SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 33
Baixar para ler offline
COSTA, Isac Silveira da. A sorte favorece os bravos, mas não os tolos – DeFi: escopo, riscos
e desafios regulatórios das finanças descentralizadas. In: GOMES, Daniel de Paiva GOMES,
Eduardo de Paiva; CONRADO, Paulo Cesar (Orgs.). Criptoativos, blockchain e tokenização:
aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2022. No prelo.
A sorte favorece os bravos, mas não os tolos – DeFi: escopo, riscos e desafios
regulatórios das finanças descentralizadas
Isac Costa1
Introdução
“DeFi” é um um acrônimo de finanças descentralizadas (decentralized finance) e, ao
mesmo tempo, um trocadilho com o verbo desafiar (defy), com uma conotação afrontosa ao
mercado tradicional.
Nesse texto, descrevemos o escopo das soluções DeFi2 , contrastando-as com os
serviços financeiros usuais de depósitos, empréstimos e investimentos. Tendo em vista a
preocupação com os riscos relacionados à estabilidade financeira e proteção de investidores,
também procuramos explorar os principais desafios para a adaptação da regulação financeira
vigente ou a criação de novas normas para recepcionar esse fenômeno.
Ressaltamos que o foco da análise envolve stablecoins, os serviços de empréstimos de
criptoativos e as exchanges descentralizadas, com a dinâmica de seus fundos de liquidez
(liquidity pools), pois estes serviços possuem a maior quantidade de recursos alocados
atualmente. Não foram contempladas, por outro lado, as soluções envolvendo derivativos,
seguros ou concursos de prognósticos (prediction markets).
O texto se divide em quatro partes: (a) noções iniciais, quando falamos de permuta de
criptoativos, o racional econômico para as operações de empréstimos de criptoativos e a
importância das stablecoins para as soluções DeFi; (b) as plataformas centralizadas de
empréstimos de criptoativos; (c) as soluções genuinamente descentralizadas; e (d) riscos e
explorar possibilidades regulatórias. Ao final, apresentamos uma síntese conclusiva.
1 Advogado em São Paulo. Doutorando (USP), Mestre (FGV) e Bacharel (USP) em Direito. Engenheiro de
Computação (ITA). Ex-Analista de Mercado de Capitais (CVM). Professor dos cursos de pós-graduação lato
sensu e educação executiva do Ibmec e do Insper.
2 Por vezes, encontramos as designações “TradFi” para os serviços financeiros tradicionais e “CeFi” para os
serviços relacionados a criptoativos prestados por entes centralizados. Para uma comparação entre os modeos,
cf. DELOITTE. DeFi deciphered: Navigating disruption within financial services, 2022. Disponível em
https://www2.deloitte.com/us/en/pages/advisory/articles/gain-clarity-into-the-regulatory-risks-of-digital-
assets.html. Acesso em 17 jun. 2022.
2
1. Noções iniciais
1.1. Finanças e descentralização
Uma força centrífuga atua sobre o mercado financeiro, buscando reduzir custos e
ineficiências da intermediação centralizada, de modo que a realidade se aproxime do ideal
declarado nos livros didáticos de que a função econômica do mercado é aproximar agentes
superavitários (emprestadores) de agentes deficitários (tomadores).
As soluções DeFi tomam como pressuposto que o controle de garantias e a mitigação
da assimetria de informação entre as partes de uma operação podem ser gerenciados por meio
de contratos eletrônicos (smart contracts) e um registro distribuído de transações (distirbuted
ledger). A tecnologia blockchain é a propulsora desse movimento, cuja tendência é atenuar as
limitações geográficas e a importância de prestadores de serviços de registro, custódia,
corretagem e clearing, ou, em uma perspectiva mais abrangente, as infraestruturas de mercado
financeiro.
O mercado secundário global de criptoativos possui liquidez e formação de preços e,
embora marcado por grande volatilidade (com capitalização de mercado entre US$1 trilhão a
US$ 3 trilhões, na máxima histórica3), justifica o reconhecimento de boa parte dos tokens
negociados como um ativo, isto é, um recurso apto a gerar benefícios econômicos futuros4.
Utilizaremos o termo token para designar os títulos digitais que circulam em uma rede
blockchain e criptoativo para representações digitais de valor utilizadas para fins de pagamento
ou investimento, baseadas em algoritmos criptográficos e na descentralização do
armazenamento e validação de transações. Um criptoativo, portanto, é um bem móvel cuja
concreção digital em um sistema é denotada pela palavra token.
A depender de sua função econômica, os criptoativos podem receber denominações
distintas5, tais como criptomoedas – se utilizados como unidade de conta, meio de pagamento
e reserva de valor – ou utility tokens – ou tokens de consumo, quando representam direitos de
3 Conforme dados do agregador CoinMarketCap (https://coinmarketcap.com/).
4 De acordo com o Pronunciamento CPC 00 (R2) – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro, itens 4.3 e
4.4, temos que “Ativo é um recurso econômico presente controlado pela entidade como resultado de eventos
passados” e “Recurso econômico é um direito que tem o potencial de produzir benefícios econômicos”,
respectivamente.
5 Um estudo detalhado das funções econômicas dos criptoativos e os critérios para verificação do seu
enquadramento como valores mobiliários pode ser encontrado em COSTA, Isac Silveira da. Plunct, plact, zum:
Tokens, valores mobiliários e a CVM. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; PINTO, Alexandre Evaristo;
EROLES, Pedro. (Org.). Criptoativos: estudos jurídicos, regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin,
2021. Nota do autor: toda vez que indico a leitura de um artigo de minha autoria, me sinto como o Obama no
meme em que coloca uma medalha nele mesmo - https://knowyourmeme.com/memes/obama-awards-obama-
a-medal.
3
aquisição futura de bens ou serviços – ou, ainda, security tokens, quando se enquadram na
definição legal de valor mobiliário do art. 2º da Lei nº 6.385/1976. Há, ainda, as stablecoins
(discutidas na seção 1.2 infra) e os non-fungible tokens (NFT), que são títulos digitais destinados
a identificar a propriedade de um bem em uma rede blockchain6
.
Além da possibilidade de utilização de criptoativos para fins de pagamento em
determinadas hipóteses, seus titulares têm expectativa de valorização dos preços em mercado
secundário ou, excepcionalmente, auferem benefícios decorrentes de algum direito econômico
emergente do token, como no caso de non-fungible tokens – NFT, por exemplo7.
Entretanto, quem deseja manter criptoativos em sua carteira pode desejar rendimentos
adicionais. Para atender a essa demanda, surgiram projetos que viabilizam a permuta (swap)
entre criptoativos, isto é, a possibilidade de trocar certa quantidade de ETH, por exemplo, por
outro criptoativo ou uma stablecoin como USDT ou USDC (falaremos sobre stablecoins na
próxima seção).
Normalmente, fala-se em contratos de empréstimo de tokens com garantia (colateral)
prestada em outros tokens. Operações dessa natureza são comuns no mercado de bolsa no
Brasil8. Porém, é possível conceber essas operações como contratos de swap9
, pois há uma troca
6 Para uma discussão detalhada sobre NFT cf. COSTA, Isac Silveira da. O futuro é infungível: tokenização,
non-fungible tokens (NFTs) e novos desafios na aplicação do conceito de valor mobiliário. Revista de Direito das
Sociedades e dos Valores Mobiliários, v. Especial, p. 283-323, 2021.
7 A startup Yuga Labs divulgou em março em 2022 a ApeCoin, destinada a ser a moeda de negociação na loja
de aplicativos relacionada com o metaverso MetaRPG, no contexto do universo Bored Ape Yacht Club. No
lançamento realizado em 17.3.2022, o preço da ApeCoin chegou a US$39, recuando para US$4 e retornando à
faixa de US$14 no primeiro dia de negociação. Os titulares de NFTs da coleção Bored Ape Yacht Club e
Mutant Ape receberam ApeCoins como parte da estratégia de lançamento, em uma distribuição comumente
denominada de airdrop. Alguns colecionadores chegaram a ter resultados significativos em razão desta
distribuição. Cf. RUBINSTEIN, Gabriel. Colecionador de NFTs ganha US$56 milhões com distribuição de
tokens APE. Exame, 18 mar. 2022. Disponível em https://exame.com/future-of-money/colecionador-de-nfts-
ganha-us-56-milhoes-com-distribuicao-de-tokens-ape/. Acesso em 17 jun. 2022. Além do modelo de airdrops, os
titulares de NFTs ou de outros tokens podem, em alguns casos, receber percentuais de vendas subsequentes ou
mesmo royalties. Por exemplo, cf. SILVA, Mariana Maria. Startup leva royalties para o blockchain e
democratiza indústria da música. Exame, 1 abr. 2022. Disponível em https://exame.com/future-of-
money/startup-leva-royalties-para-o-blockchain-e-democratiza-industria-da-musica/. Acesso em 17 jun. 2022.
8 Veja B3. Empréstimo de ativos – perguntas frequentes. Disponível em https://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-
servicos/emprestimo-de-ativos/renda-variavel/perguntas-frequentes/. Acesso em 17 jun. 2022. De acordo com
a B3, “O primeiro passo é contratar o serviço de empréstimo de ativos de um intermediário, que pode ser uma
corretora, distribuidora ou custodiante. Através do intermediário, o investidor informa quais os ativos que
deseja emprestar. As ofertas para emprestar os ativos são sempre transmitidas pelo intermediário para a B3”.
9 “Os swaps são contratos nos quais as contrapartes acordam em trocar fluxos de caixa ou rentabilidades. No
swap, um fluxo de caixa é ativo para o investidor enquanto que o outro fluxo de caixa é passivo. A liquidação
financeira do swap é feita pela diferença dos dois fluxos de caixa no vencimento. Os swaps aceitam praticamente
qualquer indexador em seus fluxos de caixa, por exemplo, IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo) mais cupom, dólar mais cupom, ou até mesmo preço de commodities, desde que seja um ativo-objeto
cujo preço seja publicamente e fidedignamente divulgado”. Ainda: “Nos swaps com garantia, a clearing garante a
liquidação do contrato, protegendo contra inadimplência na liquidação. Para isso, são exigidos ativos como
garantias das contrapartes do swap, que ficarão sob custódia da clearing. No registro do swap é possível definir
fluxos de caixa, como pagamentos de juros ou amortizações, em datas anteriores ao vencimento do contrato.
Caso contrário, o swap é registrado como “pagamento final”, no qual o diferencial entre o ‘a receber’ e o ‘a
4
de fluxos de caixa: quem fornece os tokens A e recebe tokens B, fica passivo na variação de preços
de A e ativo na variação de preços de B. Por sua vez, a contraparte da operação fica ativa na
variação de preços de A e passiva na variação de preços de B. É comum que os projetos que
envolvem esse modelo de operação tenham o termo swap em seu nome, como é o caso de
Uniswap, Pancakeswap, Sushiswap e Stableswap (Curve).
Contudo, a diferença essencial é a de que, a depender da efetiva transferência da
custódia dos criptoativos, seu recebimento e devolução podem ser efetivos, aproximando o
contrato de um empréstimo, ou, se a liquidação se der pela diferença da variação dos preços,
aproxima-se de um contrato de swap.
Podemos nos indagar sobre qual seria o racional econômico para esse tipo de operação.
Vejamos uma situação prática.
Quem deseja encerrar uma operação com BTC ou ETH pode vendê-los e, a depender
do ambiente no qual a operação é realizada, resgatar o valor da venda em dólares, reais ou
outra moeda fiduciária (off-ramp)10 . Contudo, quando os recursos ingressam no sistema
financeiro tradicional, podem ser monitorados pelas autoridades, podendo também incidir
algum tipo de tributação. Ainda, há o inconveniente operacional de, caso precise realizar uma
nova operação, deve ocorrer a conversão da moeda fiduciária em algum criptoativo de volta
(on-ramp).
Nas passagens on-ramp e off-ramp, os prestadores de serviços, tais como as exchanges de
criptoativos, têm que contar com a colaboração de instituições reguladas que têm acesso aos
sistemas financeiros controlados pelos Estados. Assim, há pontos de vulnerabilidade para
quem deseja auferir os benefícios de operar fora do alcance do radar estatal.
Para contornar esse problema, é comum que os saldos sejam mantidos em stablecoins,
cuja variação dos preços é mais previsível – USDT e USDC têm seu valor atrelado a dólares
americanos. Logo, é comum que a venda de criptoativos resulte na sua conversão para uma
stablecoin, conforme a cotação do ambiente de negociação. Esse saldo fica, então, disponível
para novas transações.
Todavia, o investidor pode realizar uma operação alternativa, especialmente se tiver
uma estratégia de médio ou longo prazo segundo a qual deseja manter seus criptoativos em
pagar’ é liquidado somente no vencimento do contrato”. Cf. MOLERO, Leonel; MELLO, Eduardo. Derivativos:
negociação e precificação. 2. ed. São Paulo: St. Paul, 2020, seção 1.7.3 e capítulo 4.
10 EDWOOD, Frank. Cryptocurrency On-Ramps and Off-Ramps, Explained. Coin Telegraph, 18 ago. 2020.
Disponível em https://cointelegraph.com/explained/cryptocurrency-on-ramps-and-off-ramps-explained.
Acesso em 17 jun. 2022. Em tradução livre: “Uma operação on-ramp refere-se a uma operação onde você pode
oferecer moeda fiduciária em troca de criptomoeda. Off-ramp é o oposto, uma forma de converter criptomoedas
em moeda fiduciária ou, então, produtos e serviços”.
5
carteira. Em vez de vender seus criptoativos, pode fornecê-los como garantia para obter um
empréstimo, recebendo stablecoins ou outros criptoativos.
Nessa hipótese, o valor recebido corresponderá a uma fração da garantia prestada e a
operação poderá ser liquidada automaticamente caso a margem seja insuficiente, seja porque
houve inadimplemento da obrigação assumida ou por conta de uma desvalorização dos
criptoativos dados como garantia ou ambos os casos. Essa operação envolve um excesso de
garantia exigida (over-collateralization) para fazer frente à volatilidade dos preços utilizados no
cálculo da margem11.
A propriedade de criptoativos depende do controle sobre a chave privada associada à
carteira (wallet) que contém esses criptoativos. Assim, a prestação de garantia pode envolver
a transferência efetiva, quando o emprestador deixa de ter o controle sobre seus criptoativos,
ou, alternativamente, recebe tokens com a função de certificados de depósito e, caso deseje
desonerar seus criptoativos, necessariamente liquidará antecipadamente o empréstimo.
Em ambos os casos, a operação poderá ser encerrada antes do vencimento previsto (se
houver) por meio de um comando do titular dos criptoativos emprestados. Contudo, no
primeiro caso (com custódia delegada), será necessária a colaboração do tomador para devolver
os tokens, pois é seu custodiante.
Por outro lado, a execução compulsória por insuficiência de garantia é automatizada
pela programação de smart contracts, os quais podem ser executados em ambientes
centralizados (espécies de “bancos cripto”, descritos na seção 2) ou genuinamente
descentralizados (descritos na seção 3).
Na perspectiva de quem empresta os criptoativos, surge, assim, a possibilidade de ter
uma remuneração adicional pela sua manutenção na carteira. Os tokens recebidos podem ser
utilizados para diversas finalidades, como, por exemplo, a aquisição de outros criptoativos,
permitindo a alavancagem das posições ou, então, a venda desses criptoativos se houver a
expectativa de sua desvalorização, à semelhança das operações de venda coberta no mercado
de ações.
Adicionalmente, os tokens recebidos podem ser utilizados como garantia para outros
empréstimos em outras plataformas, conforme as taxas de remuneração oferecidas. É possível,
assim, escalar progressivamente o nível de alavancagem e, com isso, os riscos da operação.
11 Para uma discussão sobre a ineficiência da exigência de garantias em excesso em transações DeFi e proposta
de alternativas, cf. ARAMONTE, Sirio et al. DeFi lending: intermediation without information? BIS Bulletin, n.
57, Jun. 14th, 2022. Disponível em https://www.bis.org/publ/bisbull57.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
6
Por fim, vale apontar que, no jargão DeFi, utiliza-se a sigla APY – annual percentage
yield – para expressar a taxa de remuneração anualizada de uma operação. Também podemos
encontrar a siga PPY – period percentage yield, embora seja menos comum.
1.2. De onde vem a rentabilidade oferecida nos empréstimos?
O serviço de agregação de informações DeFi LLama lista 28 (vinte e oito) categorias
de serviços relacionados às finanças descentralizadas 12 . Dentre os principais, temos a
negociação e permuta de criptoativos (Dexes, como Curve, Unisap, PancakeSwap e Balancer),
as plataformas de empréstimos (como AAVE e Compound), os tokens que permitem a
interoperabilidade entre plataformas (bridges, caso do Multichain e do Wrapped Bitcoin, este
possibilitando a utilização do BTC na rede Ethereum), protocolos que têm sua própria
stablecoin (Collateralized Debt Position – CDP, como o MakerDAO), remuneração de depósitos
para staking ou provimento de liquidez, entre outros serviços.
Nesta seção, analisaremos o fundamento econômico da remuneração oferecida em
empréstimos para fins de staking e provimento de liquidez para exchanges descentralizadas.
1.2.1. Empréstimo para staking
Uma das principais críticas aos criptoativos é a afirmação de que sua mineração é
danosa ao meio ambiente em função do alto consumo de energia elétrica13. Isso decorre da
necessidade da realização de cálculos custosos para que as transações na rede sejam validadas
e inseridas em blocos sequenciais. Esse procedimento de validação é denominado de Proof of
Work (PoW), que, em tradução literal, significa “prova de trabalho”14.
Para contornar o problema de consumo energético das redes blockchain baseadas em
prova de trabalho, surgiu uma alternativa, denominada de Proof of Stake (PoS) – “prova de
participação”15, quando a integridade das transações na rede é garantida por participantes que
atestam a validade dos dados mediante a disponibilização de determinado saldo de criptoativos.
Ao “arriscar a própria pele”, um participante corre o risco de ser penalizado e perder
esses criptoativos caso esteja mentindo sobre a integridade dos dados. Essa lógica é expandida
12 Disponível em https://defillama.com/categories. Acesso em 19 jun. 2022.
13 KALOUDIS, George. Does Bitcoin Have an Energy Problem? CoinDesk, April, 2021. Disponível em
https://www.coindesk.com/tech/2021/04/22/coindesk-research-does-bitcoin-have-an-energy-problem/.
Acesso em 19 jun. 2022.
14 O esforço árduo (abstrato e computacional) para a obtenção de ativos virtuais cuja quantidade “extraída” ao
longo do tempo tende a diminuir faz com que a palavra “mineração” seja uma excelente escolha para designar o
processo.
15 Cf. SALEH, Fahad. Blockchain Without Waste: Proof-of-Stake. Review of Financial Studies, v. 34, p. 1156-
1190, Mar. 2021. Disponível em http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3183935. Acesso em 19 jun. 2022.
7
de modo a fazer com que não seja necessário realizar cálculos complexos ou consumir
quantidades insanas de energia elétrica para garantir o funcionamento da rede.
A atividade de disponibilizar criptoativos para participar de uma prova de participação
é o que tem sido denominado de staking. Uma pessoa pode colocar seus criptoativos à
disposição de um protocolo para, ao validar transações, ser remunerada com novos criptoativos
e/ou taxas de intermediação.
Essas pessoas podem ter interesse em tomar emprestados criptoativos de outros
investidores para realizar a atividade de staking. Surge, assim, um mercado de empréstimo para
staking. Aquele que participa da prova de participação tem sua remuneração baseada na
dinâmica de validação de transações e, ao mesmo tempo, pode retribuir a quem emprestou com
uma parcela de seus ganhos.
1.2.2. Exchanges descentralizadas (decentralized exchanges – DEX)
As exchanges centralizadas são prestadores de serviços relevantes para quem deseja
comprar ou vender criptoativo. Elas se assemelham a corretoras, na medida em que têm
cadastro de investidores, controle de saldos, aportes e resgates e, ao mesmo tempo,
desempenham função de bolsas, ao oferecer livros de ofertas onde é possível gerenciar ordens
de compra e venda dos criptoativos listados.
Contudo, uma marca genética relevante dos criptoativos é o seu imperativo de
descentralização, isto é, sua circulação não foi concebida para ser controlada por uma empresa
ou entidade estatal, um sistema centralizado. Com o desenvolvimento da tecnologia blockchain,
foram criados ambientes de negociação que funcionam automaticamente, segundo regras
programadas em smart contracts, sem que uma empresa fique encarregada dos aportes, resgates,
cobranças de taxas de intermediação e alterações na custódia dos ativos. E, ainda, sem que o
investidor tenha que abrir mão de suas chaves e, com isso, abrir mão de seus criptoativos.
Para que esses ambientes, denominados de decentralized exchanges (DEX), funcionem,
há alguns arranjos que necessitam da manutenção de saldos de criptoativos para permitir a
negociação por investidores – os chamados fundos de liquidez (liquidity pools).16
16 Essa não é a única forma de funcionamento de uma DEX, mas o modelo tem sido considerado o mais efetivo,
pois tem conseguido graus suficientes de liquidez para viabilizar seu funcionamento, ao contrário de DEX que
baseadas em livros de ofertas on-chain ou off-chain. Para uma comparação entre esses modelos, cf. SCHÄR,
Fabian. Decentralized Finance: On Blockchain- and Smart Contract-Based Financial Markets. Federal Reserve
Bank of St. Louis Review, Second Quarter 2021, p. 153-74. Disponível em https://doi.org/10.20955/r.103.153-
74. Acesso em 18 jun. 2022.
8
Por exemplo, se João deseja comprar ETH e Maria deseja vendê-los em troca de USDC
em uma exchange centralizada não necessariamente haverá o registro de uma transação
diretamente entre as partes.
Uma das formas mais simples de concretizar a transação é alterar os saldos em cada
criptoativo associados a cada investidor. Assim, a exchange centralizada pode atuar como
contraparte central, vendendo seu próprio ETH para João (diminuindo o saldo deste em
USDC, em uma contabilidade fora da blockchain) e pagando com seu estoque de USDC para
Maria (aumentando o saldo desta, em uma contabilidade fora da blockchain).
A manutenção de uma carteira própria pela exchange centralizada permite que as
operações sejam realizadas imediatamente – na contabilidade fora da blockchain mantida pela
exchange – e, apenas se necessário, haverá algum registro nas redes envolvidas.
O funcionamento das DEX requer que sejam mantidos pares de criptoativos (por
exemplo, o par USDC-ETH) para que compradores e vendedores negociem contra aquele
estoque de pares, o fundo de liquidez.
Do ponto de vista de um investidor em uma DEX, temos algo semelhante ao que ocorre
em um exchange centralizada que atua como contraparte de seus clientes, pois uma oferta de
compra ou venda é atendida pelo fundo de liquidez. Nesse modelo, as transações não são
efetivadas diretamente entre dois investidores (P2P, peer-to-peer), mas, ao mesmo tempo, não
há um intermediário central e cada investidor negocia com um smart contract (transações P2C
– peer-to-contract).
Como no exemplo anterior, João compra ETH e paga USDC, Maria vende ETH e
recebe USDC. Mas a permuta (swap) não ocorre simultaneamente nem diretamente entre João
e Maria. João receberá ETH em sua conta, proveniente de um decréscimo de ETH existente
no fundo de liquidez, acompanhado de um aumento de USDC, decorrente de um débito na
conta de João. Maria, por sua vez, receberá USDC em sua conta, proveniente de um decréscimo
de USDC existente no fundo de liquidez, acompanhado de um débito de ETH, com o respectivo
acréscimo no fundo de liquidez.
O fundo de liquidez que contém, ao mesmo tempo, ETH e USDC serve para atender
às requisições de todas as pessoas que desejarem permutar aquele par de criptoativos. E o
fundo de liquidez cresce conforme as taxas de “corretagem” são pagas pelos investidores.
Provedores de liquidez podem contribuir para a formação do fundo de liquidez, cedendo
os criptoativos que detêm, recebendo uma parcela das taxas de corretagem e, eventualmente,
participando da governança do arranjo descentralizado, decidindo sobre taxas e outras regras
da dinâmica das operações.
9
O resultado de quem cede seus criptoativos para o fundo de liquidez será
principalmente fruto das taxas pagas pelos investidores que se dirigem à DEX, que não precisa
ter sede constituída, funcionários ou nada do gênero. Basta que alguém dê vida a um código
que é executado pelos participantes da rede, com armazenamento descentralizado.
1.3. As stablecoins e sua relevância no contexto DeFi
1.3.1. Previsibilidade em face da volatilidade
O movimento dos preços de criptoativos pode ser extremamente abrupto. Ativos com
essa característica são chamados de voláteis17. No jargão do mercado financeiro, a volatilidade
é um atributo qualitativo de instrumentos financeiros cujos preços costumam sofrer variações
de grande magnitude. A volatilidade está diretamente associada ao risco de um ativo. Alguma
volatilidade é inevitável ou até mesmo desejada, mas a depender do grau, pode se tornar tóxica.
Apesar da volatilidade dos criptoativos, podemos ter investidores que ignoram tais
variações e esperam retornos no médio e longo prazo – os chamados HODLers18.
As stablecoins surgiram para tornar mais conveniente a compra e venda de criptoativos
de modo que as operações não precisem envolver moeda fiduciária. Um dos objetivos das
stablecoins é garantir que suas cotações tenham paridade19 com cotações de outros ativos cujos
preços são mais conhecidos, especialmente o dólar americano.
Um investidor em criptoativos pode comprar e vender e manter suas reservas em uma
stablecoin, a fim de evitar converter seu saldo em moedas fiduciárias, sem transferir os
resultados para o sistema financeiro tradicional, diante da maior previsibilidade das cotações.
1.3.2. Lastro e riscos
Nem todas as stablecoins são referenciadas em moedas fiduciárias, podendo, na verdade,
estar atreladas às cotações de commodities (como o ouro) ou a uma cesta de ativos20. Cada
stablecoin tem um mecanismo próprio de garantir a seus titulares a paridade com o ativo de
referência. A principal fonte de informações é a descrição fornecida no whitepaper de cada uma
17 A volatilidade é a propriedade de uma substância de mudar facilmente de estado. Pense por exemplo, na
acetona, no álcool ou no éter (irônico, não?), que evapora na temperatura ambiente se deixarmos um frasco
aberto.
18 MERCADO BITCOIN. O que é HODL no mundo das criptomoedas? Saiba agora mesmo. Blog do Mercado
Bitcoin, 7 abr. 2021. Disponível em https://blog.mercadobitcoin.com.br/o-que-e-hodl-no-mundo-das-
criptomoedas-saiba-agora-mesmo. Acesso em 17 jun. 2022.
19 Utiliza-se, em inglês, o termo peg para denotar a fixação das cotações em um determinado nível.
20 Cf. INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS. Global Stablecoin Initiatives.
Madrid, 2020. Disponível em https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD650.pdf. Acesso em 19
jun. 2022.
10
delas ou no site de sua emissora – Tether, USD Coin, Binance USD, MakerDAO/DAI, Terra
(LUNA).
Um arranjo pode ser o simples lastro de moeda fiduciária mantido em stablecoins para
cada token emitido. Assim, qualquer titular pode resgatar seu saldo de USDC em dólares ou
adquirir USDC mediante depósito em dólares.
A receita de quem emite stablecoins consiste nas taxas de conversão e nos rendimentos
dos investimentos realizados com os ativos mantidos em custódia.
Ante a ausência de regulação específica, não há regras sobre como o emissor das
stablecoins pode dispor dos ativos que servem de lastro nem liquidez mínima ou outras regras
tipicamente aplicáveis às instituições financeiras, a fim de evitar perdas. Mas há emissoras de
stablecoins que obtiveram licenças especiais e oferecem alguma segurança jurídica, tais como
Paxos Trust Company (PAX), Gemini Trust Company (Gemini USD) e Circle (emissora do
USDC).
Nesse caso, a confiança no emissor é fundamental, pois, se não existir lastro suficiente,
estamos diante de uma fraude pura e simples, honrando resgates com recursos de novos
depósitos, em um tradicional esquema Ponzi.
A existência de ativos no patrimônio da Tether suficientes para fazer frente aos US$70
bilhões de USDT21 em circulação é uma questão controvertida, uma vez que há dúvidas sobre
as auditorias realizadas sobre os ativos da empresa22.
Se o lastro da stablecoin é um ativo mantido em custódia pelo emissor, esse ativo pode
simplesmente não existir totalmente ou pode estar em quantidade suficiente para atender os
saques. Em um cenário de maior incerteza, quando muitas pessoas desejam resgatar seus
saldos simultaneamente, pode ocorrer algo parecido com uma corrida bancária. Se a stablecoin
for um esquema fraudulento, poderá ser descoberta e todo o arranjo poderá implodir
abruptamente.
Outra dúvida importante é a eventual arbitrariedade da emissão de novos USDT.
Discute-se hipótese de que, para sustentar os preços de determinado criptoativo (BTC ou
ETH), pode ocorrer uma emissão indiscriminada de USDT sem lastro algum para fornecer
combustível para a compra desses ativos, mantendo suas cotações em níveis artificiais23.
21 Conforme dados do portal CoinMarketCap de 19 jun. 2022.
22 YAFFE-BELLANY, David. The Coin That Could Wreck Crypto. New York Times, Jun. 17th, 2022.
Disponível em https://www.nytimes.com/2022/06/17/technology/tether-stablecoin-cryptocurrency.html.
Acesso em 19 jun. 2022.
23 Cf. GRIFFIN, John M.; SHAMS, Amin. Is Bitcoin Really Un-Tethered? SSRN, Oct 28th 2019. Disponível
em https://ssrn.com/abstract=3195066. Acesso em 17 jun. 2022. A resposta da Tether pode ser lida em
TETHER. Tether Response to Flawed Paper by Griffin and Shams. Nov 7th, 2019. Disponível em
https://tether.to/en/tether-response-to-flawed-paper-by-griffin-and-shams/. Acesso em 17 jun. 2022.
11
A existência de um lastro fora da blockchain não é a única forma de estabilizar as
cotações de uma stablecoin com relação ao seu ativo de referência. É possível implementar
algoritmos de política monetária para controlar a emissão e o resgate dos tokens emitidos,
garantindo uma quantidade de tokens em circulação em um equilíbrio dinâmica entre as forças
de oferta e demanda pela stablecoin.
Se a paridade é mantida por algoritmos, choques abruptos de liquidez e volatilidade
podem levar a distorções que afastam o preço da stablecoin do preço do ativo de referência,
fenômeno conhecido como unpegging.
1.3.3. Terra arrasada: stablecoins nos holofotes dos reguladores
Na semana de 9.5.2022, o projeto Terra (LUNA), criado em 2019, foi vítima de um
choque de volatilidade24 . Na dinâmica do projeto, a stablecoin pode ser TerraUSD, cuja
estabilização dos preços era feita pelo controle da quantidade de outro token em circulação
LUNA, absorvendo as variações dos preços do dólar e de outros ativos de referência.
De modo simplificado, esse projeto foi criado para permitir a criação de stablecoins para
qualquer ativo de referência, por meio da “tradução” da variação da oferta e da demanda em
um token intermediário denominado LUNA.
A capitalização de mercado de Terra USD (UST) e LUNA chegou a quase US$50
bilhões em 2021. Em um tweet de 6.4.202225, Do Kwon, o fundador do projeto postou que
regou suas plantas, escreveu alguns e-mails, comprou o equivalente a US$230 milhões em
bitcoins, passou aspirador de pó na casa, comeu um lanche no McDonald's e iria passear com
seu cachorro. Mal poderia imaginar que o pior cenário possível viria a ocorrer com UST e
LUNA dali a pouco mais de um mês, quando a cotação de LUNA viria a zero.
Considerando que as stablecoins são um ponto de contato importante entre as soluções
DeFi (e a criptoeconomia em geral) e o sistema financeiro tradicional, não é à toa que as
autoridades monetárias estão preocupadas com os riscos que podem trazer26, especialmente
em virtude do ocorrido com o projeto Terra (LUNA).
24 MARTINES, Fernando. Preço de LUNA vai a zero e Terra “desliga” blockchain da criptomoeda. Portal do
Bitcoin, 12 maio 2022. https://portaldobitcoin.uol.com.br/preco-de-luna-vai-a-zero-e-terra-desliga-blockchain-
da-criptomoeda/. Acesso em 17 jun. 2022.
25 Disponível em https://twitter.com/stablekwon/status/1511614014517755909. Acesso em 17 jun. 2022.
26 MARQUES, Gabriel. Ex-presidente do Fed: “Stablecoins são risco à estabilidade financeira”. Exame, 10 maio
2022. https://exame.com/future-of-money/ex-presidente-do-fed-stablecoins-sao-risco-a-estabilidade-
financeira/. Acesso em 17 jun. 2022.
12
2. Descentralização “apenas no nome”27
Paradoxalmente, sugiram projetos de depósitos remunerados de criptoativos sem ter a
infraestrutura descentralizada. Assim como as exchanges centralizadas têm sido protagonistas
na negociação de criptoativos, essas plataformas têm sido equivocadamente rotuladas como
DeFi, quando, na verdade, são soluções centralizadas de serviços financeiros.
A implementação de projetos genuinamente centralizados é complexa, como veremos
na próxima seção, e, ainda, a execução de smart contracts depende do pagamento de custos de
processamento na rede Ethereum. A proliferação de novos modelos de negócios baseados em
Ethereum levou o valor do GAS (a taxa paga para a realização de transações) sem precedentes
ao longo de 202128. Taxas elevadas prejudicam pequenos investidores, pois são impeditivas
para valores modestos.
Alguns desses modelos sucumbiram diante da atuação de reguladores ou, então, em
virtude da forte desvalorização dos preços dos criptoativos em geral a partir de novembro de
2021, acelerada pela fuga de ativos de maior risco, pelos investidores, diante do aumento das
taxas de juros em todo o mundo e, ainda, por incidentes que comprometeram a credibilidade
na criptoeconomia, como o colapso do projeto Terra (LUNA).
2.1. BlockFi e Coinbase USDC APY
A plataforma BlockFi começou a funcionar em abril de 2019 com sede em New Jersey,
oferecendo o serviço de pagamento periódico de remuneração de depósitos em criptoativos de
seus clientes29. Em março de 2021, 572.160 clientes detinham US$ 14,7 bilhões em contas
27 O autor gostaria de agradecer nesse ponto do texto ao amigo Courtnay Guimarães, que coordena grupos
virtuais de discussão repletos de pessoas dispostas a compartilhar conhecimento. Courtnay me chamou a
atenção para uma designação curiosa para esse tipo de solução, que teria sido cunhada pelo atual presidente da
SEC, Gary Gensler: DINO, que é o acrônimo para Decentralized In Name Only, ou seja, “descentralizado
apenas no nome”. Cf. HOLLERITH, David. Why SEC's Gensler is calling for more investor protections as
DeFi blossoms. Yahoo finance, Oct. 27th, 2021. Disponível em https://finance.yahoo.com/news/why-se-cs-
gensler-is-calling-for-more-investor-protections-as-de-fi-blossoms-164203144.html. Acesso em 19 jun. 2022.
28 OECD. Why Decentralised Finance (DeFi) Matters and the Policy Implications. Paris, 2022, p. 24. Disponível em
https://www.oecd.org/finance/why-decentralised-finance-defi-matters-and-the-policy-implications.htm.
Acesso em 19 jun. 2022. Como descreve o estudo da OCDE, na rede Ethereum, “every block has a base fee, the
minimum price per unit of gas for inclusion in this block, calculated by the network based on demand for block
space. As the base fee of the transaction fee is burnt, users are also expected to set a tip (priority fee) in their
transactions. The tip compensates miners for executing and propagating user transactions in blocks and is
expected to be set automatically by most wallets. Users can submit transactions with a maximum fee per gas
corresponding to how much they are willing to pay for the transaction to be executing, knowing that they will
not pay more than the market price for gas (base fee per gas), and get any extra, minus their tip, refunded”.
29 UNITED STATES SECURITIES AND EXCHANGE COMMISION. BlockFi Agrees to Pay $100 Million in
Penalties and Pursue Registration of its Crypto Lending Product. Washington, Feb. 14th, 2022. Disponível em
https://www.sec.gov/news/press-release/2022-26. Acesso em 19 jun. 2022.
13
remuneradas. Os recursos eram transferidos para a carteira (wallet) da BlockFi e a custódia era
mantida por terceiros contratados por esta.
A Securities and Exchange Commision (SEC), regulador norte-americano, entendeu
que houve oferta pública de um título para o qual havia a expectativa de benefício econômico,
o qual decorreria do esforço da BlockFi. A SEC detectou, ainda, que boa parte dos empréstimos
não exigia garantia em excesso, ao contrário do que a empresa informava publicamente.
Por se tratar de um valor mobiliário (security)30, a oferta deveria ter sido registrada
junto à SEC, razão pela qual a BlockFi foi obrigada a suspender a prestação do serviço e
encerrar o imbróglio mediante o pagamento de multas no total de US$ 100 milhões em
fevereiro de 2022. A empresa anunciou publicamente que buscará obter o registro junto à SEC
e voltará a oferecer as contas de depósito remunerado, apesar de críticas no sentido de que a
aprovação desse registro será demorada ou pode nunca vir a ocorrer31.
A Coinbase, exchange centralizada com ações negociadas na Nasdaq, anunciou um
produto semelhante em setembro de 2021, denominado USDC APY32. Enquanto os usuários
da Coinbase detivessem a stablecoin USDC, receberiam remuneração superior às taxas usuais
de mercado. A SEC entendeu que, a partir das informações contidas na divulgação, o produto
era um valor mobiliário e deveria ser registrado, o que levou a Coinbase a suspender os planos
de lançamento e questionar a falta de clareza acerca do que é ou não permitido pela regulação
do mercado de capitais33.
Vários estados norte-americanos iniciaram investigações ou emitira ordens restritivas
para outras plataformas de depósitos remunerados, notadamente Celsius e Nexo34 . Em
setembro de 2021, a plataforma Celsius contava com cerca de 350 mil usuários e o equivalente
a US$ 12,5 bilhões em custódia.
30 Foge do escopo desse texto o detalhamento dos critérios utilizados pelos reguladores para definir se
determinado ativo ou produto é um valor mobiliário. Uma análise pode ser encontrada em COSTA, Isac
Silveira da. Plunct, plact, zum: Tokens, valores mobiliários e a CVM. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga;
PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro. (Org.). Criptoativos: estudos jurídicos, regulatórios e tributários.
São Paulo: Quartier Latin, 2021.
31 DECRYPT. Multada, mas feliz: por que BlockFi se considera vitoriosa por pagar multa de US$ 100 milhões?
Portal do Bitcoin, 21 fev. 2022. Disponível em https://portaldobitcoin.uol.com.br/multada-mas-feliz-por-que-
blockfi-se-considera-vitoriosa-por-pagar-multa-de-us-100-milhoes/. Acesso em 19 jun. 2022.
32 COINBASE. Update as of 5pm ET, Friday, September 17th: we are not launching the USDC APY program
announced below, Jun. 29th, 2021. Disponível em https://blog.coinbase.com/sign-up-to-earn-4-apy-on-usd-coin-
with-coinbase-cdad79e5f5eb. Acesso em 19 jun. 2022.
33 Brian Armostrong, CEO da Coinbase narrou os eventos em sua conta no Twitter -
https://twitter.com/brian_armstrong/status/1435439291715358721/. Acesso e 19 jun. 2022.
34 STARK, John Reed. State Crypto Lending Concerns Point To SEC Action Ahead. Law 360, Oct. 22nd, 2021.
Disponível em https://www.johnreedstark.com/wp-
content/uploads/sites/180/2021/10/Law360StarkArticle.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
14
2.2. Celsius, Babel e Anchor
Apesar da atuação pontual de estados norte-americanos, a plataforma Celsius
continuou a oferecer seus serviços globalmente, chegando a captar US$ 750 milhões em
novembro de 2021, chegando a um valuation de US$ 3,5 bilhões, enquanto anunciava taxas de
retorno anuais da ordem de 18%35.
Entretanto, entre dezembro de 2021 e maio de 2022, o total de valores depositados na
plataforma caiu pela metade, de US$ 24 bilhões para US$ 12 bilhões36. A frequência e volume
dos saques foi atribuída à desvalorização dos criptoativos no período, suscitando preocupações
quanto à capacidade de a empresa honrar os pedidos de resgate. O token $CEL, que chegou a
ser cotado a US$ 8 em junho de 2021, era negociado a cerca de US$ 0,60 em maio de 2022.
A empresa negou publicamente que negociava discricionariamente com os ativos de
seus clientes, atribuindo a rentabilidade a outras estratégias de negócio. Alex Mashinsky, CEO
da empresa, rebateu críticos assegurando que nenhum cliente enfrentava restrições ou
obstáculos para resgatar seus recursos.
Porém, em 13.6.2022, a empresa anunciou o bloqueio de saques, causando enorme
preocupação nos investidores de criptoativos e nas autoridades, com a justificativa de
“beneficiar toda a comunidade ao estabilizar a liquidez e as operações enquanto são tomadas
medidas para preservar e proteger os ativos”37.
Um colapso da Celsius pode ter um efeito devastador na cadeia de interdependências
das plataformas de empréstimos, devido a débitos da própria Celsius nesses ambientes, levando
a liquidações compulsórias em cascata, levando a uma variação abrupta nos preços dos
criptoativos envolvidos38, além de afetar significativamente a credibilidade dos agentes de
mercado.
Aparentemente, alguns dos investimentos realizados pela Celsius envolveram o projeto
Terra (LUNA), que entrou em colapso e, ainda, tokens representativos da nova versão do
protocolo Ethereum, que têm sofrido desvalorização abrupta.
35 QUARMBY, Brian. Celsius expands funding round to $750M, tips $7B to $10B valuation in 2022. Coin
Telegraph, Nov. 25th, 2021. Disponível em https://cointelegraph.com/news/celsius-expands-funding-round-
to-750m-tips-7b-to-10b-valuation-in-2022. Acesso em 19 jun. 2022.
36 SHUBBER, Kadhim; CHIPOLINA, Scott. Crypto lender Celsius Network stung by sell-off in digital asset
market. Financial Times, May 21st 2022. Disponível em https://www.ft.com/content/61334d19-fb25-4492-
83d0-78c3cfec4df8. Acesso em 22 maio 2022.
37 SAMSON, Adam et al. Bitcoin tumbles after crypto lender Celsius blocks all redemptions. Financial Times,
Jun. 13th, 2022. Disponível em https://www.ft.com/content/25ac1667-9f50-4f16-b553-448ea4582613. Acesso
em 13 jun. 2022.
38 ELDER, Bryce. Celsius melts as ether smoked. Financial Times, Jun. 13th, 2022. Disponível em
https://www.ft.com/content/0d503e3c-d624-4331-8c7f-4c7c42239472. Acesso em 13 jun. 2022.
15
Adicionalmente, em meio à queda dos preços dos criptoativos, a plataforma de
empréstimos Babel, avaliada em US$ 2 bilhões, com cerca de US$ 3 bilhões em custódia no
final de 202139.
Por fim, vale apontar que a plataforma Anchor, que remunerava depósitos em UST do
projeto Terra (LUNA) em cerca de 20% ao ano, também entrou em colapso, gerando perdas
para várias empresas do setor que eram seus clientes e investidores, como Jump Crypto, Three
Arrows Capital (3AC), Coinbase Ventures, Lightspeed Venture Partners e Galaxy Digital
(cujo CEO, Mike Novogratz, chegou a fazer uma tatuagem relacionada ao projeto)40.
O elevado retorno prometido pela plataforma, considerado insustentável por muitos,
sugeria o risco de se tratar de um esquema Ponzi, mas outros consideravam que era apenas
uma estratégia agressiva de captação dos clientes e que, posteriormente, a taxa seria revisada.
Ao final, o valor de capitalização de mercado de cerca de US$ 40 bilhões foi simplesmente
vaporizado.
3. Soluções genuinamente descentralizadas
3.1. Remuneração de depósitos – money legos, yield farming
A maior parte das soluções DeFi utiliza a rede Ethereum, que permite a programação
de smart contracts e a criação de regras de negócio específicas para cada aplicação
descentralizada (decentralized application – dApp) e cada projeto tem seu próprio criptoativo,
usualmente um token com a função de certificado de depósito e outro com função de
governança, oferecendo o poder de participar das deliberações daquele projeto.
Nessas plataformas, o montante global de criptoativos depositados é usualmente
referido como total value locked (TVL). De acordo com o serviço de agregação de dados Defi
Llama41, em 19.6.2022, havia o equivalente a US$ 45,73 bilhões em TVL em 502 protocolos
DeFi na rede Ethereum, correspondendo a 64% do TVL de todas as redes, que era de US$ 72
bilhões. As posições seguintes eram ocupadas pela Binance Smart Chain (BSC, com 406
projetos e 8,22% do TVL total), Tron (9 projetos, 5,58%), Avalanche (220 projetos, 3,61%),
Solana (72 projetos,3,49%) e Polygon (264 projetos, 2,29%).
39 SHEN, Muyao. Após Celsius, credora Babel Finance suspende saques dos clientes. Valor, 17 jun. 2022.
Disponível em https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2022/06/17/apos-celsius-credora-
babel-finance-suspende-saques-dos-clientes.ghtml. Acesso em 17 jun. 2022.
40 LOPATTO, Elizabeth. How the Anchor protocol helped sink Terra. The Verge, May 20th, 2022. Disponível
em https://www.theverge.com/2022/5/20/23131647/terra-luna-do-kwon-stablecoin-anchor. Acesso em 17
jun. 2022.
41 Disponível em https://defillama.com/chains. Acesso em 19 jun. 2022.
16
Na plataforma Compound42, os criptoativos detidos pelos poupadores (credores) são
emprestados mediante taxas pagas pelos tomadores, deduzidas de uma taxa de intermediação
que remunera os participantes da rede43.
Ao contrário do que ocorre em um procedimento de análise de crédito, o tomador não
precisa fornecer nenhuma informação pessoal, não há processo de know your cliente (KYC) e a
concessão do empréstimo é automática mediante a prestação de garantias em criptoativos,
exigidas em excesso para assegurar o adimplemento das obrigações e a estabilidade do sistema.
A taxa do empréstimo é fixada dinamicamente conforme o saldo de criptoativos no
fundo de liquidez (liquidity pool). Quando mais abundante for o criptoativo nesse fundo, menor
é a taxa da operação, de modo a atrair tomadores. Do outro lado, quanto mais escasso, maior
será a taxa, de modo a atrair credores para aumentar a oferta daquele criptoativo no fundo de
liquidez.
A taxa flutuante de juros e o excesso de garantias exigidas são apontados como
mecanismos que previnem uma “corrida bancária” na plataforma.
Conforme as regras do protocolo Compound, a capitalização ocorre em pequenos
intervalos – tão curtos quanto 15 segundos, o tempo de mineração de um bloco na rede
Ethereum – e as taxas são expressas em termos anuais. O cálculo é feito segundo a lógica de
juros compostos. Em cada ciclo da operação, aplica-se a taxa anual dividida por 2.102.400 =
365 dias × 24 horas × 60 minutos × 4 blocos de 15 segundos.
Os credores recebem cTokens (associados aos criptoativos depositados, de modo que
há cETH, cDAI etc.), que representam a valorização dos criptoativos depositados. Os credores
controlam a chave privada desses tokens, de modo a permitir o seu resgate sem a necessidade
de autorização de um ente central. Essa funcionalidade nos permite afirmar que Compound é
uma solução DeFi genuinamente descentralizada, embora haja críticas sobre aspectos da
implementação que utilização uma lógica centralizada44.
O protocolo conta também com o token $COMP, distribuídos igualmente entre
credores e tomadores segundo o volume de suas operações, que confere a seus titulares o
42 O projeto foi idealizado pelo economista Robert Leshner e recebeu US$25 milhões em investimentos em uma
rodada liderada pelo fundo de venture capital a16z, além de ter recebido US$1 milhão em USDC do USDC
Bootstrap Fund, criado pela exchange Coinbase.
43 GERONI, Diego. What is Compound & how does it work. 101 Blockchains, Nov 9th, 2021. Disponível em
https://101blockchains.com/compound-protocol/. Acesso em 17 jun. 2022.
44 MUNSTER, Ben. Compound’s smart contracts could pose risk to Ether, DAI holders. Decrypt, Sep. 4th, 2019.
Disponível em https://decrypt.co/8932/compounds-smart-contracts-could-pose-risk-to-ether-dai-holders.
Acesso em 20 jun. 2022. O debate pode ser acompanhado no Twitter em
https://twitter.com/rleshner/status/1169276541890547713.
17
direito de propor temas e deliberar sobre eles junto aos demais titulares – trata-se de um token
de governança45.
Na hipótese de liquidação compulsória, os tomadores permanecem com os cTokens que
receberam no início da operação, mas perdem os criptoativos dados em garantia.
O código dos smart contracts pode ser auditado para verificar se há falhas ou se há algum
desvio com relação às regras divulgadas ao mercado, assim como é possível rastrear todas as
operações realizadas, dada a publicidade da rede Ethereum, que serve de base para a
plataforma. Há, ainda, um programa de recompensas para quem detectar vulnerabilidades de
segurança e erros na programação.
Adicionalmente, os tokens recebidos como certificados de depósitos dos criptoativos
depositados (os cTokens da plataforma Compound e equivalentes de outros protocolos) podem
ser utilizados em outras plataformas para fins de depósitos, de modo que a interoperabilidade
entre elas permite a elaboração de estratégias com a combinação desses tokens, razão pela qual
são conhecidos como money legos, em alusão aos blocos de Lego utilizados para montar as mais
diversas criações.
Vários projetos semelhantes surgiram após o Compound e, para impulsionar um efeito
de rede e atrair investidores, passaram a oferecer rendimentos relevantes de modo que alguns
participantes de mercado utilizaram estratégias de spread com alavancagem, tomando recursos
emprestados em uma plataforma para oferecer empréstimos em outra (com taxas de retorno
maiores), prática que se tornou conhecida como yield farming, uma espécie de “cultivo de
rendimentos”, os quais devem ser “colhidos” após a redução das taxas pagas à medida que as
plataformas vão crescendo.
A lógica aqui descrita é semelhante à adotada em outras plataformas46, com algumas
diferenças, tais como o pagamento dos rendimentos direto na carteira (wallet) do usuário (como
ocorre no protocolo AAVE) ou, então, na taxa de conversão dos cTokens e a possibilidade de
fixação dessa taxa por períodos mais longos.
Na plataforma MakerDAO, o usuário fornece criptoativos em troca de tokens DAI (em
uma relação com exigência de garantia em excesso), uma stablecoin que pode ser utilizada para
fins de pagamento ou outras operações. Nesse caso, o DAI é um ativo que representa uma
45 Cf. OECD. Why Decentralised Finance (DeFi) Matters and the Policy Implications. Paris, 2022, p. 33-36.
Disponível em https://www.oecd.org/finance/why-decentralised-finance-defi-matters-and-the-policy-
implications.htm. Acesso em 19 jun. 2022.; INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES
COMMISSIONS. IOSCO Decentralized Finance Report. Madrid, 2022, p. 25-26. Disponível em
https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD699.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
46 Para uma descrição mais detalhada e comparação entre Maker, Compound e AAVE cf. HARVEY, Campbell
R. et al. DeFi and the future of finance. Hoboken: Wiley, 2021, Capítulo 6.
18
dívida lastreada em outros criptoativos e não simplesmente um certificado de depósito como
os cTokens da plataforma Compound, apesar de haver alguma semelhança. Plataformas como
a MakerDAO são conhecidas como CDPs, pois geram collateralized debt positions.
Por fim, vale indicar que, em algumas plataformas, existe a possibilidade de obter
empréstimos sem o fornecimento de garantias, desde que o início e o fim da transação sejam
processados no mesmo bloco (o que ocorre a cada 15 segundos na rede Ethereum). Essa
modalidade “relâmpago” de empréstimos é denominada de flash loan e merece um estudo mais
detido em virtude da possibilidade de sua utilização para práticas de manipulação de mercado
e ataques a fundos com pouca liquidez47.
3.2. Provimento de liquidez – liquidity mining
Uma das fontes de rendimento para os empréstimos fornecidos em tokens decorre das
taxas cobradas por operações de permutas que ocorrem em ambientes descentralizados.
Usualmente, você pode recorrer a uma exchange centralizada para comprar ETH
mediante pagamento em USDC. Nesse caso, terá que fazer um cadastro, que pode exigir sua
identificação e, ainda, a depender do caso, as transferências de recursos só poderão ser
provenientes de contas de sua titularidade, além de haver outras restrições para controlar as
transações para prevenir lavagem de dinheiro48.
Adicionalmente, a custódia dos ativos é comumente delegada à exchange
descentralizada, com amarras ao seu direito de propriedade – o popular adágio “se as chaves
não são suas, os ativos não são seus” (not your keys, not your coins).
Entretanto, há uma alternativa: para realizar a mesma operação de fornecer USDC para
receber ETH, você poderá recorrer a uma exchange descentralizada (DEX), que recebe
depósitos de diferentes usuários e cria fundos de liquidez (liquidity pool) para pares de
criptoativos – no exemplo dado, um par ETH-USDC. A descentralização decorre do fato de
que não há necessidade da estrutura tradicional de uma exchange centralizada, não há cadastro
de usuários ou sistemas de compliance, nem mesmo há a necessidade de haver um livro de
ofertas.
47 QIN, Kaihua et al. Attacking the DeFi Ecosystem with Flash Loans for Fun and Profit. Financial
Cryptography and Data Security, v. 12674, 2021. Disponível em https://arxiv.org/pdf/2003.03810.pdf. Acesso
em 19 jun. 2022.
48 Um exemplo didático de controles existentes em uma exchange centralizada é a descrição fornecida pela Bitso
a respeito de sua atuação no Brasil em FREITAS, Thales. Como a Bitso, plataforma de criptomoedas líder na
América Latina, opera no Brasil de forma confiável e segura? Bitso, 17 jun. 2022. Disponível em
https://blog.bitso.com/pt-br/bitso-br/bitso-segura. Acesso em 18 jun. 2022.
19
Nesses ambientes, é preciso compreender a perspectiva dos investidores e, de outro
lado, a dos depositantes.
Ao permutar os criptoativos que desejam os investidores diminuem o número de tokens
de um deles e aumentam o outro, segundo uma taxa de conversão que decorre eminentemente
da participação de formadores de mercado (market makers ). Toda a negociação é programada
em smart contracts.
Os formadores de mercado procuram assegurar que as taxas de conversão – em última
análise, o preço de um criptoativo expresso em termos do número de tokens do outro criptoativo
– esteja em linha com outros ambientes de negociação, por meio de estratégias de arbitragem,
explorando discrepâncias temporárias nos preços.
Traçando um paralelo com a intermediação tradicional de valores mobiliários, o fundo
de liquidez funciona como se fosse a carteira própria daquele intermediário, que serve de
contraparte para seus clientes, em um modelo conhecido como internalização de ordens49.
Assim, o intermediário é o comprador contra as ofertas de venda recebidas e o vendedor contra
as ofertas de compra. No arranjo descentralizado, o fundo de liquidez é a contraparte das
operações, resultando na variação das quantidades do saldo de tokens.
Ainda, no modelo descentralizado, o valor da corretagem que seria pago a um
intermediário centralizado pode ser revertido para outras finalidades, como, por exemplo,
remunerar os depositantes dos recursos que permanecem no fundo de liquidez. As regras de
negócio e outros aspectos da dinâmica da plataforma podem ser alteradas mediante
deliberações dos titulares de tokens de governança.
É comum encontrarmos uma stablecoin como um dos criptoativos em um par de um
fundo de liquidez, mas isso não é sempre necessário. Pode haver também pares de stablecoins.
A seguir, detalhamos alguns aspectos relevantes do funcionamento desses fundos de liquidez,
com atenção à perspectiva do depositante de criptoativos (quem efetivamente fornece a
liquidez) e os riscos nos quais incorre.
3.3. A dinâmica dos fundos de liquidez (liquidity pools)
Podemos conceber a formação de um fundo de liquidez contendo dois criptoativos como
uma série de integralizações (ou resgates) com aportes (ou saques) de tokens que aumentam o
valor global do fundo (ou o reduzem).
49 Tive a oportunidade de discutir o tema e sua eventual autorização no mercado brasileiro em COSTA, Isac
Silveira da. XP Facilitation, Oferta RLP e Internalização à Brasileira. Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais, v. 92, abr./jun. 2021.
20
Em um fundo de liquidez contendo o par de criptoativos A e B, há dois aspectos
operacionais importantes: (a) deve ser mantida uma proporção fixa entre o valor total dos
tokens A e o valor total dos tokens B (por exemplo, 50%/50%); e (b) a quantidade de tokens A
varia na proporção inversa à quantidade de tokens B, a fim de que seja mantida a proporção
indicada enquanto os preços dos tokens variam entre si.
Dada a quantidade de tokens A que se deseja negociar, a transação terá reflexo na
quantidade de tokens B que será depositado ou resgatado, conforme o caso, com base nas duas
regras indicadas acima.
Uma referência importante para a implementação dessas regras é o código da
plataforma Uniswap50. A relação de proporcionalidade inversa é fundamental para definir uma
premissa de programação que permite aos usuários prescindir da especificação do preço em
uma negociação. Esta regra é conhecida como fórmula do produto constante51
, mas nada mais é
do que a expressão matemática da afirmação “a quantidade de tokens A é inversamente
proporcional à quantidade de tokens B” ao longo do tempo.
𝑞 𝐴 → 𝑞 𝐴 𝑞 𝐵 𝑘 (1)
Por seu turno, a regra da proporção fixa toma como referência o valor dos tokens e não
a sua quantidade. Se A é ETH e B é uma stablecoin como USDC, a proporção é 50%/50% e a
cotação de ETH em um dado momento é de USDC 1.200, então um fundo deverá ter, por
exemplo, (USDC 12.000; ETH 10) e, nesse caso, o valor total pode ser expresso como ETH
20 ou USDC 24.000.
Outro exemplo: se A é ETH e B é WBTC52, então, podemos expressar o preço de um
criptoativo em termos de outro, mas, por ora, ainda recorremos às cotações em US$ para
calcular a cotação relativa. Podemos convencionar que p(A, B) é o preço de A expresso no
número de tokens de B e p(X, $) é a cotação do token X em US$.
Por exemplo, p(WBTC, $)= US$17.771,90 por cada WBTC e p(ETH, $) = US$901,39
por cada ETH. Logo, a razão entre esses valores nos dará p(WBTC, ETH) = ETH 19,7 por
cada WBTC. Com essa notação, é trivial generalizarmos que:
50 ANGERIS, Guillermo et al. An Analysis of Uniswap markets. Cryptoeconomic Systems, v. 1, n. 1, Apr. 2021.
Disponível em https://doi.org/10.21428/58320208.c9738e64. Acesso em 18 jun. 2022.
51 ZHANG, Yi ; CHEN, Xiaohong; PARK, Daejun. Formal specification of constant product(xy=k) market
maker model and implementation, Uniswap Github project documentation, 2018. Disponível em
https://github.com/runtimeverification/verified-smart-contracts/blob/uniswap/uniswap/x-y-k.pdf. Acesso
em 18 jun. 2022.
52 WBTC é o criptoativo wrapped bitcoin, que tem paridade com o preço do BTC, mas pode ser usado na rede
Ethereum. Mais informações em https://wbtc.network/. Acesso em 18 jun. 2022.
21
𝑝 𝐴, 𝐵
,$
,$
(2)
Assim, se um fundo de liquidez é formado pelos criptoativos A e B e seus pesos são
representados por w(A) e w(B), tal que w(A) + w(B) = 1, a regra da proporção fixa pode ser
expressa como:
,$ ,$
(3)
O numerador de cada fração acima é expresso em US$ e representa o volume financeiro
de cada token, o produto entre a quantidade de tokens e seu valor. Se a proporção for igual, a
equação é simplificada pelo cancelamento dos denominadores e a aplicação da equação (2):
𝑞 𝐵 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, 𝐵 (4)
O volume financeiro total do fundo de liquidez é designado como total value locked
(TVL) e pode ser expresso pela equação:
𝑇𝑉𝐿 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, $ 𝑞 𝐵 𝑝 𝐵, $
𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, 𝐵 𝑞 𝐵 𝑞 𝐴 𝑞 𝐵 𝑝 𝐵, 𝐴 (5)
A fórmula é bem mais simples do que parece. No exemplo anterior em que o fundo de
liquidez é expresso como (USDC 12.000; ETH 10), podemos calcular TVL = US$ 24.000 =
ETH 20 = USDC 24.000.
Essas equações são importantes para que possamos responder às seguintes perguntas:
a) Se eu desejo aportar o equivalente a US$ 1.000 em um par (USDC; ETH), qual será
a quantidade de cada token após o aporte, considerando que esse representará um
aumento de 10% no TVL e a proporção entre os tokens é 50%/50%?
b) Como viabilizar um mercado de permuta de criptoativos sem um livro de ofertas,
com um processo adequado de formação de preços?
c) Se houver uma variação dos preços relativos de ETH e USDC e eu desejar resgatar
os valores, posso incorrer em algum tipo de prejuízo?
3.3.1. Aportes no fundo de liquidez
Se você deseja aportar em um dos criptoativos (para simplificar, no stablecoin) é US$
1.000 = USDC 1.000 em um par (USDC; ETH) e a cotação de ETH é de USDC 1.000, então
deverá fornecer igualmente ETH 1 para respeitar a proporção 50%/50%. Se valor a ser
aportado (US$ 2.000 = USDC 2.000 = ETH 2) representa 10% do TVL pós-aporte, então este
será igual a US$ 20.000 = USDC 20.000 = ETH 20.
22
Pelo exposto, temos que, após o aporte, o fundo de liquidez será composto por (USDC
10.000; ETH 10). O aporte sempre se dá em pares (no exemplo, ETH 1 e USDC 1.000), com
as quantidades calculadas a partir dos parâmetros do fundo de liquidez. Existem plataformas
para facilitar essas transações (ex. Zapper), nas quais você pode conectar a sua carteira e indicar
a quantidade que deseja depositar, sendo feita a conversão e o depósito nas quantidades
adequadas.
Quando um dos criptoativos é uma stablecoin e as proporções são iguais, os cálculos são
simplificados. Porém, no caso mais genérico, se os pesos de dois tokens A e B são w(A) e w(B),
tal que w(B) = 1 – w(A) e o aporte a ser realizado em tokens A é dado como v(A, $),
representando um acréscimo f no TVL, e, ainda, sendo as cotações originais de A e B p(A,$) e
p(B, $), então, após o aporte, teremos53:
𝑞 𝐴
,$
,$
𝑒 𝑇𝑉𝐿 𝑒𝑚 $ (6)
𝑞 𝐵 1 𝑤 𝐴
$
,$
1
,$
(7)
Ainda, o aporte feito em cada token é:
∆𝑞 𝐴 𝑓 𝑞 𝐴
,$
,$
(8)
∆𝑞 𝐵 𝑓 𝑞 𝐵 (9)
A vantagem das fórmulas acima é permitir o cálculo da quantidade final de cada token
em um fundo de liquidez com qualquer par e em qualquer proporção, desde que tenhamos as
cotações iniciais de cada token, o valor do aporte em um dos tokens, o peso desse token e a
variação percentual do TVL após o aporte.
Ainda, o raciocínio empregado, mais genérico, é útil para subsidiar fórmulas ainda mais
gerais, quando há diversos criptoativos no fundo de liquidez, cada um com um peso específico,
que pode ser estático ou dinâmico – hipóteses adotadas em protocolos DeFi mais recentes,
como Balancer54 e Curve (Stableswap)55.
O percentual de acréscimo no TVL pode ser interpretado como a participação daquele
investidor no montante global do fundo de liquidez. Por isso, é conveniente pensar que todos
53 Se você fizer A = USDC, B = ETH, v(A, $)=US$ 1.000; f = 0,1; w(A) = w(B) = 0,5; p(A, $) = US$ 1/USDC e
p(B, $) = US$ 1.000/ETH, chegará a q(A) = USDC 10.000 e q(B) = ETH 10, com TVL = US$ 20.000, como
descrito anteriormente. Nessa hipótese, inclusive, a equação (7) é equivalente à equação (4).
54 Cf. MARTINELLI, Fernando; MUSHEGIAN, Nikolai. A non-custodial portfolio manager, liquidity provider,
and price sensor (Balancer Whitepaper), 2019. Disponível em https://balancer.fi/whitepaper.pdf. Acesso em 19
jun. 2022.
55 Cf. EGOROV, Michael. StableSwap - efficient mechanism for Stablecoin Liquidity (Stableswap Whitepaper), 2019.
Disponível em https://curve.fi/files/stableswap-paper.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
23
os cálculos acima representariam uma operação de integralização no patrimônio do fundo, o
qual irá variar a partir deste estado inicial, em virtude da movimentação dos preços e de novos
aportes e resgates.
Neste passo da descrição, convém detalhar a atuação do formador de mercado, como as
quantidades de tokens variam para manter a proporção fixa e como os investidores negociam
contra o fundo de liquidez, como alternativa às exchanges centralizadas.
3.3.2. Formação de preços – automated market making
Vimos que as operações são realizadas tendo como contraparte o fundo de liquidez
(liquidity pool), que é constituído a partir de depósitos de provedores de liquidez, que emprestam
seus criptoativos (podendo retirá-los a qualquer momento) em troca de uma remuneração.
Essas operações são realizadas por investidores e por formadores de mercado e esses últimos
implementam estratégias automatizadas de arbitragem com base nas regras do protocolo que
controla o fundo de liquidez, razão pela qual são conhecidos como automated market makers
(AMM)56.
Caso os preços no fundo de liquidez sejam inferiores (superiores) aos do mercado, o
arbitrador irá comprar (vender) contra o fundo de liquidez e vender (comprar) no mercado que
possui o preço de referência (por exemplo, uma exchange centralizada com um livro de ofertas).
Dessa maneira, os arbitradores contribuem para que os preços no fundo de liquidez
convirjam para os preços de referência no mercado.
Para entender o processo de formação de preços utilizando um fundo de liquidez como
alternativa a um livro central de ofertas, devemos lembrar da necessidade básica que deve ser
atendida: um investidor deseja adquirir tokens B mediante pagamento em tokens A, ou seja,
realizar uma permuta (swap, mas não no sentido específico do derivativo de conhecemos com
esse nome). Quando um dos tokens é uma stablecoin, é mais fácil enxergarmos essa operação
como uma compra e venda – você deseja adquirir ETH pagando com USDC.
Mencionamos anteriormente a fórmula do produto constante – razão pela qual os
AMM deste mercado também são chamados de constant function market makers 57 – que
56 A descrição desta seção contempla o modelo adotado pelo protocolo Uniswap, porém o protocolo Bancor é
considerado o pioneiro na implementação deste mecanismo para soluções DeFi. Cf. SULEMANJI, Nawaz.
Bancor network releases stable liquidity pools to help build DeFi ecosystem. Decrypt, Oct. 8th, 2019. Disponível
em https://decrypt.co/10058/bancor-network-releases-stable-liquidity-pools-to-help-build-defi-ecosystem.
Acesso em 19 jun. 2022.
57 Na verdade, o produto não é exatamente constante, mas varia a cada nova transação em virtude da cobrança
de uma taxa de intermediação que é revertida para aumentar o fundo de liquidez. Veja uma análise detalhada
desse mecanismo e alternativas em BERENZON, Dmitriy. Constant Function Market Makers: DeFi’s “Zero to
One” Innovation. Medium, Apr. 23, 2020. Disponível em https://medium.com/bollinger-investment-
group/constant-function-market-makers-defis-zero-to-one-innovation-968f77022159. Acesso em 18 jun. 2022.
24
determina as quantidades de tokens no fundo de liquidez e, ao mesmo tempo, a relação de troca
entre eles, isto é o preço de um token expresso em termos do outro. As principais equações que
regem essa dinâmica são reproduzidas novamente a seguir, considerando pesos iguais
(50%/50%).
𝑞 𝐴 𝑞 𝐵 𝑘 (1)
𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, $ 𝑞 𝐵 𝑝 𝐵, $ (3)58
𝑞 𝐵 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, 𝐵 (4)
Convencionamos também que p(A, B) é o preço de A expresso em tokens B, ou seja,
p(ETH, USDC) é o preço de ETH expresso em USDC, por exemplo.
Quem observa as quantidades do fundo de liquidez em um determinado instante,
consegue observar a cotação p(A, B) e tomar decisões de compra ou venda de A ou B em razão
das cotações de A ou B em outros ambientes de negociação, identificando oportunidades de
arbitragem.
Ao mesmo tempo, quem simplesmente deseja permutar A por B ou vice-versa (comprar
ETH pagando em USDC ou vender ETH recebendo em USDC) tem a informação sobre a
cotação da operação. Por essa razão, um fundo de liquidez com boa formação de preços (i. e.,
atuação efetiva de arbitradores) pode desempenhar a função de ser uma fonte fidedigna de
cotações, bastando olhar para os dados no registro distribuído (ledger). Fala-se, assim, que um
fundo de liquidez pode servir como um “on-chain price oracle”59.
Considerando o estado do fundo de liquidez ao final do aporte realizado na seção
anterior, temos (USDC 10.000; ETH 10), do que decorre que p(ETH, USDC) = USDC
1.000/ETH. Se retirarmos ETH e acrescentarmos USDC, o produto da quantidade dos tokens
deve permanecer constante (equação (2)), do que decorre a alteração de p(A, B) para que a
proporção entre os tokens no fundo de liquidez permaneça fixa (equação (4)).
Logo, as operações realizadas contra o fundo de liquidez tomam como referência uma cotação
inicial e, após a variação das quantidades, conduzem a uma nova cotação. Essa é a dinâmica da
formação de preços sem a necessidade do envio de ordens especificando quantidade e preço, mas apenas
ordens especificando quantidades.
58 Os pesos indicados no denominador da equação (3) foram cancelados por serem iguais. Ainda, (3) e (4) são
equivalentes, pois a primeira usa as cotações dos tokens em US$ e a segunda a relação de troca entre eles, que
pode ser obtida a partir daquelas cotações. Quando um dos tokens é uma stablecoin com paridade com US$, (3) é
idêntica a (4).
59 Cf. ANGERIS, Guillermo; CHITRA, Tarun. Improved Price Oracles: Constant Function Market Makers.
AFT '20: Proceedings of the 2nd ACM Conference on Advances in Financial Technologies, Oct. 2020. Disponível em
https://doi.org/10.48550/arXiv.2003.10001. Acesso em 18 jun. 2022.
25
Nesse sentido, os formadores de mercado atuam junto com os investidores para
conduzir a variação das quantidades e, com isso, fazer com que os preços convirjam para
patamares de referência adequados.
Graficamente, a equação (1) traduz uma função do tipo y = f(x) = k/x e a figura abaixo
mostra em (A) o comportamento das quantidades relativas após a permuta de tokens, quando
há aumento de A e diminuição de B ou vice-versa no fundo de liquidez em virtude de
investidores “comprarem” B pagando em “A” ou vice-versa. Note que essas operações
representam movimentos ao longo da curva convexa indicada e as variações nos eixos
representam as quantidades permutadas.
Em uma operação na qual o investidor fornece x para receber y (permuta de x por y), a
operação é um deslocamento para a direita e para baixo na curva e Δx é a quantidade que o
fundo de liquidez recebe do token x (quantidade fornecida pelo investidor), há aumento de x e
correspondente decréscimo de y expresso como Δy, que é a quantidade retirada do fundo
(recebida pelo investidor). Se, por outro lado, o investidor fornece y para receber x (permuta
de y por x), o movimento ao longo da curva é para a esquerda e para cima.
Figura 1. Variação de quantidades no fundo de liquidez formado pelos tokens x e y
segundo a fórmula do produto constante60
.
Adicionalmente, em (B) observamos o comportamento da curva quando há um aporte
ou resgate de tokens como descrito na seção anterior. Nesse caso, a curva se desloca para a
direita e para cima (no caso de aportes) ou para a esquerda e para baixo (no caso de resgates).
60 Reprodução do gráfico contido em SCHÄR, Fabian. Decentralized Finance: On Blockchain- and Smart
Contract-Based Financial Markets. Federal Reserve Bank of St. Louis Review, Second Quarter 2021, p. 153-74.
Disponível em https://doi.org/10.20955/r.103.153-74. Acesso em 18 jun. 2022.
26
Note que o produto constante deve ser observado nas operações de permuta e não nos aportes
e resgates.
Vale ressaltar, ainda, que o formato da curva sinaliza um comportamento desejável para
um fundo de liquidez: quando a quantidade de um dos tokens fica bastante reduzida seu preço
expresso em termos do outro token aumenta significativamente, dificultando a permuta
(quando nos movimentamos para o extremo de um dos eixos). Assim, há desincentivos para o
esgotamento da quantidade de cada token, de modo a viabilizar a manutenção do fundo de
liquidez.
3.3.3. Um risco para o provedor de liquidez – impermanent loss
O provedor de liquidez recebe tokens como certificados de depósito (podendo utilizá-los
em outras plataformas como money legos) e também recebe parte da taxa cobrada pelas
operações com os criptoativos contidos no fundo de liquidez, proporcional à sua participação.
Vimos que o aporte de recursos pode ser interpretado como uma operação de
integralização de participação. De forma análoga, o resgate de recursos do fundo de liquidez
pode ser interpretado como uma operação de resgate de cota, na qual a restituição se dará na
medida da participação do investidor no fundo.
Assim, quem depositou ETH 1 e USDC 1.000 (como em exemplos anteriores) para um
equivalente de 10% no TVL pós-aporte (uma participação de 10% no fundo, portanto, não
necessariamente fará jus à mesma quantidade de tokens que aportou. Na medida que o TVL
varia, o provedor de liquidez fará jus ao seu quinhão, calculado sobre o valor atual, ou seja 10%
do TVL, conforme a participação adquirida.
Dessa constatação decorre a possibilidade de que, conforme a variação dos preços em
mercado e da relação de troca entre os tokens, o valor equivalente resgatado pelo provedor de
liquidez (número de tokens multiplicado pelo seu preço) seja inferior ao valor que teria caso não
tivesse contribuído para o fundo. Pode ocorrer, assim, uma perda patrimonial.
Enquanto o resgate não é efetivado, essa perda ainda não realizada pode ser calculada
e recebe o nome de impermanent loss61, que poderíamos traduzir como prejuízo transitório ou
não realizado.
61 Apesar da semelhança entre os termos, não podemos confundir impermanent com impairment. No primeiro
caso, temos um adjetivo que traz a ideia de situação transitória, ainda não aperfeiçoada, concluída. No segundo
caso, trata-se de termo da contabilidade utilizado quando um ativo registrado nas demonstrações financeiras
deve ter seu valor revisado em função de diversas circunstâncias. Essa revisão é conhecida como redução ao
valor recuperável e é disciplinada no Pronunciamento CPC 01 (R1) - Redução ao Valor Recuperável de Ativos,
disponível em http://www.cpc.org.br/CPC/Documentos-Emitidos/Pronunciamentos/Pronunciamento?Id=2.
Acesso em 19 jun. 2022. De certo modo, a despeito da diferença entre os termos, há uma conexão semântica
entre eles, na medida em que, ao avaliar o valor dos tokens depositados em um fundo de liquidez, você deverá
27
No fundo de liquidez indicado no exemplo da seção 3.3.1, temos, após o aporte (USDC
10.000; ETH 10). Se, em razão de variação dos preços de mercado, temos p(ETH, $) = US$
2.000/ETH e p(USDC, $) = US$ 1/USDC, então, p(ETH, USDC) = USDC 2.000/ETH.
Nesse caso, a proporção fixa de 50%/50% deixa de ser respeitada, pois temos (USDC
10.000; ETH 10 = USDC 20.000). A atuação de arbitradores fará com que as quantidades dos
tokens sejam alteradas para refletir a nova cotação. Para determinar o resultado dessas
operações, basta recorrermos às equações (2), (3) e (4) indicadas anteriormente.
Precisamos determinar as novas quantidades de tokens q(A)* e q(B)* e dispomos das
quantidades iniciais q(A) e q(B). Pela fórmula do produto constante, temos que q(A)* × q(B)*
k = q(A) × q(B), pela equação (2).
Ainda, q(B)* = q(A) * × p(A, B)*, onde p(A, B)* é a nova relação de troca entre os tokens
(o preço de A expresso em número de tokens B), pela equação (4).
Temos, assim, um sistema de duas equações com duas variáveis. Assim: q(A)* × q(B)*
= q(A) × q(B) e q(B)* = q(A) * × p(A, B)* → q(B)*2 = q(A) * × q(B)* × p(B, A)* = q(A) × q(B)
× p(A, B)*. Logo,
𝑞 𝐵 ∗
𝑞 A 𝑞 B 𝑝 𝐴, B ∗ (10)
e 𝑞 𝐴 ∗
, ∗
(11)
Por conseguinte, se A = USDC, B = ETH, q(A) = USDC 10.000, q(B) = ETH 10, p(A,
B)* = 1 / p(B, A)* = 1 / p(ETH, USDC)* = 1 / 2.000, então q(A) * = USDC 14.142,14 e q(B)*
= ETH 7,0711.
O novo estado do fundo de liquidez será (USDC 14.142,14 = US$ 14.142,14; ETH
7,0711 = US$ 14.142,14). Observe que a proporção 50%/50% foi observada e temos um novo
TVL = 2 × US$ 14.142,14 = US$ 28.284,27.
Ao realizar o resgate de 10% do TVL, o provedor de liquidez obterá o equivalente a
US$ 2.828,43. Por outro lado, se tivesse mantido em sua carteira os tokens que aportou, teria
USDC 1.000 = US$ 1.000 e ETH 1 = Us$ 2.000 na cotação atual, totalizando US$ 3.000.
Observamos, assim, uma perda de US$ 171,57 (5,72%).
O prejuízo decorrente da diferença entre o valor dos tokens detidos pelo provedor de
liquidez caso não fossem aportados no fundo e o valor equivalente desses tokens na cotação
levar em conta na escrituração a perda ainda não realizada, caso exista, o que guarda certa semelhança com um
teste de recuperabilidade, mas, a meu ver, é algo mais próximo de uma variação no valor justo, adotado como
base de mensuração de instrumentos financeiros, conforme o Pronunciamento CPC 48 – Instrumentos
Financeiros, disponível em http://www.cpc.org.br/CPC/Documentos-
Emitidos/Pronunciamentos/Pronunciamento?Id=106. Acesso em 19 jun. 2022.
28
atual do fundo é denominado de impermanent loss, uma vez que a perda efetiva só ocorrerá se
houver resgate e a movimentação dos preços pode fazer com que seja revertida.
Algumas plataformas, como a Bancor, oferecem mecanismos de proteção contra
impermanent loss, especialmente se os tokens permanecerem depositados por certo período, como
forma de incentivar o provimento contínuo de liquidez62.
Assim, o provedor de liquidez deve levar em consideração a dinâmica do fundo e seu
processo de formação de preços em face da variação das cotações em mercado, para decidir se
e quando realizar resgates e calcular o resultado da operação não apenas com base na parcela
de taxas recebidas, mas também com eventuais perdas não realizadas como as descritas nesta
seção.
4. O que pode dar errado?
Nesta seção, listamos algumas preocupações em torno das soluções DeFi descritas
anteriormente, a partir de estudos elaborados por órgãos reguladores e entidades
internacionais que fornecem diretrizes para reguladores63.
4.1. Fraudes e esquemas Ponzi
Em uma entrevista dada em abril de 2022, Sam Bankman-Fried, fundador e CEO da
exchange FTX, gerou certa perplexidade e repercussão ao tentar descrever yield farming,
fazendo com que a estratégia se parecesse com um esquema Ponzi64.
62 SINGH, Onkar. What is impermanent loss and how to avoid it?. Coin Telegraph, Apr. 25th, 2022. Disponível
em https://cointelegraph.com/explained/what-is-impermanent-loss-and-how-to-avoid-it. Acesso em 17 jun.
2022.
63 OECD. Why Decentralised Finance (DeFi) Matters and the Policy Implications. Paris, 2022, p. 41-52. Disponível
em https://www.oecd.org/finance/why-decentralised-finance-defi-matters-and-the-policy-implications.htm.
Acesso em 19 jun. 2022; WORLD ECONOMIC FORUM. Decentralized Finance (DeFi) Policy-Maker Toolkit,
Jun. 2021. Disponível em https://www.weforum.org/whitepapers/decentralized-finance-defi-policy-maker-
toolkit/. Acesso em 19 jun. 2022; INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES
COMMISSIONS. IOSCO Decentralized Finance Report. Madrid, 2022, p. 36-42. Disponível em
https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD699.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
64 Para descrever yield farming, Bankman-Fried tomou como ponto de partida uma “caixa mágica” e, por ora,
podemos ignorar o que ela faz ou mesmo considerar que ela não faz nada. Dentro dessa “caixa”, você pode
colocar qualquer “coisa”, como se fosse um ETF (cota de fundo negociada em bolsa) ou um DR (depositary
receipt, os certificados de depósitos de ações). Então, como contrapartida por ter colocado algo na “caixa”, você
recebe um direito de voto (um “token de governança”), para poder deliberar sobre, por exemplo, como serão
distribuídos eventuais lucros decorrentes da utilização da “caixa”. Em seguida, a comunidade em torno da
“caixa” ou suas regras de programação (o protocolo) podem decidir que aqueles que colocaram valores na
“caixa” receberão um percentual de novos tokens proporcional à sua contribuição. Esse arranjo supostamente
tem algum valor total de capitalização - haverá um valor total guardado dentro da caixa (TVL - total value
locked) somado ao “trabalho” para manter o arranjo. Ao longo do tempo, esse resultado pode ser um percentual
significativo do valor aplicado (por exemplo, 10% ou mais), só que expresso em novos tokens, que serão
distribuídos adicionalmente a quem tiver “investido”. Dado que os tokens têm valor de mercado, as pessoas
29
Grandes quedas de preços no mercado costumam decretar o fim de esquemas
fraudulentos baseados no pagamento de rendimentos com novos depósitos e não com uma
atividade econômica legítima.
Diante do medo e incerteza, investidores procuram embolsar os resultados e fugir do
risco, aumentando os pedidos de resgate, os quais não conseguem ser atendidos - pois a
custódia dos ativos era uma ilusão à espera do desastre.
Tendo em vista a aceleração recente das perdas no mercado cripto iniciadas em
novembro de 2021, o bloqueio de saques ou resgates ou sua obstrução por algumas empresas
suscita preocupações. Assim, “bancos cripto” que remuneram depósitos e algumas exchanges
podem estar enfrentando dificuldades operacionais (premissa decorrente da presunção de sua
inocência) ou podem não ter sido diligentes e se apropriado dos recursos de seus clientes.
Essa apropriação indevida pode ser uma fraude pura e simples (como nos esquemas
Ponzi supramencionados) ou apenas o triste resultado de uma aposta de risco: os valores dos
clientes, plenamente disponíveis para os prestadores de serviços, podem ter sido alocados em
esquemas fraudulentos, a fim de gerar rendimentos adicionais (que não necessariamente
seriam revertidos aos clientes).
No mercado tradicional, esse "furto de uso" dos valores custodiados pode configurar o
crime do art. 5º da Lei nº 7.492/198665, além de infração às normas do Banco Central ou da
CVM, conforme o caso.
Com o surgimento de plataformas de remuneração de depósitos em criptoativos
alardeando taxas elevadas, não seria surpresa se exchanges ou outros projetos fossem arrastados
para o abismo junto com os orquestradores de fraudes. O tempo dirá se o silêncio ou o sumiço
de founders-influencers e os bloqueios anunciados de saques ou resgates são uma intercorrência
passageira ou o veredito de uma doença terminal para certos agentes de mercado.
Em síntese, se aprendemos alguma coisa com esses episódios, precisamos discutir a
tutela jurídica da propriedade dos recursos dos investidores.
percebem que “vale a pena” colocar “coisas” dentro da “caixa”. Quanto maior esse valor (efeito de rede), mais
pessoas serão atraídas. “E quem somos nós para dizer que as pessoas que investiram estão erradas?”, afirma
Bankman-Fried. Cf. ALLOWAY, Tracy; WEISENTHAL, Joe. Sam Bankman-Fried Described Yield Farming
and Left Matt Levine Stunned. Bloomberg, Apr. 25th, 2022. Disponível em
https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-04-25/sam-bankman-fried-described-yield-farming-and-
left-matt-levine-stunned. Acesso em 30 abr. 2022.
65 Art. 5º Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou
qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio: Pena - Reclusão, de
2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena qualquer das pessoas mencionadas no
art. 25 desta lei, que negociar direito, título ou qualquer outro bem móvel ou imóvel de que tem a posse, sem
autorização de quem de direito.
30
De um lado, podemos deixar os recursos plenamente à disposição do prestador de
serviços, sem proteção ou restrições, de modo a facilitar determinados modelos de negócio.
De outro lado, podemos estabelecer regas para a segregação de recursos, como ocorre
na regulação das instituições de pagamento, exigindo a alocação exclusiva em ativos
específicos de baixo risco e blindando os valores de qualquer obrigação assumida por seu
custodiante, o qual deverá restituí-los em caso de insolvência66.
Mais importante do que a escolha, penso, é a lucidez no processo decisório acerca dos
riscos e das consequências práticas da norma (ou de sua ausência).
4.2. Manipulação e variação errática nas taxas de retorno e parâmetros de garantia
As taxas de remuneração dos criptoativos depositados podem ser definidas com
periodicidades distintas, a depender das regras do protocolo em questão. Sua atualização pode
se dar por meio de gatilhos automáticos ou pela deliberação dos titulares de tokens de
governança. Nos arranjos centralizados, o risco é concentrado na empresa que gerencia a
plataforma, mas, por outro lado, nos arranjos genuinamente descentralizados, pode haver
problemas quando a liquidez é baixa ou quando há grandes choques de volatilidade.
Uma perturbação nos preços pode levar arbitradores de preços (ou a ausência deles) a
distorções nas quantidades de tokens presentes em um fundo de liquidez, fazendo com que as
taxas sejam alteradas erraticamente, podendo causar prejuízos abruptos a uma das partes por
conta da liquidação precoce do empréstimo com execução das garantias.
Considere, por exemplo, a vaporização de valor dos tokens LUNA ou, então, a perda da
capacidade de uma stablecoin manter a paridade com seu ativo de referência (unpegging). Essas
situações podem levar ao colapso de protocolos, como ocorreu com o Anchor.
Essas perturbações podem decorrer de movimentos do mercado como um todo ou de
ações de usuários específicos que buscam desestabilizar a plataforma. Assim, quanto menor a
liquidez, maior a vulnerabilidade a manipulações que procuram distorcer os preços e as taxas.
Por fim, a manipulação também pode ocorrer em virtude da concentração de poder em
termos de tokens de governança. Um usuário ou grupo de usuários pode propor alterações e
aprová-las de modo a prejudicar os demais, por isso é importante atentar para a efetiva
pulverização de poder na plataforma.
66 Essa é a premissa do art. 13 da versão aprovada pelo Senado Federal do Projeto de Lei nº 4.401/2021, que
disciplina a atividade de prestação de serviços de ativos virtuais. O texto encontra-se disponível em
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151264. Acesso em 19 jun. 2022.
31
4.3. Efeito cascata – “quebra de safra” em yield farming
O colapso de plataformas e perdas elevadas sofridas pelos investidores podem levar a
um efeito cascata de inadimplemento. A preocupação, nesse cenário, se assemelha à tutela da
estabilidade financeira em um sistema baseado em moeda fiduciária. Porém, as regras e a
dinâmica são significativamente diferentes.
Seja porque uma stablecoin perdeu a sua paridade com o ativo de referência ou porque a
perda de credibilidade em um projeto fez com que seu token perdesse quase todo o seu valor
ou, ainda, a soma de operações de grandes quantidades produza um choque de liquidez, vimos
que os algoritmos implementados podem não ter as salvaguardas necessárias diante de
movimentações abruptas.
Devemos considerar, ainda, os incentivos existentes para a alavancagem nas operações,
a partir da ideia de yield farming e money legos. Um investidor pode depositar seus criptoativos
em uma plataforma com retornos elevados e, com os certificados de depósito (cTokens,
aTokens e congêneres) pode obter novos empréstimos sucessivamente em outras plataformas.
Falhas nos algoritmos, movimentos dramáticos de preços e mudanças nos parâmetros de
garantias podem levar à liquidação compulsória com prejuízos elevados. Portanto, o cultivo
dos rendimentos pode sofrer uma “quebra de safra”, por assim dizer.
Diante da possibilidade de prejuízos elevados com criptoativos, surge o risco de
contágio do sistema financeiro tradicional67.
4.4. Falhas nos smart contracts e segurança cibernética
O código-fonte dos smart contracts que implementam as regras de um protocolo DeFi é
auditável. Contudo, isso não significa que esta é uma tarefa simples ou mesmo usual de ser
realizada68. Pode haver algoritmos maliciosos ou mesmo falhos e esse risco deve ser levado em
consideração, pois pode resultar em distorções em preços, quantidades e garantias e, com isso,
causar prejuízos a usuários.
67 Cf. FINANCIAL STABILITY BOARD. Regulation, Supervision and Oversight of “Global Stablecoin”
Arrangements. Basel, 2020. Disponível em https://www.fsb.org/2020/10/regulation-supervision-and-
oversight-of-global-stablecoin-arrangements/. Acesso em 18 jun. 2022.
68 Segundo a IOSCO, “Many DeFi products and systems fail to provide important disclosures. Although
blockchain data and smart contract code is transparent for all to see, understanding this data and code requires
technical capability and knowledge. […]. Some DeFi products and systems may require certain technical or
other expertise that not all investors have and, as a result, may be unsuitable for some investors. There may be
hidden informational or technological advantages sophisticated participants have over retail investors that
make for an uneven playing field.”. Cf. INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES
COMMISSIONS. IOSCO Decentralized Finance Report. Madrid, 2022, p. 36. Disponível em
https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD699.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
32
De acordo com a consultoria Elliptic, cerca de US$ 12 bilhões foram objeto de desvio
em plataformas DeFi entre janeiro e setembro de 2021 (contra US$ 1,5 bilhões em 2020)69.
Vale mencionar também que estamos diante de uma tecnologia ainda em fase de
estabilização, conotada por grande incerteza quanto à sua escalabilidade e confiabilidade.
Diante da pulverização de centros decisórios na definição de regras e na implementação do
protocolo, é difícil escolher, em termos regulatórios, um centro de imputação de deveres e
responsabilidades em matéria de resiliência operacional e segurança cibernética.
4.5. Lavagem de dinheiro
A ausência de identificação dos beneficiários finais das transações, especialmente no
caso de exchanges descentralizadas justifica a preocupação com a utilização destas plataformas
para fins de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. De acordo com dados da
consultoria Chainalysis, pelo menos US$ 2,2 bilhões em transações envolvendo lavagem de
dinheiro foram realizadas em soluções DeFi no ano de 202170.
Outro ponto de atenção é a complexidade das operações, que podem envolver diversos
protocolos e explorar a interoperabilidade para dificultar a rastreabilidade das transações ou
evitar que os recursos furtados sejam bloqueados71.
5. Síntese conclusiva
O termo DeFi engloba uma série de projetos destinados a criar uma infraestrutura
descentralizada para a oferta de serviços financeiros similares aos tradicionais, porém
envolvendo criptoativos. Boa parte dos protocolos atuais foi desenvolvida utilizando a rede
Ethereum.
Nesse contexto, encontramos afirmações do tipo “cada pessoa poderá ser seu próprio
banco no futuro” ou “livre-se do seu banco” (unbank yourself) e que o mercado financeiro será
alvo de uma revolução diante de elevado grau de desintermediação.
69 ELLIPTIC. DeFi: Risk, Regulation, and the Rise of DeCrime, Nov. 2021. Disponível em
https://www.elliptic.co/resources/defi-risk-regulation-and-the-rise-of-decrime. Acesso em 18 jun. 2022.
70 CHAINALYSIS. DeFi Takes on Bigger Role in Money Laundering But Small Group of Centralized Services
Still Dominate, Jan. 26th, 2022. Disponível em https://blog.chainalysis.com/reports/2022-crypto-crime-
report-preview-cryptocurrency-money-laundering/. Acesso em 19 jun. 2022.
71 Após o ataque à exchange KuCoin em 2020, os invasores levaram os recursos para a Uniswap, de modo a
permuta-los por tokens “resistentes à censura” (censorship resistant), isto é, incapazes de serem bloqueados. Cf.
CHAINALYSIS. The KuCoin Hack: What We Know So Far and How the Hackers are Using DeFi Protocols to
Launder Stolen Funds, Sep. 28th, 2020. Disponível em https://blog.chainalysis.com/reports/kucoin-hack-2020-
defi-uniswap/. Acesso em 20 jun. 2022.
33
A infraestrutura de mercado financeiro, tradicionalmente implementada no contexto
dos sistemas de pagamento e depósito de valores mobiliários de cada país, pode passar a ser
um sistema de registro de propriedade global, cuja integridade é garantida pela manutenção
de cópias sincronizadas de dados pelos participantes da rede, que seguem uma dinâmica de
validação das transações com base em incentivos econômicos.
Vimos que o serviço mais comum nas plataformas DeFi é o empréstimo de criptoativos,
cuja remuneração pode advir de atividades de staking ou de provimento de liquidez (liquidity
mining) para fundos que viabilizam o funcionamento de exchanges descentralizadas (DEX), ou,
ainda, o investimento desses recursos em outras estratégias, inclusive a concessão sucessiva
de empréstimos em outras plataformas.
Ainda, vimos que há riscos específicos para os provedores de liquidez em razão da
movimentação dos preços, caso do prejuízo transitório (impermanente loss) e o regular
funcionamento das DEX depende de grande adesão ao fundo e da atuação efetiva de
arbitradores de preços.
Soluções centralizadas de depósitos remuneradas foram objeto de atuação da SEC nos
Estados Unidos e há insegurança jurídica quanto à sua oferta sem registro prévio.
Adicionalmente, algumas dessas soluções suspenderam saques durante momentos de forte
desvalorização dos criptoativos, suscitando dúvidas quanto à efetividade da custódia dos
valores de seus clientes. A perda de credibilidade pelos investidores pode prejudicar o
desenvolvimento da criptoeconomia e os retornos elevados podem ser simplesmente fruto de
esquemas Ponzi.
A complexidade das soluções DeFi, o nível de alavancagem e risco das operações, a
possibilidade de prejuízos em cascata pela interdependência entre as plataformas, eventuais
falhas nos algoritmos e nos smart contracts, além da sensibilidade à alta volatilidade dos preços
dos criptoativos são fatores que devem ser levados em conta quando da opção por esse tipo de
investimento e da discussão sobre escolhas regulatórias.
Infelizmente, em razão de vieses cognitivos, muitos focam apenas nos altos retornos
prometidos por empresas fraudulentas ou pouco diligentes.
Ao fim e ao cabo, o slogan utilizado por Matt Damon em um comercial no intervalo do
Super Bowl de 2022, que teve grande repercussão, parece merecer reparo: “a sorte favorece os
bravos”72, mas não os tolos.
72 “Fortune favors the brave”. O comercial pode ser visto em https://youtu.be/9hBC5TVdYT8. Acesso em 19
jun. 2022.

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a DeFi: Finanças descentralizadas, riscos e regulação

Webinário Aberj 20220113 - Isac Costa
Webinário Aberj 20220113 - Isac CostaWebinário Aberj 20220113 - Isac Costa
Webinário Aberj 20220113 - Isac CostaIsac Costa
 
PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...
PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...
PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...Blockmaster
 
Blockchain Workshop
Blockchain WorkshopBlockchain Workshop
Blockchain WorkshopDaniel Rocha
 
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito BrasileiroA Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito BrasileiroCarlos Kümpel
 
Investimento em criptoativos riscos e alertas
Investimento em criptoativos   riscos e alertasInvestimento em criptoativos   riscos e alertas
Investimento em criptoativos riscos e alertasDavi Batista
 
Direito e Criptoeconomia
Direito e CriptoeconomiaDireito e Criptoeconomia
Direito e CriptoeconomiaIsac Costa
 
UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...
UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...
UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...AmonDaSilvaGoyaPrado
 
Direito e Criptoeconomia 20220630.pdf
Direito e Criptoeconomia 20220630.pdfDireito e Criptoeconomia 20220630.pdf
Direito e Criptoeconomia 20220630.pdfIsac Costa
 
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativaBitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativaMarcelo Lau
 
Neon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdf
Neon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdfNeon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdf
Neon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdfjhowck28
 
O Futuro do Dinheiro.pdf
O Futuro do Dinheiro.pdfO Futuro do Dinheiro.pdf
O Futuro do Dinheiro.pdfYuryGutz
 
Dia 3 2019 UNIFOR - Criptomoedas
Dia 3   2019 UNIFOR - CriptomoedasDia 3   2019 UNIFOR - Criptomoedas
Dia 3 2019 UNIFOR - CriptomoedasAmanda Lima
 
Saia do ZERO sobre BitCoin & BlockChain
Saia do ZERO sobre BitCoin & BlockChainSaia do ZERO sobre BitCoin & BlockChain
Saia do ZERO sobre BitCoin & BlockChainEwerton Tomaz
 
CRYPTO PARA ADULTOS: O GUIA
CRYPTO PARA ADULTOS: O GUIACRYPTO PARA ADULTOS: O GUIA
CRYPTO PARA ADULTOS: O GUIAClayton Oliveira
 
Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)
Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)
Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)Alexandre Ray
 
Mercado financeiro brasileiro Artigo
Mercado financeiro brasileiro ArtigoMercado financeiro brasileiro Artigo
Mercado financeiro brasileiro Artigomanudellarocca
 
Artigo Tributário
Artigo TributárioArtigo Tributário
Artigo TributárioMarketingcma
 
Artigo Tributário
Artigo TributárioArtigo Tributário
Artigo TributárioMarketingcma
 

Semelhante a DeFi: Finanças descentralizadas, riscos e regulação (20)

Webinário Aberj 20220113 - Isac Costa
Webinário Aberj 20220113 - Isac CostaWebinário Aberj 20220113 - Isac Costa
Webinário Aberj 20220113 - Isac Costa
 
PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...
PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...
PALESTRA | Internacionalização pela Suiça, os incentivos regulatórios para a ...
 
Blockchain Workshop
Blockchain WorkshopBlockchain Workshop
Blockchain Workshop
 
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito BrasileiroA Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
 
Investimento em criptoativos riscos e alertas
Investimento em criptoativos   riscos e alertasInvestimento em criptoativos   riscos e alertas
Investimento em criptoativos riscos e alertas
 
Direito e Criptoeconomia
Direito e CriptoeconomiaDireito e Criptoeconomia
Direito e Criptoeconomia
 
CRIPTOMOEDAS.pdf
CRIPTOMOEDAS.pdfCRIPTOMOEDAS.pdf
CRIPTOMOEDAS.pdf
 
UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...
UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...
UM ACERVO DE CONTEÚDOS QUE VÃO TE ENSINAR A INVESTIR EM CRIPTOMOEDAS, NFTS E ...
 
Direito e Criptoeconomia 20220630.pdf
Direito e Criptoeconomia 20220630.pdfDireito e Criptoeconomia 20220630.pdf
Direito e Criptoeconomia 20220630.pdf
 
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativaBitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
 
Neon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdf
Neon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdfNeon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdf
Neon Tipográfica Apresentação_20240321_235721_0000.pdf
 
O Futuro do Dinheiro.pdf
O Futuro do Dinheiro.pdfO Futuro do Dinheiro.pdf
O Futuro do Dinheiro.pdf
 
Dia 3 2019 UNIFOR - Criptomoedas
Dia 3   2019 UNIFOR - CriptomoedasDia 3   2019 UNIFOR - Criptomoedas
Dia 3 2019 UNIFOR - Criptomoedas
 
Saia do ZERO sobre BitCoin & BlockChain
Saia do ZERO sobre BitCoin & BlockChainSaia do ZERO sobre BitCoin & BlockChain
Saia do ZERO sobre BitCoin & BlockChain
 
Ebook panorama crypto
Ebook panorama cryptoEbook panorama crypto
Ebook panorama crypto
 
CRYPTO PARA ADULTOS: O GUIA
CRYPTO PARA ADULTOS: O GUIACRYPTO PARA ADULTOS: O GUIA
CRYPTO PARA ADULTOS: O GUIA
 
Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)
Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)
Palestra sobre introdução ao Blockchain (13/10/2021)
 
Mercado financeiro brasileiro Artigo
Mercado financeiro brasileiro ArtigoMercado financeiro brasileiro Artigo
Mercado financeiro brasileiro Artigo
 
Artigo Tributário
Artigo TributárioArtigo Tributário
Artigo Tributário
 
Artigo Tributário
Artigo TributárioArtigo Tributário
Artigo Tributário
 

Mais de Isac Costa

Sumario - Livro Processo Administrativo Sancionador
Sumario - Livro Processo Administrativo SancionadorSumario - Livro Processo Administrativo Sancionador
Sumario - Livro Processo Administrativo SancionadorIsac Costa
 
Sumario - Manual de Criptoativos.pdf
Sumario - Manual de Criptoativos.pdfSumario - Manual de Criptoativos.pdf
Sumario - Manual de Criptoativos.pdfIsac Costa
 
Sumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdf
Sumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdfSumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdf
Sumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdfIsac Costa
 
My interview with ChatGPT
My interview with ChatGPTMy interview with ChatGPT
My interview with ChatGPTIsac Costa
 
Supervisao Baseada em Dados
Supervisao Baseada em DadosSupervisao Baseada em Dados
Supervisao Baseada em DadosIsac Costa
 
As flores da primavera cripto são de plástico?
As flores da primavera cripto são de plástico?As flores da primavera cripto são de plástico?
As flores da primavera cripto são de plástico?Isac Costa
 
20220909 Sexta de 3.pdf
20220909 Sexta de 3.pdf20220909 Sexta de 3.pdf
20220909 Sexta de 3.pdfIsac Costa
 
II Congresso ITCN.pdf
II Congresso ITCN.pdfII Congresso ITCN.pdf
II Congresso ITCN.pdfIsac Costa
 
O mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdf
O mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdfO mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdf
O mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdfIsac Costa
 
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdfIsac Costa
 
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdfIsac Costa
 
PL 4.401-2022 comparado
PL 4.401-2022 comparadoPL 4.401-2022 comparado
PL 4.401-2022 comparadoIsac Costa
 
Game over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdf
Game over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdfGame over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdf
Game over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdfIsac Costa
 
É proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdf
É proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdfÉ proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdf
É proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdfIsac Costa
 
Onde estao meus bitcoins
Onde estao meus bitcoinsOnde estao meus bitcoins
Onde estao meus bitcoinsIsac Costa
 
Criptoativos e Lavagem de Dinheiro
Criptoativos e Lavagem de DinheiroCriptoativos e Lavagem de Dinheiro
Criptoativos e Lavagem de DinheiroIsac Costa
 
Financiamento privado da inovação - Isac Costa
Financiamento privado da inovação - Isac CostaFinanciamento privado da inovação - Isac Costa
Financiamento privado da inovação - Isac CostaIsac Costa
 

Mais de Isac Costa (17)

Sumario - Livro Processo Administrativo Sancionador
Sumario - Livro Processo Administrativo SancionadorSumario - Livro Processo Administrativo Sancionador
Sumario - Livro Processo Administrativo Sancionador
 
Sumario - Manual de Criptoativos.pdf
Sumario - Manual de Criptoativos.pdfSumario - Manual de Criptoativos.pdf
Sumario - Manual de Criptoativos.pdf
 
Sumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdf
Sumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdfSumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdf
Sumario - Criptoativos e Lavagem de Dinheiro.pdf
 
My interview with ChatGPT
My interview with ChatGPTMy interview with ChatGPT
My interview with ChatGPT
 
Supervisao Baseada em Dados
Supervisao Baseada em DadosSupervisao Baseada em Dados
Supervisao Baseada em Dados
 
As flores da primavera cripto são de plástico?
As flores da primavera cripto são de plástico?As flores da primavera cripto são de plástico?
As flores da primavera cripto são de plástico?
 
20220909 Sexta de 3.pdf
20220909 Sexta de 3.pdf20220909 Sexta de 3.pdf
20220909 Sexta de 3.pdf
 
II Congresso ITCN.pdf
II Congresso ITCN.pdfII Congresso ITCN.pdf
II Congresso ITCN.pdf
 
O mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdf
O mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdfO mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdf
O mito da corretagem zero e a concorrencia entre exchanges no Brasil.pdf
 
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
 
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
20220705 Lei cripto tarda e falha.pdf
 
PL 4.401-2022 comparado
PL 4.401-2022 comparadoPL 4.401-2022 comparado
PL 4.401-2022 comparado
 
Game over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdf
Game over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdfGame over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdf
Game over ou new game - o casto Gamestop e manipulacao de mercado (2021).pdf
 
É proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdf
É proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdfÉ proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdf
É proibido blefar no livro de ofertas (2021).pdf
 
Onde estao meus bitcoins
Onde estao meus bitcoinsOnde estao meus bitcoins
Onde estao meus bitcoins
 
Criptoativos e Lavagem de Dinheiro
Criptoativos e Lavagem de DinheiroCriptoativos e Lavagem de Dinheiro
Criptoativos e Lavagem de Dinheiro
 
Financiamento privado da inovação - Isac Costa
Financiamento privado da inovação - Isac CostaFinanciamento privado da inovação - Isac Costa
Financiamento privado da inovação - Isac Costa
 

Último

PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãIlda Bicacro
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdflucassilva721057
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)ElliotFerreira
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...azulassessoria9
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...licinioBorges
 
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreCIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreElianeElika
 
VARIEDADES LINGUÍSTICAS - 1. pptx
VARIEDADES        LINGUÍSTICAS - 1. pptxVARIEDADES        LINGUÍSTICAS - 1. pptx
VARIEDADES LINGUÍSTICAS - 1. pptxMarlene Cunhada
 
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxJOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxTainTorres4
 
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim RangelDicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim RangelGilber Rubim Rangel
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Ilda Bicacro
 
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfPROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfMarianaMoraesMathias
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdfLeloIurk1
 
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFtimaMoreira35
 
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....LuizHenriquedeAlmeid6
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdfAna Lemos
 
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...IsabelPereira2010
 
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamentalAntônia marta Silvestre da Silva
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManuais Formação
 
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"Ilda Bicacro
 

Último (20)

PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! SertãConstrução (C)erta - Nós Propomos! Sertã
Construção (C)erta - Nós Propomos! Sertã
 
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdfNoções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
Noções de Farmacologia - Flávia Soares.pdf
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
 
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestreCIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
CIÊNCIAS HUMANAS - ENSINO MÉDIO. 2024 2 bimestre
 
VARIEDADES LINGUÍSTICAS - 1. pptx
VARIEDADES        LINGUÍSTICAS - 1. pptxVARIEDADES        LINGUÍSTICAS - 1. pptx
VARIEDADES LINGUÍSTICAS - 1. pptx
 
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptxJOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
JOGO FATO OU FAKE - ATIVIDADE LUDICA(1).pptx
 
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim RangelDicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
Dicionário de Genealogia, autor Gilber Rubim Rangel
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
 
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdfPROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
PROGRAMA DE AÇÃO 2024 - MARIANA DA SILVA MORAES.pdf
 
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
5 bloco 7 ano - Ensino Relogioso- Lideres Religiosos _ Passei Direto.pdf
 
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdfFicha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
Ficha de trabalho com palavras- simples e complexas.pdf
 
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
Slides Lição 5, Betel, Ordenança para uma vida de vigilância e oração, 2Tr24....
 
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdfA QUATRO MÃOS  -  MARILDA CASTANHA . pdf
A QUATRO MÃOS - MARILDA CASTANHA . pdf
 
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
 
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
2° ano_PLANO_DE_CURSO em PDF referente ao 2° ano do Ensino fundamental
 
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envioManual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
Manual da CPSA_1_Agir com Autonomia para envio
 
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
Nós Propomos! " Pinhais limpos, mundo saudável"
 

DeFi: Finanças descentralizadas, riscos e regulação

  • 1. COSTA, Isac Silveira da. A sorte favorece os bravos, mas não os tolos – DeFi: escopo, riscos e desafios regulatórios das finanças descentralizadas. In: GOMES, Daniel de Paiva GOMES, Eduardo de Paiva; CONRADO, Paulo Cesar (Orgs.). Criptoativos, blockchain e tokenização: aspectos filosóficos, tecnológicos, jurídicos e econômicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. No prelo. A sorte favorece os bravos, mas não os tolos – DeFi: escopo, riscos e desafios regulatórios das finanças descentralizadas Isac Costa1 Introdução “DeFi” é um um acrônimo de finanças descentralizadas (decentralized finance) e, ao mesmo tempo, um trocadilho com o verbo desafiar (defy), com uma conotação afrontosa ao mercado tradicional. Nesse texto, descrevemos o escopo das soluções DeFi2 , contrastando-as com os serviços financeiros usuais de depósitos, empréstimos e investimentos. Tendo em vista a preocupação com os riscos relacionados à estabilidade financeira e proteção de investidores, também procuramos explorar os principais desafios para a adaptação da regulação financeira vigente ou a criação de novas normas para recepcionar esse fenômeno. Ressaltamos que o foco da análise envolve stablecoins, os serviços de empréstimos de criptoativos e as exchanges descentralizadas, com a dinâmica de seus fundos de liquidez (liquidity pools), pois estes serviços possuem a maior quantidade de recursos alocados atualmente. Não foram contempladas, por outro lado, as soluções envolvendo derivativos, seguros ou concursos de prognósticos (prediction markets). O texto se divide em quatro partes: (a) noções iniciais, quando falamos de permuta de criptoativos, o racional econômico para as operações de empréstimos de criptoativos e a importância das stablecoins para as soluções DeFi; (b) as plataformas centralizadas de empréstimos de criptoativos; (c) as soluções genuinamente descentralizadas; e (d) riscos e explorar possibilidades regulatórias. Ao final, apresentamos uma síntese conclusiva. 1 Advogado em São Paulo. Doutorando (USP), Mestre (FGV) e Bacharel (USP) em Direito. Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista de Mercado de Capitais (CVM). Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu e educação executiva do Ibmec e do Insper. 2 Por vezes, encontramos as designações “TradFi” para os serviços financeiros tradicionais e “CeFi” para os serviços relacionados a criptoativos prestados por entes centralizados. Para uma comparação entre os modeos, cf. DELOITTE. DeFi deciphered: Navigating disruption within financial services, 2022. Disponível em https://www2.deloitte.com/us/en/pages/advisory/articles/gain-clarity-into-the-regulatory-risks-of-digital- assets.html. Acesso em 17 jun. 2022.
  • 2. 2 1. Noções iniciais 1.1. Finanças e descentralização Uma força centrífuga atua sobre o mercado financeiro, buscando reduzir custos e ineficiências da intermediação centralizada, de modo que a realidade se aproxime do ideal declarado nos livros didáticos de que a função econômica do mercado é aproximar agentes superavitários (emprestadores) de agentes deficitários (tomadores). As soluções DeFi tomam como pressuposto que o controle de garantias e a mitigação da assimetria de informação entre as partes de uma operação podem ser gerenciados por meio de contratos eletrônicos (smart contracts) e um registro distribuído de transações (distirbuted ledger). A tecnologia blockchain é a propulsora desse movimento, cuja tendência é atenuar as limitações geográficas e a importância de prestadores de serviços de registro, custódia, corretagem e clearing, ou, em uma perspectiva mais abrangente, as infraestruturas de mercado financeiro. O mercado secundário global de criptoativos possui liquidez e formação de preços e, embora marcado por grande volatilidade (com capitalização de mercado entre US$1 trilhão a US$ 3 trilhões, na máxima histórica3), justifica o reconhecimento de boa parte dos tokens negociados como um ativo, isto é, um recurso apto a gerar benefícios econômicos futuros4. Utilizaremos o termo token para designar os títulos digitais que circulam em uma rede blockchain e criptoativo para representações digitais de valor utilizadas para fins de pagamento ou investimento, baseadas em algoritmos criptográficos e na descentralização do armazenamento e validação de transações. Um criptoativo, portanto, é um bem móvel cuja concreção digital em um sistema é denotada pela palavra token. A depender de sua função econômica, os criptoativos podem receber denominações distintas5, tais como criptomoedas – se utilizados como unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor – ou utility tokens – ou tokens de consumo, quando representam direitos de 3 Conforme dados do agregador CoinMarketCap (https://coinmarketcap.com/). 4 De acordo com o Pronunciamento CPC 00 (R2) – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro, itens 4.3 e 4.4, temos que “Ativo é um recurso econômico presente controlado pela entidade como resultado de eventos passados” e “Recurso econômico é um direito que tem o potencial de produzir benefícios econômicos”, respectivamente. 5 Um estudo detalhado das funções econômicas dos criptoativos e os critérios para verificação do seu enquadramento como valores mobiliários pode ser encontrado em COSTA, Isac Silveira da. Plunct, plact, zum: Tokens, valores mobiliários e a CVM. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro. (Org.). Criptoativos: estudos jurídicos, regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. Nota do autor: toda vez que indico a leitura de um artigo de minha autoria, me sinto como o Obama no meme em que coloca uma medalha nele mesmo - https://knowyourmeme.com/memes/obama-awards-obama- a-medal.
  • 3. 3 aquisição futura de bens ou serviços – ou, ainda, security tokens, quando se enquadram na definição legal de valor mobiliário do art. 2º da Lei nº 6.385/1976. Há, ainda, as stablecoins (discutidas na seção 1.2 infra) e os non-fungible tokens (NFT), que são títulos digitais destinados a identificar a propriedade de um bem em uma rede blockchain6 . Além da possibilidade de utilização de criptoativos para fins de pagamento em determinadas hipóteses, seus titulares têm expectativa de valorização dos preços em mercado secundário ou, excepcionalmente, auferem benefícios decorrentes de algum direito econômico emergente do token, como no caso de non-fungible tokens – NFT, por exemplo7. Entretanto, quem deseja manter criptoativos em sua carteira pode desejar rendimentos adicionais. Para atender a essa demanda, surgiram projetos que viabilizam a permuta (swap) entre criptoativos, isto é, a possibilidade de trocar certa quantidade de ETH, por exemplo, por outro criptoativo ou uma stablecoin como USDT ou USDC (falaremos sobre stablecoins na próxima seção). Normalmente, fala-se em contratos de empréstimo de tokens com garantia (colateral) prestada em outros tokens. Operações dessa natureza são comuns no mercado de bolsa no Brasil8. Porém, é possível conceber essas operações como contratos de swap9 , pois há uma troca 6 Para uma discussão detalhada sobre NFT cf. COSTA, Isac Silveira da. O futuro é infungível: tokenização, non-fungible tokens (NFTs) e novos desafios na aplicação do conceito de valor mobiliário. Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, v. Especial, p. 283-323, 2021. 7 A startup Yuga Labs divulgou em março em 2022 a ApeCoin, destinada a ser a moeda de negociação na loja de aplicativos relacionada com o metaverso MetaRPG, no contexto do universo Bored Ape Yacht Club. No lançamento realizado em 17.3.2022, o preço da ApeCoin chegou a US$39, recuando para US$4 e retornando à faixa de US$14 no primeiro dia de negociação. Os titulares de NFTs da coleção Bored Ape Yacht Club e Mutant Ape receberam ApeCoins como parte da estratégia de lançamento, em uma distribuição comumente denominada de airdrop. Alguns colecionadores chegaram a ter resultados significativos em razão desta distribuição. Cf. RUBINSTEIN, Gabriel. Colecionador de NFTs ganha US$56 milhões com distribuição de tokens APE. Exame, 18 mar. 2022. Disponível em https://exame.com/future-of-money/colecionador-de-nfts- ganha-us-56-milhoes-com-distribuicao-de-tokens-ape/. Acesso em 17 jun. 2022. Além do modelo de airdrops, os titulares de NFTs ou de outros tokens podem, em alguns casos, receber percentuais de vendas subsequentes ou mesmo royalties. Por exemplo, cf. SILVA, Mariana Maria. Startup leva royalties para o blockchain e democratiza indústria da música. Exame, 1 abr. 2022. Disponível em https://exame.com/future-of- money/startup-leva-royalties-para-o-blockchain-e-democratiza-industria-da-musica/. Acesso em 17 jun. 2022. 8 Veja B3. Empréstimo de ativos – perguntas frequentes. Disponível em https://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e- servicos/emprestimo-de-ativos/renda-variavel/perguntas-frequentes/. Acesso em 17 jun. 2022. De acordo com a B3, “O primeiro passo é contratar o serviço de empréstimo de ativos de um intermediário, que pode ser uma corretora, distribuidora ou custodiante. Através do intermediário, o investidor informa quais os ativos que deseja emprestar. As ofertas para emprestar os ativos são sempre transmitidas pelo intermediário para a B3”. 9 “Os swaps são contratos nos quais as contrapartes acordam em trocar fluxos de caixa ou rentabilidades. No swap, um fluxo de caixa é ativo para o investidor enquanto que o outro fluxo de caixa é passivo. A liquidação financeira do swap é feita pela diferença dos dois fluxos de caixa no vencimento. Os swaps aceitam praticamente qualquer indexador em seus fluxos de caixa, por exemplo, IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) mais cupom, dólar mais cupom, ou até mesmo preço de commodities, desde que seja um ativo-objeto cujo preço seja publicamente e fidedignamente divulgado”. Ainda: “Nos swaps com garantia, a clearing garante a liquidação do contrato, protegendo contra inadimplência na liquidação. Para isso, são exigidos ativos como garantias das contrapartes do swap, que ficarão sob custódia da clearing. No registro do swap é possível definir fluxos de caixa, como pagamentos de juros ou amortizações, em datas anteriores ao vencimento do contrato. Caso contrário, o swap é registrado como “pagamento final”, no qual o diferencial entre o ‘a receber’ e o ‘a
  • 4. 4 de fluxos de caixa: quem fornece os tokens A e recebe tokens B, fica passivo na variação de preços de A e ativo na variação de preços de B. Por sua vez, a contraparte da operação fica ativa na variação de preços de A e passiva na variação de preços de B. É comum que os projetos que envolvem esse modelo de operação tenham o termo swap em seu nome, como é o caso de Uniswap, Pancakeswap, Sushiswap e Stableswap (Curve). Contudo, a diferença essencial é a de que, a depender da efetiva transferência da custódia dos criptoativos, seu recebimento e devolução podem ser efetivos, aproximando o contrato de um empréstimo, ou, se a liquidação se der pela diferença da variação dos preços, aproxima-se de um contrato de swap. Podemos nos indagar sobre qual seria o racional econômico para esse tipo de operação. Vejamos uma situação prática. Quem deseja encerrar uma operação com BTC ou ETH pode vendê-los e, a depender do ambiente no qual a operação é realizada, resgatar o valor da venda em dólares, reais ou outra moeda fiduciária (off-ramp)10 . Contudo, quando os recursos ingressam no sistema financeiro tradicional, podem ser monitorados pelas autoridades, podendo também incidir algum tipo de tributação. Ainda, há o inconveniente operacional de, caso precise realizar uma nova operação, deve ocorrer a conversão da moeda fiduciária em algum criptoativo de volta (on-ramp). Nas passagens on-ramp e off-ramp, os prestadores de serviços, tais como as exchanges de criptoativos, têm que contar com a colaboração de instituições reguladas que têm acesso aos sistemas financeiros controlados pelos Estados. Assim, há pontos de vulnerabilidade para quem deseja auferir os benefícios de operar fora do alcance do radar estatal. Para contornar esse problema, é comum que os saldos sejam mantidos em stablecoins, cuja variação dos preços é mais previsível – USDT e USDC têm seu valor atrelado a dólares americanos. Logo, é comum que a venda de criptoativos resulte na sua conversão para uma stablecoin, conforme a cotação do ambiente de negociação. Esse saldo fica, então, disponível para novas transações. Todavia, o investidor pode realizar uma operação alternativa, especialmente se tiver uma estratégia de médio ou longo prazo segundo a qual deseja manter seus criptoativos em pagar’ é liquidado somente no vencimento do contrato”. Cf. MOLERO, Leonel; MELLO, Eduardo. Derivativos: negociação e precificação. 2. ed. São Paulo: St. Paul, 2020, seção 1.7.3 e capítulo 4. 10 EDWOOD, Frank. Cryptocurrency On-Ramps and Off-Ramps, Explained. Coin Telegraph, 18 ago. 2020. Disponível em https://cointelegraph.com/explained/cryptocurrency-on-ramps-and-off-ramps-explained. Acesso em 17 jun. 2022. Em tradução livre: “Uma operação on-ramp refere-se a uma operação onde você pode oferecer moeda fiduciária em troca de criptomoeda. Off-ramp é o oposto, uma forma de converter criptomoedas em moeda fiduciária ou, então, produtos e serviços”.
  • 5. 5 carteira. Em vez de vender seus criptoativos, pode fornecê-los como garantia para obter um empréstimo, recebendo stablecoins ou outros criptoativos. Nessa hipótese, o valor recebido corresponderá a uma fração da garantia prestada e a operação poderá ser liquidada automaticamente caso a margem seja insuficiente, seja porque houve inadimplemento da obrigação assumida ou por conta de uma desvalorização dos criptoativos dados como garantia ou ambos os casos. Essa operação envolve um excesso de garantia exigida (over-collateralization) para fazer frente à volatilidade dos preços utilizados no cálculo da margem11. A propriedade de criptoativos depende do controle sobre a chave privada associada à carteira (wallet) que contém esses criptoativos. Assim, a prestação de garantia pode envolver a transferência efetiva, quando o emprestador deixa de ter o controle sobre seus criptoativos, ou, alternativamente, recebe tokens com a função de certificados de depósito e, caso deseje desonerar seus criptoativos, necessariamente liquidará antecipadamente o empréstimo. Em ambos os casos, a operação poderá ser encerrada antes do vencimento previsto (se houver) por meio de um comando do titular dos criptoativos emprestados. Contudo, no primeiro caso (com custódia delegada), será necessária a colaboração do tomador para devolver os tokens, pois é seu custodiante. Por outro lado, a execução compulsória por insuficiência de garantia é automatizada pela programação de smart contracts, os quais podem ser executados em ambientes centralizados (espécies de “bancos cripto”, descritos na seção 2) ou genuinamente descentralizados (descritos na seção 3). Na perspectiva de quem empresta os criptoativos, surge, assim, a possibilidade de ter uma remuneração adicional pela sua manutenção na carteira. Os tokens recebidos podem ser utilizados para diversas finalidades, como, por exemplo, a aquisição de outros criptoativos, permitindo a alavancagem das posições ou, então, a venda desses criptoativos se houver a expectativa de sua desvalorização, à semelhança das operações de venda coberta no mercado de ações. Adicionalmente, os tokens recebidos podem ser utilizados como garantia para outros empréstimos em outras plataformas, conforme as taxas de remuneração oferecidas. É possível, assim, escalar progressivamente o nível de alavancagem e, com isso, os riscos da operação. 11 Para uma discussão sobre a ineficiência da exigência de garantias em excesso em transações DeFi e proposta de alternativas, cf. ARAMONTE, Sirio et al. DeFi lending: intermediation without information? BIS Bulletin, n. 57, Jun. 14th, 2022. Disponível em https://www.bis.org/publ/bisbull57.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 6. 6 Por fim, vale apontar que, no jargão DeFi, utiliza-se a sigla APY – annual percentage yield – para expressar a taxa de remuneração anualizada de uma operação. Também podemos encontrar a siga PPY – period percentage yield, embora seja menos comum. 1.2. De onde vem a rentabilidade oferecida nos empréstimos? O serviço de agregação de informações DeFi LLama lista 28 (vinte e oito) categorias de serviços relacionados às finanças descentralizadas 12 . Dentre os principais, temos a negociação e permuta de criptoativos (Dexes, como Curve, Unisap, PancakeSwap e Balancer), as plataformas de empréstimos (como AAVE e Compound), os tokens que permitem a interoperabilidade entre plataformas (bridges, caso do Multichain e do Wrapped Bitcoin, este possibilitando a utilização do BTC na rede Ethereum), protocolos que têm sua própria stablecoin (Collateralized Debt Position – CDP, como o MakerDAO), remuneração de depósitos para staking ou provimento de liquidez, entre outros serviços. Nesta seção, analisaremos o fundamento econômico da remuneração oferecida em empréstimos para fins de staking e provimento de liquidez para exchanges descentralizadas. 1.2.1. Empréstimo para staking Uma das principais críticas aos criptoativos é a afirmação de que sua mineração é danosa ao meio ambiente em função do alto consumo de energia elétrica13. Isso decorre da necessidade da realização de cálculos custosos para que as transações na rede sejam validadas e inseridas em blocos sequenciais. Esse procedimento de validação é denominado de Proof of Work (PoW), que, em tradução literal, significa “prova de trabalho”14. Para contornar o problema de consumo energético das redes blockchain baseadas em prova de trabalho, surgiu uma alternativa, denominada de Proof of Stake (PoS) – “prova de participação”15, quando a integridade das transações na rede é garantida por participantes que atestam a validade dos dados mediante a disponibilização de determinado saldo de criptoativos. Ao “arriscar a própria pele”, um participante corre o risco de ser penalizado e perder esses criptoativos caso esteja mentindo sobre a integridade dos dados. Essa lógica é expandida 12 Disponível em https://defillama.com/categories. Acesso em 19 jun. 2022. 13 KALOUDIS, George. Does Bitcoin Have an Energy Problem? CoinDesk, April, 2021. Disponível em https://www.coindesk.com/tech/2021/04/22/coindesk-research-does-bitcoin-have-an-energy-problem/. Acesso em 19 jun. 2022. 14 O esforço árduo (abstrato e computacional) para a obtenção de ativos virtuais cuja quantidade “extraída” ao longo do tempo tende a diminuir faz com que a palavra “mineração” seja uma excelente escolha para designar o processo. 15 Cf. SALEH, Fahad. Blockchain Without Waste: Proof-of-Stake. Review of Financial Studies, v. 34, p. 1156- 1190, Mar. 2021. Disponível em http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3183935. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 7. 7 de modo a fazer com que não seja necessário realizar cálculos complexos ou consumir quantidades insanas de energia elétrica para garantir o funcionamento da rede. A atividade de disponibilizar criptoativos para participar de uma prova de participação é o que tem sido denominado de staking. Uma pessoa pode colocar seus criptoativos à disposição de um protocolo para, ao validar transações, ser remunerada com novos criptoativos e/ou taxas de intermediação. Essas pessoas podem ter interesse em tomar emprestados criptoativos de outros investidores para realizar a atividade de staking. Surge, assim, um mercado de empréstimo para staking. Aquele que participa da prova de participação tem sua remuneração baseada na dinâmica de validação de transações e, ao mesmo tempo, pode retribuir a quem emprestou com uma parcela de seus ganhos. 1.2.2. Exchanges descentralizadas (decentralized exchanges – DEX) As exchanges centralizadas são prestadores de serviços relevantes para quem deseja comprar ou vender criptoativo. Elas se assemelham a corretoras, na medida em que têm cadastro de investidores, controle de saldos, aportes e resgates e, ao mesmo tempo, desempenham função de bolsas, ao oferecer livros de ofertas onde é possível gerenciar ordens de compra e venda dos criptoativos listados. Contudo, uma marca genética relevante dos criptoativos é o seu imperativo de descentralização, isto é, sua circulação não foi concebida para ser controlada por uma empresa ou entidade estatal, um sistema centralizado. Com o desenvolvimento da tecnologia blockchain, foram criados ambientes de negociação que funcionam automaticamente, segundo regras programadas em smart contracts, sem que uma empresa fique encarregada dos aportes, resgates, cobranças de taxas de intermediação e alterações na custódia dos ativos. E, ainda, sem que o investidor tenha que abrir mão de suas chaves e, com isso, abrir mão de seus criptoativos. Para que esses ambientes, denominados de decentralized exchanges (DEX), funcionem, há alguns arranjos que necessitam da manutenção de saldos de criptoativos para permitir a negociação por investidores – os chamados fundos de liquidez (liquidity pools).16 16 Essa não é a única forma de funcionamento de uma DEX, mas o modelo tem sido considerado o mais efetivo, pois tem conseguido graus suficientes de liquidez para viabilizar seu funcionamento, ao contrário de DEX que baseadas em livros de ofertas on-chain ou off-chain. Para uma comparação entre esses modelos, cf. SCHÄR, Fabian. Decentralized Finance: On Blockchain- and Smart Contract-Based Financial Markets. Federal Reserve Bank of St. Louis Review, Second Quarter 2021, p. 153-74. Disponível em https://doi.org/10.20955/r.103.153- 74. Acesso em 18 jun. 2022.
  • 8. 8 Por exemplo, se João deseja comprar ETH e Maria deseja vendê-los em troca de USDC em uma exchange centralizada não necessariamente haverá o registro de uma transação diretamente entre as partes. Uma das formas mais simples de concretizar a transação é alterar os saldos em cada criptoativo associados a cada investidor. Assim, a exchange centralizada pode atuar como contraparte central, vendendo seu próprio ETH para João (diminuindo o saldo deste em USDC, em uma contabilidade fora da blockchain) e pagando com seu estoque de USDC para Maria (aumentando o saldo desta, em uma contabilidade fora da blockchain). A manutenção de uma carteira própria pela exchange centralizada permite que as operações sejam realizadas imediatamente – na contabilidade fora da blockchain mantida pela exchange – e, apenas se necessário, haverá algum registro nas redes envolvidas. O funcionamento das DEX requer que sejam mantidos pares de criptoativos (por exemplo, o par USDC-ETH) para que compradores e vendedores negociem contra aquele estoque de pares, o fundo de liquidez. Do ponto de vista de um investidor em uma DEX, temos algo semelhante ao que ocorre em um exchange centralizada que atua como contraparte de seus clientes, pois uma oferta de compra ou venda é atendida pelo fundo de liquidez. Nesse modelo, as transações não são efetivadas diretamente entre dois investidores (P2P, peer-to-peer), mas, ao mesmo tempo, não há um intermediário central e cada investidor negocia com um smart contract (transações P2C – peer-to-contract). Como no exemplo anterior, João compra ETH e paga USDC, Maria vende ETH e recebe USDC. Mas a permuta (swap) não ocorre simultaneamente nem diretamente entre João e Maria. João receberá ETH em sua conta, proveniente de um decréscimo de ETH existente no fundo de liquidez, acompanhado de um aumento de USDC, decorrente de um débito na conta de João. Maria, por sua vez, receberá USDC em sua conta, proveniente de um decréscimo de USDC existente no fundo de liquidez, acompanhado de um débito de ETH, com o respectivo acréscimo no fundo de liquidez. O fundo de liquidez que contém, ao mesmo tempo, ETH e USDC serve para atender às requisições de todas as pessoas que desejarem permutar aquele par de criptoativos. E o fundo de liquidez cresce conforme as taxas de “corretagem” são pagas pelos investidores. Provedores de liquidez podem contribuir para a formação do fundo de liquidez, cedendo os criptoativos que detêm, recebendo uma parcela das taxas de corretagem e, eventualmente, participando da governança do arranjo descentralizado, decidindo sobre taxas e outras regras da dinâmica das operações.
  • 9. 9 O resultado de quem cede seus criptoativos para o fundo de liquidez será principalmente fruto das taxas pagas pelos investidores que se dirigem à DEX, que não precisa ter sede constituída, funcionários ou nada do gênero. Basta que alguém dê vida a um código que é executado pelos participantes da rede, com armazenamento descentralizado. 1.3. As stablecoins e sua relevância no contexto DeFi 1.3.1. Previsibilidade em face da volatilidade O movimento dos preços de criptoativos pode ser extremamente abrupto. Ativos com essa característica são chamados de voláteis17. No jargão do mercado financeiro, a volatilidade é um atributo qualitativo de instrumentos financeiros cujos preços costumam sofrer variações de grande magnitude. A volatilidade está diretamente associada ao risco de um ativo. Alguma volatilidade é inevitável ou até mesmo desejada, mas a depender do grau, pode se tornar tóxica. Apesar da volatilidade dos criptoativos, podemos ter investidores que ignoram tais variações e esperam retornos no médio e longo prazo – os chamados HODLers18. As stablecoins surgiram para tornar mais conveniente a compra e venda de criptoativos de modo que as operações não precisem envolver moeda fiduciária. Um dos objetivos das stablecoins é garantir que suas cotações tenham paridade19 com cotações de outros ativos cujos preços são mais conhecidos, especialmente o dólar americano. Um investidor em criptoativos pode comprar e vender e manter suas reservas em uma stablecoin, a fim de evitar converter seu saldo em moedas fiduciárias, sem transferir os resultados para o sistema financeiro tradicional, diante da maior previsibilidade das cotações. 1.3.2. Lastro e riscos Nem todas as stablecoins são referenciadas em moedas fiduciárias, podendo, na verdade, estar atreladas às cotações de commodities (como o ouro) ou a uma cesta de ativos20. Cada stablecoin tem um mecanismo próprio de garantir a seus titulares a paridade com o ativo de referência. A principal fonte de informações é a descrição fornecida no whitepaper de cada uma 17 A volatilidade é a propriedade de uma substância de mudar facilmente de estado. Pense por exemplo, na acetona, no álcool ou no éter (irônico, não?), que evapora na temperatura ambiente se deixarmos um frasco aberto. 18 MERCADO BITCOIN. O que é HODL no mundo das criptomoedas? Saiba agora mesmo. Blog do Mercado Bitcoin, 7 abr. 2021. Disponível em https://blog.mercadobitcoin.com.br/o-que-e-hodl-no-mundo-das- criptomoedas-saiba-agora-mesmo. Acesso em 17 jun. 2022. 19 Utiliza-se, em inglês, o termo peg para denotar a fixação das cotações em um determinado nível. 20 Cf. INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS. Global Stablecoin Initiatives. Madrid, 2020. Disponível em https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD650.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 10. 10 delas ou no site de sua emissora – Tether, USD Coin, Binance USD, MakerDAO/DAI, Terra (LUNA). Um arranjo pode ser o simples lastro de moeda fiduciária mantido em stablecoins para cada token emitido. Assim, qualquer titular pode resgatar seu saldo de USDC em dólares ou adquirir USDC mediante depósito em dólares. A receita de quem emite stablecoins consiste nas taxas de conversão e nos rendimentos dos investimentos realizados com os ativos mantidos em custódia. Ante a ausência de regulação específica, não há regras sobre como o emissor das stablecoins pode dispor dos ativos que servem de lastro nem liquidez mínima ou outras regras tipicamente aplicáveis às instituições financeiras, a fim de evitar perdas. Mas há emissoras de stablecoins que obtiveram licenças especiais e oferecem alguma segurança jurídica, tais como Paxos Trust Company (PAX), Gemini Trust Company (Gemini USD) e Circle (emissora do USDC). Nesse caso, a confiança no emissor é fundamental, pois, se não existir lastro suficiente, estamos diante de uma fraude pura e simples, honrando resgates com recursos de novos depósitos, em um tradicional esquema Ponzi. A existência de ativos no patrimônio da Tether suficientes para fazer frente aos US$70 bilhões de USDT21 em circulação é uma questão controvertida, uma vez que há dúvidas sobre as auditorias realizadas sobre os ativos da empresa22. Se o lastro da stablecoin é um ativo mantido em custódia pelo emissor, esse ativo pode simplesmente não existir totalmente ou pode estar em quantidade suficiente para atender os saques. Em um cenário de maior incerteza, quando muitas pessoas desejam resgatar seus saldos simultaneamente, pode ocorrer algo parecido com uma corrida bancária. Se a stablecoin for um esquema fraudulento, poderá ser descoberta e todo o arranjo poderá implodir abruptamente. Outra dúvida importante é a eventual arbitrariedade da emissão de novos USDT. Discute-se hipótese de que, para sustentar os preços de determinado criptoativo (BTC ou ETH), pode ocorrer uma emissão indiscriminada de USDT sem lastro algum para fornecer combustível para a compra desses ativos, mantendo suas cotações em níveis artificiais23. 21 Conforme dados do portal CoinMarketCap de 19 jun. 2022. 22 YAFFE-BELLANY, David. The Coin That Could Wreck Crypto. New York Times, Jun. 17th, 2022. Disponível em https://www.nytimes.com/2022/06/17/technology/tether-stablecoin-cryptocurrency.html. Acesso em 19 jun. 2022. 23 Cf. GRIFFIN, John M.; SHAMS, Amin. Is Bitcoin Really Un-Tethered? SSRN, Oct 28th 2019. Disponível em https://ssrn.com/abstract=3195066. Acesso em 17 jun. 2022. A resposta da Tether pode ser lida em TETHER. Tether Response to Flawed Paper by Griffin and Shams. Nov 7th, 2019. Disponível em https://tether.to/en/tether-response-to-flawed-paper-by-griffin-and-shams/. Acesso em 17 jun. 2022.
  • 11. 11 A existência de um lastro fora da blockchain não é a única forma de estabilizar as cotações de uma stablecoin com relação ao seu ativo de referência. É possível implementar algoritmos de política monetária para controlar a emissão e o resgate dos tokens emitidos, garantindo uma quantidade de tokens em circulação em um equilíbrio dinâmica entre as forças de oferta e demanda pela stablecoin. Se a paridade é mantida por algoritmos, choques abruptos de liquidez e volatilidade podem levar a distorções que afastam o preço da stablecoin do preço do ativo de referência, fenômeno conhecido como unpegging. 1.3.3. Terra arrasada: stablecoins nos holofotes dos reguladores Na semana de 9.5.2022, o projeto Terra (LUNA), criado em 2019, foi vítima de um choque de volatilidade24 . Na dinâmica do projeto, a stablecoin pode ser TerraUSD, cuja estabilização dos preços era feita pelo controle da quantidade de outro token em circulação LUNA, absorvendo as variações dos preços do dólar e de outros ativos de referência. De modo simplificado, esse projeto foi criado para permitir a criação de stablecoins para qualquer ativo de referência, por meio da “tradução” da variação da oferta e da demanda em um token intermediário denominado LUNA. A capitalização de mercado de Terra USD (UST) e LUNA chegou a quase US$50 bilhões em 2021. Em um tweet de 6.4.202225, Do Kwon, o fundador do projeto postou que regou suas plantas, escreveu alguns e-mails, comprou o equivalente a US$230 milhões em bitcoins, passou aspirador de pó na casa, comeu um lanche no McDonald's e iria passear com seu cachorro. Mal poderia imaginar que o pior cenário possível viria a ocorrer com UST e LUNA dali a pouco mais de um mês, quando a cotação de LUNA viria a zero. Considerando que as stablecoins são um ponto de contato importante entre as soluções DeFi (e a criptoeconomia em geral) e o sistema financeiro tradicional, não é à toa que as autoridades monetárias estão preocupadas com os riscos que podem trazer26, especialmente em virtude do ocorrido com o projeto Terra (LUNA). 24 MARTINES, Fernando. Preço de LUNA vai a zero e Terra “desliga” blockchain da criptomoeda. Portal do Bitcoin, 12 maio 2022. https://portaldobitcoin.uol.com.br/preco-de-luna-vai-a-zero-e-terra-desliga-blockchain- da-criptomoeda/. Acesso em 17 jun. 2022. 25 Disponível em https://twitter.com/stablekwon/status/1511614014517755909. Acesso em 17 jun. 2022. 26 MARQUES, Gabriel. Ex-presidente do Fed: “Stablecoins são risco à estabilidade financeira”. Exame, 10 maio 2022. https://exame.com/future-of-money/ex-presidente-do-fed-stablecoins-sao-risco-a-estabilidade- financeira/. Acesso em 17 jun. 2022.
  • 12. 12 2. Descentralização “apenas no nome”27 Paradoxalmente, sugiram projetos de depósitos remunerados de criptoativos sem ter a infraestrutura descentralizada. Assim como as exchanges centralizadas têm sido protagonistas na negociação de criptoativos, essas plataformas têm sido equivocadamente rotuladas como DeFi, quando, na verdade, são soluções centralizadas de serviços financeiros. A implementação de projetos genuinamente centralizados é complexa, como veremos na próxima seção, e, ainda, a execução de smart contracts depende do pagamento de custos de processamento na rede Ethereum. A proliferação de novos modelos de negócios baseados em Ethereum levou o valor do GAS (a taxa paga para a realização de transações) sem precedentes ao longo de 202128. Taxas elevadas prejudicam pequenos investidores, pois são impeditivas para valores modestos. Alguns desses modelos sucumbiram diante da atuação de reguladores ou, então, em virtude da forte desvalorização dos preços dos criptoativos em geral a partir de novembro de 2021, acelerada pela fuga de ativos de maior risco, pelos investidores, diante do aumento das taxas de juros em todo o mundo e, ainda, por incidentes que comprometeram a credibilidade na criptoeconomia, como o colapso do projeto Terra (LUNA). 2.1. BlockFi e Coinbase USDC APY A plataforma BlockFi começou a funcionar em abril de 2019 com sede em New Jersey, oferecendo o serviço de pagamento periódico de remuneração de depósitos em criptoativos de seus clientes29. Em março de 2021, 572.160 clientes detinham US$ 14,7 bilhões em contas 27 O autor gostaria de agradecer nesse ponto do texto ao amigo Courtnay Guimarães, que coordena grupos virtuais de discussão repletos de pessoas dispostas a compartilhar conhecimento. Courtnay me chamou a atenção para uma designação curiosa para esse tipo de solução, que teria sido cunhada pelo atual presidente da SEC, Gary Gensler: DINO, que é o acrônimo para Decentralized In Name Only, ou seja, “descentralizado apenas no nome”. Cf. HOLLERITH, David. Why SEC's Gensler is calling for more investor protections as DeFi blossoms. Yahoo finance, Oct. 27th, 2021. Disponível em https://finance.yahoo.com/news/why-se-cs- gensler-is-calling-for-more-investor-protections-as-de-fi-blossoms-164203144.html. Acesso em 19 jun. 2022. 28 OECD. Why Decentralised Finance (DeFi) Matters and the Policy Implications. Paris, 2022, p. 24. Disponível em https://www.oecd.org/finance/why-decentralised-finance-defi-matters-and-the-policy-implications.htm. Acesso em 19 jun. 2022. Como descreve o estudo da OCDE, na rede Ethereum, “every block has a base fee, the minimum price per unit of gas for inclusion in this block, calculated by the network based on demand for block space. As the base fee of the transaction fee is burnt, users are also expected to set a tip (priority fee) in their transactions. The tip compensates miners for executing and propagating user transactions in blocks and is expected to be set automatically by most wallets. Users can submit transactions with a maximum fee per gas corresponding to how much they are willing to pay for the transaction to be executing, knowing that they will not pay more than the market price for gas (base fee per gas), and get any extra, minus their tip, refunded”. 29 UNITED STATES SECURITIES AND EXCHANGE COMMISION. BlockFi Agrees to Pay $100 Million in Penalties and Pursue Registration of its Crypto Lending Product. Washington, Feb. 14th, 2022. Disponível em https://www.sec.gov/news/press-release/2022-26. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 13. 13 remuneradas. Os recursos eram transferidos para a carteira (wallet) da BlockFi e a custódia era mantida por terceiros contratados por esta. A Securities and Exchange Commision (SEC), regulador norte-americano, entendeu que houve oferta pública de um título para o qual havia a expectativa de benefício econômico, o qual decorreria do esforço da BlockFi. A SEC detectou, ainda, que boa parte dos empréstimos não exigia garantia em excesso, ao contrário do que a empresa informava publicamente. Por se tratar de um valor mobiliário (security)30, a oferta deveria ter sido registrada junto à SEC, razão pela qual a BlockFi foi obrigada a suspender a prestação do serviço e encerrar o imbróglio mediante o pagamento de multas no total de US$ 100 milhões em fevereiro de 2022. A empresa anunciou publicamente que buscará obter o registro junto à SEC e voltará a oferecer as contas de depósito remunerado, apesar de críticas no sentido de que a aprovação desse registro será demorada ou pode nunca vir a ocorrer31. A Coinbase, exchange centralizada com ações negociadas na Nasdaq, anunciou um produto semelhante em setembro de 2021, denominado USDC APY32. Enquanto os usuários da Coinbase detivessem a stablecoin USDC, receberiam remuneração superior às taxas usuais de mercado. A SEC entendeu que, a partir das informações contidas na divulgação, o produto era um valor mobiliário e deveria ser registrado, o que levou a Coinbase a suspender os planos de lançamento e questionar a falta de clareza acerca do que é ou não permitido pela regulação do mercado de capitais33. Vários estados norte-americanos iniciaram investigações ou emitira ordens restritivas para outras plataformas de depósitos remunerados, notadamente Celsius e Nexo34 . Em setembro de 2021, a plataforma Celsius contava com cerca de 350 mil usuários e o equivalente a US$ 12,5 bilhões em custódia. 30 Foge do escopo desse texto o detalhamento dos critérios utilizados pelos reguladores para definir se determinado ativo ou produto é um valor mobiliário. Uma análise pode ser encontrada em COSTA, Isac Silveira da. Plunct, plact, zum: Tokens, valores mobiliários e a CVM. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro. (Org.). Criptoativos: estudos jurídicos, regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. 31 DECRYPT. Multada, mas feliz: por que BlockFi se considera vitoriosa por pagar multa de US$ 100 milhões? Portal do Bitcoin, 21 fev. 2022. Disponível em https://portaldobitcoin.uol.com.br/multada-mas-feliz-por-que- blockfi-se-considera-vitoriosa-por-pagar-multa-de-us-100-milhoes/. Acesso em 19 jun. 2022. 32 COINBASE. Update as of 5pm ET, Friday, September 17th: we are not launching the USDC APY program announced below, Jun. 29th, 2021. Disponível em https://blog.coinbase.com/sign-up-to-earn-4-apy-on-usd-coin- with-coinbase-cdad79e5f5eb. Acesso em 19 jun. 2022. 33 Brian Armostrong, CEO da Coinbase narrou os eventos em sua conta no Twitter - https://twitter.com/brian_armstrong/status/1435439291715358721/. Acesso e 19 jun. 2022. 34 STARK, John Reed. State Crypto Lending Concerns Point To SEC Action Ahead. Law 360, Oct. 22nd, 2021. Disponível em https://www.johnreedstark.com/wp- content/uploads/sites/180/2021/10/Law360StarkArticle.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 14. 14 2.2. Celsius, Babel e Anchor Apesar da atuação pontual de estados norte-americanos, a plataforma Celsius continuou a oferecer seus serviços globalmente, chegando a captar US$ 750 milhões em novembro de 2021, chegando a um valuation de US$ 3,5 bilhões, enquanto anunciava taxas de retorno anuais da ordem de 18%35. Entretanto, entre dezembro de 2021 e maio de 2022, o total de valores depositados na plataforma caiu pela metade, de US$ 24 bilhões para US$ 12 bilhões36. A frequência e volume dos saques foi atribuída à desvalorização dos criptoativos no período, suscitando preocupações quanto à capacidade de a empresa honrar os pedidos de resgate. O token $CEL, que chegou a ser cotado a US$ 8 em junho de 2021, era negociado a cerca de US$ 0,60 em maio de 2022. A empresa negou publicamente que negociava discricionariamente com os ativos de seus clientes, atribuindo a rentabilidade a outras estratégias de negócio. Alex Mashinsky, CEO da empresa, rebateu críticos assegurando que nenhum cliente enfrentava restrições ou obstáculos para resgatar seus recursos. Porém, em 13.6.2022, a empresa anunciou o bloqueio de saques, causando enorme preocupação nos investidores de criptoativos e nas autoridades, com a justificativa de “beneficiar toda a comunidade ao estabilizar a liquidez e as operações enquanto são tomadas medidas para preservar e proteger os ativos”37. Um colapso da Celsius pode ter um efeito devastador na cadeia de interdependências das plataformas de empréstimos, devido a débitos da própria Celsius nesses ambientes, levando a liquidações compulsórias em cascata, levando a uma variação abrupta nos preços dos criptoativos envolvidos38, além de afetar significativamente a credibilidade dos agentes de mercado. Aparentemente, alguns dos investimentos realizados pela Celsius envolveram o projeto Terra (LUNA), que entrou em colapso e, ainda, tokens representativos da nova versão do protocolo Ethereum, que têm sofrido desvalorização abrupta. 35 QUARMBY, Brian. Celsius expands funding round to $750M, tips $7B to $10B valuation in 2022. Coin Telegraph, Nov. 25th, 2021. Disponível em https://cointelegraph.com/news/celsius-expands-funding-round- to-750m-tips-7b-to-10b-valuation-in-2022. Acesso em 19 jun. 2022. 36 SHUBBER, Kadhim; CHIPOLINA, Scott. Crypto lender Celsius Network stung by sell-off in digital asset market. Financial Times, May 21st 2022. Disponível em https://www.ft.com/content/61334d19-fb25-4492- 83d0-78c3cfec4df8. Acesso em 22 maio 2022. 37 SAMSON, Adam et al. Bitcoin tumbles after crypto lender Celsius blocks all redemptions. Financial Times, Jun. 13th, 2022. Disponível em https://www.ft.com/content/25ac1667-9f50-4f16-b553-448ea4582613. Acesso em 13 jun. 2022. 38 ELDER, Bryce. Celsius melts as ether smoked. Financial Times, Jun. 13th, 2022. Disponível em https://www.ft.com/content/0d503e3c-d624-4331-8c7f-4c7c42239472. Acesso em 13 jun. 2022.
  • 15. 15 Adicionalmente, em meio à queda dos preços dos criptoativos, a plataforma de empréstimos Babel, avaliada em US$ 2 bilhões, com cerca de US$ 3 bilhões em custódia no final de 202139. Por fim, vale apontar que a plataforma Anchor, que remunerava depósitos em UST do projeto Terra (LUNA) em cerca de 20% ao ano, também entrou em colapso, gerando perdas para várias empresas do setor que eram seus clientes e investidores, como Jump Crypto, Three Arrows Capital (3AC), Coinbase Ventures, Lightspeed Venture Partners e Galaxy Digital (cujo CEO, Mike Novogratz, chegou a fazer uma tatuagem relacionada ao projeto)40. O elevado retorno prometido pela plataforma, considerado insustentável por muitos, sugeria o risco de se tratar de um esquema Ponzi, mas outros consideravam que era apenas uma estratégia agressiva de captação dos clientes e que, posteriormente, a taxa seria revisada. Ao final, o valor de capitalização de mercado de cerca de US$ 40 bilhões foi simplesmente vaporizado. 3. Soluções genuinamente descentralizadas 3.1. Remuneração de depósitos – money legos, yield farming A maior parte das soluções DeFi utiliza a rede Ethereum, que permite a programação de smart contracts e a criação de regras de negócio específicas para cada aplicação descentralizada (decentralized application – dApp) e cada projeto tem seu próprio criptoativo, usualmente um token com a função de certificado de depósito e outro com função de governança, oferecendo o poder de participar das deliberações daquele projeto. Nessas plataformas, o montante global de criptoativos depositados é usualmente referido como total value locked (TVL). De acordo com o serviço de agregação de dados Defi Llama41, em 19.6.2022, havia o equivalente a US$ 45,73 bilhões em TVL em 502 protocolos DeFi na rede Ethereum, correspondendo a 64% do TVL de todas as redes, que era de US$ 72 bilhões. As posições seguintes eram ocupadas pela Binance Smart Chain (BSC, com 406 projetos e 8,22% do TVL total), Tron (9 projetos, 5,58%), Avalanche (220 projetos, 3,61%), Solana (72 projetos,3,49%) e Polygon (264 projetos, 2,29%). 39 SHEN, Muyao. Após Celsius, credora Babel Finance suspende saques dos clientes. Valor, 17 jun. 2022. Disponível em https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2022/06/17/apos-celsius-credora- babel-finance-suspende-saques-dos-clientes.ghtml. Acesso em 17 jun. 2022. 40 LOPATTO, Elizabeth. How the Anchor protocol helped sink Terra. The Verge, May 20th, 2022. Disponível em https://www.theverge.com/2022/5/20/23131647/terra-luna-do-kwon-stablecoin-anchor. Acesso em 17 jun. 2022. 41 Disponível em https://defillama.com/chains. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 16. 16 Na plataforma Compound42, os criptoativos detidos pelos poupadores (credores) são emprestados mediante taxas pagas pelos tomadores, deduzidas de uma taxa de intermediação que remunera os participantes da rede43. Ao contrário do que ocorre em um procedimento de análise de crédito, o tomador não precisa fornecer nenhuma informação pessoal, não há processo de know your cliente (KYC) e a concessão do empréstimo é automática mediante a prestação de garantias em criptoativos, exigidas em excesso para assegurar o adimplemento das obrigações e a estabilidade do sistema. A taxa do empréstimo é fixada dinamicamente conforme o saldo de criptoativos no fundo de liquidez (liquidity pool). Quando mais abundante for o criptoativo nesse fundo, menor é a taxa da operação, de modo a atrair tomadores. Do outro lado, quanto mais escasso, maior será a taxa, de modo a atrair credores para aumentar a oferta daquele criptoativo no fundo de liquidez. A taxa flutuante de juros e o excesso de garantias exigidas são apontados como mecanismos que previnem uma “corrida bancária” na plataforma. Conforme as regras do protocolo Compound, a capitalização ocorre em pequenos intervalos – tão curtos quanto 15 segundos, o tempo de mineração de um bloco na rede Ethereum – e as taxas são expressas em termos anuais. O cálculo é feito segundo a lógica de juros compostos. Em cada ciclo da operação, aplica-se a taxa anual dividida por 2.102.400 = 365 dias × 24 horas × 60 minutos × 4 blocos de 15 segundos. Os credores recebem cTokens (associados aos criptoativos depositados, de modo que há cETH, cDAI etc.), que representam a valorização dos criptoativos depositados. Os credores controlam a chave privada desses tokens, de modo a permitir o seu resgate sem a necessidade de autorização de um ente central. Essa funcionalidade nos permite afirmar que Compound é uma solução DeFi genuinamente descentralizada, embora haja críticas sobre aspectos da implementação que utilização uma lógica centralizada44. O protocolo conta também com o token $COMP, distribuídos igualmente entre credores e tomadores segundo o volume de suas operações, que confere a seus titulares o 42 O projeto foi idealizado pelo economista Robert Leshner e recebeu US$25 milhões em investimentos em uma rodada liderada pelo fundo de venture capital a16z, além de ter recebido US$1 milhão em USDC do USDC Bootstrap Fund, criado pela exchange Coinbase. 43 GERONI, Diego. What is Compound & how does it work. 101 Blockchains, Nov 9th, 2021. Disponível em https://101blockchains.com/compound-protocol/. Acesso em 17 jun. 2022. 44 MUNSTER, Ben. Compound’s smart contracts could pose risk to Ether, DAI holders. Decrypt, Sep. 4th, 2019. Disponível em https://decrypt.co/8932/compounds-smart-contracts-could-pose-risk-to-ether-dai-holders. Acesso em 20 jun. 2022. O debate pode ser acompanhado no Twitter em https://twitter.com/rleshner/status/1169276541890547713.
  • 17. 17 direito de propor temas e deliberar sobre eles junto aos demais titulares – trata-se de um token de governança45. Na hipótese de liquidação compulsória, os tomadores permanecem com os cTokens que receberam no início da operação, mas perdem os criptoativos dados em garantia. O código dos smart contracts pode ser auditado para verificar se há falhas ou se há algum desvio com relação às regras divulgadas ao mercado, assim como é possível rastrear todas as operações realizadas, dada a publicidade da rede Ethereum, que serve de base para a plataforma. Há, ainda, um programa de recompensas para quem detectar vulnerabilidades de segurança e erros na programação. Adicionalmente, os tokens recebidos como certificados de depósitos dos criptoativos depositados (os cTokens da plataforma Compound e equivalentes de outros protocolos) podem ser utilizados em outras plataformas para fins de depósitos, de modo que a interoperabilidade entre elas permite a elaboração de estratégias com a combinação desses tokens, razão pela qual são conhecidos como money legos, em alusão aos blocos de Lego utilizados para montar as mais diversas criações. Vários projetos semelhantes surgiram após o Compound e, para impulsionar um efeito de rede e atrair investidores, passaram a oferecer rendimentos relevantes de modo que alguns participantes de mercado utilizaram estratégias de spread com alavancagem, tomando recursos emprestados em uma plataforma para oferecer empréstimos em outra (com taxas de retorno maiores), prática que se tornou conhecida como yield farming, uma espécie de “cultivo de rendimentos”, os quais devem ser “colhidos” após a redução das taxas pagas à medida que as plataformas vão crescendo. A lógica aqui descrita é semelhante à adotada em outras plataformas46, com algumas diferenças, tais como o pagamento dos rendimentos direto na carteira (wallet) do usuário (como ocorre no protocolo AAVE) ou, então, na taxa de conversão dos cTokens e a possibilidade de fixação dessa taxa por períodos mais longos. Na plataforma MakerDAO, o usuário fornece criptoativos em troca de tokens DAI (em uma relação com exigência de garantia em excesso), uma stablecoin que pode ser utilizada para fins de pagamento ou outras operações. Nesse caso, o DAI é um ativo que representa uma 45 Cf. OECD. Why Decentralised Finance (DeFi) Matters and the Policy Implications. Paris, 2022, p. 33-36. Disponível em https://www.oecd.org/finance/why-decentralised-finance-defi-matters-and-the-policy- implications.htm. Acesso em 19 jun. 2022.; INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS. IOSCO Decentralized Finance Report. Madrid, 2022, p. 25-26. Disponível em https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD699.pdf. Acesso em 19 jun. 2022. 46 Para uma descrição mais detalhada e comparação entre Maker, Compound e AAVE cf. HARVEY, Campbell R. et al. DeFi and the future of finance. Hoboken: Wiley, 2021, Capítulo 6.
  • 18. 18 dívida lastreada em outros criptoativos e não simplesmente um certificado de depósito como os cTokens da plataforma Compound, apesar de haver alguma semelhança. Plataformas como a MakerDAO são conhecidas como CDPs, pois geram collateralized debt positions. Por fim, vale indicar que, em algumas plataformas, existe a possibilidade de obter empréstimos sem o fornecimento de garantias, desde que o início e o fim da transação sejam processados no mesmo bloco (o que ocorre a cada 15 segundos na rede Ethereum). Essa modalidade “relâmpago” de empréstimos é denominada de flash loan e merece um estudo mais detido em virtude da possibilidade de sua utilização para práticas de manipulação de mercado e ataques a fundos com pouca liquidez47. 3.2. Provimento de liquidez – liquidity mining Uma das fontes de rendimento para os empréstimos fornecidos em tokens decorre das taxas cobradas por operações de permutas que ocorrem em ambientes descentralizados. Usualmente, você pode recorrer a uma exchange centralizada para comprar ETH mediante pagamento em USDC. Nesse caso, terá que fazer um cadastro, que pode exigir sua identificação e, ainda, a depender do caso, as transferências de recursos só poderão ser provenientes de contas de sua titularidade, além de haver outras restrições para controlar as transações para prevenir lavagem de dinheiro48. Adicionalmente, a custódia dos ativos é comumente delegada à exchange descentralizada, com amarras ao seu direito de propriedade – o popular adágio “se as chaves não são suas, os ativos não são seus” (not your keys, not your coins). Entretanto, há uma alternativa: para realizar a mesma operação de fornecer USDC para receber ETH, você poderá recorrer a uma exchange descentralizada (DEX), que recebe depósitos de diferentes usuários e cria fundos de liquidez (liquidity pool) para pares de criptoativos – no exemplo dado, um par ETH-USDC. A descentralização decorre do fato de que não há necessidade da estrutura tradicional de uma exchange centralizada, não há cadastro de usuários ou sistemas de compliance, nem mesmo há a necessidade de haver um livro de ofertas. 47 QIN, Kaihua et al. Attacking the DeFi Ecosystem with Flash Loans for Fun and Profit. Financial Cryptography and Data Security, v. 12674, 2021. Disponível em https://arxiv.org/pdf/2003.03810.pdf. Acesso em 19 jun. 2022. 48 Um exemplo didático de controles existentes em uma exchange centralizada é a descrição fornecida pela Bitso a respeito de sua atuação no Brasil em FREITAS, Thales. Como a Bitso, plataforma de criptomoedas líder na América Latina, opera no Brasil de forma confiável e segura? Bitso, 17 jun. 2022. Disponível em https://blog.bitso.com/pt-br/bitso-br/bitso-segura. Acesso em 18 jun. 2022.
  • 19. 19 Nesses ambientes, é preciso compreender a perspectiva dos investidores e, de outro lado, a dos depositantes. Ao permutar os criptoativos que desejam os investidores diminuem o número de tokens de um deles e aumentam o outro, segundo uma taxa de conversão que decorre eminentemente da participação de formadores de mercado (market makers ). Toda a negociação é programada em smart contracts. Os formadores de mercado procuram assegurar que as taxas de conversão – em última análise, o preço de um criptoativo expresso em termos do número de tokens do outro criptoativo – esteja em linha com outros ambientes de negociação, por meio de estratégias de arbitragem, explorando discrepâncias temporárias nos preços. Traçando um paralelo com a intermediação tradicional de valores mobiliários, o fundo de liquidez funciona como se fosse a carteira própria daquele intermediário, que serve de contraparte para seus clientes, em um modelo conhecido como internalização de ordens49. Assim, o intermediário é o comprador contra as ofertas de venda recebidas e o vendedor contra as ofertas de compra. No arranjo descentralizado, o fundo de liquidez é a contraparte das operações, resultando na variação das quantidades do saldo de tokens. Ainda, no modelo descentralizado, o valor da corretagem que seria pago a um intermediário centralizado pode ser revertido para outras finalidades, como, por exemplo, remunerar os depositantes dos recursos que permanecem no fundo de liquidez. As regras de negócio e outros aspectos da dinâmica da plataforma podem ser alteradas mediante deliberações dos titulares de tokens de governança. É comum encontrarmos uma stablecoin como um dos criptoativos em um par de um fundo de liquidez, mas isso não é sempre necessário. Pode haver também pares de stablecoins. A seguir, detalhamos alguns aspectos relevantes do funcionamento desses fundos de liquidez, com atenção à perspectiva do depositante de criptoativos (quem efetivamente fornece a liquidez) e os riscos nos quais incorre. 3.3. A dinâmica dos fundos de liquidez (liquidity pools) Podemos conceber a formação de um fundo de liquidez contendo dois criptoativos como uma série de integralizações (ou resgates) com aportes (ou saques) de tokens que aumentam o valor global do fundo (ou o reduzem). 49 Tive a oportunidade de discutir o tema e sua eventual autorização no mercado brasileiro em COSTA, Isac Silveira da. XP Facilitation, Oferta RLP e Internalização à Brasileira. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 92, abr./jun. 2021.
  • 20. 20 Em um fundo de liquidez contendo o par de criptoativos A e B, há dois aspectos operacionais importantes: (a) deve ser mantida uma proporção fixa entre o valor total dos tokens A e o valor total dos tokens B (por exemplo, 50%/50%); e (b) a quantidade de tokens A varia na proporção inversa à quantidade de tokens B, a fim de que seja mantida a proporção indicada enquanto os preços dos tokens variam entre si. Dada a quantidade de tokens A que se deseja negociar, a transação terá reflexo na quantidade de tokens B que será depositado ou resgatado, conforme o caso, com base nas duas regras indicadas acima. Uma referência importante para a implementação dessas regras é o código da plataforma Uniswap50. A relação de proporcionalidade inversa é fundamental para definir uma premissa de programação que permite aos usuários prescindir da especificação do preço em uma negociação. Esta regra é conhecida como fórmula do produto constante51 , mas nada mais é do que a expressão matemática da afirmação “a quantidade de tokens A é inversamente proporcional à quantidade de tokens B” ao longo do tempo. 𝑞 𝐴 → 𝑞 𝐴 𝑞 𝐵 𝑘 (1) Por seu turno, a regra da proporção fixa toma como referência o valor dos tokens e não a sua quantidade. Se A é ETH e B é uma stablecoin como USDC, a proporção é 50%/50% e a cotação de ETH em um dado momento é de USDC 1.200, então um fundo deverá ter, por exemplo, (USDC 12.000; ETH 10) e, nesse caso, o valor total pode ser expresso como ETH 20 ou USDC 24.000. Outro exemplo: se A é ETH e B é WBTC52, então, podemos expressar o preço de um criptoativo em termos de outro, mas, por ora, ainda recorremos às cotações em US$ para calcular a cotação relativa. Podemos convencionar que p(A, B) é o preço de A expresso no número de tokens de B e p(X, $) é a cotação do token X em US$. Por exemplo, p(WBTC, $)= US$17.771,90 por cada WBTC e p(ETH, $) = US$901,39 por cada ETH. Logo, a razão entre esses valores nos dará p(WBTC, ETH) = ETH 19,7 por cada WBTC. Com essa notação, é trivial generalizarmos que: 50 ANGERIS, Guillermo et al. An Analysis of Uniswap markets. Cryptoeconomic Systems, v. 1, n. 1, Apr. 2021. Disponível em https://doi.org/10.21428/58320208.c9738e64. Acesso em 18 jun. 2022. 51 ZHANG, Yi ; CHEN, Xiaohong; PARK, Daejun. Formal specification of constant product(xy=k) market maker model and implementation, Uniswap Github project documentation, 2018. Disponível em https://github.com/runtimeverification/verified-smart-contracts/blob/uniswap/uniswap/x-y-k.pdf. Acesso em 18 jun. 2022. 52 WBTC é o criptoativo wrapped bitcoin, que tem paridade com o preço do BTC, mas pode ser usado na rede Ethereum. Mais informações em https://wbtc.network/. Acesso em 18 jun. 2022.
  • 21. 21 𝑝 𝐴, 𝐵 ,$ ,$ (2) Assim, se um fundo de liquidez é formado pelos criptoativos A e B e seus pesos são representados por w(A) e w(B), tal que w(A) + w(B) = 1, a regra da proporção fixa pode ser expressa como: ,$ ,$ (3) O numerador de cada fração acima é expresso em US$ e representa o volume financeiro de cada token, o produto entre a quantidade de tokens e seu valor. Se a proporção for igual, a equação é simplificada pelo cancelamento dos denominadores e a aplicação da equação (2): 𝑞 𝐵 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, 𝐵 (4) O volume financeiro total do fundo de liquidez é designado como total value locked (TVL) e pode ser expresso pela equação: 𝑇𝑉𝐿 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, $ 𝑞 𝐵 𝑝 𝐵, $ 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, 𝐵 𝑞 𝐵 𝑞 𝐴 𝑞 𝐵 𝑝 𝐵, 𝐴 (5) A fórmula é bem mais simples do que parece. No exemplo anterior em que o fundo de liquidez é expresso como (USDC 12.000; ETH 10), podemos calcular TVL = US$ 24.000 = ETH 20 = USDC 24.000. Essas equações são importantes para que possamos responder às seguintes perguntas: a) Se eu desejo aportar o equivalente a US$ 1.000 em um par (USDC; ETH), qual será a quantidade de cada token após o aporte, considerando que esse representará um aumento de 10% no TVL e a proporção entre os tokens é 50%/50%? b) Como viabilizar um mercado de permuta de criptoativos sem um livro de ofertas, com um processo adequado de formação de preços? c) Se houver uma variação dos preços relativos de ETH e USDC e eu desejar resgatar os valores, posso incorrer em algum tipo de prejuízo? 3.3.1. Aportes no fundo de liquidez Se você deseja aportar em um dos criptoativos (para simplificar, no stablecoin) é US$ 1.000 = USDC 1.000 em um par (USDC; ETH) e a cotação de ETH é de USDC 1.000, então deverá fornecer igualmente ETH 1 para respeitar a proporção 50%/50%. Se valor a ser aportado (US$ 2.000 = USDC 2.000 = ETH 2) representa 10% do TVL pós-aporte, então este será igual a US$ 20.000 = USDC 20.000 = ETH 20.
  • 22. 22 Pelo exposto, temos que, após o aporte, o fundo de liquidez será composto por (USDC 10.000; ETH 10). O aporte sempre se dá em pares (no exemplo, ETH 1 e USDC 1.000), com as quantidades calculadas a partir dos parâmetros do fundo de liquidez. Existem plataformas para facilitar essas transações (ex. Zapper), nas quais você pode conectar a sua carteira e indicar a quantidade que deseja depositar, sendo feita a conversão e o depósito nas quantidades adequadas. Quando um dos criptoativos é uma stablecoin e as proporções são iguais, os cálculos são simplificados. Porém, no caso mais genérico, se os pesos de dois tokens A e B são w(A) e w(B), tal que w(B) = 1 – w(A) e o aporte a ser realizado em tokens A é dado como v(A, $), representando um acréscimo f no TVL, e, ainda, sendo as cotações originais de A e B p(A,$) e p(B, $), então, após o aporte, teremos53: 𝑞 𝐴 ,$ ,$ 𝑒 𝑇𝑉𝐿 𝑒𝑚 $ (6) 𝑞 𝐵 1 𝑤 𝐴 $ ,$ 1 ,$ (7) Ainda, o aporte feito em cada token é: ∆𝑞 𝐴 𝑓 𝑞 𝐴 ,$ ,$ (8) ∆𝑞 𝐵 𝑓 𝑞 𝐵 (9) A vantagem das fórmulas acima é permitir o cálculo da quantidade final de cada token em um fundo de liquidez com qualquer par e em qualquer proporção, desde que tenhamos as cotações iniciais de cada token, o valor do aporte em um dos tokens, o peso desse token e a variação percentual do TVL após o aporte. Ainda, o raciocínio empregado, mais genérico, é útil para subsidiar fórmulas ainda mais gerais, quando há diversos criptoativos no fundo de liquidez, cada um com um peso específico, que pode ser estático ou dinâmico – hipóteses adotadas em protocolos DeFi mais recentes, como Balancer54 e Curve (Stableswap)55. O percentual de acréscimo no TVL pode ser interpretado como a participação daquele investidor no montante global do fundo de liquidez. Por isso, é conveniente pensar que todos 53 Se você fizer A = USDC, B = ETH, v(A, $)=US$ 1.000; f = 0,1; w(A) = w(B) = 0,5; p(A, $) = US$ 1/USDC e p(B, $) = US$ 1.000/ETH, chegará a q(A) = USDC 10.000 e q(B) = ETH 10, com TVL = US$ 20.000, como descrito anteriormente. Nessa hipótese, inclusive, a equação (7) é equivalente à equação (4). 54 Cf. MARTINELLI, Fernando; MUSHEGIAN, Nikolai. A non-custodial portfolio manager, liquidity provider, and price sensor (Balancer Whitepaper), 2019. Disponível em https://balancer.fi/whitepaper.pdf. Acesso em 19 jun. 2022. 55 Cf. EGOROV, Michael. StableSwap - efficient mechanism for Stablecoin Liquidity (Stableswap Whitepaper), 2019. Disponível em https://curve.fi/files/stableswap-paper.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 23. 23 os cálculos acima representariam uma operação de integralização no patrimônio do fundo, o qual irá variar a partir deste estado inicial, em virtude da movimentação dos preços e de novos aportes e resgates. Neste passo da descrição, convém detalhar a atuação do formador de mercado, como as quantidades de tokens variam para manter a proporção fixa e como os investidores negociam contra o fundo de liquidez, como alternativa às exchanges centralizadas. 3.3.2. Formação de preços – automated market making Vimos que as operações são realizadas tendo como contraparte o fundo de liquidez (liquidity pool), que é constituído a partir de depósitos de provedores de liquidez, que emprestam seus criptoativos (podendo retirá-los a qualquer momento) em troca de uma remuneração. Essas operações são realizadas por investidores e por formadores de mercado e esses últimos implementam estratégias automatizadas de arbitragem com base nas regras do protocolo que controla o fundo de liquidez, razão pela qual são conhecidos como automated market makers (AMM)56. Caso os preços no fundo de liquidez sejam inferiores (superiores) aos do mercado, o arbitrador irá comprar (vender) contra o fundo de liquidez e vender (comprar) no mercado que possui o preço de referência (por exemplo, uma exchange centralizada com um livro de ofertas). Dessa maneira, os arbitradores contribuem para que os preços no fundo de liquidez convirjam para os preços de referência no mercado. Para entender o processo de formação de preços utilizando um fundo de liquidez como alternativa a um livro central de ofertas, devemos lembrar da necessidade básica que deve ser atendida: um investidor deseja adquirir tokens B mediante pagamento em tokens A, ou seja, realizar uma permuta (swap, mas não no sentido específico do derivativo de conhecemos com esse nome). Quando um dos tokens é uma stablecoin, é mais fácil enxergarmos essa operação como uma compra e venda – você deseja adquirir ETH pagando com USDC. Mencionamos anteriormente a fórmula do produto constante – razão pela qual os AMM deste mercado também são chamados de constant function market makers 57 – que 56 A descrição desta seção contempla o modelo adotado pelo protocolo Uniswap, porém o protocolo Bancor é considerado o pioneiro na implementação deste mecanismo para soluções DeFi. Cf. SULEMANJI, Nawaz. Bancor network releases stable liquidity pools to help build DeFi ecosystem. Decrypt, Oct. 8th, 2019. Disponível em https://decrypt.co/10058/bancor-network-releases-stable-liquidity-pools-to-help-build-defi-ecosystem. Acesso em 19 jun. 2022. 57 Na verdade, o produto não é exatamente constante, mas varia a cada nova transação em virtude da cobrança de uma taxa de intermediação que é revertida para aumentar o fundo de liquidez. Veja uma análise detalhada desse mecanismo e alternativas em BERENZON, Dmitriy. Constant Function Market Makers: DeFi’s “Zero to One” Innovation. Medium, Apr. 23, 2020. Disponível em https://medium.com/bollinger-investment- group/constant-function-market-makers-defis-zero-to-one-innovation-968f77022159. Acesso em 18 jun. 2022.
  • 24. 24 determina as quantidades de tokens no fundo de liquidez e, ao mesmo tempo, a relação de troca entre eles, isto é o preço de um token expresso em termos do outro. As principais equações que regem essa dinâmica são reproduzidas novamente a seguir, considerando pesos iguais (50%/50%). 𝑞 𝐴 𝑞 𝐵 𝑘 (1) 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, $ 𝑞 𝐵 𝑝 𝐵, $ (3)58 𝑞 𝐵 𝑞 𝐴 𝑝 𝐴, 𝐵 (4) Convencionamos também que p(A, B) é o preço de A expresso em tokens B, ou seja, p(ETH, USDC) é o preço de ETH expresso em USDC, por exemplo. Quem observa as quantidades do fundo de liquidez em um determinado instante, consegue observar a cotação p(A, B) e tomar decisões de compra ou venda de A ou B em razão das cotações de A ou B em outros ambientes de negociação, identificando oportunidades de arbitragem. Ao mesmo tempo, quem simplesmente deseja permutar A por B ou vice-versa (comprar ETH pagando em USDC ou vender ETH recebendo em USDC) tem a informação sobre a cotação da operação. Por essa razão, um fundo de liquidez com boa formação de preços (i. e., atuação efetiva de arbitradores) pode desempenhar a função de ser uma fonte fidedigna de cotações, bastando olhar para os dados no registro distribuído (ledger). Fala-se, assim, que um fundo de liquidez pode servir como um “on-chain price oracle”59. Considerando o estado do fundo de liquidez ao final do aporte realizado na seção anterior, temos (USDC 10.000; ETH 10), do que decorre que p(ETH, USDC) = USDC 1.000/ETH. Se retirarmos ETH e acrescentarmos USDC, o produto da quantidade dos tokens deve permanecer constante (equação (2)), do que decorre a alteração de p(A, B) para que a proporção entre os tokens no fundo de liquidez permaneça fixa (equação (4)). Logo, as operações realizadas contra o fundo de liquidez tomam como referência uma cotação inicial e, após a variação das quantidades, conduzem a uma nova cotação. Essa é a dinâmica da formação de preços sem a necessidade do envio de ordens especificando quantidade e preço, mas apenas ordens especificando quantidades. 58 Os pesos indicados no denominador da equação (3) foram cancelados por serem iguais. Ainda, (3) e (4) são equivalentes, pois a primeira usa as cotações dos tokens em US$ e a segunda a relação de troca entre eles, que pode ser obtida a partir daquelas cotações. Quando um dos tokens é uma stablecoin com paridade com US$, (3) é idêntica a (4). 59 Cf. ANGERIS, Guillermo; CHITRA, Tarun. Improved Price Oracles: Constant Function Market Makers. AFT '20: Proceedings of the 2nd ACM Conference on Advances in Financial Technologies, Oct. 2020. Disponível em https://doi.org/10.48550/arXiv.2003.10001. Acesso em 18 jun. 2022.
  • 25. 25 Nesse sentido, os formadores de mercado atuam junto com os investidores para conduzir a variação das quantidades e, com isso, fazer com que os preços convirjam para patamares de referência adequados. Graficamente, a equação (1) traduz uma função do tipo y = f(x) = k/x e a figura abaixo mostra em (A) o comportamento das quantidades relativas após a permuta de tokens, quando há aumento de A e diminuição de B ou vice-versa no fundo de liquidez em virtude de investidores “comprarem” B pagando em “A” ou vice-versa. Note que essas operações representam movimentos ao longo da curva convexa indicada e as variações nos eixos representam as quantidades permutadas. Em uma operação na qual o investidor fornece x para receber y (permuta de x por y), a operação é um deslocamento para a direita e para baixo na curva e Δx é a quantidade que o fundo de liquidez recebe do token x (quantidade fornecida pelo investidor), há aumento de x e correspondente decréscimo de y expresso como Δy, que é a quantidade retirada do fundo (recebida pelo investidor). Se, por outro lado, o investidor fornece y para receber x (permuta de y por x), o movimento ao longo da curva é para a esquerda e para cima. Figura 1. Variação de quantidades no fundo de liquidez formado pelos tokens x e y segundo a fórmula do produto constante60 . Adicionalmente, em (B) observamos o comportamento da curva quando há um aporte ou resgate de tokens como descrito na seção anterior. Nesse caso, a curva se desloca para a direita e para cima (no caso de aportes) ou para a esquerda e para baixo (no caso de resgates). 60 Reprodução do gráfico contido em SCHÄR, Fabian. Decentralized Finance: On Blockchain- and Smart Contract-Based Financial Markets. Federal Reserve Bank of St. Louis Review, Second Quarter 2021, p. 153-74. Disponível em https://doi.org/10.20955/r.103.153-74. Acesso em 18 jun. 2022.
  • 26. 26 Note que o produto constante deve ser observado nas operações de permuta e não nos aportes e resgates. Vale ressaltar, ainda, que o formato da curva sinaliza um comportamento desejável para um fundo de liquidez: quando a quantidade de um dos tokens fica bastante reduzida seu preço expresso em termos do outro token aumenta significativamente, dificultando a permuta (quando nos movimentamos para o extremo de um dos eixos). Assim, há desincentivos para o esgotamento da quantidade de cada token, de modo a viabilizar a manutenção do fundo de liquidez. 3.3.3. Um risco para o provedor de liquidez – impermanent loss O provedor de liquidez recebe tokens como certificados de depósito (podendo utilizá-los em outras plataformas como money legos) e também recebe parte da taxa cobrada pelas operações com os criptoativos contidos no fundo de liquidez, proporcional à sua participação. Vimos que o aporte de recursos pode ser interpretado como uma operação de integralização de participação. De forma análoga, o resgate de recursos do fundo de liquidez pode ser interpretado como uma operação de resgate de cota, na qual a restituição se dará na medida da participação do investidor no fundo. Assim, quem depositou ETH 1 e USDC 1.000 (como em exemplos anteriores) para um equivalente de 10% no TVL pós-aporte (uma participação de 10% no fundo, portanto, não necessariamente fará jus à mesma quantidade de tokens que aportou. Na medida que o TVL varia, o provedor de liquidez fará jus ao seu quinhão, calculado sobre o valor atual, ou seja 10% do TVL, conforme a participação adquirida. Dessa constatação decorre a possibilidade de que, conforme a variação dos preços em mercado e da relação de troca entre os tokens, o valor equivalente resgatado pelo provedor de liquidez (número de tokens multiplicado pelo seu preço) seja inferior ao valor que teria caso não tivesse contribuído para o fundo. Pode ocorrer, assim, uma perda patrimonial. Enquanto o resgate não é efetivado, essa perda ainda não realizada pode ser calculada e recebe o nome de impermanent loss61, que poderíamos traduzir como prejuízo transitório ou não realizado. 61 Apesar da semelhança entre os termos, não podemos confundir impermanent com impairment. No primeiro caso, temos um adjetivo que traz a ideia de situação transitória, ainda não aperfeiçoada, concluída. No segundo caso, trata-se de termo da contabilidade utilizado quando um ativo registrado nas demonstrações financeiras deve ter seu valor revisado em função de diversas circunstâncias. Essa revisão é conhecida como redução ao valor recuperável e é disciplinada no Pronunciamento CPC 01 (R1) - Redução ao Valor Recuperável de Ativos, disponível em http://www.cpc.org.br/CPC/Documentos-Emitidos/Pronunciamentos/Pronunciamento?Id=2. Acesso em 19 jun. 2022. De certo modo, a despeito da diferença entre os termos, há uma conexão semântica entre eles, na medida em que, ao avaliar o valor dos tokens depositados em um fundo de liquidez, você deverá
  • 27. 27 No fundo de liquidez indicado no exemplo da seção 3.3.1, temos, após o aporte (USDC 10.000; ETH 10). Se, em razão de variação dos preços de mercado, temos p(ETH, $) = US$ 2.000/ETH e p(USDC, $) = US$ 1/USDC, então, p(ETH, USDC) = USDC 2.000/ETH. Nesse caso, a proporção fixa de 50%/50% deixa de ser respeitada, pois temos (USDC 10.000; ETH 10 = USDC 20.000). A atuação de arbitradores fará com que as quantidades dos tokens sejam alteradas para refletir a nova cotação. Para determinar o resultado dessas operações, basta recorrermos às equações (2), (3) e (4) indicadas anteriormente. Precisamos determinar as novas quantidades de tokens q(A)* e q(B)* e dispomos das quantidades iniciais q(A) e q(B). Pela fórmula do produto constante, temos que q(A)* × q(B)* k = q(A) × q(B), pela equação (2). Ainda, q(B)* = q(A) * × p(A, B)*, onde p(A, B)* é a nova relação de troca entre os tokens (o preço de A expresso em número de tokens B), pela equação (4). Temos, assim, um sistema de duas equações com duas variáveis. Assim: q(A)* × q(B)* = q(A) × q(B) e q(B)* = q(A) * × p(A, B)* → q(B)*2 = q(A) * × q(B)* × p(B, A)* = q(A) × q(B) × p(A, B)*. Logo, 𝑞 𝐵 ∗ 𝑞 A 𝑞 B 𝑝 𝐴, B ∗ (10) e 𝑞 𝐴 ∗ , ∗ (11) Por conseguinte, se A = USDC, B = ETH, q(A) = USDC 10.000, q(B) = ETH 10, p(A, B)* = 1 / p(B, A)* = 1 / p(ETH, USDC)* = 1 / 2.000, então q(A) * = USDC 14.142,14 e q(B)* = ETH 7,0711. O novo estado do fundo de liquidez será (USDC 14.142,14 = US$ 14.142,14; ETH 7,0711 = US$ 14.142,14). Observe que a proporção 50%/50% foi observada e temos um novo TVL = 2 × US$ 14.142,14 = US$ 28.284,27. Ao realizar o resgate de 10% do TVL, o provedor de liquidez obterá o equivalente a US$ 2.828,43. Por outro lado, se tivesse mantido em sua carteira os tokens que aportou, teria USDC 1.000 = US$ 1.000 e ETH 1 = Us$ 2.000 na cotação atual, totalizando US$ 3.000. Observamos, assim, uma perda de US$ 171,57 (5,72%). O prejuízo decorrente da diferença entre o valor dos tokens detidos pelo provedor de liquidez caso não fossem aportados no fundo e o valor equivalente desses tokens na cotação levar em conta na escrituração a perda ainda não realizada, caso exista, o que guarda certa semelhança com um teste de recuperabilidade, mas, a meu ver, é algo mais próximo de uma variação no valor justo, adotado como base de mensuração de instrumentos financeiros, conforme o Pronunciamento CPC 48 – Instrumentos Financeiros, disponível em http://www.cpc.org.br/CPC/Documentos- Emitidos/Pronunciamentos/Pronunciamento?Id=106. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 28. 28 atual do fundo é denominado de impermanent loss, uma vez que a perda efetiva só ocorrerá se houver resgate e a movimentação dos preços pode fazer com que seja revertida. Algumas plataformas, como a Bancor, oferecem mecanismos de proteção contra impermanent loss, especialmente se os tokens permanecerem depositados por certo período, como forma de incentivar o provimento contínuo de liquidez62. Assim, o provedor de liquidez deve levar em consideração a dinâmica do fundo e seu processo de formação de preços em face da variação das cotações em mercado, para decidir se e quando realizar resgates e calcular o resultado da operação não apenas com base na parcela de taxas recebidas, mas também com eventuais perdas não realizadas como as descritas nesta seção. 4. O que pode dar errado? Nesta seção, listamos algumas preocupações em torno das soluções DeFi descritas anteriormente, a partir de estudos elaborados por órgãos reguladores e entidades internacionais que fornecem diretrizes para reguladores63. 4.1. Fraudes e esquemas Ponzi Em uma entrevista dada em abril de 2022, Sam Bankman-Fried, fundador e CEO da exchange FTX, gerou certa perplexidade e repercussão ao tentar descrever yield farming, fazendo com que a estratégia se parecesse com um esquema Ponzi64. 62 SINGH, Onkar. What is impermanent loss and how to avoid it?. Coin Telegraph, Apr. 25th, 2022. Disponível em https://cointelegraph.com/explained/what-is-impermanent-loss-and-how-to-avoid-it. Acesso em 17 jun. 2022. 63 OECD. Why Decentralised Finance (DeFi) Matters and the Policy Implications. Paris, 2022, p. 41-52. Disponível em https://www.oecd.org/finance/why-decentralised-finance-defi-matters-and-the-policy-implications.htm. Acesso em 19 jun. 2022; WORLD ECONOMIC FORUM. Decentralized Finance (DeFi) Policy-Maker Toolkit, Jun. 2021. Disponível em https://www.weforum.org/whitepapers/decentralized-finance-defi-policy-maker- toolkit/. Acesso em 19 jun. 2022; INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS. IOSCO Decentralized Finance Report. Madrid, 2022, p. 36-42. Disponível em https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD699.pdf. Acesso em 19 jun. 2022. 64 Para descrever yield farming, Bankman-Fried tomou como ponto de partida uma “caixa mágica” e, por ora, podemos ignorar o que ela faz ou mesmo considerar que ela não faz nada. Dentro dessa “caixa”, você pode colocar qualquer “coisa”, como se fosse um ETF (cota de fundo negociada em bolsa) ou um DR (depositary receipt, os certificados de depósitos de ações). Então, como contrapartida por ter colocado algo na “caixa”, você recebe um direito de voto (um “token de governança”), para poder deliberar sobre, por exemplo, como serão distribuídos eventuais lucros decorrentes da utilização da “caixa”. Em seguida, a comunidade em torno da “caixa” ou suas regras de programação (o protocolo) podem decidir que aqueles que colocaram valores na “caixa” receberão um percentual de novos tokens proporcional à sua contribuição. Esse arranjo supostamente tem algum valor total de capitalização - haverá um valor total guardado dentro da caixa (TVL - total value locked) somado ao “trabalho” para manter o arranjo. Ao longo do tempo, esse resultado pode ser um percentual significativo do valor aplicado (por exemplo, 10% ou mais), só que expresso em novos tokens, que serão distribuídos adicionalmente a quem tiver “investido”. Dado que os tokens têm valor de mercado, as pessoas
  • 29. 29 Grandes quedas de preços no mercado costumam decretar o fim de esquemas fraudulentos baseados no pagamento de rendimentos com novos depósitos e não com uma atividade econômica legítima. Diante do medo e incerteza, investidores procuram embolsar os resultados e fugir do risco, aumentando os pedidos de resgate, os quais não conseguem ser atendidos - pois a custódia dos ativos era uma ilusão à espera do desastre. Tendo em vista a aceleração recente das perdas no mercado cripto iniciadas em novembro de 2021, o bloqueio de saques ou resgates ou sua obstrução por algumas empresas suscita preocupações. Assim, “bancos cripto” que remuneram depósitos e algumas exchanges podem estar enfrentando dificuldades operacionais (premissa decorrente da presunção de sua inocência) ou podem não ter sido diligentes e se apropriado dos recursos de seus clientes. Essa apropriação indevida pode ser uma fraude pura e simples (como nos esquemas Ponzi supramencionados) ou apenas o triste resultado de uma aposta de risco: os valores dos clientes, plenamente disponíveis para os prestadores de serviços, podem ter sido alocados em esquemas fraudulentos, a fim de gerar rendimentos adicionais (que não necessariamente seriam revertidos aos clientes). No mercado tradicional, esse "furto de uso" dos valores custodiados pode configurar o crime do art. 5º da Lei nº 7.492/198665, além de infração às normas do Banco Central ou da CVM, conforme o caso. Com o surgimento de plataformas de remuneração de depósitos em criptoativos alardeando taxas elevadas, não seria surpresa se exchanges ou outros projetos fossem arrastados para o abismo junto com os orquestradores de fraudes. O tempo dirá se o silêncio ou o sumiço de founders-influencers e os bloqueios anunciados de saques ou resgates são uma intercorrência passageira ou o veredito de uma doença terminal para certos agentes de mercado. Em síntese, se aprendemos alguma coisa com esses episódios, precisamos discutir a tutela jurídica da propriedade dos recursos dos investidores. percebem que “vale a pena” colocar “coisas” dentro da “caixa”. Quanto maior esse valor (efeito de rede), mais pessoas serão atraídas. “E quem somos nós para dizer que as pessoas que investiram estão erradas?”, afirma Bankman-Fried. Cf. ALLOWAY, Tracy; WEISENTHAL, Joe. Sam Bankman-Fried Described Yield Farming and Left Matt Levine Stunned. Bloomberg, Apr. 25th, 2022. Disponível em https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-04-25/sam-bankman-fried-described-yield-farming-and- left-matt-levine-stunned. Acesso em 30 abr. 2022. 65 Art. 5º Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena qualquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, que negociar direito, título ou qualquer outro bem móvel ou imóvel de que tem a posse, sem autorização de quem de direito.
  • 30. 30 De um lado, podemos deixar os recursos plenamente à disposição do prestador de serviços, sem proteção ou restrições, de modo a facilitar determinados modelos de negócio. De outro lado, podemos estabelecer regas para a segregação de recursos, como ocorre na regulação das instituições de pagamento, exigindo a alocação exclusiva em ativos específicos de baixo risco e blindando os valores de qualquer obrigação assumida por seu custodiante, o qual deverá restituí-los em caso de insolvência66. Mais importante do que a escolha, penso, é a lucidez no processo decisório acerca dos riscos e das consequências práticas da norma (ou de sua ausência). 4.2. Manipulação e variação errática nas taxas de retorno e parâmetros de garantia As taxas de remuneração dos criptoativos depositados podem ser definidas com periodicidades distintas, a depender das regras do protocolo em questão. Sua atualização pode se dar por meio de gatilhos automáticos ou pela deliberação dos titulares de tokens de governança. Nos arranjos centralizados, o risco é concentrado na empresa que gerencia a plataforma, mas, por outro lado, nos arranjos genuinamente descentralizados, pode haver problemas quando a liquidez é baixa ou quando há grandes choques de volatilidade. Uma perturbação nos preços pode levar arbitradores de preços (ou a ausência deles) a distorções nas quantidades de tokens presentes em um fundo de liquidez, fazendo com que as taxas sejam alteradas erraticamente, podendo causar prejuízos abruptos a uma das partes por conta da liquidação precoce do empréstimo com execução das garantias. Considere, por exemplo, a vaporização de valor dos tokens LUNA ou, então, a perda da capacidade de uma stablecoin manter a paridade com seu ativo de referência (unpegging). Essas situações podem levar ao colapso de protocolos, como ocorreu com o Anchor. Essas perturbações podem decorrer de movimentos do mercado como um todo ou de ações de usuários específicos que buscam desestabilizar a plataforma. Assim, quanto menor a liquidez, maior a vulnerabilidade a manipulações que procuram distorcer os preços e as taxas. Por fim, a manipulação também pode ocorrer em virtude da concentração de poder em termos de tokens de governança. Um usuário ou grupo de usuários pode propor alterações e aprová-las de modo a prejudicar os demais, por isso é importante atentar para a efetiva pulverização de poder na plataforma. 66 Essa é a premissa do art. 13 da versão aprovada pelo Senado Federal do Projeto de Lei nº 4.401/2021, que disciplina a atividade de prestação de serviços de ativos virtuais. O texto encontra-se disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151264. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 31. 31 4.3. Efeito cascata – “quebra de safra” em yield farming O colapso de plataformas e perdas elevadas sofridas pelos investidores podem levar a um efeito cascata de inadimplemento. A preocupação, nesse cenário, se assemelha à tutela da estabilidade financeira em um sistema baseado em moeda fiduciária. Porém, as regras e a dinâmica são significativamente diferentes. Seja porque uma stablecoin perdeu a sua paridade com o ativo de referência ou porque a perda de credibilidade em um projeto fez com que seu token perdesse quase todo o seu valor ou, ainda, a soma de operações de grandes quantidades produza um choque de liquidez, vimos que os algoritmos implementados podem não ter as salvaguardas necessárias diante de movimentações abruptas. Devemos considerar, ainda, os incentivos existentes para a alavancagem nas operações, a partir da ideia de yield farming e money legos. Um investidor pode depositar seus criptoativos em uma plataforma com retornos elevados e, com os certificados de depósito (cTokens, aTokens e congêneres) pode obter novos empréstimos sucessivamente em outras plataformas. Falhas nos algoritmos, movimentos dramáticos de preços e mudanças nos parâmetros de garantias podem levar à liquidação compulsória com prejuízos elevados. Portanto, o cultivo dos rendimentos pode sofrer uma “quebra de safra”, por assim dizer. Diante da possibilidade de prejuízos elevados com criptoativos, surge o risco de contágio do sistema financeiro tradicional67. 4.4. Falhas nos smart contracts e segurança cibernética O código-fonte dos smart contracts que implementam as regras de um protocolo DeFi é auditável. Contudo, isso não significa que esta é uma tarefa simples ou mesmo usual de ser realizada68. Pode haver algoritmos maliciosos ou mesmo falhos e esse risco deve ser levado em consideração, pois pode resultar em distorções em preços, quantidades e garantias e, com isso, causar prejuízos a usuários. 67 Cf. FINANCIAL STABILITY BOARD. Regulation, Supervision and Oversight of “Global Stablecoin” Arrangements. Basel, 2020. Disponível em https://www.fsb.org/2020/10/regulation-supervision-and- oversight-of-global-stablecoin-arrangements/. Acesso em 18 jun. 2022. 68 Segundo a IOSCO, “Many DeFi products and systems fail to provide important disclosures. Although blockchain data and smart contract code is transparent for all to see, understanding this data and code requires technical capability and knowledge. […]. Some DeFi products and systems may require certain technical or other expertise that not all investors have and, as a result, may be unsuitable for some investors. There may be hidden informational or technological advantages sophisticated participants have over retail investors that make for an uneven playing field.”. Cf. INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS. IOSCO Decentralized Finance Report. Madrid, 2022, p. 36. Disponível em https://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD699.pdf. Acesso em 19 jun. 2022.
  • 32. 32 De acordo com a consultoria Elliptic, cerca de US$ 12 bilhões foram objeto de desvio em plataformas DeFi entre janeiro e setembro de 2021 (contra US$ 1,5 bilhões em 2020)69. Vale mencionar também que estamos diante de uma tecnologia ainda em fase de estabilização, conotada por grande incerteza quanto à sua escalabilidade e confiabilidade. Diante da pulverização de centros decisórios na definição de regras e na implementação do protocolo, é difícil escolher, em termos regulatórios, um centro de imputação de deveres e responsabilidades em matéria de resiliência operacional e segurança cibernética. 4.5. Lavagem de dinheiro A ausência de identificação dos beneficiários finais das transações, especialmente no caso de exchanges descentralizadas justifica a preocupação com a utilização destas plataformas para fins de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. De acordo com dados da consultoria Chainalysis, pelo menos US$ 2,2 bilhões em transações envolvendo lavagem de dinheiro foram realizadas em soluções DeFi no ano de 202170. Outro ponto de atenção é a complexidade das operações, que podem envolver diversos protocolos e explorar a interoperabilidade para dificultar a rastreabilidade das transações ou evitar que os recursos furtados sejam bloqueados71. 5. Síntese conclusiva O termo DeFi engloba uma série de projetos destinados a criar uma infraestrutura descentralizada para a oferta de serviços financeiros similares aos tradicionais, porém envolvendo criptoativos. Boa parte dos protocolos atuais foi desenvolvida utilizando a rede Ethereum. Nesse contexto, encontramos afirmações do tipo “cada pessoa poderá ser seu próprio banco no futuro” ou “livre-se do seu banco” (unbank yourself) e que o mercado financeiro será alvo de uma revolução diante de elevado grau de desintermediação. 69 ELLIPTIC. DeFi: Risk, Regulation, and the Rise of DeCrime, Nov. 2021. Disponível em https://www.elliptic.co/resources/defi-risk-regulation-and-the-rise-of-decrime. Acesso em 18 jun. 2022. 70 CHAINALYSIS. DeFi Takes on Bigger Role in Money Laundering But Small Group of Centralized Services Still Dominate, Jan. 26th, 2022. Disponível em https://blog.chainalysis.com/reports/2022-crypto-crime- report-preview-cryptocurrency-money-laundering/. Acesso em 19 jun. 2022. 71 Após o ataque à exchange KuCoin em 2020, os invasores levaram os recursos para a Uniswap, de modo a permuta-los por tokens “resistentes à censura” (censorship resistant), isto é, incapazes de serem bloqueados. Cf. CHAINALYSIS. The KuCoin Hack: What We Know So Far and How the Hackers are Using DeFi Protocols to Launder Stolen Funds, Sep. 28th, 2020. Disponível em https://blog.chainalysis.com/reports/kucoin-hack-2020- defi-uniswap/. Acesso em 20 jun. 2022.
  • 33. 33 A infraestrutura de mercado financeiro, tradicionalmente implementada no contexto dos sistemas de pagamento e depósito de valores mobiliários de cada país, pode passar a ser um sistema de registro de propriedade global, cuja integridade é garantida pela manutenção de cópias sincronizadas de dados pelos participantes da rede, que seguem uma dinâmica de validação das transações com base em incentivos econômicos. Vimos que o serviço mais comum nas plataformas DeFi é o empréstimo de criptoativos, cuja remuneração pode advir de atividades de staking ou de provimento de liquidez (liquidity mining) para fundos que viabilizam o funcionamento de exchanges descentralizadas (DEX), ou, ainda, o investimento desses recursos em outras estratégias, inclusive a concessão sucessiva de empréstimos em outras plataformas. Ainda, vimos que há riscos específicos para os provedores de liquidez em razão da movimentação dos preços, caso do prejuízo transitório (impermanente loss) e o regular funcionamento das DEX depende de grande adesão ao fundo e da atuação efetiva de arbitradores de preços. Soluções centralizadas de depósitos remuneradas foram objeto de atuação da SEC nos Estados Unidos e há insegurança jurídica quanto à sua oferta sem registro prévio. Adicionalmente, algumas dessas soluções suspenderam saques durante momentos de forte desvalorização dos criptoativos, suscitando dúvidas quanto à efetividade da custódia dos valores de seus clientes. A perda de credibilidade pelos investidores pode prejudicar o desenvolvimento da criptoeconomia e os retornos elevados podem ser simplesmente fruto de esquemas Ponzi. A complexidade das soluções DeFi, o nível de alavancagem e risco das operações, a possibilidade de prejuízos em cascata pela interdependência entre as plataformas, eventuais falhas nos algoritmos e nos smart contracts, além da sensibilidade à alta volatilidade dos preços dos criptoativos são fatores que devem ser levados em conta quando da opção por esse tipo de investimento e da discussão sobre escolhas regulatórias. Infelizmente, em razão de vieses cognitivos, muitos focam apenas nos altos retornos prometidos por empresas fraudulentas ou pouco diligentes. Ao fim e ao cabo, o slogan utilizado por Matt Damon em um comercial no intervalo do Super Bowl de 2022, que teve grande repercussão, parece merecer reparo: “a sorte favorece os bravos”72, mas não os tolos. 72 “Fortune favors the brave”. O comercial pode ser visto em https://youtu.be/9hBC5TVdYT8. Acesso em 19 jun. 2022.