela sociedade local. O tema da decadência, cuja face inversa é o progresso, despertava o anseio de uma sociedade ideal, construída nos moldes europeus, com conotações de desenvolvimento. As análises então se faziam com base no futuro e no passado, e nunca no presente. Futuro não de possibi- lidades, mas determinado, a priori, pelo modelo de desenvolvimento dos países ditos modernos, progressistas, desenvolvidos. Quem te revê... Os caminhos da história/historiografia Uma nova leva de estudiosos, historiadores, socióldgos e eco- nomistas tem questionado os parâmetros básicos que nortearam a historiografia regional em seus diversos pilares, principalmente, o da f l 7° FUNES,Eurípedes. Goiás (1800-1850)...,p.61. 82 Nasr Fayad Chaul decadência. Em fins de 1991, os historiadores Noé Freire Sandes e José Eustáquio Ribeiro escreviam para a revista Teoria e Praxis um instigante artigo sobre Goiás no século XIX, abordando a análise de nação e região na obra de Cunha Mattos. Nesse breve trabalho, os au- tores começam a apontar outros nortes explicativos para a questão da decadência. Dando ênfase à reconstrução da nação, expressa nas ideias de Cunha Mattos, afirmam, inicialmente, que a leitura da Chorographia dirige-se para o olhar rígido do militar português que optou pela nacio- nalidade brasileira, que, cego às avessas, via o que desejava. E é em tor- no do entendimento do desejo, projeto civilizatório de Cunha Mattos, elemento ordenador dos olhos deste estrangeiro, que buscamos rever 0 desejo, os olhos do estrangeiro que sonhou com um outro Goiás.71 Recorrendo a trechos da Chorographia, os autores observam o estilo, as viagens, a análise em que Mattos via, ao mesmo tempo, o fu- turo do Império e a miséria de Goiás.Verificam que a decadência era a marca da vida em Goiás, atentando para algumas impressões de Mattos, como:"a comarca de Goiásjá foi povoada de gente rica: no dia de hoje a maior parte de seus habitantes deve ser considerada como proletária".72 O ponto-chave, porém, que marca uma diferenciação entre esses au- tores e a historiografia regional relacionada neste estudo está na visão que têm da decadência, por intermédio da obra de Cunha Mattos. Os autores deitam seus olhares sobre a análise da região assinalando: [...] o quadro traçado para Goiás permite que nos arrisquemos em algu- mas questões. Região pobre e decadente, com um pé no passado e outro no futuro [...] região fora do tempo onde nada prospera [...] os homens parecem espectros dominados pela síndrome do desânimo. O espaço é fantasmagórico: pontes caídas, estradas e fazendas abandonadas. No lugar 71 SANDES, Noé Freire; RIBEIRO,José Eustáquio. Nação e região: Goiás no século XIX. Teoria e Praxis, Goiânia, n. 3, p. 42, 1991. 72 Ibidem, p. 62. Caminhos de Goiás
  • 27. da antiga prosperidade o vazio. Em Goiás pobreza não é apenas o con- trário de riqueza, significa também o vazio que descaracteriza parte da · história da região no século XIX.73 Até aqui, o que os autores observam não é diferente da visão que de Goiás tiveram os viajantes, os governadores de província, os historiadores antigos e os contemporâneos que pudemos analisar. Mas o que parece ser uma concordância com as ideias propagadas pela his- toriografia regional torna-se discordância geral quando eles afirmam, mudando o curso da questão da decadência: a imagem de uma época não é mera reprodução da realidade, mas envolve significativamente o sujeito que a elaborou. Selecionar a imagem da pobre- za - homens indolentes, regiões vazias, cumpre um objetivo fundamental: condenar ao esquecimento tudo que não coincide com a visão de nação, de progresso que deveria estabelecer-se [...] há um projeto de nação em curso. Há um projeto disciplinar em andamento. Há um horizonte mental que não era o de Cunha Mattos e que precisava ser negado.74 Para os autores, o que estava sendo reclamado por Cunha Mat- tos, o que ele considerava de fato necessário, era o poderoso braço do Estado imperial com o seu poder coercitivo. A questão se torna com- plexa quando os dois historiadores afirmam que o projeto de nação es- tava,já na época, presente em Cunha Mattos.Acreditamos, porém, que ele estivesse mais na visão dos autores do que na do próprio Cunha Mattos. Estará presente, sim, em Pedro Ludovico, algum tempo depois. Apesar de não aprofundar a análise sobre a inserção de Goiás num projeto de nação, o estudo de Sandes e Ribeiro se mostrou relevante, pois tiveram a precedência de questionar, em'bora dentro dos limites do artigo proposto, a questão da decadênciai como fator 73 BERTRAN, Paulo, apud SANDES, Noé Freire; RIBEIRO,José Eustáquio. Nação e região..., p. 43. f l 74 Ibidem, p. 44-45. Nasr Fayad Chaul explicativo da realidade da província de Goiás. Concluindo, os autores acentuam que "é preciso olhar com cuidado para 'o olho que vê o mundo' e que elabora uma representação sobre o social em consonân- cia com o horizonte visual/mental daquele que vê".75 Outro autor preocupado com as conceituações e análises por demais consolidadas na historiografia goiana é Paulo Bertran. Aqui, bem distante dos temas e posicionamentos que marcaram a formação econômica de Goiás, temos um estudioso envolvido com a eco-his- tória e com a busca de uma revisão crítica dos conceitos que prevale- ceram na história e na historiografia de Goiás. Trabalhando também com a história do Centro-Oeste, pode- mos encontrá-lo às voltas com a revisão da questão da decadência de Goiás quando esclarece: [...] há duas ou três coisas sobre a história de Goiás que é oportuno despoluir para obtermos objetos mais úteis e iluminados,para nosso deleite e sapiência e consumo de futuras gerações. Um deles é o paradigma da decadência de Goiás no passado, que ao sentir de alguns escritores iria desde a abrupta queda da mineração em 1780 até um variável fim, segundo uns até 1914 com a entrada da estrada de ferro, segundo outros até 1937 com o Estado Novo e a constru- ção de Goiânia. Haja decadência! No caso extremo nada menos do que 157 anos de decadência. Deve ser erro de denominação ou erro de conceito.76 .Na realidade, além da carência de pesquisas sobre o século XIX em Goiás, há um equívoco secular em que se associou a decadência do ouro com a da própria província. Como bem ressaltou Bertran, "em dois e meio séculos de história de Goiás quase que de todo ignora-se um inteiro século, o da 'decadência',justo quando em todos os quadrantes nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados".77 75 SANDES, Noé Freire; RIBEIRO,José Eustáquio. Nação e região..., p. 45. 76 Ibidem, p. 46. 77 BERTRAN, Paulo.A memória consútil e a goianidade. Ciêndas Humanas em Revista, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 6,jan./jun. 1994. Caminhos de Goiás
  • 28. Ressalte-se também que o que assegurou de fato o povoamento de Goiás não foi o ouro, e sim a agropecuária.78 O próprio Bertran, em trabalho anterior, afirmava que a economia agrícola, propriamente, surge como um regime de transição en- tre a economia mineradora e a economia de exportação pecuária, pelo me- nos em Goiás. Nem tanto economia de subsistência, nem tanto comercial, a agricultura do século XIX poderia caracterizar-se como de abastância vez que seu mercado, com localizadas exceções, só raras vezes ultrapassava as bar- reiras extra-regionais, pelo proibitivo da relação preço/custo de transporte.79 Como se vê, a economia de abastância seria aqui o viés interpretativo para se compreender Goiás na transição da mineração para a agropecuária. Tomando, por partes, o imenso painel interpretativo da pro- víncia de Goiás, podemos tecer algumas considerações sobre as ideias disseminadas ao longo do tempo e herdadas pela historiografia goiana de forma geral. Segundo os autores analisados em nosso percurso, o comércio era desenvolvido devido à riqueza gerada pelo ouro, os lavradores tinham consumidores de seus produtos e havia também um promissor mercado para o gado. Atestam ainda que, embora he- terogeneamente distribuída, a riqueza atingia os vários estratos sociais da província. Devido à carência de dados documentais, não é possível detectar com mais propriedade esse tempo que os autores chamam de "tempo de esplendor". Da mesma forma, não é possível investigar, a não ser pelos registros seculares da arquitetura urbana de Goiás e pela fabricação de ferramentas de ouro (figural.6), como a dita riqueza ge- rada foi aplicada.Tais registros demonstram que, afora algumas igrejas, por vezes reconstruídas, poucas marcas se sustentam no tempo como marcas do "esplendor do tempo do ouro". 78 BERTRAN, Paulo.A memória consútil ..., p. 7. 79 Para uma análise do peso da agropecuária no povoamento de Goiás,verTIBALLI, Elianda Arantes. A expansão do povoamento em Goiás: século XIX. h991. Disserta- i 86 ção (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1991. Mimeografado. , Nasr Fayad Chaul O PLANALTO AURIFERO Apparrllw/ ,p111lq11rrd,vlrtHlw, 6roeo.r, ou •·errttnin✓• ••111111!#-••-+-•-•lllii•-• figura 1.6 · Métodos e instrumentos de mineração no século XVIII. Desenho da época. Fonte: BERTRAN, Paulo. História da terra..., p. 105. Caminhos de Goiás
  • 29. A partir de 1770, o quadro de declínio da produção aurífera é explicitado pelo pequeno vulto dos impostos coletados, pela queda (do pagamento? do valor?) das taxas comerciais e pelo reduzido fluxo dos produtos agropecuários, em perfeita harmonia com o refluxo popula- cional.Abrangendo dos arraiais aos escravos, a província mostrava a sua cara, uma face de incontestável recessão econômica. Neste conjunto de negativas visto como absoluto por grande parte da historiografia do período, vários autores nos apresentaram o seguinte quadro da sociedade goiana, fruto da crise do ouro: diminui- ção dos lucros dos funcionários reais, paralisação do comércio, carência de capital, produção para a subsistência diante de um reduzido merca- do, ausência de empregos, fome, letargia da população, ócio, carência de tudo, falta de todos, perdas gerais. O processo histórico a que se refere tal quadro socioeconômico vai do fim da colônia ao início do Império. Ou seja, a ideia de decadência vigorou desde o final do século XVIII, sendo expressa nos documentos goianos, divulgada nos livros e jornais, clamada nas poesias e nas músicas, exposta nos discursos e nas conversas informais. É, sem dúvida, um dos mais constantes elementos simbólicos presentes na historiografia goiana, dando margem a outros sinônimos interpretativos, como, por exemplo, a questão do atraso, com base na qual se interpretou boa parte da Primeira República em Goiás até que se abrissem as possibilidades para se pensar na sua antítese ao longo dos anos 30: a ideia de modernidade. Muitos autores não deixam de ter razão, pelo que pudemos ob- servar, quando apontam as dificuldades de uma sociedade transitando da fase mineradora para uma economia baseada na agropecuária.Acre- ditamos, porém, que devemos minimizar a questão do faus'to e de ri- queza de tempos outros.A carência documental pode ter-nos ocultado ! tal dimensão de riqueza de Goiás, mas a face goiana mais concreta não expressa grandes heranças dos tempos do ouro. Para a maioria dos autores, a consequência direta da ideia de de- cadência foi a construção de um outro estado para Goiás, ~ estado de vítima, a vitirnização da região.Visão repassada, em grande 1 parte, pelas 88 Nasr Fayad Chaul autoridades do período, com variados fins, entre eles, o de ampliar os re- cursos destinados pela corte à província. Propagou-se a ideia da transição da região de uma fase em que havia de tudo, ou quase tudo, para uma ou- tra fase resumida pelo nada. Ora, torna-se bastante difícil acreditar num esplendor social e econômico em Goiás na fase da mineração, bem como atestar a prolongada decadência do estado provocada pela crise do ouro. Temos de ter em conta que as vozes que entoaram os cânticos da vitirnização eram quase sempre estrangeiras, pessoas ligadas à burocracia provincial ou à Igreja, por vezes, administradores lusitanos, saudosos dos cais e dos portos, homens desejosos de ver o "progresso" em Goiás com os mesmos olhos com que haviam visto o desenvolvimento das terras d'além-mar. Desta forma, é necessário um certo cuidado ao tratar a ques- tão, pois as supostas vítimas não chegaram a manifestar tal imagem, e não acreditamos que se sentissem vítimas do descaso, abandonadas pela sorte ou herdeiras da desatenção do rei, como poderemos ver posteriormente no relatório da Câmara de Santa Luzia.Mas a imagem da vitirnização, com isto concordamos, serviu para corroborar a questão da decadência, sendo ambas siamesas do mesmo corpo ideológico, ao qual viriam se somar ou- tras tantas ideias, como a do isolamento, a do atraso e a da modernidade. Quanto ao isolamento, diversos autores observam a sua persistência tanto na colônia quanto no Goiás contemporâneo e apontam-no como o principal motivo da decadência da província. Isolada de todo o progresso, de Lisboa ao resto do mundo, esta não possuía meios eficazes para superar tais barreiras,já que parecia não valer os gastos que requeria. O isolamento e a vitirnização passaram a ser faces de uma mesma moeda sem aceitação na corte lusitana, perdendo seus simbolismos para um valor maior, capaz de expandi-los: a decadência. Gestado nos inúmeros relatos dos viajantes, nos relatórios de governadores de província e nos demais documentos analisados, o conceito de decadência, com o tempo, absorveu os demais. A província experimentou também o inverso do isolamento, a proximidade com a corte, mas isso não chegou a ser uma constante na vida administrativa, política ou social de Goiás, mesmo no auge da mineração. Da mesma forma, torna-se dificil sustentar que um lugar Caminhos de Goiás 89
  • 30. que não se desenvolvera (Goiás no auge do tempo do ouro) possa ter, posteriormente, caído na decadência - este mesmo lugar, sem maiores proximidades com o mundo administrativo lusitano, não se tornou de todo isolado com o fim da mineração. Ele continuou tão isolado, "tão decadente", como antes fora, pois o que se podia chamar de desenvol- vimento ou de progresso não fazia parte da realidade de Goiás, mesmo na fase do boom aurífero. Por exemplo, seriam as estradas da época do ouro distintas das da sua fase pecuarista? Claro que continuaram tão carentes de <recursos como antes. Só que, com o ouro, não havia estra- da dificil nem isolamento tão grande. Sem o ouro, as mesmas estradas tornaram-se intrafegáveis; apenas o gado conseguia transitá-las. Na verdade, os administradores, que incorporavam a figura do rei ao dirigir a capitania e a província, sentiam-se isolados e transferiam tal isolamento para a terra dirigida. Sentiam-se impossibilitados de qualquer atitude que consistisse em mudanças fundamentais na estru- tura de sua administração. O povo, por sua vez, não se via representado por esses homens de língua outra, comandantes de navios fantasmas, guerreiros medievais perdidos na solidão do sertão de Goiás. Por isso, as disputas e alianças ocorriam dentro da estrutura de poder, sem chegar jamais à população. A administração lusa parecia conhecer os proble- mas de Goiás, mas não a cultura do povo do lugar. A par dos aspectos referidos, outro por demais enfatizado, como, aliás, já se mencionou, foi a questão do ócio, da preguiça goiana, da gente letárgica de uma terra parada no tempo. Não se levava em conta que uma economia agrária pautada pela agricultura e pela pecuária ex- tensivas dispensa o trabalho diário [...] para o europeu, vindo de um 1 mundo capitalista, era impossível perceber que o goiano do século XIX, antes de ser indolente, era um trabalhador condicionado pelo 1 estágio em que se encontrava, o modo pelo qual produzia os bens necessários para sua sobrevivência.80 80 BERTRAN, Paulo. Uma introdução à história econ8mica do Centío-Oeste do l Brasil. Brasília: Codeplan; Goiânia: Ed. UCG, 1988. p. 43. 90 Nasr Fayad Chaul Diante de um governo não reconhecido ou indiferente aos olhos da população, a sociedade local parecia formar um mundo à parte, construindo seus hábitos e sua cultura por meio de elementos próprios, de tradições locais e atávicas, de memórias seculares, distan- tes da cultura europeia. Contrabando, cachaça, rituais afro, caminhos por estradas não permitidas, não pagamento de impostos, descaso para com a lei, entre outras, foram atitudes notórias no cotidiano do povo do lugar. Estas atitudes começaram a ser vistas como desobediência. A desobediência civil da época, apesar de não documenmda, pode ser imaginada com pinceladas de realidade. Assim, dissociado da ordem legal lusitana, o mundo do povo da capitania, da gente da província, mantinha-se longe dos litorais europeu e brasileiro, distante do progresso ansiado pelos cronistas, alheio ao desenvolvimento que as potencialidades de Goiás podiam imprimir. Enfim, diante da insignificante ajuda real, a situação daquele povo era crítica, e, aos olhos alheios, ele era decadente, mas, aos seus próprios olhos_, sua realidade era satisfatória. Seu cotidiano bastava-lhe e satisfazia suas necessidades básicas dentro do resumido universo de possibilidades ofertadas pela capitania e, posteriormente, pela provín- cia. O que fazer diante das carências de mão de obra e capitais, diante do desprezo das instituições régias perante a inviabilidade das comu- nicações, diante do "sertão sem fim" de sua economia, das barreiras de toda ordem? A vida, a economia, os ímpetos da política só seriam modificados aos poucos, com o desenvolver do processo histórico externo e interno, com as mudanças ocorridas na política nacional e que absorveriam Goiás dentro das necessidades de desenvolvimento do país, lá pelos fins dos anos 20 e início da década de 1930. Tomemos como exemplo desta aceitação da realidade um do- cumento de 1883 intitulado Relatório da Cilmara de Santa Luzia (atual Luziânia), que apresentava ao vice-presidente da província,Theodoro Rodrigues de Moraes, a situação daquela gente e daquela localida- de. O documento fazia menção à tranquilidade e segurança pública, assinalando: "acha-se o Município em paz e gosa de tranqüilidade, Caminhos de Goiás 91
  • 31. devido isso, em grande parte, à índole pacífica do povo".81 Sobre a segurança individual, afirmava ser satisfatória em todo o município. Atestava também que o estado das três igrejas do município era bom, mostrando uma "decência compatível com o lugar", e que não falta- vam ao povo devoção, zelo e sentimento religioso. Em contrapartida, o documento referendava que o estado sani- tário ficava a desejar, sujeitando a salubridade pública a sérios perigos, e aproveitava para inserir em seu rol de reivindicações a construção de um cemitério, ação que se entendia capaz de diminuir tal problema. A instrução pública, porém, com apenas duas escolas, funcio- nava a contento, mas, "no intuito de difundir a instrução por seus municípios", a Câmara decidira estabelecer uma aula noturna de instrução primária para adultos do sexo masculino. Para este fim, [dizia o relatório], consignará em suas despesas a necessária vista, deduzidas das respectivas rendas, e conta, com um prédio oferecido pelo Presidente da mesma Câmara, o Cel. Antônio Machado de Araújo, para nelle gratuitamente funcionar as aulas.82 De acordo com o relatório citado, também a vida econômica, nas palavras do povo, expressas por um de seus órgãos representativos, tinha suas necessidades cotidianas razoavelmente satisfeitas. o estado financeiro do Município longe de ser desanimador promette, dadas as condições de uma rigorosa observância das regras econômicas, e de uma boa fiscalisação na arrecadação de suas rendas, promover em maior escala seus melhoramentos materiais.83 Um desses melhoramentos concernia à atividade agríc 1 ola, difi- cultada pela falta de braços escravos no município, o que, segundo o 81 TIBALLI, Elianda Arantes. A expansão do povoamento..., p. 65. 82 Relatório da Câmara de Santa Luzia, 1883. 83 Ibidem. f 1 92 Nasr Fayad Chaul relatório, teria feito cair sensivelmente a produção da lavoura. O cal- canhar de aquiles da região estava, porém, no comércio, uma vez que as pontes, as estradas e as distâncias não cooperavam para uma maior e melhor dinâmica do setor. Reivindicava-se, portanto, a construção de um mercado como forma de fiscalizar melhor "a arrecadação das rendas provinciais municipais". Requeria-se, além disso, uma maior atenção para com as condições sanitárias da cadeia pública. De modo geral, as condições vitais do municípi_o estavam um tanto distantes da visão de decadência, cantada, decantada e reclamada por tantos em tantos lugares de Goiás. E, como Santa Luzia, tínhamos outras localidades com o mesmo padrão de vida e o mesmo desenvol- vimento, sem dizer que, em relação àpopulação e àurbanização, locais como Vila Boa e Meia Ponte aproximavam-se daquele município ou o superavam. Acreditamos, assim, que o conceito de decadência é uma repre- sentação que foi gestada pelos cronistas e governadores de província e, posteriormertte, reproduzida pela historiografia goiana, com base no isolamento da província, na visão europeizante dos estrangeiros que vieram a Goiás e na ilusão daquilo que pensavam ter existido (o faus- to e a riqueza) na sociedade mineradora. Encontraram, porém, uma sociedade em transição para a agropecuária, senhora de seus limites e de suas carências de toda ordem. Consideramos que muito pouca di- ferença havia entre as duas sociedades no tocante à vida sociopolítica e econômica, pensando no que ficou para Goiás em termos de herança do período áureo da mineração. Aqui se encontra, em nossa opinião, o caminho para se entenderem aspectos como a goianidade e para se compreender a ponte que liga a decadência de antes à modernidade dos anos 30. A reprodução da ideia de decadência vai atravessar o Império e penetrar camaleonicamente na Primeira República sob o manto do atraso. A interpretação política da Primeira República em Goiás estrutura-se por intermédio da análise de Francisco Itami Campos, Caminhos de Goiás 93