O documento descreve os Livros de Linhagens medievais, que continham genealogias de famílias nobres portuguesas. Incluíam também lendas míticas para legitimar a origem de certas famílias. Dois exemplos são a lenda de Dona Marinha, sobre a origem da família Marinhos a partir de uma sereia, e a lenda da Dona Pé de Cabra, sobre a origem dos Lopez Haro a partir de uma mulher meio-humana meio-cabra. Estas lendas refletem tradições orais e mitologia indo
1. Literatura Portuguesa: Prosa Medieval Século XIII
1
Textos de Fundo Mítico nos Livros de Linhagens
Os Livros de Linhagens (1282-90),
a que no século XVI se deu também
o nome de Nobiliários, são quatro
obras escritas durante a Idade Média
onde se descreve a genealogia das
principais famílias nobres no reino,
tanto em linha recta como colateral.
São como árvores genealógicas
comentadas. O primeiro, também
chamado Livro Velho e o quarto,
conhecido como Nobiliário do
Conde D. Pedro de Barcelos, estão
completos. Dos restantes chegaram até nós apenas fragmentos (Segundo de Linhagens,
ou Segundo Livro Velho, e Terceiro Livro de Linhagens, ou Nobiliário da Ajuda). O
Livro do Conde D. Pedro de Barcelos é o mais desenvolvido dos quatro, tendo o autor
pretendido apresentar um resumo da história universal. D. Pedro, Conde de Barcelos,
era filho natural de D. Dinis e bisneto de Afonso X. Os Livros de Linhagens foram
publicados no século XIX por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta
Historica, volume dedicado aos Scriptores. Conservamos quatro Livros de Linhagens:
I. Livro Velho: É anónimo, conservou-se completo e é também o mais antigo.
Contém uma relação de pessoas com os seus cruzamentos, descendência... Os
comentários são muito breves e a prosa menos ágil do que noutros livros de
linhagens.
II. II Livro Velho: A obra mais extensa, mas que se limita á catalogação de
genealogias. Não se conservou de forma completa. Introduz elementos que,
desde o ponto de vista contemporâneo, são fantásticos.
III. Nobiliário da Ajuda: Denomina-se assim porque o manuscrito esteve
encadernado com o Cancioneiro da Ajuda. Também não se conservou de forma
completa.
IV. IV Livro de Linhagem ou Nobiliário do Conde D. Pedro: Contém o Nobiliário
da Ajuda na íntegra. É muito mais extenso, contém mais comentários e mais
pormenorizados. Mesmo chega a constituir um complemento das crónicas1
.
Contém um prólogo do Conde D. Pedro no que se declara quais são as intenções
da obra, às que denomina sete coisas ou sete razões:
1. “Criar amor e amizade entre os nobres e fidalgos de Espanha”.
2. Dar a conhecer às famílias o tronco de que descendem e os seus
parentescos.
3. Contribuir à união de todos os fidalgos na luta contra os infiéis.
4. Mostrar a cada fidalgo os nomes dos seus antepassados e alguns feitos
dignos de memória, para criar um sentimento de orgulho.
5. Proporcionar aos reis a possibilidade de dar reconhecimentos ou títulos
pelas façanhas dos avôs dos fidalgos (à maneira póstuma).
1
C. Michaëlis recorre a ele para identificar trovadores e jograis.
2. Literatura Portuguesa: Prosa Medieval Século XIII
2
6. Dar a conhecer os impedimentos matrimoniais para evitar casamentos
nulos e incestos.
7. Lembrar aos nobres os direitos e obrigações que herdaram em relação aos
mosteiros.
Além disso, os Livros de Linhagens contêm textos de fundo mítico que estão
intimamente relacionados, por exemplo, com as lendas das moiras encantadas,
narrativas de tradição oral do norte de Portugal e País Basco, que surgem por vezes com
a configuração de serpente ou de cabra. Mas há também elementos que apontam para o
carácter universal destas lendas. Assim, a união de um humano com uma divindade com
a condição de respeito de um interdito encontra-se já nos Brahmana, livros sagrados
indianos, e no mito de Eros e Psiché. Dois exemplos destacados de lendas empregadas
no Nobiliário do Conde D. Pedro são
A lenda de Dona Marinha, que explica a origem da família dos
Marinhos a partir dum ser sobre natural, uma sereia. Tem-se relacionado com a
lenda da Ondina da mitologia nórdica, a Melusina (ser que é metade mulher e
metade serpe) ou com a origem marinha da Afrodite.
A lenda da Dona Pé de Cabra, com a que se explica a origem da
família Lopez Haro de Biscaia a partir duma mulher que é metade humana e
metade cabra.
A mitologia indo-europeia chama a estas narrativas
melusianas, por referência à Melusina, uma espécie de
espírito da água: A Melusina casou com um príncipe
humano, a quem ajudou a adquirir grande poder. Porém,
quando ele rejeitou satisfazer-lhe um único pedido, ela
desapareceu do mundo humano com um longo e triste
grito, um aviso contra o esquecimento humano das leis
naturais.
Os textos das lendas empregadas nos Livros de Linhagens para legitimar a importância
de uma família nobre constituem fixações escritas a partir da oralidade. Posteriormente
retornaram à oralidade, produzindo-se versões diferentes (cf. a versão recolhida no
século XIX por Alexandre Herculano).
No período da produção dos textos destas lendas, as cidades medievais
passavam pelo processo de expansão territorial. As pessoas que transitavam por elas não
só traziam o movimento comercial, mas também influências culturais. Estamos nos
alvores do surgimento da burguesia, começam a fundar-se as universidades e as
entidades jurídicas. Isto implica uma necessidade de um registro confiável, que pudesse
ser consultado no futuro e que estabelecesse oficialmente as relações formais da época.
Não é por acaso que os textos que antecederam esse período eram predominantemente
documentos oficiais. É também importante ter em conta que os textos destas lendas
eram produzidos para a elite, que dominava o código escrito e que ostentava o poder
político, económico e social da época.
3. Literatura Portuguesa: Prosa Medieval Século XIII
3
A Dama do Pé de Cabra
Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e
atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima
de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e
namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era
huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto
linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e
ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse
santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com
elle. E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em
todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado
como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram
dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a
outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de
suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de
ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra
parte. E huum dia foy elle a seu monte e matou huum
porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante
ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e
lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum
alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a
podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo. E dom
Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse
e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E
ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e
no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio
com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom
virom mais nem a filha.
Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e
premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua
muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora
da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver,
saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o
tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e
ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell
foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.»
Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e
chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo
que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar
nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de
beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria
em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom
vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o
poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em
esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli
deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que
o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle,
que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que
A Dama Pé de Cabra. Argumento
de Jorge Magalhães, baseado na
obra de Alexandre Herculano.
Lendas de Portugal em Banda
Desenhada, Lisboa: Asa 1989.
4. Literatura Portuguesa: Prosa Medieval Século XIII
4
cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa
terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e
ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.
In Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 258-259
Dona Marinha
O primeiro foi ũu cavaleiro boo que houve nome D.
Froiam, e era caçador e monteiro. E andando ũu dia
em seu cavalo per riba do mar a seu monte, achou ũa
molher marinha jazer dormindo na ribeira. E iam com
ele tres escudeiros seus, e ela, quando os sentio,
quise-se acolher ao mar e eles forom tanto empos ela,
ataa que a filharom, ante que se acolhesse ao mar. E
depois que a filhou a aqueles que a tomarom fe-a
poer em ũa besta e levou-a pera sua casa.
E ela era mui fermosa, e el fe-a bautizar, que lhe nom caia tanto nome nem ũu como
Marinha, porque saira do mar; e assi lhe pôs nome, e chamaram-lhe dona Marinha. E
houve dela seus filhos, dos quaes houve ũu que houve
nome Joham Froiaz Marinho.
E esta dona Marinha nom falava nemigalha. D. Froiam
amava-a muito e nunca lhe tantas cousas pode fazer
que a podesse fazer falar. E ũu dia mandou fazer mui
gram fugeira em seu paaço, e ela viinha de fora, e
trazia aquele seu filho consigo, que amava tanto como
seu coraçom. E dom Froia foi filhar aquele filho seu e
dela, e fez que o queria enviar ao fogo. E ela, com
raiva do filho, esforçou de braadar, e com o braado
deitou pela boca ũa peça de carne, e dali adiante falou.
E dom Froia recebeo-a por molher e casou com ela.
In Narrativas dos Livros de Linhagens, selecção, introdução e comentários por José
Mattoso. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983, 70-73.