SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 81
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
DEPARTAMENTO DE DIREITO COMERCIAL
TESE DE LÁUREA
INITIAL COIN OFFERINGS E A REGULAMENTAÇÃO DOS
CRIPTOATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Orientador: Prof. José Marcelo Martins Proença
CARLOS ALBERTO KÜMPEL IMBRIANI
SÃO PAULO, 2018
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO
II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO
II.1 Criptoativos: o Blockchain e as Criptomoedas
II.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e
considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro
II.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de
confiança e o poder liberatório da moeda
II.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a
análise crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda
III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA FINANCEIRO
NACIONAL
III.1 Introdução
III.2 Sistema Financeiro Nacional: panorama regulatório aplicável aos
criptoativos
III.3 A classificação das atividades privativas de instituições financeiras
e sua correlação com a circulação de criptoativos
IV. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE OS
CRIPTOATIVOS
V. AS INITIAL COIN OFFERINGS
V.1Conceito
V.2Preocupações do mercado de capitais coadunadas aos riscos encerrados
pelos criptoativos
V.2.1 O que é um valor mobiliário?
V.2.2 O Conceito de valor mobiliário no direito brasileiro
V.2.3 Conceito de Oferta Pública no Brasil
V.2.4 Implicações regulatórias do enquadramento de tokens no
conceito de valor mobiliário
V.2.4.1Regime de registro de oferta pública
V.2.4.2Restrições à negociação
V.2.5 A regulamentação dos criptoativos e o aparente conflito
de competência entre o Banco Central do Brasil e a
Comissão de Valores Mobiliários
V.2.6 Criptomoedas e os tokens: natureza jurídica
VI. CONCLUSÃO
VII. ÍNDICE BIBLIOGRÁFICO
I. Introdução
O surgimento das chamadas “criptomoedas” despertou interesse de diversas áreas
de estudo, e, como não poderia ser diferente diante do surgimento de um novo instrumento
do comércio, o Direito Comercial passou a se deparar com os primeiros dilemas relativos
à conceituação desses instrumentos.
Porquanto prescinda de regramento que seja diretamente aplicável, a presente tese
procurará analisar esses instrumentos com base no ordenamento brasileiro vigente, e
demonstrar que o regramento disponível atualmente já dispõe de ferramentas adequadas
para propiciar o desenvolvimento de soluções com bases nesses ativos sem que para isso
se ponha em grandes riscos a higidez do sistema financeiro nacional.
O primeiro ponto a permitir a adequada aplicação do direito nesses casos é afastar
a comparabilidade desses instrumentos com qualquer tipo de “moeda”, uma vez que, para
fins do direito brasileiro, uma criptomoeda não é moeda por não possuir poder liberatório.
Para tanto, a presente explorará o surgimento da moeda, desde o lastro com valor em
recursos naturais até a emissão de moeda escritural, fruto direto da atividade bancária, de
forma que o modo como o mercado (e, por conseguinte, o comércio) recepcionou esses
produtos não está associada à ideia de moeda.
A prova de confiança monetária que historicamente derivou do valor intrínseco de
bens escassos, até ser substituída pela moeda fiduciária, que hoje em dia serve como padrão
de valor: caractere incompatível com um instrumento cujo valor oscila no tempo. A
presente tese, nesse sentido, defenderá que a terminologia “criptoativo” é mais adequada
para tratar de seu objeto.
Daí advém a primeira problemática em que se concentrará este trabalho: a oferta
pública de um ativo que pode se valorizar no tempo, ou, ainda, uma oferta pública de
ativos com a intenção de se obter ou viabilizar esforço empresarial, com expectativa de
retorno, poderia caracterizá-los como valores mobiliários para fins da legislação
brasileira?
O comportamento dos criptoativos no comércio tem muitos pontos de contato
com os Contratos de Investimento Coletivo, que ensejaram até mesmo a revisão do
modelo de conceituação de valor mobiliário no Brasil e no mundo. A presente tese
procurará explorar essa construção teórica para demonstrar que o arcabouço regulatório
brasileiro atualmente já é capaz de identificar criptoativos com características de valores
mobiliários.
Do ponto de vista de um a supervisão baseada em riscos, que vem sendo o pilar
pelos quais as agências fiscalizadoras do mercado financeiro balizam sua atuação, o atual
arcabouço regulatório brasileiro é sim capaz de orientar esse mercado de modo a não
afetar a higidez do sistema financeiro nacional, pelo menos em se considerando o risco
sistêmico.
Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não realizar um trabalho somente
a respeito de criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na composição do
tema da pesquisa que enseja o presente se dá, principalmente, porque essa operação é
das mais complexas dentre as realizadas com criptomoedas: é dizer, um verdadeiro
stress test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos disciplinada no Brasil e
no Mundo, que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada
aos princípios basilares do Direito Comercial.
O estudo do ICO permitirá compreender qual o comportamento fático dos
criptoativos no mercado financeiro, e, à partir disso – considerando que o Direito
Comercial, diante de seu aspecto consuetudinário, em muito se funda nos usos do
mercado para construir alicerces doutrinários e legislativos – garantirá que o presente
estudo possa balizar alternativas viáveis de regulamentação e aplicação segura, de um
ponto de vista jurídico, dessas novas tecnologias.
II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO
2.1. Criptoativos: o Blockchain e as criptomoedas
Um novo mercado surgiu quando do lançamento das primeiras moedas virtuais
baseadas em criptografias, apelidadas de “criptomoedas” -, fenômeno relativamente
recente quando se leva em conta a extensão e o tempo de que dispuseram para se
desenvolverem os demais produtos financeiros que permeiam o mercado contemporâneo.
A arquitetura tecnológica de criptografia por trás das criptomoedas é uma das
principais inovações em relação ao modelo de estruturação de produtos atual empregado
no mercado financeiro, e vem atraindo o interesse não apenas do setor privado, mas
também de autoridades governamentais.
Com base em chaves de criptografia (os hashes), as chamadas criptomoedas
se constroem sobre um sistema de contabilização e registro público aberto denominado
blockchain, que contém em si o histórico da totalidade das transações já realizadas na
rede de cada uma das criptomoedas, por tomar o exemplo mencionado.1
O principal
efeito prático do emprego do blockhain, como será explorado a seguir, é a desnecessidade
de um intermediário para a transmissão de valores através da internet.
O sistema de blockchain permite que todas as transações estejam catalogadas e
centralizadas em uma única “cadeia” de “blocos de transação”. Dessa forma, a cada
nova transação que é feita um novo bloco é adicionado à cadeia. A cada transação
ocorrida essa cadeia criptográfica aumenta, fazendo com que seja cada vez mais difícil a
alteração dos registros de cada transação anterior, procedimento que exigiria a alteração
de todos os blocos de transações que ocorreram após determinada transação.
No que diz respeito a sua implementação e indo no sentido contrário aos demais
mecanismos de controle e protocolos de segurança usualmente empregados no mercado
financeiro – foco de vultosos investimentos por parte das instituições que o integram –
, que visam geralmente a proteger a segurança de seus ativos e os de seus clientes,
encontram no blockchain uma solução para proteger ambos com o mesmo grau de
1
Para fins deste título, utilizar-se-ão exemplos a respeito da tecnologia do blockchain no que diz respeito às
criptomoedas, embora sua aplicação vá muito além da circulação de Criptoativos, podendo ser aplicado,
como se verá, até mesmo pelos bancos centrais para otimização da fiscalização do mercado.
segurança, embora a estrutura de precificação dos investimentos em blockchain ainda
não esteja clara para alguns atuantes do mercado.
Ainda que essa tecnologia tenha se difundido a partir do lançamento do Bitcoin,
uma das primeiras ditas criptomoedas a alcançar reconhecimento global, vale ressaltar
que em nenhum trecho do whitepaper do Bitcoin Satoshi Nakamoto menciona o termo
“blockchain”, expressão que foi cunhada consecutivamente à difusão dessa tecnologia,
fazendo menção apenas a “uma série de blocos encadeados”2
que possibilitariam a
construção dessa “cadeia de confiança” 3
entre os blocos da rede.
O que Nakamoto descreveu, em realidade, foi uma espécie de Distributed
Ledger Technology (ou “DLT”, em sua sigla em inglês, ou, ainda, Tecnologia de Livros
Distribuídos, em tradução livre) baseada em blockchain, que é uma tecnologia recente4
e de rápida evolução, utilizada para gravar e compartilhar dados entre múltiplos bancos
de dados (ou ledgers).5
A tecnologia DLT permite que dados de qualquer natureza sejam gravados,
compartilhados e sincronizados em uma cadeia pulverizada entre diferentes participantes
da rede. Um blochckain é um tipo particular de estrutura de dados usada em alguns DLTs,
que armazena e transmite dados em pacotes chamados "blocos" que são conectados uns
aos outros como em uma "cadeia" digital. É dizer, em suma, que nem todos os DLTs
utilizam a arquitetura blockchain, embora todo blockchain seja uma espécie do gênero
DLT6
.
Pode-se comparar, sem desnaturar seu conceito, um blockchain a um grande
registro público comum, como há nos cartórios brasileiros atualmente. A diferença está
no fato de que a veracidade das informações que ali estão independe da chancela de um
2
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7.
3
“a chain of blocks ahead of time by working on it continuously (...)”. In NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A
Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7.
4
Os DLTs, ainda que recentes, não são propriamente novos. O serviço BitTorrent, que ficou mundialmente
conhecido pela suposta conivência com o compartilhamento de conteúdo autoral, emprega a tecnologia peer-
to-peer, outra espécie de DLT. A proximidade entre as tecnologias fez com que uma gigante do mercado de
criptomoedas, a Tron, adquirisse a BitTorrent em meados de 2018. Nesse sentido: ROSTEN, Avi,
BitTorrent Officially Confirms its Acquisition by TRON. Disponível em:
https://www.cryptoglobe.com/latest/2018/07/bittorrent-officially-confirms-its-acquisition-by-tron/. Acesso
em: 28.07.18.
5
International Bank for Reconstruction and Development. The World Bank. Distributed Ledger
Technology (DLT) and Blockchain – Fintech Note No. 1. 2017. Disponível em:www.worldbank.org.
6
A explicação suscinta para que não se fuja do escopo do presente trabalho pode ser suprida com a completa
e eficiente explicação de Don e Alex Tapscott em TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain
Revolution. 1. ed. São Paulo: SENAI-SP, 2016.
ente centralizador – o Estado, no caso dos cartórios e registros públicos -, e deriva e de
dois fatores complementares.
De um lado, a dificuldade técnica em se alterar um blockchain, o que corrobora
pela veracidade dos dados que estão ali registrados. A possibilidade da existência de uma
prova de confiança de rede, assunto que será abordado adiante, que permite ao bitcoin
operar com status de moeda, ainda que, para fins da legislação brasileira, não possa sê-
lo.
Os blockchain utilizam métodos criptográficos e algorítmicos para registrar e
sincronizar dados de modo que as informações não possam ser alteradas. Por exemplo,
uma nova transação de criptoativos seria registrada e transmitida para uma rede em um
bloco de dados, que é primeiro validado por membros específicos da rede e, em seguida,
vinculado a uma cadeia de blocos existente de maneira única, produzindo um blockchain.
Após a verificação da validade da transação e seu consequente registro no
blockchain, a informação não pode mais ser removida ou ter suas propriedades alteradas
por qualquer outro participante da rede. Como essa cadeia linear cresce a cada bloco que
é adicionado –e é única-, blocos anteriores não podem ser alterados por qualquer membro
da rede.
O DLT tem estado intimamente ligado às criptomoedas desde o seu início
porque – como já abordado anteriormente - foi empregado como a tecnologia subjacente
de um dos primeiros criptoativos a ganhar relevância global, o Bitcoin.
Em termos práticos, cada bloco é identificado por uma chave de criptografia
(hash) que funciona como uma assinatura eletrônica, e a ligação de um bloco a outro
recebe ainda outro hash, de modo que todas as partes de um blochckain sejam
imediatamente verificáveis.
Em se tomando o exemplo do blockchain do Bitcoin para ilustrar o
procedimento descrito acima, em primeiro lugar é preciso instalar o software do Bitcoin,
seguido da criação de uma carteira virtual7
que será operada pelo software instalado,
77
A função básica das carteiras de Bitcoin é a de armazenar esses criptoativos, bem como enviar e receber
os valores de uma carteira para outra através de transações pela rede blockchain. O que se armazenam nessas
carteiras, na realidade, são as chaves criptografadas digitais (hashes) privadas, que são utilizadas para acessar
os endereços de bitcoin públicos e assinar as transações que são armazenadas na carteira de bitcoin. Existem
diversos tipos de carteira, que dá ao usuário acesso a seus bitcoins de diversas maneiras, existem cinco tipos
também chamado de “cliente” do Bitcoin. Essa carteira geralmente é identificada por um
código, e se comporta como um endereço eletrônico para o qual recursos em Bitcoin são
enviados e em que são armazenados.
Em terceiro lugar, o sistema cria um registro criptografado da operação, que é
utilizado para identificar a natureza da transação e gerar uma chave pública. A chave
pública identifica a transação, e, por ter-se originado de um registro criptografado – a
que apenas o agente contratante tem acesso -, essa chave, que passa a ser a parte pública
da operação, é o que identifica o bloco em um blockchain.
Subsequentemente à emissão da chave pública ocorre o processo de efetiva
inserção daquele bloco representativo de uma transação no blockchain, - processo que
pode demorar até 10 minutos para se perfazer – que culmina com a emissão do hash.
O hash é emitido tão somente depois que a rede verificou a autenticidade das
duas chaves envolvidas na transação, de modo que um bloco só é inserido no blockchain
caso seja verificado que seu ponto de origem e de chegada são válidos, mecanismo esse
que viabiliza a existência de uma confiança de rede propriamente dita.
O poder de processamento que torna possíveis todos esses procedimentos é
oriundo de todos os participantes da rede que estejam executando o software do Bitcoin,
e, por isso, o algoritmo do Bitcoin prevê uma remuneração para aquele que efetivamente
contribuiu para a verificação de uma transação específica, que geralmente é atribuída
como uma porcentagem da transação capturada.
Sob o ponto de vista técnico, o portador da Bitcoin é uma pessoa anônima,
detentora de uma carteira, que concorda em participar de um processo consensuado de
aceitação das regras holísticas de uso da tecnologia blockchain8
.
A existência desse registro torna desnecessária a figura da instituição financeira
como prova de confiança para realização de transações, uma vez que há um registro único
e totalitário dos ativos circulantes em um blockchain em questão9
. Eliminar essa
principais de carteira: em celulares, computadores, on-line, e até mesmo de papel, as chamadas hard wallets,
onde literalmente anotam-se referidas chaves criptográficas.
8
SAYAD, J. Dinheiro, dinheiro: inflação, desemprego, crises financeiras e bancos. São Paulo: Portfolio
Peguin, 2015.
9
Nesse sentido, vale ressaltar que cada criptoativo tende a empregar seu próprio blockchain, de modo que
os registros não são intercambiáveis. No entanto, alguns blockchains, por seu alto estágio de
desenvolvimento e eficiências operacionais, são utilizados por terceiros para emissão de criptoativos e outros
instituição que realiza a função de intermediária, além de tornar o processo mais ágil,
reduziria custos, pois a presença de um intermediário para esse tipo de transação em geral
está associada à cobrança de uma taxa de serviços.
A existência de um único bloco de registro de transações referentes aos
criptoativos dispensa (ou, ainda, torna desnecessária) a necessidade de um órgão
centralizador, e, além disso, comporta-se, para fins práticos, como verdadeiro ativo
financeiro, pelo que no presente trabalho as criptomoedas serão classificadas como uma
espécie do gênero dos “criptoativos”.
E a classificação como um ativo de criptografia, um criptoativo, deriva de sua
própria natureza. Como se verá adiante, o fenômeno das criptomoedas trouxe à tona
diversos tipos de emissões utilizando empregando o conceito técnico da emissão de uma
criptomoeda (através do blockchain), o que deu origem a diversos movimentos de
crowdfunding e crowdsale com base em tokens das mais diversas naturezas que, por não
poderem ser utilizados como ordem de pagamento à vista, não se aproximam da
conceituação, e nem mesmo ao fim precípuo, de uma moeda.
Esses aspectos peculiares dos criptoativos atraíram o interesse do mercado
financeiro, que enxergou verdadeiro “oceano azul” para começar a operar com essas
moedas - que acumulam valorização expressiva ao longo dos últimos anos - sem
enfrentar grandes entraves legais e especialmente regulatórios.
O que o mercado hoje enxerga como um oceano de oportunidades a serem
exploradas, constitui, por outro lado, uma zona de penumbra para as autoridades
reguladoras de todo o mundo, que têm esboçado nos últimos anos um movimento no
sentido de regulamentar e uniformizar a construção legislativa no que diz respeito aos
criptoativos.
Essa iniciativa regulatória iniciou-se muito tímida ao redor do mundo, com
enfoque primário na contratação de pesquisas para que se entendessem o que seriam
produtos em seu ecossistema, como no caso do blockchain Ethereum. Nesse sentido: HENNING, Diedrich.
Ethereum: Blockchains, Digital Assets, Smart Contracts, Decentralized Autonomous Organizations.
New York: Wildfire Publishing, 2016. 185 p.
esses criptoativos, e como o seu comportamento poderia de alguma forma comprometer
a higidez dos sistemas financeiros e bancários por todo o mundo10
.
No início da difusão do Bitcoin e de seus pares (como, por exemplo, a Ethereum
e a LiteCoin11
), essas dificuldades advinham basicamente de um par de fatores
antagônicos: a rapidez com a qual o mercado assimilou e incorporou as criptomoedas
em seus produtos, de um lado, e o excesso de burocracia e a falta de conhecimento
técnico que até hoje obstaculiza a ação desses reguladores, de outro.
A rapidez com que o mercado incorporou esse novo produto deu origem a
operações cada vez mais complexas, como dito acima, que culminaram, recentemente,
nas chamadas Ofertas Iniciais de Moedas (em tradução livre, ou Initial Coin Offerings,
“ICO”, em sua sigla em inglês).
Em linhas gerais, em um ICO são emitidos ativos digitais com base em
tecnologia de criptografia, criptoativos, que são usualmente comercializados com o nome
de token. Esses tokens, uma vez adquiridos, garantem ao investidor algum retorno futuro,
seja ele pecuniário ou de acesso a algum serviço, uma vez que os ICOs geralmente são
usualmente lançados no contexto de funding para um projeto ou empreendimento em
estágio inicial de estruturação.
Daí advém a primeira problemática em que se concentrará este trabalho: a oferta
pública de um ativo que pode se valorizar no tempo, ou, ainda, uma oferta pública de
ativos com a intenção de se obter ou viabilizar esforço empresarial, com expectativa de
retorno, poderia caracterizá-los como valores mobiliários para fins da legislação
brasileira?
Quando exposta a problemática, fica evidente a importância da correta
classificação dos objetos dessa análise. Uma vez que a tecnologia criptográfica por trás
das criptomoedas e dos tokens é o blockchain, com singulares diferenças entre umas e
outras, não faria sentido classificar as criptomoedas e tokens como objetos de estudo
10
Exemplo disso, o Banco Central do Brasil contratou a elaboração de um parecer denominado: Banco
Central do Brasil. Distributed ledger technical research in Central Bank of Brazil. Brasília: [s.n.], 2017. 33
p. Diponível em:
https://www.bcb.gov.br/htms/public/microcredito/Distributed_ledger_technical_research_in_Central_Bank
_of_Brazil.pdf
11
Estima-se que existam hoje mais de 1000 criptomoedas em circulação, dentre eles criptomoedas, dos quais
Bitcoin e Ethereum possuem maior valor de mercado, em contraposição a moedas menos conhecidas, de
menor circulação, conhecidas como alternative coins ou simplesmente altcoins.
distintos, uma vez que seus caracteres técnicos e, consequentemente, sua utilização tem
se dado de maneira muito próxima.
Tanto é assim que temos exemplos de emissões de tokens realizadas em âmbito
de um processo de ICO que seriam, após a implementação do projeto, listadas na carteira
de corretoras de criptoativos, em conjunto com o Bitcoin e outras criptomoedas, para que
pudesse então, constituir ativo de valor oscilante negociado em balcão, a chamada
“criptomoeda”.
Assim sendo, uma vez que são ativos conversíveis e possuem características
técnicas e de mercado similares, o presente trabalho, ao analisar o comportamento
jurídico dos tokens emitidos em ICOs poderá, também, trazer conclusões e problemáticas
sobre as criptomoedas e sua regulamentação no Brasil. Até porque, como se verá adiante,
um mesmo criptoativo pode assumir o papel de diversas das definições que são
usualmente a eles atribuídas (criptomoeda, token etc.).
Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não concentrar este trabalho
somente na análise dos criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na
composição do tema da presente pesquisa se dá, principalmente, porque essa operação é
das mais complexas dentre as realizadas com criptoativos: é dizer, um verdadeiro stress
test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos regulamentada no Brasil e no
Mundo, o que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada
aos princípios basilares do Direito Comercial, bem como à regulamentação já existente.
Isso porque o estudo do ICO permitirá compreender qual o comportamento
fático dos criptoativos no mercado brasileiro, e, à partir disso – considerando que o
Direito Comercial, diante de seu aspecto consuetudinário, em muito se funda nos usos
do mercado para construir alicerces doutrinários e legislativos – garantirá que o presente
estudo esteja balizado por alternativas viáveis de regulamentação e aplicação técnica,
de um ponto de vista jurídico, dessas novas tecnologias.
Naturalmente, a análise da natureza jurídica das criptomoedas passará por áreas
já muito conhecidas e desenvolvidas do Direito, como, por exemplo (i) da disciplina dos
valores mobiliários, seu histórico e sua aplicação na regulamentação em vigor; (ii) da
política monetária positiva, especialmente à luz das normas atinentes ao Sistema de
Pagamentos Brasileiro (“SPB”) e do Sistema Financeiro Nacional (“SFN”), incluindo,
mas não se limitando, a Lei nº 4.595/94 e demais leis correlatas; (iii) dos marcos
regulatórios das Autarquias responsáveis pela fiscalização do SFN e do SPB; e (iv)
subsidiariamente, das discussões havidas no exterior a respeito dos modelos usuais de
ICO e como a doutrina e os legisladores estrangeiros têm solucionado – ou buscado
solucionar – a falta de regulamentação específica sobre o tema.
Considerando os pontos expostos acima, a presente tese de láurea buscará (i)
traçar um panorama histórico do surgimento dos criptoativos; (ii) analisar o
recepcionamento dessa nova tecnologia pelos mercados financeiro e de capitais,
passando por suas formas de aplicação e analisando as estruturas que levaram ao
surgimento de um modelo de ICO enquanto alternativa viável de funding; (iii)
comparativamente às soluções práticas encontradas pelo mercado, analisar as principais
vertentes de classificação jurídica dos criptoativos no mundo e no Brasil, sejam elas
valores mobiliários, meio circulante ou, ainda, ativos financeiros; e (iv) delimitar
questões atinentes à sua natureza jurídica, pontos de atenção e discussões atuais
envolvendo as criptomoedas atualmente no âmbito do mercado financeiro.
Portanto, para bem enfrentar as questões postas na breve introdução acima, a
presente análise apresentará nos capítulos subsequentes um panorama histórico dos
ICOs, bem como os marcos regulatórios aplicáveis atualmente no Brasil.
2.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e
considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro
Como a própria sigla denota, a análise histórica do ICO permite concluir que
sua criação, em perspectiva, se resume basicamente à união entre o blockchain e os
criptoativos, de um lado, e da estrutura por trás de uma Oferta Pública de Ações (ou
Initial Public Offer, “IPO”, em sua sigla em inglês), de outro.
O emprego do IPO como parâmetro estrutural adotado por interessados em
promover um ICO é natural, e apresenta-se pelo fato de que o IPO é um dos principais
instrumentos de captação de recursos em empreendimentos de qualquer porte, sobretudo
os de maior vulto, e a aplicação dos usos e costumes aplicáveis a esse tipo de iniciativa
de captação trouxe, inevitavelmente, a aproximação dos usos e costumes aplicáveis aos
IPOs às ofertas realizadas através de criptoativos. Nesse sentido, ainda que não se tenha
regramento a respeito, um dos poucos comunicados de autoridades reguladoras vieram
da Comissão de Valores Mobiliários, justamente a Autarquia encarregada de registrar e
autorizar os IPOs no Brasil12
.
Ocorre que, além de todo o ineditismo que circunda esse novo “produto”
financeiro, o volume de recursos que operações de ICO já estão movimentando em todo
o globo vem agravando a necessidade de consolidação da disciplina jurídica não só
desse tipo de operação em si, mas também dos valores que são trocados como
resultado da oferta.
A ainda frequente comparação entre o ICO e IPO acirra o debate acerca da
supracitada possibilidade de que os criptoativos sejam regulamentados em analogia aos
valores mobiliários, objeto de emissão em IPOs, especialmente por seu valor estar
constantemente exposto a risco e à volatilidade, assim como os valores mobiliários
circulam no Brasil.
Para bem se reproduzir o histórico de surgimento e evolução dos ICOs, é
necessário em primeiro lugar analisar a primeira “emissão” de criptoativos realizada na
história. No ano de 2008, Satoshi Nakamoto13
lançou o primeiro whitepaper14
do
Bitcoin15
, descrevendo o funcionamento da tecnologia bem como as oportunidades
comerciais decorrentes de seu emprego.
2.2.1 O surgimento do Bitcoin
12
Comunicado CVM de 11.10.17 : Nesse contexto, a CVM esclarece que certas operações de ICO podem
se caracterizar como operações com valores mobiliários já sujeitas à legislação e à regulamentação
específicas, devendo se conformar às regras aplicáveis. Incorrem na mesma situação companhias (abertas
ou não) ou outros emissores que captem recursos por meio de uma ICO, em operações cujo sentido
econômico corresponda à emissão e à negociação de valores mobiliários.
13
Até hoje não se sabe a real identidade de Satoshi Nakamoto, se seria uma pessoa real, um pseudônimo,
ou até mesmo o nome dado a um grupo de programadores. O fato de ter criado a tecnologia do Bitcoin, não
faz de Satoshi Nakamoto o proprietário da tecnologia, que se estrutura em blocos de acesso público (DLTs)
para funcionar.
14
Whitepaper é a nomenclatura normalmente utilizada para se referir ao documento que formaliza o
lançamento de um criptoativo ou um ICO, similar a um prospecto elaborado no âmbito de uma Oferta
Pública de Ações. Este documento geralmente concentra-se em (i) descrever a oportunidade de mercado
trazida ou propiciada pelo criptoativo que será emitido; e (ii) detalhar o funcionamento técnico da
tecnologia DLT (Distributed Ledger Technology) por trás do criptoativo emitido.
15
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
O título do whitepaper que lançou o Bitcoin denota que esse criptoativo fora
originalmente concebido como um sistema de pagamentos eletrônico16
, similar aos meios
de pagamento recepcionados pela nossa legislação e consolidados no Sistema Brasileiro
de Pagamentos, através da tecnologia blockchain.
Substitui-se, assim, a confiança entre os negociantes por uma chamada
“confiança de rede”- que poderá ser acessada e verificada por todos os seus participantes,
sendo todos eles capazes de assegurar a validade de uma transação - sendo desnecessária
uma figura centralizada para conferir higidez ao sistema de pagamentos.
O Bitcoin surgiu, nos termos de seu whitepaper, para ser um “sistema de
pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez da confiança, permitindo
que quaisquer duas partes dispostas possam transacionar diretamente entre si sem a
necessidade de um terceiro confiável17
. ”
A proposta do Bitcoin seria, desta forma, a de constituir uma ferramenta de
pagamentos descentralizada, em que todos os participantes da rede tenham condições de
verificar e realizar transações, diferentemente do tradicional modelo centralizador que
permeia os modelos de pagamento e liquidação de transações das moedas fiduciárias
tradicionais adotadas por cada país.
Até a criação do Bitcoin, as transações online nunca foram possíveis sem um
intermediário, uma parte que centralizasse a confiança entre comprador e vendedor, e
pudesse realizar o negócio entre ausentes de modo em que ambas as partes vejam
reduzidos seus riscos diante da operação.
Por exemplo, para realizar uma simples transferência de valores entre duas
pessoas físicas através da internet, é necessário um intermediário – no caso atual, uma
instituição financeira18
- que operacionalize a transação, com o emprego de atividades
como: verificar os dados das contas de entrada e saída, a veracidade da assinatura digital
16
“sistema de pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez de confiança, permitindo que
quaisquer duas partes dispostas a transacionar diretamente entre si possam fazê-lo sem a necessidade de um
terceiro confiável.” (NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
Tradução Livre)
17
Vide N.R. nº 9
18
Tipo de instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil que tem a intermediação como
uma de suas atividades principais, como preleciona o artigo 17 da Lei nº 4.595 de 31 de dezembro de 1964.
que autoriza a realização da operação, a existência de fundos, dentre diversas outras
funcionalidades e requisitos para que a transação seja viável e efetuada, além da
existência de um espaço de tempo entre a contratação da transação e sua liquidação,
fenômeno conhecido como “lag de liquidação”.
Tem-se, portanto, uma única instituição responsável por operacionalizar um
sistema fechado e centralizado de recursos, de modo que a realização da operação está
intrinsecamente relacionada à disponibilidade e capacidade da instituição financeira em
realizá-la. É dizer: sem a abertura de uma conta em uma instituição financeira seja, ou
sem a presença de um intermediário financeiro, até a invenção do Bitcoin não era possível
transacionar valores na internet de forma segura e rápida.
Nesse sentido, o blockchain permite aos criptoativos apresentar uma proposta
no sentido contrário: a criação de uma rede que liste todos os ativos que nela transitam,
seus proprietários e, quando em trânsito, o remetente e o destinatário final dos valores,
guardando registro imutável19
de todas as transações realizadas no respectivo bloco
encadeado.
A constituição de um blockchain, no entanto, não é desprovida de custos. A
criação e ligação entre os blocos é realizada por todos os participantes da DLT, e, como
despendem poder computacional de processamento e energia elétrica para tanto20
,
geralmente cada usuário recebe uma pequena porcentagem da transação que auxiliou a
verificar, através de seu dispositivo conectado à DLT, que pode ser um computador ou
até mesmo um celular.
No caso do protocolo Bitcoin, essa remuneração é feita através da geração de
novos Bitcoins¸ adquiridos por alguém sempre que validar uma transação. Essa atividade
é comumente conhecida como “mineração” de Bitcoins ou de outros criptoativos.
O que acostumou-se a denominar “mineração” é na realidade um processo
matemático a ser realizado pelo dispositivo minerador, relacionado ao hash mencionado
anteriormente. Simplificadamente, o dispositivo minerador precisa, através da solução
desse algoritmo matemático, descobrir um número O processo matemático a ser
19
Em virtude das diferentes arquiteturas tecnológicas aplicadas em cada Blockchain, pode-se concluir que
alguns Blockchains tendem a ser mais seguros que outros
20
Os custos envolvidos no processo de mineração de criptoativos, que será descrito com maiores detalhes a
seguir, decorrem intrinsecamente do poder de processamento envolvido para manter a estrutura blockchain
operante.
realizado pelo minerador é baseado em diversas tentativas, sendo que o blockchain do
Bitcoin é programado para que apenas um bloco de transações verificadas seja
adicionado à cadeia a cada 10 minutos, para evitar sobrecarregamento do sistema21
.
O dispositivo capaz de resolver adequadamente a equação descrita acima terá
como produto a geração de um número, conhecido como golden nonce, que é a prova de
que aquele bloco fora adequadamente auditado e pode ser incorporado ao blockchain
(Proof-of-Work)22
.
Para incentivar a adesão de novos mineradores ao blockchain, a fim de aumentar
a capilaridade do sistema e, consequentemente, incrementar sua estabilidade, o protocolo
Bitcoin prevê uma remuneração a quem encontrar o golden nonce.
Esse valor, denominado de payout, vai reduzindo conforme o blockchain vai
ganhando novos blocos, uma vez que o aumento da cadeia atrai, na mesma proporção, a
necessidade de maior poder de processamento para que as transações possam ser
registradas adequadamente no DLT.
Tem-se, portanto, que a prova de confiança no protocolo Bitcoin - em como nos
protocolos empregados nos demais criptoativos – se dá com base no incentivo atribuído
pelo próprio sistema aos mineradores, que contribuem para verificar a veracidade das
transações, sendo remunerados para tanto.
Como se verá a seguir, a prova de confiança em meios de pagamento não é um
elemento propriamente novo, estando presente em todos os instrumentos de troca
adotados pela humanidade desde que se abandonou o conceito de trocas naturais.
Isso porque a adoção de instrumentos padronizados para uniformização das
trocas, em fenômeno que se conhece como o surgimento da moeda, só foi possível pois
havia um elemento centralizador da confiança na manutenção da reserva de valor que a
moeda representaria.
O que outrora fora preenchido por um lastro em metais preciosos, com o advento
da moeda fiduciária passa-se a conferir maior autonomia aos estados para emissão de
21
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008
22
AUMASSON, Jean-Phillipe et al. Cryptanalysis of Dynamic SHA (2). 2009. Acesso em: 8 fev. 2018.
moeda, que tem no poder liberatório seu principal requisito de validade e eficácia para
que seja considerado como moeda propriamente dita.
2.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de confiança e o
poder liberatório da moeda
Como explicado anteriormente, o fato de o Bitcoin ter sido concebido enquanto
um sistema de pagamentos aproximou em demasia esse criptoativo do conceito de
moeda, fazendo até mesmo com que o Bitcoin seja definido por vezes como uma espécie
de moeda virtual ou, ainda, mais erroneamente, como moeda eletrônica.
Com o advento do marco legal e regulatório dos meios eletrônicos de pagamento
em 2013, introduziu-se o conceito de “moeda eletrônica” no ordenamento jurídico
brasileiro, notadamente por meio da edição da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013
(“Lei 12.865/13”) e regulamentação correlata do Conselho Monetário Nacional
(“CMN”) e do Banco Central do Brasil. Para fins da Lei 12.865/13, as “moedas
eletrônicas”, são uma mera representação eletrônica do Real, possuindo curso legal e
poder liberatório no Brasil, diferentemente das criptomoedas.
Quando da edição da referida norma, o legislador optou por reforçar a existência
do curso forçado da moeda eletrônica, definindo “moeda eletrônica, no inciso VI de seu
artigo 6ª como sendo “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que
permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”.
Está embutido no conceito de moeda eletrônica, quando se trata de sua análise
jurídica, a possibilidade de que alguém a utilize para efetuar transação de pagamento,
liberando-se, assim, de uma obrigação.
Nesse sentido, o próprio Banco Central do Brasil já se manifestou no sentido de
diferenciar as criptomoedas das “moedas eletrônicas”, tendo editado em 19 de fevereiro
de 2014 o Comunicado 25.306, esclarecendo que, para fins da Lei 12.865/13, uma
criptomoeda não é uma moeda eletrônica:
No Brasil, embora o uso das chamadas moedas virtuais ainda não se tenha mostrado capaz
de oferecer riscos ao Sistema Financeiro Nacional, particularmente às transações de
pagamentos de varejo (art. 6º, § 4º, da Lei nº 12.685/2013), o Banco Central do Brasil está
acompanhando a evolução da utilização de tais instrumentos e as discussões nos foros
internacionais sobre a matéria – em especial sobre sua natureza, propriedade e
funcionamento –, para fins de adoção de eventuais medidas no âmbito de sua competência
legal, se for o caso.
A manifestação da autoridade monetária, além de esclarecer ao mercado uma
posição governamental sobre o assunto, ressalta não só o respeito do regulador com a
definição precisa de moeda, ao referir-se aos criptoativos como “chamadas moedas
virtuais” e a utilização posterior do termo “instrumento” para referir-se a eles, mas
também a sinalização de que, por isso, o Banco Central do Brasil talvez não seja o órgão
competente para regular a matéria, como será abordado adiante.
Voltando à esfera de competência legal do Banco Central do Brasil, o conceito
de “moeda eletrônica” também está presente no artigo 4º, I, da Circular nº 3.885 de 28
de março de 2018 do Banco Central do Brasil (“Circular 3.885/18”), a saber:
Art. 4º As instituições de pagamento são classificadas nas seguintes modalidades, de
acordo com os serviços de pagamento prestados:
I - emissor de moeda eletrônica: instituição de pagamento que gerencia conta de
pagamento de usuário final, do tipo pré-paga, disponibiliza transação de pagamento que
envolva o ato de pagar ou transferir, com base em moeda eletrônica aportada nessa
conta, converte tais recursos em moeda física ou escritural, ou vice-versa, podendo
habilitar a sua aceitação com a liquidação em conta de pagamento por ela gerenciada;
(...)
§ 1º Considera-se moeda eletrônica, para efeito do inciso I do caput, os recursos em
reais armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitam ao usuário
final efetuar transação de pagamento. [sem grifos no original]
Ainda que a definição não seja holística, tendo o Banco Central do Brasil limitado
sua aplicação aos efeitos do inciso I do caput do artigo, a regra é clara ao determinar que
se enquadram no conceito de moeda eletrônica somente os recursos em reais aportados
em sistema eletrônico que permitam ao usuário final efetuar transação de pagamento.
Tem-se ainda, da leitura do parágrafo primeiro desse mesmo artigo da Circular
3.885/18, que sua emissão pode ocorrer tão somente após um aporte equivalente em reais
em uma conta de pagamentos. É dizer, na legislação brasileira, “moeda eletrônica” é tão
somente um representativo de conversão de numerário do meio físico para o eletrônico,
conceito distante do que se apresenta como uma nova classe de ativos de emissão com
base em criptografia.
Superado o conceito de moeda eletrônica, cumpre analisar a classificação de
“moeda virtual”, que não é um sinônimo de moeda eletrônica em virtude da definição
regulamentar, mas também não se apresenta como terminologia precisa para que se
classifique os criptoativos.
Quando entendido nessa acepção, pode-se entender “moeda virtual” como sendo
a uma moeda propriamente dita – como o é o dinheiro - emitida em ambiente virtual. Tem-
se, portanto, que para que os criptoativos possam ser enquadrados como moedas virtuais
devem cumprir com dois parâmetros objetivos: (i) enquadrarem-se na definição de moeda;
e (ii) circularem em meio eletrônico.
Porquanto considere-se o segundo requisito cumprido de antemão, diante da
explanação tida no capítulo anterior da presente, vale analisar o primeiro deles. “Moeda”
é um instrumento ou objeto aceito pela coletividade para intermediar as transações
econômicas e para pagamento de bens e serviços. Essa aceitação é garantida por lei,
através de instituto denominado “curso forçado” da moeda. Há também quem defina
moeda simplesmente como tudo aquilo que pode ser utilizado como meio de
pagamento23
.
Antes da existência da moeda, o fluxo de troca de bens e serviços na economia
dava-se por escambo, é dizer, trocas diretas de mercadoria por mercadoria. Nesse estágio
das relações privadas, o uso de um bem determinado que possuía valor próprio e
23
NORDHAUS, W.D., SAMUELSON, P.A. Economia. 14ª edição. Alfragide: McGraw-Hill de Portugal.
p.571.
durabilidade no tempo foi amplamente utilizado como meio de troca24
.Com o passar dos
anos, certas mercadorias passaram a ser aceitas por todos, por suas características
peculiares ou pelo simples fato de serem escassas.
O sal, por exemplo, que por ser um bem escasso foi utilizado na Roma Antiga
como moeda25
, foi superado ao longo do tempo pelos metais preciosos, que assumiram
sua função não só por sua escassez, mas primordialmente por sua durabilidade e
resistência. Juridicamente, essa substituição significou o início do emprego de bens
escassos e com valor intrínseco como intermediário de trocas, de modo que, enquanto
mercadoria, o regime jurídico da moeda correspondia ao das coisas móveis26
.
Esse aspecto é importante pois a prova de titularidade das coisas móveis, e, no
nosso exemplo, da moeda, é feita pela posse27
, de modo que a moeda era um instrumento
imediatamente intercambiável e dissociada de sua finalidade para que pudesse propiciar
as trocas.
Esses dois caracteres dos metais preciosos propiciaram o surgimento de um
processo denominado cunhagem, através do qual a moeda não mais se dava por seu peso
– o que acarretava o às vezes custoso e moroso processo de pesagem das moedas para
determinar seu valor.
A partir da cunhagem, produziam-se moedas idênticas e de mesmo tamanho que
simbolizavam, ou melhor, equivaliam a determinada quantia. O processo de cunhagem
permitiu a uniformização e a criação de moedas com diferentes pesos e valores, o que
deu origem à atual moeda metálica.
Era comum, para que não se perdesse de vista a origem do valor da moeda, que
cada “peso” ou “valor” escolhido correspondesse a um montante existente de metais
24
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a
Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr
2016.
25
GALBRAITH,J.K. Moeda: de onde veio, para onde foi. Segunda edição. Livraria Pioneira: São Paulo,
1983. p.16
26
Nesse sentido, ver também BAROSSI-FILHO, Milton; SZTAJN, Rachel. “Natureza Jurídica da Moeda
e Desafios da Moeda Virtual”, disponível em
https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2015/1/2015_01_1669_1690.pdf, acesso em 25 de maio de
2018.
27
A posse como prova de titularidade apenas pode ser afastada pela prova da má-fe do possuidor, nos termos
do artigo 12.202 do Código Civil.
preciosos, ao que se denominava lastro. Como a própria expressão indica 28
, o lastro
servia para garantir a existência dos fundos representados pela moeda, a fim de mitigar a
problemática da confiança nas relações privadas.
No entanto, considerando que os metais preciosos são escassos e não haveria
quantidade suficiente para atender à demanda crescente dos negócios privados, o lastro
em metal precioso foi caindo em desuso, até desparecer quase absolutamente, dando
origem às chamadas moedas fiduciárias29
.
A moeda no formato que conhecemos hoje, o dinheiro, não possui lastro.
Surgida em 1920, quando abandonou-se o padrão ouro e a emissão de moedas passou a
ocorrer a livre critério de cada país30
, a aceitação da moeda passa a ser promovida
mediante determinação de autoridade governamental. A essa determinação dá-se o nome
de “poder liberatório” ou, ainda, “curso forçado” da moeda.
Para a finalidade proposta para o presente trabalho, vale ressaltar que tal curso
forçado tem a mesma finalidade que tinha o lastro nas negociações mais primitivas:
mitigar incertezas e garantir sua liquidez, especialmente para reduzir a problemática da
confiança nas relações privadas.
A título de exemplo, em 30 de junho de 1994 ano o "real" passou a ser moeda
brasileira única e exclusivamente porque assim mandou o direito positivo brasileiro,
quando da edição da Medida Provisória 542/9431
. Todas as demais unidades monetárias
como tais definidas pelos ordenamentos jurídicos de outros Estados não são “moedas”
no Brasil, não possuindo poder liberatório ou curso forçado.
Referida medida só foi possível por autorização do legislador constituinte
originário, que determinou, no artigo 21, VII da Constituição Federal de 1988 que é
competência da União emitir moeda, e, ainda, no artigo 164, caput, que tal competência
28
CASTRO, Marcílio Moreira de. Dicionário de Direito, Economia e Contabilidade: português-inglês /
inglês-português : incluindo mercado de capitais, finanças, comércio exterior, negócios e jornalismo
econômico e financeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 216.
29
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a
Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr
2016.
30
MENDES, Antônio; NASCIMENTO, Edson Bueno, Estudo de Direito Monetário: A Moeda e suas
Funções; Obrigações Monetárias; Estipulação e Indexação de Obrigações Monetárias. Revista de
Direito Mercantil.Nova Série, XXX (84) Dezembro.
31
Para fins de referência histórica, no Brasil por muitos anos a moeda fiduciária se sustentou por força do
Decreto-Lei n 157
seria exercida exclusivamente pelo Banco Central do Brasil, de modo que, além de não
possuírem curso forçado no brasil, os criptoativos, por não terem sido emitidos pela
autoridade competente, não podem ser interpretados analogamente às moedas no que diz
respeito ao seu regime jurídico.
Portanto os criptoativos não possuem os atributos de validade e eficácia
indispensáveis ao cumprimento de sua função de padrão de valor e de liberação de
débitos pecuniários. Podem, certamente, representar uma reserva de valor, coisa no
sentido jurídico, constituindo instrumento de pagamento nos mercados externos, mas não
possuem o poder de liberar imediatamente alguém de uma obrigação, ou, muito menos,
possui curso forçado para tanto. Em outras palavras, um criptoativo não pode ser
confundido como uma moeda no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
O dinheiro outorga às pessoas o poder de extinguir uma obrigação, líquida ou
que possa ser liquidada em dinheiro, poder esse exercível até mesmo contra o próprio
Estado. Na prática, cada cidadão que possua em suas mãos uma fração monetária emitida
com a devida marca da autoridade, representa o próprio Estado ao transferi-la a outrem,
liberando-se de suas obrigações se o valor transferido assim permitir.
É dizer: o curso forçado nada mais é que a outorga, pelo Estado ao cidadão, do
direito de resolver uma obrigação sem sua intervenção direta, ainda que tenha havido
intervenção legislativa anterior, ao se eleger uma moeda para ter curso forçado.
Uma vez que o Bitcoin, um dos primeiros criptoativos a ser emitido, foi criado
precipuamente para operar como um sistema de pagamentos, a nomenclatura adotada
para os primeiros criptoativos que foram emitidos acabou por aproximá-los do conceito
de “moeda”, mas, como se vê, tal entendimento não se sustenta sob a luz do direito
brasileiro.
A um, pois não há qualquer disposição normativa que confira poder liberatório
aos criptoativos, de modo que fica prejudicado seu enquadramento no conceito de
“moeda”. A dois, pois não é necessariamente utilizado para liberação de débitos
pecuniários (a existência dos utility tokens descrita abaixo é exemplo disso), de modo
que não se pode concluir que qualquer criptoativo, ainda que seja apelidado de
criptomoeda, seja considerado como sendo moeda propriamente dita para fins da
legislação brasileira atual.
2.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a análise
crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda
Como se vê, prejudicada a comparabilidade entre os criptoativos e as moedas de
curso forçado, bem como as demais definições legais do direito brasileiro que
recepcionam o conceito de “moeda eletrônica”. Ainda que possa se comportar como uma
espécie de moeda virtual, esse enfoque acaba por limitar a abrangência que os
criptoativos adquiriram não como forma de se liberar de obrigações, mas sobretudo como
um instrumento de apuração de valor ao longo do tempo.
Essa característica intrínseca dos criptoativos deve ser levada em conta quando
de sua análise jurídica, tendo em vista o caráter consuetudinário do Direito Comercial,
que faz dos usos e costumes do mercado uma de suas fontes de positivação.
Para além de seu comportamento fático, como se verá a seguir, os maiores riscos
encerrados pelos criptoativos dizem respeito ao seu uso enquanto ativo ou valor
mobiliário, e não seu uso enquanto moeda corrente, de modo que, novamente, conceituar
esses instrumentos como moeda impediria a incidência do atual arcabouço regulatório
existente, capaz de mitigar riscos imediatos e mediatos advindos desses produtos.
Isso porque, como tem sido empregados, esses instrumentos mais se aproximam
do conceito de ativo que do conceito de moeda, uma vez que têm sido utilizados muito
mais para fins de investimento que para fins próprios de liberação de obrigações.
Nesse ponto, cabe fazer uma ressalva relevante. A possibilidade de liberação de
obrigações através do adimplemento de obrigações em Bitcoin não faz dele, por si só,
uma moeda, vez que na grande maioria dos casos a liberação da obrigação não se dá pelo
valor intrínseco que tem o Bitcoin, mas sim seu valor atrelado a alguma moeda de curso
forçado, geralmente o real brasileiro ou o dólar norte-americano.
Tem-se, portanto, que o estabelecimento comercial que aceita pagamentos em
Bitcoin não o faz por acreditar em seu valor intrínseco de moeda, mas sim na expectativa
de sua valorização, enquanto ativo de alta volatilidade. Diante da possibilidade de
liquidação em moedas de curso forçado, conclui-se que a prova de confiança desse
negócio jurídico não decorre do valor do Bitcoin, mas sim do curso forçado atribuído às
moedas em que pode ser liquidado. Daí sua aproximação com o conceito de ativo.
Enquanto o ordenamento jurídico brasileiro prescinde de uma definição ou
conceituação do que seja um “ativo”, cabe remeter-se à área dos conhecimentos contábeis
para que se sustente a tese de que a terminologia adequada para se referir aos
instrumentos objeto do presente mais alia-se ao conceito de ativo do que propriamente
ao de moeda.
Nessa linha, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis32
brasileiro (CPC), dispôs
o que segue em seu Pronunciamento Conceitual Básico (R1) divulgado em 2 de
dezembro de 2011, que traz um rol de definições básicas contábeis a serem aplicados no
Brasil:
Ativo é um recurso controlado pela entidade como resultado de eventos passados e do
qual se espera que fluam futuros benefícios econômicos para a entidade. Repare-se que a figura do
controle (e não da propriedade formal) e a dos futuros benefícios econômicos esperados são
essenciais para o reconhecimento de um ativo. Se não houver a expectativa de contribuição futura,
direta ou indireta, ao caixa da empresa, não existe o ativo.
A conceituação de ativo adotada pelo CPC parte de uma acepção dilatada no
tempo desses instrumentos, de modo que um ativo só pode ser assim entendido se for
fruto de evento passado e se houver, concomitantemente, expectativa de futuros
benefícios econômicos para seu detentor.
A conceituação incorporada pelo CPC está em linha com conceituações literárias
a respeito, como a definição concebida por Sprouse e Moonitz33
, que também definem
ativos com uma conceituação dilatada do tempo, segundo a qual a expectativa de retorno
é elemento imprescindível para que se retenha a conceituação de ativo. Para esses
autores, “ativo são bens que proporcionam um fluxo de serviços ao longo do tempo”.
32
Criado pela Resolução CFC nº 1.055/05, o CPC tem como objetivo "o estudo, o preparo e a emissão de
Pronunciamentos Técnicos sobre procedimentos de Contabilidade e a divulgação de informações dessa
natureza, para permitir a emissão de normas pela entidade reguladora brasileira, visando à centralização e
uniformização do seu processo de produção, levando sempre em conta a convergência da Contabilidade
Brasileira aos padrões internacionais".
33
SPROUSE, T.,MOONITZ, M. (1962). A tentative set of broad accounting principles for business
enterprises. New York: AICPA.
Nessa linha, André Franco e Vinícius Bazan34
dividem os ativos virtuais em três
classes: as “criptocommodities”, as “criptomoedas” e os “criptotokens”.
Os primeiros seriam matérias-primas virtuais para o desenvolvimento de
aplicativos (como sistemas operacionais). A ideia por trás das criptocommodities é a
comercialização de códigos abertos que proporcionem a estruturação de soluções em
blockchain, como, por exemplo, contratos inteligentes. Uma vez que possuem a natureza
jurídica de produto, esses não será objeto da presente tese.
As chamadas “criptomoedas” são aquelas tratadas no item anterior, nada mais
sendo do que criptoativos que são empregados para saldar transações.
Os criptotokens, por sua vez, seriam divididos em utility tokens, que garantem o
acesso a certas funcionalidades da plataforma (como o direito de utilização gratuito de
determinado aplicativo blockchain, por exemplo) e os equity tokens ou security tokens,
que garantem desde o direito à divisão de lucros decorrentes da utilização e
desenvolvimento de determinado empreendimento, até mesmo a participação societária
na start-up que desenvolve o projeto.
São esses últimos os possivelmente enquadrados como valores mobiliários, na
medida em que confiram direito de participação, parceria ou de remuneração aos seus
detentores.
34
FRANCO, André; BAZAN, Vinícius. Criptomoedas: Melhor que Dinheiro. São Paulo:Ed. Empiricus,
2018. p. 115-128.
III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA
FINANCEIRO NACIONAL
3.1. Introdução
Vistos os principais aspectos atintentes aos criptoativos, cumpre delinearmos
noções gerais indispensáveis à sua análise sob o ponto de vista jurídico. Para tanto, o
presente capítulo concentrar-se-á em descrever os principais aspectos regulatórios
aplicáveis ao Sistema Financeiro Nacional, para que se possam identificar os agentes
envolvidos e, consequentemente, o escopo da incidência normativa que esses
instrumentos atraem.
A escolha pelas agências componentes do Sistema Financeiro Nacional se encerra
pois, como já visto, o comportamento dos criptoativos no comércio tem atraído riscos
ainda pouco mensuráveis sob a perspectiva de políticas públicas monetárias positivas,
como aquela realizada pelo Conselho Monetário Nacional, amparado pela supervisão do
Banco Central do Brasil, bem como as autoridades dos mercados de capitais, cuja
supervisão no brasil fica a cargo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Como se verá na sequência, o que quando do surgimento dos criptoativos
aparentava ser um conflito de competência, hoje em dia já se mostra relativamente
consolidada a atuação da CVM na supervisão desse mercado, uma vez que é a autoridade
que, inclusive, já está sendo consultada sobre procedimentos de Initial Coin Offerings,
tendo até mesmo divulgado decisão definindo que um token não seria valor mobiliário
para fins da Lei n 6.395/.
Isso se sustenta pelo fato de que a autoridade monetária não está apta a lidar com
um ativo que não se comporta como moeda, ainda que tenha sido concebido como um
meio de pagamentos35
.
Os riscos advindos dessa tecnologia, que podem, em larga escala, vestir-se de
riscos sistêmicos, mais aliam-se ao fato de que os criptoativos tem sido empregados na
35
Nesse sentido, ver Capítulo II supra.
forma de fração de investimento, como verdadeiro Contrato de Investimento, como se
verá a seguir.
Como a experiência internacional vem confirmando, deve-se definir uma emissão
pela natureza do token, de modo que a análise, assim como a do valor mobiliário, deve
ser feita caso a caso. Além desses temas, o presente capítulo buscará lançar mão das
bases teóricas necessárias ao entendimento completo dos conceitos que serão abordados.
Nesse sentido, também serão abordadas discussões relevantes a cerca dos
conceitos que permeiam a regulação do Sistema Fincanceiro Nacional, como o debate
sobre a definição de instituição financeira. Para fins de coesão e melhor encadeamento,
o debate acerca do conceito de valores mobiliários, mais atinado às Initial Coin Offerings,
será abordado no capítulo a seguir.
3.2 Sistema Financeiro Nacional: Panorama regulatório aplicável aos
criptoativos
As Leis nº 4.595/64, e nº 4.728, de 14 de julho de 1965 (“Lei de Reforma
Bancária"), conforme alterada, são responsáveis por regular as Instituições Financeiras
Brasileiras.
O Artigo 17 36
da Lei de Reforma Bancária estabelece o conceito de Instituições
Financeiras, que as determina conforme as atividades que desempenham.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência buscaram elucidar os fatores que
definitivamente distinguiriam essa atividade, concluindo que seu aspecto primordial e
indispensável para sua definição, seria o conhecido binômio bancário: tomar dinheiro
emprestado a crédito e dá-lo também por empréstimo.
Sendo assim, de acordo com os ensinamentos de Salomão Neto37
, para que haja
atividade privativa de Instituição Financeira, deve existir a captação e repasse cumulativo
de recursos.
36
“Artigo 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas
jurídicas, públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou
aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia
de valor de propriedade de terceiros”.
37
SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2° Edição. São Paulo: Atlas, 2014, página 29.
De forma que os elementos dessa atividade são: (a) a captação de recursos de
terceiros em nome próprio, (b) seguida de repasse financeiro através de operação de mútuo,
(c) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos recursos repassados
em relação à dos recursos coletados, (d) desde que a captação seguida de repasse se realize
em caráter habitual.
Conforme o entendimento majoritário dos doutrinadores, as Instituições
Financeiras privadas no Sistema Financeiro Nacional (“SFN”) podem ser classificadas em
nove diferentes espécies, classificando-as preliminarmente em instituições bancárias (i.e.,
autorizadas a captar recursos junto ao público sob a forma de depósitos à vista, com o que
obtêm o efeito multiplicador da moeda) e instituições não bancárias (não autorizadas a
captar recursos dessa forma).
Inicialmente, cabe analisar o conceito de instituição financeira, cuja definição
legal é dada pelo artigo 17 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (“Lei 4.595/64”),
nos seguintes termos:
Art. 17 - Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da
legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como
atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos
financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a
custódia de valor de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor,
equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer
das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.”
Eventual prática de atividade exclusiva de instituição financeira está sujeita às
sanções previstas no § 7º do artigo 44 da Lei 4.595/64, as quais se aplicam à empresa e a
seus administradores, conforme segue:
Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as
instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos
administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades,
sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente:
(...)
§ 7º Quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como
instituição financeira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco
Central da Republica do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo
[multa pecuniária variável] e detenção de 1 a 2 anos, ficando a esta
sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e administradores.”
O caráter excessivamente amplo e impreciso do artigo 17 da Lei 4.595/64 deriva
basicamente da indefinição sobre o que sejam atividades de “coleta”, “intermediação” ou,
ainda “aplicação” de recursos financeiros. Há questionamentos, ainda, se tais atividades
devem ocorrer concomitantemente para que os requisitos formais na Lei 4.595/64 sejam
atendidos. Essas contradições impõem a necessidade de analisar o conceito de instituição
financeira de modo mais aprofundado.
Há diferentes posições em relação aos elementos que configuram a atividade
privativa de instituição financeira (“coleta, intermediação, aplicação”). Se interpretada de
forma literal, a norma leva à conclusão de que não é necessária a concomitância desses três
elementos para configurar atividade privativa de instituição financeira, em virtude da
conjugação “ou”.
No entanto, há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser
considerada uma instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no
“caput” do artigo 17 da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Nesse sentido
é o entendimento de Nelson Eizirik38
:
Portanto, somente ocorrendo a interligação das atividades
relacionadas – coleta, intermediação e aplicação de recursos de terceiros –
poderão ficar caracterizadas atividades privativas de instituições
financeiras.
38
EIZIRIK, Nelson. Caracterização do Exercício Irregular da Atividade Privativa de Instituição
Financeira. In: CARVALHOSA, Modesto e EIZIRIK, Nelson. Estudos de Direito Empresarial. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 523-531.
Wilson do Egito Coelho, ex-consultor jurídico do Banco Central do Brasil, em
estudo apresentado logo após a edição da Lei 4.595/64 já compartilhava do mesmo
entendimento39
:
(...) não é possível considerar como instituição financeira a pessoa
jurídica pública ou privada que se dedique unicamente a aplicar recursos
financeiros independentemente da coleta e intermediação dos mesmos. Esta
impossibilidade baseia-se no fato de a aplicação de recursos financeiros –
operação ativa, por excelência das instituições financeiras – não pode ser
apreendida isoladamente, mas somente em conjunto com os dois outros
elementos, integrantes, indissociáveis da unidade conceitual de instituição
financeira, quais sejam, a coleta e a intermediação de recursos financeiros.
Eventual realização de operações ou atividades vedadas, não autorizadas ou em
desacordo com a autorização concedida pelo Banco Central do Brasil, conforme artigo 3º,
II da Lei 13.506 de 13 de novembro de 2017 está sujeita às sanções previstas no artigo 5º
do referido diploma, as quais se aplicam à empresa e a seus administradores, conforme
segue:
“Art. 5o São aplicáveis as seguintes penalidades às pessoas mencionadas no art.
2o desta Lei, de forma isolada ou cumulativa:
(...)
I - admoestação pública;
II - multa;
III - proibição de prestar determinados serviços para as instituições mencionadas
no caput do art. 2o desta Lei;
IV - proibição de realizar determinadas atividades ou modalidades de operação;
39
COELHO, Wilson do Egito. Empréstimo de dinheiro por particulares: quando se caracteriza
operação privativa dos bancos. Revisa da OAB, V. 2, n. 4, p. 341
V - inabilitação para atuar como administrador e para exercer cargo em órgão
previsto em estatuto ou em contrato social de pessoa mencionada no caput do art.
2o desta Lei;
VI - cassação de autorização para funcionamento.”
Nos últimos anos, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional
(“CRSFN”) proferiu decisões em ambos os sentidos, alternando seu entendimento ao longo
do tempo. Até o ano 2000, existia uma jurisprudência relativamente pacífica no sentido de
que, para a caracterização de uma instituição financeira, seria preciso que as atividades
mencionadas no “caput” do artigo 17 da Lei 4.595/64 fossem exercidas pela entidade de
maneira concomitante, não isolada40
.
No entanto, decisões mais recentes do CRSFN vêm adotando uma intepretação
literal do dispositivo em questão. Nesse sentido é a seguinte decisão do CRSFN prolatada
em novembro de 2013:
“Por uma análise semântica, a utilização da partícula "ou" demonstra que
é necessária para a caracterização da atividade de instituição financeira
somente uma das atividades, sendo desnecessária a concomitância de
captação, intermediação e aplicação”.
Analisando as decisões mais recentes do CRSFN, a jurisprudência parece estar
adotando uma interpretação literal do artigo 17 da Lei 4.595/64 apenas de forma a
considerar como atividade financeira aquelas operações que, embora sejam tipicamente
bancárias, não necessariamente contenham os três elementos.
40
Conforme decisão proferida no Recurso nº 3832 (Pricewaterhousecoopers Auditores Independentes
vs. BACEN), julgado em 15.9.2004: “A esse respeito, comunga-se do entendimento que define uma entidade
como instituição financeira nos casos em que haja cumulação de captação, intermediação e aplicação de
recursos de terceiros. E, mesmo assim, se os recursos forem captados de forma difusa do público e não de
pessoas jurídicas específicas, em número pequeno e determinado. Também necessário, para materialização
de instituição financeira, que haja caráter habitual, a atividade seja feita de forma profissional e com os
riscos inerentes à especulação.”
Por exemplo, operações de empréstimo realizadas com profissionalismo e
habitualidade, mas com a utilização de recursos próprios, sem captação de recursos de
terceiros. É o que se observa na seguinte decisão do CRSFN41
:
[o] entendimento de que seria necessária a concomitância é absolutamente
incompreensível, uma vez que as instituições financeiras não realizam
necessariamente as três atividades. Os bancos, por exemplo, captam
recursos junto aos seus clientes e aplicam tais recursos, emprestando-os aos
tomadores.
Com relação especificamente à atividade de intermediação, cabe ainda observar
que há duas interpretações possíveis, utilizadas na doutrina e na jurisprudência.
A primeira é partidária da interpretação de que a intermediação apenas surge
quando há, de um lado, uma captação e, de outro, uma aplicação. Ou seja, seria, nas
palavras de Wilson do Egito Coelho, a operação que surge da “inter-relação” da coleta e
aplicação. Uma segunda possível interpretação, que inclusive consta de outra decisão do
CRSFN, refere-se à atividade dos administradores de recursos de terceiros, das
distribuidoras e das corretoras de valores.
3.3. A classificação das atividades privativas de instituições financeiras e sua
correlação com a circulação de criptoativos
Os preceitos normativos genéricos aplicáveis a requerimentos propostos ao Banco
Central para a obtenção ou constituição de Instituições Financeiras estão determinados na
Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.122, de 2 de agosto de 2012.
Existem determinadas restrições para que se possa ser constituída uma Instituição
Financeira privada, dentre elas, a necessidade de autorização pelo Banco Central do Brasil
41
Vide decisão proferida nos autos do Recurso CRSFN nº 5783 (Consórcio Nacional GM Ltda. vs.
BACEN), julgado em 29.3.2005.
para entrar em funcionamento. Ademais, deve ser ressaltado que, de acordo com a
Constituição Federal do Brasil, a participação do capital estrangeiro em Instituições
Financeiras, está sujeita além da prévia aprovação do Banco Central do Brasil, além disso,
usualmente os requerimentos referentes a aumento de participação estrangeira no SFN
necessita da edição de um decreto emanado pelo Poder Executivo.
Deve ser ressaltado, no que tange as aquisições de participações em Instituições
Financeiras brasileiras que já sejam detidas, direta ou indiretamente, por estrangeiros, o
decreto presidencial não é aplicável, uma vez que a aquisição referida não altera de
nenhuma forma o grau de participação estrangeira no SFN.
Conforme elucidado por Nelson Abraão42
, a organização institucional do Sistema
Financeiro Nacional foi definida pela Lei da Reforma Bancária, que originou o Conselho
Monetário Nacional (“CMN”), que tem como uma de suas finalidades a fiscalização das
políticas monetárias e cambiais voltadas para o desenvolvimento econômico e social bem
como pela operação do sistema financeiro, e conferiu poderes ao Banco Central para que
o mesmo possa emitir moeda e exercer o controle sobre o crédito.
Os órgãos regulatórios e fiscalizadores abaixo compõem o Sistema Financeiro
Nacional:
(i) Conselho Monetário Nacional;
(ii) Banco Central;
(iii) Comissão de Valores Mobiliários;
(iv) Superintendência de Seguros Privados; e
(v) Secretaria de Previdência Complementar.
O Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional são responsáveis por
regular o setor bancário do Brasil, já a Comissão de Valores Mobiliários é responsável pelo
42
ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p 66
desenvolvimento e implementação das políticas do CMN que dizem respeito ao Mercado
de Valores Mobiliários.
3.3.1 Conselho Monetário Nacional
O Conselho Monetário Nacional é responsável pela formulação e supervisão
global das políticas monetária, de crédito, orçamentária, fiscal e de dívida pública. O CMN
tem por finalidade:
(i) Adaptar o volume dos meios de pagamento às necessidades da economia
nacional;
(ii) Regular o valor interno da moeda;
(iii) Regular o valor externo da moeda e o equilíbrio na balança de pagamento
do País;
(iv) Orientar a aplicação de recursos das Instituições Financeiras;
(v) Propiciar o aperfeiçoamento dos recursos das instituições e instrumentos
financeiros;
(vi) Zelar pela liquidez e solvência das Instituições Financeiras;
(vii) Coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e da dívida
pública; e
(viii) Definir a política a ser observada na organização e no funcionamento do
mercado de valores mobiliários brasileiro.
O Ministro da Fazenda ocupa a presidência do Conselho Monetário Nacional, o
qual é composto também pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e pelo
Presidente do Banco Central do Brasil.
3.3.2. Banco Central do Brasil
A Lei da Reforma Bancária atribuiu poderes ao Banco Central do Brasil para
instituir as políticas monetárias e de crédito determinadas pelo CMN, além de fiscalizar as
Instituições Financeiras sejam elas dos setores público ou privado, submetendo-lhes às
penas estabelecidas, caso haja algum descumprimento normativo.
Dentre as suas principais atribuições estão:
(i) emitir papel-moeda e moeda metálica;
(ii) executar os serviços do meio circulante;
(iii) receber recolhimentos compulsórios e voluntários das instituições
financeiras;
(iv) realizar operações de redesconto e empréstimo às instituições financeiras;
(v) regular a execução dos serviços de compensação de cheques e outros papéis;
(vi) efetuar operações de compra e venda de títulos públicos federais;
(vii) exercer o controle de crédito;
(viii) exercer a fiscalização das instituições financeiras;
(ix) autorizar o funcionamento das instituições financeiras;
(x) estabelecer as condições para o exercício de quaisquer cargos de direção nas
instituições financeiras;
(xi) vigiar a interferência de outras empresas nos mercados financeiros e de
capitais; e
(xii) controlar o fluxo de capitais estrangeiros no país.
O Presidente da República é o responsável pela nomeação do Presidente do Banco
Central, para exercício do cargo por tempo indeterminado, tal nomeação é sujeita à
ratificação pelo Senado Federal.
3.3.4 A Comissão de Valores Mobiliários
Outro componente do Sistema Financeiro Nacional, com sede e foro na Cidade
do Rio de Janeiro e jurisdição em todo território nacional, a Comissão de Valores
Mobiliários (“CVM”) consiste em uma autarquia ligada ao Ministério da Fazenda, com
personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa
independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus
dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária. A CVM tem por finalidade, dentre
outras, a implementação das políticas do CMN referente ao mercado de valores
mobiliários, sendo a autarquia competente para fiscalizar regulamentar e desenvolver esse
mercado, observando a Lei do Mercado de Valores Mobiliários, bem como a Lei 6.404/76.
É atribuído à CVM, regular a fiscalização e inspeção das companhias abertas, a
negociação e intermediação nos mercados de valores mobiliários, regular e fiscalizar o
Mercado de Valores Mobiliários, como instrumento de captação de recursos para as
empresas, a organização, funcionamento e operação das bolsas de valores, dentre outras.
A administração da CVM é composta por um Presidente e quatro Diretores, sendo
que devem ter reputação ilibada e reconhecida competência em matéria de mercado de
capitais, os mesmos devem ser nomeados pelo Presidente da República, e serão nomeados
apenas após a aprovação do Senado Federal.
3.3 A natureza jurídica das atividades de uma instituição financeira e sua
relação com os criptoativos.
O conceito de instituição financeira decorre da caracterização das atividades que
tais entidades desempenham, para tanto o legislador brasileiro espelhou-se nas definições
especialmente nos países de Civil Law para estabelecer as atividades privativas de
instituição financeira cuja, por si só, coloca uma determina instituição no rol de entidades
que compõem este gênero.
Entretanto, o legislador brasileiro não distinguiu assertivamente como ocorreu na
legislação francesa o gênero “instituição financeira” da espécie “banco”, de forma que
as definições adotadas pelo ordenamento jurídico induzem a uma confusão entre tais
institutos.
A delimitação do conceito de instituição financeira encontra-se no artigo 17 da
Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (“Lei 4595/64”), que regulamenta o Sistema
Financeiro Nacional, a seguir transcrito:
Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da
legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que
tenham como atividade principal ou acessória a coleta,
intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de
terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor
de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se
às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades
referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual
Conforme afirma Nelson Abraão, o ordenamento jurídico brasileiro não distingue
o gênero “instituição financeira” da espécie “banco” equiparando ambos os conceitos. A
confusão trazida pelo artigo supramencionado decorre da equiparação trazida pelo
legislador de as atividades principais e acessórias. Ora, a caracterização de uma atividade
empresarial deve estar baseada na atividade principal desempenhada pelo empreendedor
e não pelas atividades acessórias, de forma que logicamente o conceito de instituição
financeira deveria derivar das atividades principais desempenhadas por tais instituições.
Nos termos da definição de instituição financeira nos termos do art. 17 da Lei
4.595/64 o conceito de instituição financeira adotado pelo ordenamento jurídico
brasileiro é composto por quatro elementos principais: coleta, intermediação ou
aplicação de recursos próprios ou de terceiros e a custódia de valores de propriedade de
terceiros.
Se interpretada de forma literal, a norma leva à conclusão de que não é necessária
a concomitância desses 3 (três) elementos para configurar atividade privativa de
instituição financeira, em virtude da conjugação “ou”. Não obstante, na doutrina nacional
há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser considerada uma
instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no “caput” do artigo 17
da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Entre
O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“CRSFN”), analisando
o Recurso nº 13.128, de relatoria do Conselheiro Arnaldo Penteado Laudísio deliberou
que diante das constatações do caso, ficou caracterizada a irregularidade consistente na
realização de operações privativas de instituição financeira, com infringência ao contido
no caput do artigo 17, e, caput e § 1º, do artigo 18, da Lei 4.595/64.
O Conselheiro Arnaldo Penteado Laudísio, relator do caso, deixou registrado em
seu voto que, para caracterização de exercício de atividade privativa de instituição
financeira, basta, apenas, a configuração de um dos elementos “captação”,
“intermediação” ou “aplicação de recursos próprios ou de terceiros”. Os demais
conselheiros acompanharam o relator.
Neste sentido, observa-se uma tendência do CRSFN de manter sua
jurisprudência, com viés conservador, ampliando a interpretação do artigo 17 da Lei nº.
4.595/64 para considerar como instituição financeira a entidade que pratica isoladamente
qualquer das atividades descritas no caput da norma - captar, intermediar ou aplicar -
principalmente se há indícios de fraude nas operações sob análise de referido órgão.
Conceito semelhante é adotado pelo artigo 1º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de
1986 (“Lei nº 7492/86”), que dispõe sobre os crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional:
Art. 1º. Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a
pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como
atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a
captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de
terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão,
distribuição, negociação, intermediação ou administração de
valores mobiliários.
A Lei 7.492/86 traz algumas alterações ao conceito de instituição financeiro
implementado pela Lei 4.595/64. A definição adotada pela Lei 7.492/86 exclui a
referência à atividade de captação, intermediação ou aplicação de recursos próprios,
mantendo para fins do conceito de instituição financeira apenas a prática de tais
atividades com relação a recursos de terceiros. Ademais, referida lei determina que a
instituição financeira pode ser caracterizada pela “custódia, emissão, distribuição,
negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários”.
Com base nesse dispositivo e na evolução do legislativo na determinação de
ambas as definições, Ernane Gâlveas conceituou como instituição financeira:
(...) as empresas que desempenham, no mercado, funções de
intermediárias entre os que têm recursos ou economias disponíveis
e os que necessitam de financiamento para seus gastos de consumo
ou de investimento. Essas empresas servem de caixa único para a
comunidade (depósitos bancários) e efetuam o transporte financeiro
da produção, provendo os recursos necessários ao processo
produtivo, através de financiamentos para a aquisição de matérias-
primas, para vendas a prazo de bens de consumo etc.
Tal definição, entretanto, conforme afirma Fábio Konder Comparato considera
principalmente as atividades desempenhadas por bancos, e não por toda e qualquer
instituição financeira, dado que a “formação de caixa único” está diretamente ligada a
captação de depósitos, atividade privativa da espécie “bancos” e não necessariamente do
gênero “instituição financeira.
Desta forma, importante distinguir ambos os conceitos, uma vez que a instituição
financeira é a entidade que negocia créditos com atividade principal ou acessória,
influenciando na velocidade da circulação da moeda, enquanto os bancos atuam na
efetiva criação da moeda escritural, conforme afirma Comparato em seus comentários.
Referido conceito, entretanto, se mostra ultrapassado diante do marco regulatório
criado em 2013 no qual foi criado o conceito de instituição de pagamento a fim de regular
a emissão de cartões pré e pós pagos e a criação de moeda escritural no âmbito do
mercado de meios de pagamentos, descrita no capítulo 2 do presente trabalho.
Neste sentido, cabe mencionar que a definição adotada pelo legislador e regulador
brasileiro determina expressamente que instituições de pagamento não são instituições
financeiras, mas entidades distintas sujeitas a conceituação e arcabouço legal próprias.
Diante de tal atualização legislativa restou premente atentar aos termos utilizados
na conceituação de instituição financeira de forma a não resultar na confusão de ambos
os institutos.
Assim sendo, resta utilizar-se de elemento pacífico na doutrina para a entre o
gênero “instituição financeira” e a espécie “banco”: a origem dos fundos utilizados pela
entidade em suas operações. Enquanto a instituição financeira utiliza apenas fundos de
seus próprios canais, os bancos utilizam também os fundos que eles recebem
profissionalmente do público mediante recebimento de depósitos.
V. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE
OS CRIPTOATIVOS
Um aspecto interessante mercado sob análise e já problematizado anteriormente
neste trabalho é a fluidez dos termos utilizados para descrever os diferentes produtos
criados sob a forma de criptoativos. Como já dito, embora as várias formas do que são
amplamente conhecidas como "criptomoedas" sejam semelhantes, pois são baseadas
principalmente no mesmo tipo de tecnologia descentralizada conhecida como blockchain
com criptografia inerente, a terminologia usada para descrevê-las varia muito de uma
jurisdição para outra.
Em relatório internacional divulgado a respeito, alguns dos termos usados pelos
países para fazer referência à criptomoeda incluem: moeda digital (Argentina, Tailândia
e Austrália), commodity virtual (Canadá, China, Taiwan), cripto-token (Alemanha),
token de pagamento (Suíça), moeda digital (Itália e Líbano), moeda eletrônica (Colômbia
e Líbano) e ativo virtual (Honduras e México)43
.
Uma das ações mais comuns identificadas nas jurisdições pesquisadas são os
avisos emitidos pelo governo sobre as armadilhas de investir nos mercados de
criptomoeda44
. Tais alertas, em sua maioria emitidos por bancos centrais, são em grande
parte projetados para educar os cidadãos sobre a diferença entre as moedas reais, que são
emitidas e garantidas pelo Estado, e moedas criptográficas, que não possuem curso
forçado, como já visto.
A maioria dos avisos governamentais emitidos pelos países analisados menciona
o risco adicional resultante da alta volatilidade associada aos criptoativos e do fato de
que muitas das organizações que facilitam essas transações não são regulamentadas. A
maioria também observa que os cidadãos que investem em criptomoedas o fazem por sua
própria conta e risco e que nenhum recurso legal está disponível para eles em caso de
perda.
Muitas das advertências emitidas por vários países também observam as
oportunidades que os criptoativos criam para atividades ilegais, como lavagem de
dinheiro e terrorismo. Alguns dos países pesquisados vão além de simplesmente avisar o
público e expandiram suas leis sobre lavagem de dinheiro, contraterrorismo e crimes
organizados para incluir os mercados de criptomoedas, e exigem que bancos e outras
instituições financeiras facilitem esses mercados para conduzir todas as exigências
devidas tais leis. Por exemplo, a Austrália45
, o Canadá e recentemente promulgaram leis
43
Traduções literais da terminologia listada no Relatório elaborado pela Library of Congress norte-
americana. <Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/cryptocurrency/cryptocurrency-world-
survey.pdf>
44
No Brasil, como será explorado a seguir, a CVM e o BACEN emitiram comunicados ao mercado
alertando sobre os riscos do emprego desses ativos, bem como delineando a interpretação da atual
regulamentação aplicável a esses mercados emergentes.
45
Em agosto de 2015, o Comitê de Referências Econômicas do Senado do Parlamento Australiano publicou
um relatório, após a conclusão de uma consulta sobre “como desenvolver um sistema regulatório eficaz para
moeda digital, o potencial impacto da tecnologia de moeda digital na economia australiana e como a Austrália
pode tirar proveito da tecnologia de moeda digital.” O governo respondeu às recomendações do Comitê em
maio de 2016, que culminou na adequação do tratamento fiscal de criptomoedas, que observou aspectos das
seguintes ações do Australian Taxation Office (ATO). No que diz respeito à prevenção à lavagem de dinheiro
e financiamento do combate ao terrorismo, o governo australiano apresentou um projeto de lei ao Parlamento
em agosto de 2017 para que os operadores de corretoras digitais sejam abrangidos pelo regime de
regulamentação do aplicável, conforme recomendado pela comissão do Senado A lei foi promulgada em
dezembro de 2017 e as disposições relevantes entraram em vigor em 3 de abril de 2018.
para levar as transações de criptomoeda e instituições que as facilitam sob o âmbito das
leis de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.
Algumas jurisdições foram ainda mais longe e impuseram restrições aos
investimentos em criptomoedas, cuja extensão varia de uma jurisdição para outra. Alguns
(Alemanha, Bolívia, Marrocos, Nepal, Paquistão e Vietnã) proíbem toda e qualquer
atividade envolvendo criptomoedas.
O Catar e o Bahrein têm uma abordagem um pouco diferente na medida em que
impedem seus cidadãos de se engajarem em qualquer tipo de atividade que envolva
criptomoedas no local, mas permitem que os cidadãos o façam fora de suas fronteiras.
Há também países que, apesar de não proibirem seus cidadãos de investir em
criptoativos, impõem restrições indiretas impedindo que instituições financeiras de suas
fronteiras facilitem transações envolvendo criptomoedas (Bangladesh, Irã, Tailândia,
Lituânia, Lesoto, China46
e Colômbia).
Um limitado número de países regulamenta os ICOs. Das jurisdições que tratam
das ICOs, algumas (principalmente China, Macau e Paquistão) as banem completamente,
enquanto a maioria tende a se concentrar em regulá-las.
Na maioria destes últimos casos, a regulamentação das ICOs e das instituições
reguladoras relevantes varia dependendo de como uma oferta é categorizada. Por
exemplo, na Nova Zelândia, obrigações específicas podem ser aplicadas dependendo se
o token oferecido é categorizado como dívida, segurança, segurança patrimonial, produto
de investimento gerenciado ou derivativo47
.
46
Em 3 de dezembro de 2013, autoridades monetárias chinesas emitiram em conjunto um aviso alertando o
público sobre os riscos do bitcoin, definida como “por natureza uma commodity virtual especial”, que “não
tem o mesmo status legal de moeda” e “não pode e não deve ser circulada no mercado como moeda”. De
acordo com o aviso, os bancos e as instituições de pagamento na China estão proibidas de negociar bitcoins.
Instituições financeiras e de pagamento são proibidas de usar preços de bitcoin para produtos ou serviços ou
de compra ou venda de bitcoins, nem podem fornecer serviços relacionados a bitcoins diretos ou indiretos,
incluindo registro, negociação, liquidação, compensação ou outros serviços; aceitar bitcoins ou usar bitcoins
como uma ferramenta de liquidação; ou negocie bitcoins com yuan chinês ou moedas estrangeiras.
47
Em outubro de 2017, a autoridade monetária (Financial Markets Authority - FMA) neozelandesa publicou
informações sobre criptomoedas e os riscos associados a elas, como parte de sua orientação sobre as opções
de investimento. Em particular, destaca os seguintes três pontos sobre criptomoedas: são ativos de alto risco
e altamente voláteis; seu preço pode subir e descer muito rapidamente; e não são regulamentados na Nova
Zelândia
A FMA também publicou comentários sobre ofertas iniciais de moedas (ICOs) e serviços de criptomoeda
(incluindo trocas, carteiras e corretagem). As informações referem-se à aplicação do marco regulatório
existente para produtos e serviços financeiros. Com relação aos ICOs, a orientação afirma que: Estar ou não
Da mesma forma, na Holanda, as reservas aplicáveis a um ICO específico
dependem de o token ofertado ser considerado uma garantia ou uma unidade em um
investimento coletivo, uma avaliação feita caso a caso.
Nem todos os países vêem o advento da tecnologia blockchain e criptomoedas
como uma ameaça, embora por diferentes razões. Parte da jurisdição pesquisada, apesar
de não reconhecer as criptomoedas como moeda legal, vê um potencial na tecnologia por
trás disso e está desenvolvendo um regime regulatório favorável à criptomoeda como um
meio de atrair investimentos em empresas de tecnologia que se destacam neste setor,
como Espanha48
, Bielorrússia, Ilhas Cayman e Luxemburgo49
.
Algumas jurisdições estão procurando ir ainda mais longe e desenvolver seu
próprio sistema de criptomoedas. Esta categoria inclui uma lista diversificada de países,
como as Ilhas Marshall, a Venezuela, os países membros do Banco Central do Caribe
Oriental (ECCB) e a Lituânia. Além disso, alguns países que emitiram avisos ao público
sobre as armadilhas dos investimentos em criptomoedas também determinaram que o
tamanho do mercado de criptomoedas é muito pequeno para ser motivo de conteúdo
suficiente para justificar a regulamentação e /ou a proibição neste momento (Bélgica,
África do Sul e Reino Unido)50
.
Uma das muitas questões que surgem de permitir investimentos e o uso de
criptomoedas é a questão da tributação. A esse respeito, o desafio parece ser como
categorizar as criptomoedas e as atividades específicas que as envolvem para fins de
sujeito à regulamentação depende se o ICO inclui um "produto financeiro" está sendo oferecido a
investidores de varejo na Nova Zelândia (ou seja, uma "oferta regulada" está sendo feita). Se um token
oferecido por meio de um ICO é um produto financeiro e, em caso afirmativo, que tipo de produto depende
das características específicas e da substância econômica do token. A FMA então explica como um token
pode ser considerado um dos quatro tipos de produtos financeiros estabelecidos na Lei de Conduta dos
Mercados Financeiros de 2013 (sendo títulos de dívida, ações, produtos de investimento gerenciado e
derivativos), e se sim, quais são as obrigações do emissor.
48
Comunicado Conjunto de la Comisión Nacional del Mercado de Valores (CNMV) y Banco de España
[Joint Press Statement by CNMV and Banco de España on “Cryptocurrencies” and “Initial Coin Offerings”
(ICOs)] (Feb. 8, 2018). <Disponível em:
https://www.cnmv.es/loultimo/NOTACONJUNTAriptoES%20final.pdf>
49
España Busca Aprobar una Legislación Amistosa para las Criptomoneda. Spain Seeks to Approve Friendly
Legislation Towards Cryptocurrencies], Harwareate (Feb. 18, 2018). <Disponível em:
https://hardwareate.com/espana-busca-aprobar-una-legislacion-amistosas-las-criptomonedas>
50
As Ilhas Marshall promulgaram legislação autorizando o lançamento de sua “criptomoeda” para servir
como moeda de curso legal para cidadãos e empresas na ilha. A moeda será conhecida como soberana, ou
SOV, e servirá como “moeda de curso legal das Ilhas Marshall para todas as dívidas, encargos públicos,
impostos e contribuições”. Circulará como moeda legal além do dólar americano O SOV será introduzido
em uma oferta inicial de moeda (ICO), após a qual os residentes das Ilhas Marshall receberão os meios para
manter, salvar e conduzir transações com o SOV, e os comerciantes nas Ilhas Marshall terão acesso a um
aplicativo de computador que permitirá que eles recebam pagamentos feitos com o SOV.
tributação. Isso é importante principalmente porque os ganhos obtidos com mineração
ou venda de moedas criptografadas são categorizados como renda e os ganhos de capital
invariavelmente determinam a faixa de imposto aplicável. Os países pesquisados
classificaram as criptomoedas de maneira diferente para fins fiscais, conforme ilustrado
pelos exemplos a seguir:
Principalmente devido a uma decisão de 2015 do Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias (TJCE), os ganhos em investimentos em criptomoeda não estão
sujeitos ao imposto sobre valor agregado nos Estados-Membros da União Europeia51
.
Na maioria dos países pesquisados que têm ou estão em processo de desviar as
regras de tributação, a mineração de criptomoedas também está isenta de tributação. No
entanto, na Rússia52
, a mineração que excede um certo limite de consumo de energia é
tributável.
Em um pequeno número de jurisdições pesquisadas, as criptomoedas são aceitas
como meio de pagamento. A Ilha de Man e o México também permitem o uso de
criptomoedas como meio de pagamento junto com sua moeda nacional53
. Assim como
os governos ao redor do mundo que financiam vários projetos ao segregar títulos do
governo, o governo de Antígua e Barbuda permite o financiamento de projetos e
instituições de caridade por meio de ICOs apoiadas pelo governo54
.
As diferentes reações das distintas autoridades regulatórias globais delimitam
duas problemáticas centrais no que diz respeito à regulamentação desses ativos. A um, a
autoridade competente para fazê-lo, tendo em vista que as reações regulatórias oscilaram,
51
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decidiou no caso Skatterverket v. David Hedqvist que
o imposto sobre valor agregado não incidiria sobre os estados-membro da União Europeia.
52
Lei nº. 419059-7, Federal Law of the Russian Federation on Digital Financial Assets, <Disponível em:
http://asozd2c.duma.
gov.ru/addwork/scans.nsf/ID/E426461949B66ACC4325825600217475/$FILE/419059-
7_20032018_419059-7.PDF?OpenElement (em Russo)
53
A lei mexicana para Regulamentar Empresas de Tecnologia Financeira, promulgada em março de 2018,
inclui um capítulo sobre operações com “ativos virtuais”. Este capítulo define ativos virtuais como
representações de valor registradas eletronicamente e utilizadas pelo público como meio de pagamento para
todos os tipos de transações legais, que só podem ser transferidas eletronicamente.
Além disso, o México promulgou uma lei estendendo a aplicação de suas leis relativas à lavagem de dinheiro
a ativos virtuais, exigindo, assim, que instituições financeiras que prestam serviços relacionados a esses
ativos relatem transações que excedam determinados valores.
54
Comunicado à imprensa. CNET Antigua, The Government of Antigua and Barbuda Supports CNET’s
Investment Development Projects and Charities Funded by the Initial Coin Offering for Development
<disponível em: https://www.prnewswire.com/news-releases/the-government-of-antigua-and-barbuda-
supports-cnets-investment-development-projects-and-charities-funded-by-the-initial-coin-offering-for-
development-300605628.html>
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro
A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro

Semelhante a A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro (20)

Edital de Audiência Pública SDM/CVM nº 6/2013
Edital de Audiência Pública SDM/CVM nº 6/2013Edital de Audiência Pública SDM/CVM nº 6/2013
Edital de Audiência Pública SDM/CVM nº 6/2013
 
Artigo Tributário
Artigo TributárioArtigo Tributário
Artigo Tributário
 
Artigo Tributário
Artigo TributárioArtigo Tributário
Artigo Tributário
 
Decifrando o Universo das Criptomoedas.
Decifrando o Universo das Criptomoedas.Decifrando o Universo das Criptomoedas.
Decifrando o Universo das Criptomoedas.
 
Sumário
SumárioSumário
Sumário
 
Apresentação CINCOIN
Apresentação CINCOIN Apresentação CINCOIN
Apresentação CINCOIN
 
Tecnologia Blockchain: uma visão Geral (CPqD)
Tecnologia Blockchain: uma visão Geral (CPqD)Tecnologia Blockchain: uma visão Geral (CPqD)
Tecnologia Blockchain: uma visão Geral (CPqD)
 
blockchain
blockchainblockchain
blockchain
 
Marketing Multinivel LionsTrading Lançamento Mundial
Marketing Multinivel LionsTrading Lançamento MundialMarketing Multinivel LionsTrading Lançamento Mundial
Marketing Multinivel LionsTrading Lançamento Mundial
 
Futuro brilhante com criptoativos Luisa Ometto Dal Prete
Futuro brilhante com criptoativos Luisa Ometto Dal Prete Futuro brilhante com criptoativos Luisa Ometto Dal Prete
Futuro brilhante com criptoativos Luisa Ometto Dal Prete
 
Oportunidades em criptoativos Luisa Ometto Dal Prete
Oportunidades em criptoativos Luisa Ometto Dal PreteOportunidades em criptoativos Luisa Ometto Dal Prete
Oportunidades em criptoativos Luisa Ometto Dal Prete
 
Futuro brilhante criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete.pdf
Futuro brilhante criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete.pdfFuturo brilhante criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete.pdf
Futuro brilhante criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete.pdf
 
Tecnologias de blockchain
Tecnologias de blockchainTecnologias de blockchain
Tecnologias de blockchain
 
HERMÈS VS METABIRKINS - O CASE ENVOLVENDO PI E NFT.pdf
HERMÈS VS METABIRKINS - O CASE ENVOLVENDO PI E NFT.pdfHERMÈS VS METABIRKINS - O CASE ENVOLVENDO PI E NFT.pdf
HERMÈS VS METABIRKINS - O CASE ENVOLVENDO PI E NFT.pdf
 
Blockchain e Aplicações Descentralizadas - Fev/2017
Blockchain e Aplicações Descentralizadas - Fev/2017Blockchain e Aplicações Descentralizadas - Fev/2017
Blockchain e Aplicações Descentralizadas - Fev/2017
 
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativaBitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
Bitcoin - A moeda virtual e sua natureza técnica e normativa
 
Introdução a criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
Introdução a criptomoedas Luisa Ometto Dal PreteIntrodução a criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
Introdução a criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
 
Como começar a investir em criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
Como começar a investir em criptomoedas Luisa Ometto Dal PreteComo começar a investir em criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
Como começar a investir em criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
 
Introdução a criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
Introdução a criptomoedas Luisa Ometto Dal PreteIntrodução a criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
Introdução a criptomoedas Luisa Ometto Dal Prete
 
Investindo em criptomoedas
Investindo em criptomoedasInvestindo em criptomoedas
Investindo em criptomoedas
 

A Regulamentação dos Criptoativos e Criptomoedas no Direito Brasileiro

  • 1. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DEPARTAMENTO DE DIREITO COMERCIAL TESE DE LÁUREA INITIAL COIN OFFERINGS E A REGULAMENTAÇÃO DOS CRIPTOATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO Orientador: Prof. José Marcelo Martins Proença CARLOS ALBERTO KÜMPEL IMBRIANI SÃO PAULO, 2018
  • 2.
  • 3.
  • 4. SUMÁRIO I. INTRODUÇÃO II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO II.1 Criptoativos: o Blockchain e as Criptomoedas II.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro II.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de confiança e o poder liberatório da moeda II.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a análise crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL III.1 Introdução III.2 Sistema Financeiro Nacional: panorama regulatório aplicável aos criptoativos III.3 A classificação das atividades privativas de instituições financeiras e sua correlação com a circulação de criptoativos IV. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE OS CRIPTOATIVOS V. AS INITIAL COIN OFFERINGS V.1Conceito V.2Preocupações do mercado de capitais coadunadas aos riscos encerrados pelos criptoativos V.2.1 O que é um valor mobiliário? V.2.2 O Conceito de valor mobiliário no direito brasileiro V.2.3 Conceito de Oferta Pública no Brasil V.2.4 Implicações regulatórias do enquadramento de tokens no conceito de valor mobiliário V.2.4.1Regime de registro de oferta pública V.2.4.2Restrições à negociação
  • 5. V.2.5 A regulamentação dos criptoativos e o aparente conflito de competência entre o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários V.2.6 Criptomoedas e os tokens: natureza jurídica VI. CONCLUSÃO VII. ÍNDICE BIBLIOGRÁFICO
  • 6. I. Introdução O surgimento das chamadas “criptomoedas” despertou interesse de diversas áreas de estudo, e, como não poderia ser diferente diante do surgimento de um novo instrumento do comércio, o Direito Comercial passou a se deparar com os primeiros dilemas relativos à conceituação desses instrumentos. Porquanto prescinda de regramento que seja diretamente aplicável, a presente tese procurará analisar esses instrumentos com base no ordenamento brasileiro vigente, e demonstrar que o regramento disponível atualmente já dispõe de ferramentas adequadas para propiciar o desenvolvimento de soluções com bases nesses ativos sem que para isso se ponha em grandes riscos a higidez do sistema financeiro nacional. O primeiro ponto a permitir a adequada aplicação do direito nesses casos é afastar a comparabilidade desses instrumentos com qualquer tipo de “moeda”, uma vez que, para fins do direito brasileiro, uma criptomoeda não é moeda por não possuir poder liberatório. Para tanto, a presente explorará o surgimento da moeda, desde o lastro com valor em recursos naturais até a emissão de moeda escritural, fruto direto da atividade bancária, de forma que o modo como o mercado (e, por conseguinte, o comércio) recepcionou esses produtos não está associada à ideia de moeda. A prova de confiança monetária que historicamente derivou do valor intrínseco de bens escassos, até ser substituída pela moeda fiduciária, que hoje em dia serve como padrão de valor: caractere incompatível com um instrumento cujo valor oscila no tempo. A presente tese, nesse sentido, defenderá que a terminologia “criptoativo” é mais adequada para tratar de seu objeto. Daí advém a primeira problemática em que se concentrará este trabalho: a oferta pública de um ativo que pode se valorizar no tempo, ou, ainda, uma oferta pública de ativos com a intenção de se obter ou viabilizar esforço empresarial, com expectativa de retorno, poderia caracterizá-los como valores mobiliários para fins da legislação brasileira? O comportamento dos criptoativos no comércio tem muitos pontos de contato com os Contratos de Investimento Coletivo, que ensejaram até mesmo a revisão do modelo de conceituação de valor mobiliário no Brasil e no mundo. A presente tese procurará explorar essa construção teórica para demonstrar que o arcabouço regulatório
  • 7. brasileiro atualmente já é capaz de identificar criptoativos com características de valores mobiliários. Do ponto de vista de um a supervisão baseada em riscos, que vem sendo o pilar pelos quais as agências fiscalizadoras do mercado financeiro balizam sua atuação, o atual arcabouço regulatório brasileiro é sim capaz de orientar esse mercado de modo a não afetar a higidez do sistema financeiro nacional, pelo menos em se considerando o risco sistêmico. Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não realizar um trabalho somente a respeito de criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na composição do tema da pesquisa que enseja o presente se dá, principalmente, porque essa operação é das mais complexas dentre as realizadas com criptomoedas: é dizer, um verdadeiro stress test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos disciplinada no Brasil e no Mundo, que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada aos princípios basilares do Direito Comercial. O estudo do ICO permitirá compreender qual o comportamento fático dos criptoativos no mercado financeiro, e, à partir disso – considerando que o Direito Comercial, diante de seu aspecto consuetudinário, em muito se funda nos usos do mercado para construir alicerces doutrinários e legislativos – garantirá que o presente estudo possa balizar alternativas viáveis de regulamentação e aplicação segura, de um ponto de vista jurídico, dessas novas tecnologias.
  • 8. II. CRIPTOATIVOS: NOÇÕES GERAIS E PANORAMA HISTÓRICO 2.1. Criptoativos: o Blockchain e as criptomoedas Um novo mercado surgiu quando do lançamento das primeiras moedas virtuais baseadas em criptografias, apelidadas de “criptomoedas” -, fenômeno relativamente recente quando se leva em conta a extensão e o tempo de que dispuseram para se desenvolverem os demais produtos financeiros que permeiam o mercado contemporâneo. A arquitetura tecnológica de criptografia por trás das criptomoedas é uma das principais inovações em relação ao modelo de estruturação de produtos atual empregado no mercado financeiro, e vem atraindo o interesse não apenas do setor privado, mas também de autoridades governamentais. Com base em chaves de criptografia (os hashes), as chamadas criptomoedas se constroem sobre um sistema de contabilização e registro público aberto denominado blockchain, que contém em si o histórico da totalidade das transações já realizadas na rede de cada uma das criptomoedas, por tomar o exemplo mencionado.1 O principal efeito prático do emprego do blockhain, como será explorado a seguir, é a desnecessidade de um intermediário para a transmissão de valores através da internet. O sistema de blockchain permite que todas as transações estejam catalogadas e centralizadas em uma única “cadeia” de “blocos de transação”. Dessa forma, a cada nova transação que é feita um novo bloco é adicionado à cadeia. A cada transação ocorrida essa cadeia criptográfica aumenta, fazendo com que seja cada vez mais difícil a alteração dos registros de cada transação anterior, procedimento que exigiria a alteração de todos os blocos de transações que ocorreram após determinada transação. No que diz respeito a sua implementação e indo no sentido contrário aos demais mecanismos de controle e protocolos de segurança usualmente empregados no mercado financeiro – foco de vultosos investimentos por parte das instituições que o integram – , que visam geralmente a proteger a segurança de seus ativos e os de seus clientes, encontram no blockchain uma solução para proteger ambos com o mesmo grau de 1 Para fins deste título, utilizar-se-ão exemplos a respeito da tecnologia do blockchain no que diz respeito às criptomoedas, embora sua aplicação vá muito além da circulação de Criptoativos, podendo ser aplicado, como se verá, até mesmo pelos bancos centrais para otimização da fiscalização do mercado.
  • 9. segurança, embora a estrutura de precificação dos investimentos em blockchain ainda não esteja clara para alguns atuantes do mercado. Ainda que essa tecnologia tenha se difundido a partir do lançamento do Bitcoin, uma das primeiras ditas criptomoedas a alcançar reconhecimento global, vale ressaltar que em nenhum trecho do whitepaper do Bitcoin Satoshi Nakamoto menciona o termo “blockchain”, expressão que foi cunhada consecutivamente à difusão dessa tecnologia, fazendo menção apenas a “uma série de blocos encadeados”2 que possibilitariam a construção dessa “cadeia de confiança” 3 entre os blocos da rede. O que Nakamoto descreveu, em realidade, foi uma espécie de Distributed Ledger Technology (ou “DLT”, em sua sigla em inglês, ou, ainda, Tecnologia de Livros Distribuídos, em tradução livre) baseada em blockchain, que é uma tecnologia recente4 e de rápida evolução, utilizada para gravar e compartilhar dados entre múltiplos bancos de dados (ou ledgers).5 A tecnologia DLT permite que dados de qualquer natureza sejam gravados, compartilhados e sincronizados em uma cadeia pulverizada entre diferentes participantes da rede. Um blochckain é um tipo particular de estrutura de dados usada em alguns DLTs, que armazena e transmite dados em pacotes chamados "blocos" que são conectados uns aos outros como em uma "cadeia" digital. É dizer, em suma, que nem todos os DLTs utilizam a arquitetura blockchain, embora todo blockchain seja uma espécie do gênero DLT6 . Pode-se comparar, sem desnaturar seu conceito, um blockchain a um grande registro público comum, como há nos cartórios brasileiros atualmente. A diferença está no fato de que a veracidade das informações que ali estão independe da chancela de um 2 NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7. 3 “a chain of blocks ahead of time by working on it continuously (...)”. In NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.p. 7. 4 Os DLTs, ainda que recentes, não são propriamente novos. O serviço BitTorrent, que ficou mundialmente conhecido pela suposta conivência com o compartilhamento de conteúdo autoral, emprega a tecnologia peer- to-peer, outra espécie de DLT. A proximidade entre as tecnologias fez com que uma gigante do mercado de criptomoedas, a Tron, adquirisse a BitTorrent em meados de 2018. Nesse sentido: ROSTEN, Avi, BitTorrent Officially Confirms its Acquisition by TRON. Disponível em: https://www.cryptoglobe.com/latest/2018/07/bittorrent-officially-confirms-its-acquisition-by-tron/. Acesso em: 28.07.18. 5 International Bank for Reconstruction and Development. The World Bank. Distributed Ledger Technology (DLT) and Blockchain – Fintech Note No. 1. 2017. Disponível em:www.worldbank.org. 6 A explicação suscinta para que não se fuja do escopo do presente trabalho pode ser suprida com a completa e eficiente explicação de Don e Alex Tapscott em TAPSCOTT, Don; TAPSCOTT, Alex. Blockchain Revolution. 1. ed. São Paulo: SENAI-SP, 2016.
  • 10. ente centralizador – o Estado, no caso dos cartórios e registros públicos -, e deriva e de dois fatores complementares. De um lado, a dificuldade técnica em se alterar um blockchain, o que corrobora pela veracidade dos dados que estão ali registrados. A possibilidade da existência de uma prova de confiança de rede, assunto que será abordado adiante, que permite ao bitcoin operar com status de moeda, ainda que, para fins da legislação brasileira, não possa sê- lo. Os blockchain utilizam métodos criptográficos e algorítmicos para registrar e sincronizar dados de modo que as informações não possam ser alteradas. Por exemplo, uma nova transação de criptoativos seria registrada e transmitida para uma rede em um bloco de dados, que é primeiro validado por membros específicos da rede e, em seguida, vinculado a uma cadeia de blocos existente de maneira única, produzindo um blockchain. Após a verificação da validade da transação e seu consequente registro no blockchain, a informação não pode mais ser removida ou ter suas propriedades alteradas por qualquer outro participante da rede. Como essa cadeia linear cresce a cada bloco que é adicionado –e é única-, blocos anteriores não podem ser alterados por qualquer membro da rede. O DLT tem estado intimamente ligado às criptomoedas desde o seu início porque – como já abordado anteriormente - foi empregado como a tecnologia subjacente de um dos primeiros criptoativos a ganhar relevância global, o Bitcoin. Em termos práticos, cada bloco é identificado por uma chave de criptografia (hash) que funciona como uma assinatura eletrônica, e a ligação de um bloco a outro recebe ainda outro hash, de modo que todas as partes de um blochckain sejam imediatamente verificáveis. Em se tomando o exemplo do blockchain do Bitcoin para ilustrar o procedimento descrito acima, em primeiro lugar é preciso instalar o software do Bitcoin, seguido da criação de uma carteira virtual7 que será operada pelo software instalado, 77 A função básica das carteiras de Bitcoin é a de armazenar esses criptoativos, bem como enviar e receber os valores de uma carteira para outra através de transações pela rede blockchain. O que se armazenam nessas carteiras, na realidade, são as chaves criptografadas digitais (hashes) privadas, que são utilizadas para acessar os endereços de bitcoin públicos e assinar as transações que são armazenadas na carteira de bitcoin. Existem diversos tipos de carteira, que dá ao usuário acesso a seus bitcoins de diversas maneiras, existem cinco tipos
  • 11. também chamado de “cliente” do Bitcoin. Essa carteira geralmente é identificada por um código, e se comporta como um endereço eletrônico para o qual recursos em Bitcoin são enviados e em que são armazenados. Em terceiro lugar, o sistema cria um registro criptografado da operação, que é utilizado para identificar a natureza da transação e gerar uma chave pública. A chave pública identifica a transação, e, por ter-se originado de um registro criptografado – a que apenas o agente contratante tem acesso -, essa chave, que passa a ser a parte pública da operação, é o que identifica o bloco em um blockchain. Subsequentemente à emissão da chave pública ocorre o processo de efetiva inserção daquele bloco representativo de uma transação no blockchain, - processo que pode demorar até 10 minutos para se perfazer – que culmina com a emissão do hash. O hash é emitido tão somente depois que a rede verificou a autenticidade das duas chaves envolvidas na transação, de modo que um bloco só é inserido no blockchain caso seja verificado que seu ponto de origem e de chegada são válidos, mecanismo esse que viabiliza a existência de uma confiança de rede propriamente dita. O poder de processamento que torna possíveis todos esses procedimentos é oriundo de todos os participantes da rede que estejam executando o software do Bitcoin, e, por isso, o algoritmo do Bitcoin prevê uma remuneração para aquele que efetivamente contribuiu para a verificação de uma transação específica, que geralmente é atribuída como uma porcentagem da transação capturada. Sob o ponto de vista técnico, o portador da Bitcoin é uma pessoa anônima, detentora de uma carteira, que concorda em participar de um processo consensuado de aceitação das regras holísticas de uso da tecnologia blockchain8 . A existência desse registro torna desnecessária a figura da instituição financeira como prova de confiança para realização de transações, uma vez que há um registro único e totalitário dos ativos circulantes em um blockchain em questão9 . Eliminar essa principais de carteira: em celulares, computadores, on-line, e até mesmo de papel, as chamadas hard wallets, onde literalmente anotam-se referidas chaves criptográficas. 8 SAYAD, J. Dinheiro, dinheiro: inflação, desemprego, crises financeiras e bancos. São Paulo: Portfolio Peguin, 2015. 9 Nesse sentido, vale ressaltar que cada criptoativo tende a empregar seu próprio blockchain, de modo que os registros não são intercambiáveis. No entanto, alguns blockchains, por seu alto estágio de desenvolvimento e eficiências operacionais, são utilizados por terceiros para emissão de criptoativos e outros
  • 12. instituição que realiza a função de intermediária, além de tornar o processo mais ágil, reduziria custos, pois a presença de um intermediário para esse tipo de transação em geral está associada à cobrança de uma taxa de serviços. A existência de um único bloco de registro de transações referentes aos criptoativos dispensa (ou, ainda, torna desnecessária) a necessidade de um órgão centralizador, e, além disso, comporta-se, para fins práticos, como verdadeiro ativo financeiro, pelo que no presente trabalho as criptomoedas serão classificadas como uma espécie do gênero dos “criptoativos”. E a classificação como um ativo de criptografia, um criptoativo, deriva de sua própria natureza. Como se verá adiante, o fenômeno das criptomoedas trouxe à tona diversos tipos de emissões utilizando empregando o conceito técnico da emissão de uma criptomoeda (através do blockchain), o que deu origem a diversos movimentos de crowdfunding e crowdsale com base em tokens das mais diversas naturezas que, por não poderem ser utilizados como ordem de pagamento à vista, não se aproximam da conceituação, e nem mesmo ao fim precípuo, de uma moeda. Esses aspectos peculiares dos criptoativos atraíram o interesse do mercado financeiro, que enxergou verdadeiro “oceano azul” para começar a operar com essas moedas - que acumulam valorização expressiva ao longo dos últimos anos - sem enfrentar grandes entraves legais e especialmente regulatórios. O que o mercado hoje enxerga como um oceano de oportunidades a serem exploradas, constitui, por outro lado, uma zona de penumbra para as autoridades reguladoras de todo o mundo, que têm esboçado nos últimos anos um movimento no sentido de regulamentar e uniformizar a construção legislativa no que diz respeito aos criptoativos. Essa iniciativa regulatória iniciou-se muito tímida ao redor do mundo, com enfoque primário na contratação de pesquisas para que se entendessem o que seriam produtos em seu ecossistema, como no caso do blockchain Ethereum. Nesse sentido: HENNING, Diedrich. Ethereum: Blockchains, Digital Assets, Smart Contracts, Decentralized Autonomous Organizations. New York: Wildfire Publishing, 2016. 185 p.
  • 13. esses criptoativos, e como o seu comportamento poderia de alguma forma comprometer a higidez dos sistemas financeiros e bancários por todo o mundo10 . No início da difusão do Bitcoin e de seus pares (como, por exemplo, a Ethereum e a LiteCoin11 ), essas dificuldades advinham basicamente de um par de fatores antagônicos: a rapidez com a qual o mercado assimilou e incorporou as criptomoedas em seus produtos, de um lado, e o excesso de burocracia e a falta de conhecimento técnico que até hoje obstaculiza a ação desses reguladores, de outro. A rapidez com que o mercado incorporou esse novo produto deu origem a operações cada vez mais complexas, como dito acima, que culminaram, recentemente, nas chamadas Ofertas Iniciais de Moedas (em tradução livre, ou Initial Coin Offerings, “ICO”, em sua sigla em inglês). Em linhas gerais, em um ICO são emitidos ativos digitais com base em tecnologia de criptografia, criptoativos, que são usualmente comercializados com o nome de token. Esses tokens, uma vez adquiridos, garantem ao investidor algum retorno futuro, seja ele pecuniário ou de acesso a algum serviço, uma vez que os ICOs geralmente são usualmente lançados no contexto de funding para um projeto ou empreendimento em estágio inicial de estruturação. Daí advém a primeira problemática em que se concentrará este trabalho: a oferta pública de um ativo que pode se valorizar no tempo, ou, ainda, uma oferta pública de ativos com a intenção de se obter ou viabilizar esforço empresarial, com expectativa de retorno, poderia caracterizá-los como valores mobiliários para fins da legislação brasileira? Quando exposta a problemática, fica evidente a importância da correta classificação dos objetos dessa análise. Uma vez que a tecnologia criptográfica por trás das criptomoedas e dos tokens é o blockchain, com singulares diferenças entre umas e outras, não faria sentido classificar as criptomoedas e tokens como objetos de estudo 10 Exemplo disso, o Banco Central do Brasil contratou a elaboração de um parecer denominado: Banco Central do Brasil. Distributed ledger technical research in Central Bank of Brazil. Brasília: [s.n.], 2017. 33 p. Diponível em: https://www.bcb.gov.br/htms/public/microcredito/Distributed_ledger_technical_research_in_Central_Bank _of_Brazil.pdf 11 Estima-se que existam hoje mais de 1000 criptomoedas em circulação, dentre eles criptomoedas, dos quais Bitcoin e Ethereum possuem maior valor de mercado, em contraposição a moedas menos conhecidas, de menor circulação, conhecidas como alternative coins ou simplesmente altcoins.
  • 14. distintos, uma vez que seus caracteres técnicos e, consequentemente, sua utilização tem se dado de maneira muito próxima. Tanto é assim que temos exemplos de emissões de tokens realizadas em âmbito de um processo de ICO que seriam, após a implementação do projeto, listadas na carteira de corretoras de criptoativos, em conjunto com o Bitcoin e outras criptomoedas, para que pudesse então, constituir ativo de valor oscilante negociado em balcão, a chamada “criptomoeda”. Assim sendo, uma vez que são ativos conversíveis e possuem características técnicas e de mercado similares, o presente trabalho, ao analisar o comportamento jurídico dos tokens emitidos em ICOs poderá, também, trazer conclusões e problemáticas sobre as criptomoedas e sua regulamentação no Brasil. Até porque, como se verá adiante, um mesmo criptoativo pode assumir o papel de diversas das definições que são usualmente a eles atribuídas (criptomoeda, token etc.). Nesse ponto, vale ressaltar que a escolha por não concentrar este trabalho somente na análise dos criptoativos tem uma razão de ser. A inclusão do ICO na composição do tema da presente pesquisa se dá, principalmente, porque essa operação é das mais complexas dentre as realizadas com criptoativos: é dizer, um verdadeiro stress test de uma figura ainda pouco estudada e muito menos regulamentada no Brasil e no Mundo, o que permite analisar seus desdobramentos de maneira mais dinâmica e ligada aos princípios basilares do Direito Comercial, bem como à regulamentação já existente. Isso porque o estudo do ICO permitirá compreender qual o comportamento fático dos criptoativos no mercado brasileiro, e, à partir disso – considerando que o Direito Comercial, diante de seu aspecto consuetudinário, em muito se funda nos usos do mercado para construir alicerces doutrinários e legislativos – garantirá que o presente estudo esteja balizado por alternativas viáveis de regulamentação e aplicação técnica, de um ponto de vista jurídico, dessas novas tecnologias. Naturalmente, a análise da natureza jurídica das criptomoedas passará por áreas já muito conhecidas e desenvolvidas do Direito, como, por exemplo (i) da disciplina dos valores mobiliários, seu histórico e sua aplicação na regulamentação em vigor; (ii) da política monetária positiva, especialmente à luz das normas atinentes ao Sistema de Pagamentos Brasileiro (“SPB”) e do Sistema Financeiro Nacional (“SFN”), incluindo,
  • 15. mas não se limitando, a Lei nº 4.595/94 e demais leis correlatas; (iii) dos marcos regulatórios das Autarquias responsáveis pela fiscalização do SFN e do SPB; e (iv) subsidiariamente, das discussões havidas no exterior a respeito dos modelos usuais de ICO e como a doutrina e os legisladores estrangeiros têm solucionado – ou buscado solucionar – a falta de regulamentação específica sobre o tema. Considerando os pontos expostos acima, a presente tese de láurea buscará (i) traçar um panorama histórico do surgimento dos criptoativos; (ii) analisar o recepcionamento dessa nova tecnologia pelos mercados financeiro e de capitais, passando por suas formas de aplicação e analisando as estruturas que levaram ao surgimento de um modelo de ICO enquanto alternativa viável de funding; (iii) comparativamente às soluções práticas encontradas pelo mercado, analisar as principais vertentes de classificação jurídica dos criptoativos no mundo e no Brasil, sejam elas valores mobiliários, meio circulante ou, ainda, ativos financeiros; e (iv) delimitar questões atinentes à sua natureza jurídica, pontos de atenção e discussões atuais envolvendo as criptomoedas atualmente no âmbito do mercado financeiro. Portanto, para bem enfrentar as questões postas na breve introdução acima, a presente análise apresentará nos capítulos subsequentes um panorama histórico dos ICOs, bem como os marcos regulatórios aplicáveis atualmente no Brasil. 2.2 Os Criptoativos e as Initial Coin Offerings – Histórico e considerações gerais à luz do direito positivo brasileiro Como a própria sigla denota, a análise histórica do ICO permite concluir que sua criação, em perspectiva, se resume basicamente à união entre o blockchain e os criptoativos, de um lado, e da estrutura por trás de uma Oferta Pública de Ações (ou Initial Public Offer, “IPO”, em sua sigla em inglês), de outro. O emprego do IPO como parâmetro estrutural adotado por interessados em promover um ICO é natural, e apresenta-se pelo fato de que o IPO é um dos principais instrumentos de captação de recursos em empreendimentos de qualquer porte, sobretudo os de maior vulto, e a aplicação dos usos e costumes aplicáveis a esse tipo de iniciativa de captação trouxe, inevitavelmente, a aproximação dos usos e costumes aplicáveis aos
  • 16. IPOs às ofertas realizadas através de criptoativos. Nesse sentido, ainda que não se tenha regramento a respeito, um dos poucos comunicados de autoridades reguladoras vieram da Comissão de Valores Mobiliários, justamente a Autarquia encarregada de registrar e autorizar os IPOs no Brasil12 . Ocorre que, além de todo o ineditismo que circunda esse novo “produto” financeiro, o volume de recursos que operações de ICO já estão movimentando em todo o globo vem agravando a necessidade de consolidação da disciplina jurídica não só desse tipo de operação em si, mas também dos valores que são trocados como resultado da oferta. A ainda frequente comparação entre o ICO e IPO acirra o debate acerca da supracitada possibilidade de que os criptoativos sejam regulamentados em analogia aos valores mobiliários, objeto de emissão em IPOs, especialmente por seu valor estar constantemente exposto a risco e à volatilidade, assim como os valores mobiliários circulam no Brasil. Para bem se reproduzir o histórico de surgimento e evolução dos ICOs, é necessário em primeiro lugar analisar a primeira “emissão” de criptoativos realizada na história. No ano de 2008, Satoshi Nakamoto13 lançou o primeiro whitepaper14 do Bitcoin15 , descrevendo o funcionamento da tecnologia bem como as oportunidades comerciais decorrentes de seu emprego. 2.2.1 O surgimento do Bitcoin 12 Comunicado CVM de 11.10.17 : Nesse contexto, a CVM esclarece que certas operações de ICO podem se caracterizar como operações com valores mobiliários já sujeitas à legislação e à regulamentação específicas, devendo se conformar às regras aplicáveis. Incorrem na mesma situação companhias (abertas ou não) ou outros emissores que captem recursos por meio de uma ICO, em operações cujo sentido econômico corresponda à emissão e à negociação de valores mobiliários. 13 Até hoje não se sabe a real identidade de Satoshi Nakamoto, se seria uma pessoa real, um pseudônimo, ou até mesmo o nome dado a um grupo de programadores. O fato de ter criado a tecnologia do Bitcoin, não faz de Satoshi Nakamoto o proprietário da tecnologia, que se estrutura em blocos de acesso público (DLTs) para funcionar. 14 Whitepaper é a nomenclatura normalmente utilizada para se referir ao documento que formaliza o lançamento de um criptoativo ou um ICO, similar a um prospecto elaborado no âmbito de uma Oferta Pública de Ações. Este documento geralmente concentra-se em (i) descrever a oportunidade de mercado trazida ou propiciada pelo criptoativo que será emitido; e (ii) detalhar o funcionamento técnico da tecnologia DLT (Distributed Ledger Technology) por trás do criptoativo emitido. 15 NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008.
  • 17. O título do whitepaper que lançou o Bitcoin denota que esse criptoativo fora originalmente concebido como um sistema de pagamentos eletrônico16 , similar aos meios de pagamento recepcionados pela nossa legislação e consolidados no Sistema Brasileiro de Pagamentos, através da tecnologia blockchain. Substitui-se, assim, a confiança entre os negociantes por uma chamada “confiança de rede”- que poderá ser acessada e verificada por todos os seus participantes, sendo todos eles capazes de assegurar a validade de uma transação - sendo desnecessária uma figura centralizada para conferir higidez ao sistema de pagamentos. O Bitcoin surgiu, nos termos de seu whitepaper, para ser um “sistema de pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez da confiança, permitindo que quaisquer duas partes dispostas possam transacionar diretamente entre si sem a necessidade de um terceiro confiável17 . ” A proposta do Bitcoin seria, desta forma, a de constituir uma ferramenta de pagamentos descentralizada, em que todos os participantes da rede tenham condições de verificar e realizar transações, diferentemente do tradicional modelo centralizador que permeia os modelos de pagamento e liquidação de transações das moedas fiduciárias tradicionais adotadas por cada país. Até a criação do Bitcoin, as transações online nunca foram possíveis sem um intermediário, uma parte que centralizasse a confiança entre comprador e vendedor, e pudesse realizar o negócio entre ausentes de modo em que ambas as partes vejam reduzidos seus riscos diante da operação. Por exemplo, para realizar uma simples transferência de valores entre duas pessoas físicas através da internet, é necessário um intermediário – no caso atual, uma instituição financeira18 - que operacionalize a transação, com o emprego de atividades como: verificar os dados das contas de entrada e saída, a veracidade da assinatura digital 16 “sistema de pagamento eletrônico com base na prova criptográfica em vez de confiança, permitindo que quaisquer duas partes dispostas a transacionar diretamente entre si possam fazê-lo sem a necessidade de um terceiro confiável.” (NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008. Tradução Livre) 17 Vide N.R. nº 9 18 Tipo de instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil que tem a intermediação como uma de suas atividades principais, como preleciona o artigo 17 da Lei nº 4.595 de 31 de dezembro de 1964.
  • 18. que autoriza a realização da operação, a existência de fundos, dentre diversas outras funcionalidades e requisitos para que a transação seja viável e efetuada, além da existência de um espaço de tempo entre a contratação da transação e sua liquidação, fenômeno conhecido como “lag de liquidação”. Tem-se, portanto, uma única instituição responsável por operacionalizar um sistema fechado e centralizado de recursos, de modo que a realização da operação está intrinsecamente relacionada à disponibilidade e capacidade da instituição financeira em realizá-la. É dizer: sem a abertura de uma conta em uma instituição financeira seja, ou sem a presença de um intermediário financeiro, até a invenção do Bitcoin não era possível transacionar valores na internet de forma segura e rápida. Nesse sentido, o blockchain permite aos criptoativos apresentar uma proposta no sentido contrário: a criação de uma rede que liste todos os ativos que nela transitam, seus proprietários e, quando em trânsito, o remetente e o destinatário final dos valores, guardando registro imutável19 de todas as transações realizadas no respectivo bloco encadeado. A constituição de um blockchain, no entanto, não é desprovida de custos. A criação e ligação entre os blocos é realizada por todos os participantes da DLT, e, como despendem poder computacional de processamento e energia elétrica para tanto20 , geralmente cada usuário recebe uma pequena porcentagem da transação que auxiliou a verificar, através de seu dispositivo conectado à DLT, que pode ser um computador ou até mesmo um celular. No caso do protocolo Bitcoin, essa remuneração é feita através da geração de novos Bitcoins¸ adquiridos por alguém sempre que validar uma transação. Essa atividade é comumente conhecida como “mineração” de Bitcoins ou de outros criptoativos. O que acostumou-se a denominar “mineração” é na realidade um processo matemático a ser realizado pelo dispositivo minerador, relacionado ao hash mencionado anteriormente. Simplificadamente, o dispositivo minerador precisa, através da solução desse algoritmo matemático, descobrir um número O processo matemático a ser 19 Em virtude das diferentes arquiteturas tecnológicas aplicadas em cada Blockchain, pode-se concluir que alguns Blockchains tendem a ser mais seguros que outros 20 Os custos envolvidos no processo de mineração de criptoativos, que será descrito com maiores detalhes a seguir, decorrem intrinsecamente do poder de processamento envolvido para manter a estrutura blockchain operante.
  • 19. realizado pelo minerador é baseado em diversas tentativas, sendo que o blockchain do Bitcoin é programado para que apenas um bloco de transações verificadas seja adicionado à cadeia a cada 10 minutos, para evitar sobrecarregamento do sistema21 . O dispositivo capaz de resolver adequadamente a equação descrita acima terá como produto a geração de um número, conhecido como golden nonce, que é a prova de que aquele bloco fora adequadamente auditado e pode ser incorporado ao blockchain (Proof-of-Work)22 . Para incentivar a adesão de novos mineradores ao blockchain, a fim de aumentar a capilaridade do sistema e, consequentemente, incrementar sua estabilidade, o protocolo Bitcoin prevê uma remuneração a quem encontrar o golden nonce. Esse valor, denominado de payout, vai reduzindo conforme o blockchain vai ganhando novos blocos, uma vez que o aumento da cadeia atrai, na mesma proporção, a necessidade de maior poder de processamento para que as transações possam ser registradas adequadamente no DLT. Tem-se, portanto, que a prova de confiança no protocolo Bitcoin - em como nos protocolos empregados nos demais criptoativos – se dá com base no incentivo atribuído pelo próprio sistema aos mineradores, que contribuem para verificar a veracidade das transações, sendo remunerados para tanto. Como se verá a seguir, a prova de confiança em meios de pagamento não é um elemento propriamente novo, estando presente em todos os instrumentos de troca adotados pela humanidade desde que se abandonou o conceito de trocas naturais. Isso porque a adoção de instrumentos padronizados para uniformização das trocas, em fenômeno que se conhece como o surgimento da moeda, só foi possível pois havia um elemento centralizador da confiança na manutenção da reserva de valor que a moeda representaria. O que outrora fora preenchido por um lastro em metais preciosos, com o advento da moeda fiduciária passa-se a conferir maior autonomia aos estados para emissão de 21 NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: A Peer-to-peer Electronic Cash System. 2008 22 AUMASSON, Jean-Phillipe et al. Cryptanalysis of Dynamic SHA (2). 2009. Acesso em: 8 fev. 2018.
  • 20. moeda, que tem no poder liberatório seu principal requisito de validade e eficácia para que seja considerado como moeda propriamente dita. 2.3 Os criptoativos e o conceito de moeda: a evolução da prova de confiança e o poder liberatório da moeda Como explicado anteriormente, o fato de o Bitcoin ter sido concebido enquanto um sistema de pagamentos aproximou em demasia esse criptoativo do conceito de moeda, fazendo até mesmo com que o Bitcoin seja definido por vezes como uma espécie de moeda virtual ou, ainda, mais erroneamente, como moeda eletrônica. Com o advento do marco legal e regulatório dos meios eletrônicos de pagamento em 2013, introduziu-se o conceito de “moeda eletrônica” no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente por meio da edição da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013 (“Lei 12.865/13”) e regulamentação correlata do Conselho Monetário Nacional (“CMN”) e do Banco Central do Brasil. Para fins da Lei 12.865/13, as “moedas eletrônicas”, são uma mera representação eletrônica do Real, possuindo curso legal e poder liberatório no Brasil, diferentemente das criptomoedas. Quando da edição da referida norma, o legislador optou por reforçar a existência do curso forçado da moeda eletrônica, definindo “moeda eletrônica, no inciso VI de seu artigo 6ª como sendo “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”. Está embutido no conceito de moeda eletrônica, quando se trata de sua análise jurídica, a possibilidade de que alguém a utilize para efetuar transação de pagamento, liberando-se, assim, de uma obrigação. Nesse sentido, o próprio Banco Central do Brasil já se manifestou no sentido de diferenciar as criptomoedas das “moedas eletrônicas”, tendo editado em 19 de fevereiro de 2014 o Comunicado 25.306, esclarecendo que, para fins da Lei 12.865/13, uma criptomoeda não é uma moeda eletrônica: No Brasil, embora o uso das chamadas moedas virtuais ainda não se tenha mostrado capaz de oferecer riscos ao Sistema Financeiro Nacional, particularmente às transações de
  • 21. pagamentos de varejo (art. 6º, § 4º, da Lei nº 12.685/2013), o Banco Central do Brasil está acompanhando a evolução da utilização de tais instrumentos e as discussões nos foros internacionais sobre a matéria – em especial sobre sua natureza, propriedade e funcionamento –, para fins de adoção de eventuais medidas no âmbito de sua competência legal, se for o caso. A manifestação da autoridade monetária, além de esclarecer ao mercado uma posição governamental sobre o assunto, ressalta não só o respeito do regulador com a definição precisa de moeda, ao referir-se aos criptoativos como “chamadas moedas virtuais” e a utilização posterior do termo “instrumento” para referir-se a eles, mas também a sinalização de que, por isso, o Banco Central do Brasil talvez não seja o órgão competente para regular a matéria, como será abordado adiante. Voltando à esfera de competência legal do Banco Central do Brasil, o conceito de “moeda eletrônica” também está presente no artigo 4º, I, da Circular nº 3.885 de 28 de março de 2018 do Banco Central do Brasil (“Circular 3.885/18”), a saber: Art. 4º As instituições de pagamento são classificadas nas seguintes modalidades, de acordo com os serviços de pagamento prestados: I - emissor de moeda eletrônica: instituição de pagamento que gerencia conta de pagamento de usuário final, do tipo pré-paga, disponibiliza transação de pagamento que envolva o ato de pagar ou transferir, com base em moeda eletrônica aportada nessa conta, converte tais recursos em moeda física ou escritural, ou vice-versa, podendo habilitar a sua aceitação com a liquidação em conta de pagamento por ela gerenciada; (...) § 1º Considera-se moeda eletrônica, para efeito do inciso I do caput, os recursos em reais armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitam ao usuário final efetuar transação de pagamento. [sem grifos no original]
  • 22. Ainda que a definição não seja holística, tendo o Banco Central do Brasil limitado sua aplicação aos efeitos do inciso I do caput do artigo, a regra é clara ao determinar que se enquadram no conceito de moeda eletrônica somente os recursos em reais aportados em sistema eletrônico que permitam ao usuário final efetuar transação de pagamento. Tem-se ainda, da leitura do parágrafo primeiro desse mesmo artigo da Circular 3.885/18, que sua emissão pode ocorrer tão somente após um aporte equivalente em reais em uma conta de pagamentos. É dizer, na legislação brasileira, “moeda eletrônica” é tão somente um representativo de conversão de numerário do meio físico para o eletrônico, conceito distante do que se apresenta como uma nova classe de ativos de emissão com base em criptografia. Superado o conceito de moeda eletrônica, cumpre analisar a classificação de “moeda virtual”, que não é um sinônimo de moeda eletrônica em virtude da definição regulamentar, mas também não se apresenta como terminologia precisa para que se classifique os criptoativos. Quando entendido nessa acepção, pode-se entender “moeda virtual” como sendo a uma moeda propriamente dita – como o é o dinheiro - emitida em ambiente virtual. Tem- se, portanto, que para que os criptoativos possam ser enquadrados como moedas virtuais devem cumprir com dois parâmetros objetivos: (i) enquadrarem-se na definição de moeda; e (ii) circularem em meio eletrônico. Porquanto considere-se o segundo requisito cumprido de antemão, diante da explanação tida no capítulo anterior da presente, vale analisar o primeiro deles. “Moeda” é um instrumento ou objeto aceito pela coletividade para intermediar as transações econômicas e para pagamento de bens e serviços. Essa aceitação é garantida por lei, através de instituto denominado “curso forçado” da moeda. Há também quem defina moeda simplesmente como tudo aquilo que pode ser utilizado como meio de pagamento23 . Antes da existência da moeda, o fluxo de troca de bens e serviços na economia dava-se por escambo, é dizer, trocas diretas de mercadoria por mercadoria. Nesse estágio das relações privadas, o uso de um bem determinado que possuía valor próprio e 23 NORDHAUS, W.D., SAMUELSON, P.A. Economia. 14ª edição. Alfragide: McGraw-Hill de Portugal. p.571.
  • 23. durabilidade no tempo foi amplamente utilizado como meio de troca24 .Com o passar dos anos, certas mercadorias passaram a ser aceitas por todos, por suas características peculiares ou pelo simples fato de serem escassas. O sal, por exemplo, que por ser um bem escasso foi utilizado na Roma Antiga como moeda25 , foi superado ao longo do tempo pelos metais preciosos, que assumiram sua função não só por sua escassez, mas primordialmente por sua durabilidade e resistência. Juridicamente, essa substituição significou o início do emprego de bens escassos e com valor intrínseco como intermediário de trocas, de modo que, enquanto mercadoria, o regime jurídico da moeda correspondia ao das coisas móveis26 . Esse aspecto é importante pois a prova de titularidade das coisas móveis, e, no nosso exemplo, da moeda, é feita pela posse27 , de modo que a moeda era um instrumento imediatamente intercambiável e dissociada de sua finalidade para que pudesse propiciar as trocas. Esses dois caracteres dos metais preciosos propiciaram o surgimento de um processo denominado cunhagem, através do qual a moeda não mais se dava por seu peso – o que acarretava o às vezes custoso e moroso processo de pesagem das moedas para determinar seu valor. A partir da cunhagem, produziam-se moedas idênticas e de mesmo tamanho que simbolizavam, ou melhor, equivaliam a determinada quantia. O processo de cunhagem permitiu a uniformização e a criação de moedas com diferentes pesos e valores, o que deu origem à atual moeda metálica. Era comum, para que não se perdesse de vista a origem do valor da moeda, que cada “peso” ou “valor” escolhido correspondesse a um montante existente de metais 24 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr 2016. 25 GALBRAITH,J.K. Moeda: de onde veio, para onde foi. Segunda edição. Livraria Pioneira: São Paulo, 1983. p.16 26 Nesse sentido, ver também BAROSSI-FILHO, Milton; SZTAJN, Rachel. “Natureza Jurídica da Moeda e Desafios da Moeda Virtual”, disponível em https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2015/1/2015_01_1669_1690.pdf, acesso em 25 de maio de 2018. 27 A posse como prova de titularidade apenas pode ser afastada pela prova da má-fe do possuidor, nos termos do artigo 12.202 do Código Civil.
  • 24. preciosos, ao que se denominava lastro. Como a própria expressão indica 28 , o lastro servia para garantir a existência dos fundos representados pela moeda, a fim de mitigar a problemática da confiança nas relações privadas. No entanto, considerando que os metais preciosos são escassos e não haveria quantidade suficiente para atender à demanda crescente dos negócios privados, o lastro em metal precioso foi caindo em desuso, até desparecer quase absolutamente, dando origem às chamadas moedas fiduciárias29 . A moeda no formato que conhecemos hoje, o dinheiro, não possui lastro. Surgida em 1920, quando abandonou-se o padrão ouro e a emissão de moedas passou a ocorrer a livre critério de cada país30 , a aceitação da moeda passa a ser promovida mediante determinação de autoridade governamental. A essa determinação dá-se o nome de “poder liberatório” ou, ainda, “curso forçado” da moeda. Para a finalidade proposta para o presente trabalho, vale ressaltar que tal curso forçado tem a mesma finalidade que tinha o lastro nas negociações mais primitivas: mitigar incertezas e garantir sua liquidez, especialmente para reduzir a problemática da confiança nas relações privadas. A título de exemplo, em 30 de junho de 1994 ano o "real" passou a ser moeda brasileira única e exclusivamente porque assim mandou o direito positivo brasileiro, quando da edição da Medida Provisória 542/9431 . Todas as demais unidades monetárias como tais definidas pelos ordenamentos jurídicos de outros Estados não são “moedas” no Brasil, não possuindo poder liberatório ou curso forçado. Referida medida só foi possível por autorização do legislador constituinte originário, que determinou, no artigo 21, VII da Constituição Federal de 1988 que é competência da União emitir moeda, e, ainda, no artigo 164, caput, que tal competência 28 CASTRO, Marcílio Moreira de. Dicionário de Direito, Economia e Contabilidade: português-inglês / inglês-português : incluindo mercado de capitais, finanças, comércio exterior, negócios e jornalismo econômico e financeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 216. 29 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Breves Considerações Econômicas e Jurídicas Sobre a Criptomoeda. Os Bitcoins. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 14/2016, p. 139 – 154, mar-abr 2016. 30 MENDES, Antônio; NASCIMENTO, Edson Bueno, Estudo de Direito Monetário: A Moeda e suas Funções; Obrigações Monetárias; Estipulação e Indexação de Obrigações Monetárias. Revista de Direito Mercantil.Nova Série, XXX (84) Dezembro. 31 Para fins de referência histórica, no Brasil por muitos anos a moeda fiduciária se sustentou por força do Decreto-Lei n 157
  • 25. seria exercida exclusivamente pelo Banco Central do Brasil, de modo que, além de não possuírem curso forçado no brasil, os criptoativos, por não terem sido emitidos pela autoridade competente, não podem ser interpretados analogamente às moedas no que diz respeito ao seu regime jurídico. Portanto os criptoativos não possuem os atributos de validade e eficácia indispensáveis ao cumprimento de sua função de padrão de valor e de liberação de débitos pecuniários. Podem, certamente, representar uma reserva de valor, coisa no sentido jurídico, constituindo instrumento de pagamento nos mercados externos, mas não possuem o poder de liberar imediatamente alguém de uma obrigação, ou, muito menos, possui curso forçado para tanto. Em outras palavras, um criptoativo não pode ser confundido como uma moeda no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. O dinheiro outorga às pessoas o poder de extinguir uma obrigação, líquida ou que possa ser liquidada em dinheiro, poder esse exercível até mesmo contra o próprio Estado. Na prática, cada cidadão que possua em suas mãos uma fração monetária emitida com a devida marca da autoridade, representa o próprio Estado ao transferi-la a outrem, liberando-se de suas obrigações se o valor transferido assim permitir. É dizer: o curso forçado nada mais é que a outorga, pelo Estado ao cidadão, do direito de resolver uma obrigação sem sua intervenção direta, ainda que tenha havido intervenção legislativa anterior, ao se eleger uma moeda para ter curso forçado. Uma vez que o Bitcoin, um dos primeiros criptoativos a ser emitido, foi criado precipuamente para operar como um sistema de pagamentos, a nomenclatura adotada para os primeiros criptoativos que foram emitidos acabou por aproximá-los do conceito de “moeda”, mas, como se vê, tal entendimento não se sustenta sob a luz do direito brasileiro. A um, pois não há qualquer disposição normativa que confira poder liberatório aos criptoativos, de modo que fica prejudicado seu enquadramento no conceito de “moeda”. A dois, pois não é necessariamente utilizado para liberação de débitos pecuniários (a existência dos utility tokens descrita abaixo é exemplo disso), de modo que não se pode concluir que qualquer criptoativo, ainda que seja apelidado de criptomoeda, seja considerado como sendo moeda propriamente dita para fins da legislação brasileira atual.
  • 26. 2.4 O conceito de ativo, a definição terminológica “criptoativo” e a análise crítica da hermenêutica aplicável ao conceito de moeda Como se vê, prejudicada a comparabilidade entre os criptoativos e as moedas de curso forçado, bem como as demais definições legais do direito brasileiro que recepcionam o conceito de “moeda eletrônica”. Ainda que possa se comportar como uma espécie de moeda virtual, esse enfoque acaba por limitar a abrangência que os criptoativos adquiriram não como forma de se liberar de obrigações, mas sobretudo como um instrumento de apuração de valor ao longo do tempo. Essa característica intrínseca dos criptoativos deve ser levada em conta quando de sua análise jurídica, tendo em vista o caráter consuetudinário do Direito Comercial, que faz dos usos e costumes do mercado uma de suas fontes de positivação. Para além de seu comportamento fático, como se verá a seguir, os maiores riscos encerrados pelos criptoativos dizem respeito ao seu uso enquanto ativo ou valor mobiliário, e não seu uso enquanto moeda corrente, de modo que, novamente, conceituar esses instrumentos como moeda impediria a incidência do atual arcabouço regulatório existente, capaz de mitigar riscos imediatos e mediatos advindos desses produtos. Isso porque, como tem sido empregados, esses instrumentos mais se aproximam do conceito de ativo que do conceito de moeda, uma vez que têm sido utilizados muito mais para fins de investimento que para fins próprios de liberação de obrigações. Nesse ponto, cabe fazer uma ressalva relevante. A possibilidade de liberação de obrigações através do adimplemento de obrigações em Bitcoin não faz dele, por si só, uma moeda, vez que na grande maioria dos casos a liberação da obrigação não se dá pelo valor intrínseco que tem o Bitcoin, mas sim seu valor atrelado a alguma moeda de curso forçado, geralmente o real brasileiro ou o dólar norte-americano. Tem-se, portanto, que o estabelecimento comercial que aceita pagamentos em Bitcoin não o faz por acreditar em seu valor intrínseco de moeda, mas sim na expectativa de sua valorização, enquanto ativo de alta volatilidade. Diante da possibilidade de liquidação em moedas de curso forçado, conclui-se que a prova de confiança desse
  • 27. negócio jurídico não decorre do valor do Bitcoin, mas sim do curso forçado atribuído às moedas em que pode ser liquidado. Daí sua aproximação com o conceito de ativo. Enquanto o ordenamento jurídico brasileiro prescinde de uma definição ou conceituação do que seja um “ativo”, cabe remeter-se à área dos conhecimentos contábeis para que se sustente a tese de que a terminologia adequada para se referir aos instrumentos objeto do presente mais alia-se ao conceito de ativo do que propriamente ao de moeda. Nessa linha, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis32 brasileiro (CPC), dispôs o que segue em seu Pronunciamento Conceitual Básico (R1) divulgado em 2 de dezembro de 2011, que traz um rol de definições básicas contábeis a serem aplicados no Brasil: Ativo é um recurso controlado pela entidade como resultado de eventos passados e do qual se espera que fluam futuros benefícios econômicos para a entidade. Repare-se que a figura do controle (e não da propriedade formal) e a dos futuros benefícios econômicos esperados são essenciais para o reconhecimento de um ativo. Se não houver a expectativa de contribuição futura, direta ou indireta, ao caixa da empresa, não existe o ativo. A conceituação de ativo adotada pelo CPC parte de uma acepção dilatada no tempo desses instrumentos, de modo que um ativo só pode ser assim entendido se for fruto de evento passado e se houver, concomitantemente, expectativa de futuros benefícios econômicos para seu detentor. A conceituação incorporada pelo CPC está em linha com conceituações literárias a respeito, como a definição concebida por Sprouse e Moonitz33 , que também definem ativos com uma conceituação dilatada do tempo, segundo a qual a expectativa de retorno é elemento imprescindível para que se retenha a conceituação de ativo. Para esses autores, “ativo são bens que proporcionam um fluxo de serviços ao longo do tempo”. 32 Criado pela Resolução CFC nº 1.055/05, o CPC tem como objetivo "o estudo, o preparo e a emissão de Pronunciamentos Técnicos sobre procedimentos de Contabilidade e a divulgação de informações dessa natureza, para permitir a emissão de normas pela entidade reguladora brasileira, visando à centralização e uniformização do seu processo de produção, levando sempre em conta a convergência da Contabilidade Brasileira aos padrões internacionais". 33 SPROUSE, T.,MOONITZ, M. (1962). A tentative set of broad accounting principles for business enterprises. New York: AICPA.
  • 28. Nessa linha, André Franco e Vinícius Bazan34 dividem os ativos virtuais em três classes: as “criptocommodities”, as “criptomoedas” e os “criptotokens”. Os primeiros seriam matérias-primas virtuais para o desenvolvimento de aplicativos (como sistemas operacionais). A ideia por trás das criptocommodities é a comercialização de códigos abertos que proporcionem a estruturação de soluções em blockchain, como, por exemplo, contratos inteligentes. Uma vez que possuem a natureza jurídica de produto, esses não será objeto da presente tese. As chamadas “criptomoedas” são aquelas tratadas no item anterior, nada mais sendo do que criptoativos que são empregados para saldar transações. Os criptotokens, por sua vez, seriam divididos em utility tokens, que garantem o acesso a certas funcionalidades da plataforma (como o direito de utilização gratuito de determinado aplicativo blockchain, por exemplo) e os equity tokens ou security tokens, que garantem desde o direito à divisão de lucros decorrentes da utilização e desenvolvimento de determinado empreendimento, até mesmo a participação societária na start-up que desenvolve o projeto. São esses últimos os possivelmente enquadrados como valores mobiliários, na medida em que confiram direito de participação, parceria ou de remuneração aos seus detentores. 34 FRANCO, André; BAZAN, Vinícius. Criptomoedas: Melhor que Dinheiro. São Paulo:Ed. Empiricus, 2018. p. 115-128.
  • 29. III. NOÇÕES GERAIS DA REGULAÇÃO APLICÁVEL AO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL 3.1. Introdução Vistos os principais aspectos atintentes aos criptoativos, cumpre delinearmos noções gerais indispensáveis à sua análise sob o ponto de vista jurídico. Para tanto, o presente capítulo concentrar-se-á em descrever os principais aspectos regulatórios aplicáveis ao Sistema Financeiro Nacional, para que se possam identificar os agentes envolvidos e, consequentemente, o escopo da incidência normativa que esses instrumentos atraem. A escolha pelas agências componentes do Sistema Financeiro Nacional se encerra pois, como já visto, o comportamento dos criptoativos no comércio tem atraído riscos ainda pouco mensuráveis sob a perspectiva de políticas públicas monetárias positivas, como aquela realizada pelo Conselho Monetário Nacional, amparado pela supervisão do Banco Central do Brasil, bem como as autoridades dos mercados de capitais, cuja supervisão no brasil fica a cargo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Como se verá na sequência, o que quando do surgimento dos criptoativos aparentava ser um conflito de competência, hoje em dia já se mostra relativamente consolidada a atuação da CVM na supervisão desse mercado, uma vez que é a autoridade que, inclusive, já está sendo consultada sobre procedimentos de Initial Coin Offerings, tendo até mesmo divulgado decisão definindo que um token não seria valor mobiliário para fins da Lei n 6.395/. Isso se sustenta pelo fato de que a autoridade monetária não está apta a lidar com um ativo que não se comporta como moeda, ainda que tenha sido concebido como um meio de pagamentos35 . Os riscos advindos dessa tecnologia, que podem, em larga escala, vestir-se de riscos sistêmicos, mais aliam-se ao fato de que os criptoativos tem sido empregados na 35 Nesse sentido, ver Capítulo II supra.
  • 30. forma de fração de investimento, como verdadeiro Contrato de Investimento, como se verá a seguir. Como a experiência internacional vem confirmando, deve-se definir uma emissão pela natureza do token, de modo que a análise, assim como a do valor mobiliário, deve ser feita caso a caso. Além desses temas, o presente capítulo buscará lançar mão das bases teóricas necessárias ao entendimento completo dos conceitos que serão abordados. Nesse sentido, também serão abordadas discussões relevantes a cerca dos conceitos que permeiam a regulação do Sistema Fincanceiro Nacional, como o debate sobre a definição de instituição financeira. Para fins de coesão e melhor encadeamento, o debate acerca do conceito de valores mobiliários, mais atinado às Initial Coin Offerings, será abordado no capítulo a seguir. 3.2 Sistema Financeiro Nacional: Panorama regulatório aplicável aos criptoativos As Leis nº 4.595/64, e nº 4.728, de 14 de julho de 1965 (“Lei de Reforma Bancária"), conforme alterada, são responsáveis por regular as Instituições Financeiras Brasileiras. O Artigo 17 36 da Lei de Reforma Bancária estabelece o conceito de Instituições Financeiras, que as determina conforme as atividades que desempenham. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência buscaram elucidar os fatores que definitivamente distinguiriam essa atividade, concluindo que seu aspecto primordial e indispensável para sua definição, seria o conhecido binômio bancário: tomar dinheiro emprestado a crédito e dá-lo também por empréstimo. Sendo assim, de acordo com os ensinamentos de Salomão Neto37 , para que haja atividade privativa de Instituição Financeira, deve existir a captação e repasse cumulativo de recursos. 36 “Artigo 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”. 37 SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2° Edição. São Paulo: Atlas, 2014, página 29.
  • 31. De forma que os elementos dessa atividade são: (a) a captação de recursos de terceiros em nome próprio, (b) seguida de repasse financeiro através de operação de mútuo, (c) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos recursos repassados em relação à dos recursos coletados, (d) desde que a captação seguida de repasse se realize em caráter habitual. Conforme o entendimento majoritário dos doutrinadores, as Instituições Financeiras privadas no Sistema Financeiro Nacional (“SFN”) podem ser classificadas em nove diferentes espécies, classificando-as preliminarmente em instituições bancárias (i.e., autorizadas a captar recursos junto ao público sob a forma de depósitos à vista, com o que obtêm o efeito multiplicador da moeda) e instituições não bancárias (não autorizadas a captar recursos dessa forma). Inicialmente, cabe analisar o conceito de instituição financeira, cuja definição legal é dada pelo artigo 17 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (“Lei 4.595/64”), nos seguintes termos: Art. 17 - Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.” Eventual prática de atividade exclusiva de instituição financeira está sujeita às sanções previstas no § 7º do artigo 44 da Lei 4.595/64, as quais se aplicam à empresa e a seus administradores, conforme segue: Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente: (...)
  • 32. § 7º Quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como instituição financeira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco Central da Republica do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo [multa pecuniária variável] e detenção de 1 a 2 anos, ficando a esta sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e administradores.” O caráter excessivamente amplo e impreciso do artigo 17 da Lei 4.595/64 deriva basicamente da indefinição sobre o que sejam atividades de “coleta”, “intermediação” ou, ainda “aplicação” de recursos financeiros. Há questionamentos, ainda, se tais atividades devem ocorrer concomitantemente para que os requisitos formais na Lei 4.595/64 sejam atendidos. Essas contradições impõem a necessidade de analisar o conceito de instituição financeira de modo mais aprofundado. Há diferentes posições em relação aos elementos que configuram a atividade privativa de instituição financeira (“coleta, intermediação, aplicação”). Se interpretada de forma literal, a norma leva à conclusão de que não é necessária a concomitância desses três elementos para configurar atividade privativa de instituição financeira, em virtude da conjugação “ou”. No entanto, há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser considerada uma instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no “caput” do artigo 17 da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Nesse sentido é o entendimento de Nelson Eizirik38 : Portanto, somente ocorrendo a interligação das atividades relacionadas – coleta, intermediação e aplicação de recursos de terceiros – poderão ficar caracterizadas atividades privativas de instituições financeiras. 38 EIZIRIK, Nelson. Caracterização do Exercício Irregular da Atividade Privativa de Instituição Financeira. In: CARVALHOSA, Modesto e EIZIRIK, Nelson. Estudos de Direito Empresarial. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 523-531.
  • 33. Wilson do Egito Coelho, ex-consultor jurídico do Banco Central do Brasil, em estudo apresentado logo após a edição da Lei 4.595/64 já compartilhava do mesmo entendimento39 : (...) não é possível considerar como instituição financeira a pessoa jurídica pública ou privada que se dedique unicamente a aplicar recursos financeiros independentemente da coleta e intermediação dos mesmos. Esta impossibilidade baseia-se no fato de a aplicação de recursos financeiros – operação ativa, por excelência das instituições financeiras – não pode ser apreendida isoladamente, mas somente em conjunto com os dois outros elementos, integrantes, indissociáveis da unidade conceitual de instituição financeira, quais sejam, a coleta e a intermediação de recursos financeiros. Eventual realização de operações ou atividades vedadas, não autorizadas ou em desacordo com a autorização concedida pelo Banco Central do Brasil, conforme artigo 3º, II da Lei 13.506 de 13 de novembro de 2017 está sujeita às sanções previstas no artigo 5º do referido diploma, as quais se aplicam à empresa e a seus administradores, conforme segue: “Art. 5o São aplicáveis as seguintes penalidades às pessoas mencionadas no art. 2o desta Lei, de forma isolada ou cumulativa: (...) I - admoestação pública; II - multa; III - proibição de prestar determinados serviços para as instituições mencionadas no caput do art. 2o desta Lei; IV - proibição de realizar determinadas atividades ou modalidades de operação; 39 COELHO, Wilson do Egito. Empréstimo de dinheiro por particulares: quando se caracteriza operação privativa dos bancos. Revisa da OAB, V. 2, n. 4, p. 341
  • 34. V - inabilitação para atuar como administrador e para exercer cargo em órgão previsto em estatuto ou em contrato social de pessoa mencionada no caput do art. 2o desta Lei; VI - cassação de autorização para funcionamento.” Nos últimos anos, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“CRSFN”) proferiu decisões em ambos os sentidos, alternando seu entendimento ao longo do tempo. Até o ano 2000, existia uma jurisprudência relativamente pacífica no sentido de que, para a caracterização de uma instituição financeira, seria preciso que as atividades mencionadas no “caput” do artigo 17 da Lei 4.595/64 fossem exercidas pela entidade de maneira concomitante, não isolada40 . No entanto, decisões mais recentes do CRSFN vêm adotando uma intepretação literal do dispositivo em questão. Nesse sentido é a seguinte decisão do CRSFN prolatada em novembro de 2013: “Por uma análise semântica, a utilização da partícula "ou" demonstra que é necessária para a caracterização da atividade de instituição financeira somente uma das atividades, sendo desnecessária a concomitância de captação, intermediação e aplicação”. Analisando as decisões mais recentes do CRSFN, a jurisprudência parece estar adotando uma interpretação literal do artigo 17 da Lei 4.595/64 apenas de forma a considerar como atividade financeira aquelas operações que, embora sejam tipicamente bancárias, não necessariamente contenham os três elementos. 40 Conforme decisão proferida no Recurso nº 3832 (Pricewaterhousecoopers Auditores Independentes vs. BACEN), julgado em 15.9.2004: “A esse respeito, comunga-se do entendimento que define uma entidade como instituição financeira nos casos em que haja cumulação de captação, intermediação e aplicação de recursos de terceiros. E, mesmo assim, se os recursos forem captados de forma difusa do público e não de pessoas jurídicas específicas, em número pequeno e determinado. Também necessário, para materialização de instituição financeira, que haja caráter habitual, a atividade seja feita de forma profissional e com os riscos inerentes à especulação.”
  • 35. Por exemplo, operações de empréstimo realizadas com profissionalismo e habitualidade, mas com a utilização de recursos próprios, sem captação de recursos de terceiros. É o que se observa na seguinte decisão do CRSFN41 : [o] entendimento de que seria necessária a concomitância é absolutamente incompreensível, uma vez que as instituições financeiras não realizam necessariamente as três atividades. Os bancos, por exemplo, captam recursos junto aos seus clientes e aplicam tais recursos, emprestando-os aos tomadores. Com relação especificamente à atividade de intermediação, cabe ainda observar que há duas interpretações possíveis, utilizadas na doutrina e na jurisprudência. A primeira é partidária da interpretação de que a intermediação apenas surge quando há, de um lado, uma captação e, de outro, uma aplicação. Ou seja, seria, nas palavras de Wilson do Egito Coelho, a operação que surge da “inter-relação” da coleta e aplicação. Uma segunda possível interpretação, que inclusive consta de outra decisão do CRSFN, refere-se à atividade dos administradores de recursos de terceiros, das distribuidoras e das corretoras de valores. 3.3. A classificação das atividades privativas de instituições financeiras e sua correlação com a circulação de criptoativos Os preceitos normativos genéricos aplicáveis a requerimentos propostos ao Banco Central para a obtenção ou constituição de Instituições Financeiras estão determinados na Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.122, de 2 de agosto de 2012. Existem determinadas restrições para que se possa ser constituída uma Instituição Financeira privada, dentre elas, a necessidade de autorização pelo Banco Central do Brasil 41 Vide decisão proferida nos autos do Recurso CRSFN nº 5783 (Consórcio Nacional GM Ltda. vs. BACEN), julgado em 29.3.2005.
  • 36. para entrar em funcionamento. Ademais, deve ser ressaltado que, de acordo com a Constituição Federal do Brasil, a participação do capital estrangeiro em Instituições Financeiras, está sujeita além da prévia aprovação do Banco Central do Brasil, além disso, usualmente os requerimentos referentes a aumento de participação estrangeira no SFN necessita da edição de um decreto emanado pelo Poder Executivo. Deve ser ressaltado, no que tange as aquisições de participações em Instituições Financeiras brasileiras que já sejam detidas, direta ou indiretamente, por estrangeiros, o decreto presidencial não é aplicável, uma vez que a aquisição referida não altera de nenhuma forma o grau de participação estrangeira no SFN. Conforme elucidado por Nelson Abraão42 , a organização institucional do Sistema Financeiro Nacional foi definida pela Lei da Reforma Bancária, que originou o Conselho Monetário Nacional (“CMN”), que tem como uma de suas finalidades a fiscalização das políticas monetárias e cambiais voltadas para o desenvolvimento econômico e social bem como pela operação do sistema financeiro, e conferiu poderes ao Banco Central para que o mesmo possa emitir moeda e exercer o controle sobre o crédito. Os órgãos regulatórios e fiscalizadores abaixo compõem o Sistema Financeiro Nacional: (i) Conselho Monetário Nacional; (ii) Banco Central; (iii) Comissão de Valores Mobiliários; (iv) Superintendência de Seguros Privados; e (v) Secretaria de Previdência Complementar. O Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional são responsáveis por regular o setor bancário do Brasil, já a Comissão de Valores Mobiliários é responsável pelo 42 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p 66
  • 37. desenvolvimento e implementação das políticas do CMN que dizem respeito ao Mercado de Valores Mobiliários. 3.3.1 Conselho Monetário Nacional O Conselho Monetário Nacional é responsável pela formulação e supervisão global das políticas monetária, de crédito, orçamentária, fiscal e de dívida pública. O CMN tem por finalidade: (i) Adaptar o volume dos meios de pagamento às necessidades da economia nacional; (ii) Regular o valor interno da moeda; (iii) Regular o valor externo da moeda e o equilíbrio na balança de pagamento do País; (iv) Orientar a aplicação de recursos das Instituições Financeiras; (v) Propiciar o aperfeiçoamento dos recursos das instituições e instrumentos financeiros; (vi) Zelar pela liquidez e solvência das Instituições Financeiras; (vii) Coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e da dívida pública; e (viii) Definir a política a ser observada na organização e no funcionamento do mercado de valores mobiliários brasileiro. O Ministro da Fazenda ocupa a presidência do Conselho Monetário Nacional, o qual é composto também pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e pelo Presidente do Banco Central do Brasil.
  • 38. 3.3.2. Banco Central do Brasil A Lei da Reforma Bancária atribuiu poderes ao Banco Central do Brasil para instituir as políticas monetárias e de crédito determinadas pelo CMN, além de fiscalizar as Instituições Financeiras sejam elas dos setores público ou privado, submetendo-lhes às penas estabelecidas, caso haja algum descumprimento normativo. Dentre as suas principais atribuições estão: (i) emitir papel-moeda e moeda metálica; (ii) executar os serviços do meio circulante; (iii) receber recolhimentos compulsórios e voluntários das instituições financeiras; (iv) realizar operações de redesconto e empréstimo às instituições financeiras; (v) regular a execução dos serviços de compensação de cheques e outros papéis; (vi) efetuar operações de compra e venda de títulos públicos federais; (vii) exercer o controle de crédito; (viii) exercer a fiscalização das instituições financeiras; (ix) autorizar o funcionamento das instituições financeiras; (x) estabelecer as condições para o exercício de quaisquer cargos de direção nas instituições financeiras; (xi) vigiar a interferência de outras empresas nos mercados financeiros e de capitais; e (xii) controlar o fluxo de capitais estrangeiros no país.
  • 39. O Presidente da República é o responsável pela nomeação do Presidente do Banco Central, para exercício do cargo por tempo indeterminado, tal nomeação é sujeita à ratificação pelo Senado Federal. 3.3.4 A Comissão de Valores Mobiliários Outro componente do Sistema Financeiro Nacional, com sede e foro na Cidade do Rio de Janeiro e jurisdição em todo território nacional, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) consiste em uma autarquia ligada ao Ministério da Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária. A CVM tem por finalidade, dentre outras, a implementação das políticas do CMN referente ao mercado de valores mobiliários, sendo a autarquia competente para fiscalizar regulamentar e desenvolver esse mercado, observando a Lei do Mercado de Valores Mobiliários, bem como a Lei 6.404/76. É atribuído à CVM, regular a fiscalização e inspeção das companhias abertas, a negociação e intermediação nos mercados de valores mobiliários, regular e fiscalizar o Mercado de Valores Mobiliários, como instrumento de captação de recursos para as empresas, a organização, funcionamento e operação das bolsas de valores, dentre outras. A administração da CVM é composta por um Presidente e quatro Diretores, sendo que devem ter reputação ilibada e reconhecida competência em matéria de mercado de capitais, os mesmos devem ser nomeados pelo Presidente da República, e serão nomeados apenas após a aprovação do Senado Federal. 3.3 A natureza jurídica das atividades de uma instituição financeira e sua relação com os criptoativos. O conceito de instituição financeira decorre da caracterização das atividades que tais entidades desempenham, para tanto o legislador brasileiro espelhou-se nas definições especialmente nos países de Civil Law para estabelecer as atividades privativas de
  • 40. instituição financeira cuja, por si só, coloca uma determina instituição no rol de entidades que compõem este gênero. Entretanto, o legislador brasileiro não distinguiu assertivamente como ocorreu na legislação francesa o gênero “instituição financeira” da espécie “banco”, de forma que as definições adotadas pelo ordenamento jurídico induzem a uma confusão entre tais institutos. A delimitação do conceito de instituição financeira encontra-se no artigo 17 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 (“Lei 4595/64”), que regulamenta o Sistema Financeiro Nacional, a seguir transcrito: Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual Conforme afirma Nelson Abraão, o ordenamento jurídico brasileiro não distingue o gênero “instituição financeira” da espécie “banco” equiparando ambos os conceitos. A confusão trazida pelo artigo supramencionado decorre da equiparação trazida pelo legislador de as atividades principais e acessórias. Ora, a caracterização de uma atividade empresarial deve estar baseada na atividade principal desempenhada pelo empreendedor e não pelas atividades acessórias, de forma que logicamente o conceito de instituição financeira deveria derivar das atividades principais desempenhadas por tais instituições. Nos termos da definição de instituição financeira nos termos do art. 17 da Lei 4.595/64 o conceito de instituição financeira adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é composto por quatro elementos principais: coleta, intermediação ou aplicação de recursos próprios ou de terceiros e a custódia de valores de propriedade de terceiros.
  • 41. Se interpretada de forma literal, a norma leva à conclusão de que não é necessária a concomitância desses 3 (três) elementos para configurar atividade privativa de instituição financeira, em virtude da conjugação “ou”. Não obstante, na doutrina nacional há quem defenda que uma determinada entidade apenas pode ser considerada uma instituição financeira se desempenhar as atividades mencionadas no “caput” do artigo 17 da Lei 4595/64 de maneira concomitante, não isolada. Entre O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“CRSFN”), analisando o Recurso nº 13.128, de relatoria do Conselheiro Arnaldo Penteado Laudísio deliberou que diante das constatações do caso, ficou caracterizada a irregularidade consistente na realização de operações privativas de instituição financeira, com infringência ao contido no caput do artigo 17, e, caput e § 1º, do artigo 18, da Lei 4.595/64. O Conselheiro Arnaldo Penteado Laudísio, relator do caso, deixou registrado em seu voto que, para caracterização de exercício de atividade privativa de instituição financeira, basta, apenas, a configuração de um dos elementos “captação”, “intermediação” ou “aplicação de recursos próprios ou de terceiros”. Os demais conselheiros acompanharam o relator. Neste sentido, observa-se uma tendência do CRSFN de manter sua jurisprudência, com viés conservador, ampliando a interpretação do artigo 17 da Lei nº. 4.595/64 para considerar como instituição financeira a entidade que pratica isoladamente qualquer das atividades descritas no caput da norma - captar, intermediar ou aplicar - principalmente se há indícios de fraude nas operações sob análise de referido órgão. Conceito semelhante é adotado pelo artigo 1º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986 (“Lei nº 7492/86”), que dispõe sobre os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: Art. 1º. Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.
  • 42. A Lei 7.492/86 traz algumas alterações ao conceito de instituição financeiro implementado pela Lei 4.595/64. A definição adotada pela Lei 7.492/86 exclui a referência à atividade de captação, intermediação ou aplicação de recursos próprios, mantendo para fins do conceito de instituição financeira apenas a prática de tais atividades com relação a recursos de terceiros. Ademais, referida lei determina que a instituição financeira pode ser caracterizada pela “custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários”. Com base nesse dispositivo e na evolução do legislativo na determinação de ambas as definições, Ernane Gâlveas conceituou como instituição financeira: (...) as empresas que desempenham, no mercado, funções de intermediárias entre os que têm recursos ou economias disponíveis e os que necessitam de financiamento para seus gastos de consumo ou de investimento. Essas empresas servem de caixa único para a comunidade (depósitos bancários) e efetuam o transporte financeiro da produção, provendo os recursos necessários ao processo produtivo, através de financiamentos para a aquisição de matérias- primas, para vendas a prazo de bens de consumo etc. Tal definição, entretanto, conforme afirma Fábio Konder Comparato considera principalmente as atividades desempenhadas por bancos, e não por toda e qualquer instituição financeira, dado que a “formação de caixa único” está diretamente ligada a captação de depósitos, atividade privativa da espécie “bancos” e não necessariamente do gênero “instituição financeira. Desta forma, importante distinguir ambos os conceitos, uma vez que a instituição financeira é a entidade que negocia créditos com atividade principal ou acessória, influenciando na velocidade da circulação da moeda, enquanto os bancos atuam na efetiva criação da moeda escritural, conforme afirma Comparato em seus comentários.
  • 43. Referido conceito, entretanto, se mostra ultrapassado diante do marco regulatório criado em 2013 no qual foi criado o conceito de instituição de pagamento a fim de regular a emissão de cartões pré e pós pagos e a criação de moeda escritural no âmbito do mercado de meios de pagamentos, descrita no capítulo 2 do presente trabalho. Neste sentido, cabe mencionar que a definição adotada pelo legislador e regulador brasileiro determina expressamente que instituições de pagamento não são instituições financeiras, mas entidades distintas sujeitas a conceituação e arcabouço legal próprias. Diante de tal atualização legislativa restou premente atentar aos termos utilizados na conceituação de instituição financeira de forma a não resultar na confusão de ambos os institutos. Assim sendo, resta utilizar-se de elemento pacífico na doutrina para a entre o gênero “instituição financeira” e a espécie “banco”: a origem dos fundos utilizados pela entidade em suas operações. Enquanto a instituição financeira utiliza apenas fundos de seus próprios canais, os bancos utilizam também os fundos que eles recebem profissionalmente do público mediante recebimento de depósitos. V. ANÁLISE DO IMPACTO REGULATÓRIO INTERNACIONAL SOBRE OS CRIPTOATIVOS Um aspecto interessante mercado sob análise e já problematizado anteriormente neste trabalho é a fluidez dos termos utilizados para descrever os diferentes produtos criados sob a forma de criptoativos. Como já dito, embora as várias formas do que são amplamente conhecidas como "criptomoedas" sejam semelhantes, pois são baseadas principalmente no mesmo tipo de tecnologia descentralizada conhecida como blockchain com criptografia inerente, a terminologia usada para descrevê-las varia muito de uma jurisdição para outra. Em relatório internacional divulgado a respeito, alguns dos termos usados pelos países para fazer referência à criptomoeda incluem: moeda digital (Argentina, Tailândia e Austrália), commodity virtual (Canadá, China, Taiwan), cripto-token (Alemanha),
  • 44. token de pagamento (Suíça), moeda digital (Itália e Líbano), moeda eletrônica (Colômbia e Líbano) e ativo virtual (Honduras e México)43 . Uma das ações mais comuns identificadas nas jurisdições pesquisadas são os avisos emitidos pelo governo sobre as armadilhas de investir nos mercados de criptomoeda44 . Tais alertas, em sua maioria emitidos por bancos centrais, são em grande parte projetados para educar os cidadãos sobre a diferença entre as moedas reais, que são emitidas e garantidas pelo Estado, e moedas criptográficas, que não possuem curso forçado, como já visto. A maioria dos avisos governamentais emitidos pelos países analisados menciona o risco adicional resultante da alta volatilidade associada aos criptoativos e do fato de que muitas das organizações que facilitam essas transações não são regulamentadas. A maioria também observa que os cidadãos que investem em criptomoedas o fazem por sua própria conta e risco e que nenhum recurso legal está disponível para eles em caso de perda. Muitas das advertências emitidas por vários países também observam as oportunidades que os criptoativos criam para atividades ilegais, como lavagem de dinheiro e terrorismo. Alguns dos países pesquisados vão além de simplesmente avisar o público e expandiram suas leis sobre lavagem de dinheiro, contraterrorismo e crimes organizados para incluir os mercados de criptomoedas, e exigem que bancos e outras instituições financeiras facilitem esses mercados para conduzir todas as exigências devidas tais leis. Por exemplo, a Austrália45 , o Canadá e recentemente promulgaram leis 43 Traduções literais da terminologia listada no Relatório elaborado pela Library of Congress norte- americana. <Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/cryptocurrency/cryptocurrency-world- survey.pdf> 44 No Brasil, como será explorado a seguir, a CVM e o BACEN emitiram comunicados ao mercado alertando sobre os riscos do emprego desses ativos, bem como delineando a interpretação da atual regulamentação aplicável a esses mercados emergentes. 45 Em agosto de 2015, o Comitê de Referências Econômicas do Senado do Parlamento Australiano publicou um relatório, após a conclusão de uma consulta sobre “como desenvolver um sistema regulatório eficaz para moeda digital, o potencial impacto da tecnologia de moeda digital na economia australiana e como a Austrália pode tirar proveito da tecnologia de moeda digital.” O governo respondeu às recomendações do Comitê em maio de 2016, que culminou na adequação do tratamento fiscal de criptomoedas, que observou aspectos das seguintes ações do Australian Taxation Office (ATO). No que diz respeito à prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do combate ao terrorismo, o governo australiano apresentou um projeto de lei ao Parlamento em agosto de 2017 para que os operadores de corretoras digitais sejam abrangidos pelo regime de regulamentação do aplicável, conforme recomendado pela comissão do Senado A lei foi promulgada em dezembro de 2017 e as disposições relevantes entraram em vigor em 3 de abril de 2018.
  • 45. para levar as transações de criptomoeda e instituições que as facilitam sob o âmbito das leis de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Algumas jurisdições foram ainda mais longe e impuseram restrições aos investimentos em criptomoedas, cuja extensão varia de uma jurisdição para outra. Alguns (Alemanha, Bolívia, Marrocos, Nepal, Paquistão e Vietnã) proíbem toda e qualquer atividade envolvendo criptomoedas. O Catar e o Bahrein têm uma abordagem um pouco diferente na medida em que impedem seus cidadãos de se engajarem em qualquer tipo de atividade que envolva criptomoedas no local, mas permitem que os cidadãos o façam fora de suas fronteiras. Há também países que, apesar de não proibirem seus cidadãos de investir em criptoativos, impõem restrições indiretas impedindo que instituições financeiras de suas fronteiras facilitem transações envolvendo criptomoedas (Bangladesh, Irã, Tailândia, Lituânia, Lesoto, China46 e Colômbia). Um limitado número de países regulamenta os ICOs. Das jurisdições que tratam das ICOs, algumas (principalmente China, Macau e Paquistão) as banem completamente, enquanto a maioria tende a se concentrar em regulá-las. Na maioria destes últimos casos, a regulamentação das ICOs e das instituições reguladoras relevantes varia dependendo de como uma oferta é categorizada. Por exemplo, na Nova Zelândia, obrigações específicas podem ser aplicadas dependendo se o token oferecido é categorizado como dívida, segurança, segurança patrimonial, produto de investimento gerenciado ou derivativo47 . 46 Em 3 de dezembro de 2013, autoridades monetárias chinesas emitiram em conjunto um aviso alertando o público sobre os riscos do bitcoin, definida como “por natureza uma commodity virtual especial”, que “não tem o mesmo status legal de moeda” e “não pode e não deve ser circulada no mercado como moeda”. De acordo com o aviso, os bancos e as instituições de pagamento na China estão proibidas de negociar bitcoins. Instituições financeiras e de pagamento são proibidas de usar preços de bitcoin para produtos ou serviços ou de compra ou venda de bitcoins, nem podem fornecer serviços relacionados a bitcoins diretos ou indiretos, incluindo registro, negociação, liquidação, compensação ou outros serviços; aceitar bitcoins ou usar bitcoins como uma ferramenta de liquidação; ou negocie bitcoins com yuan chinês ou moedas estrangeiras. 47 Em outubro de 2017, a autoridade monetária (Financial Markets Authority - FMA) neozelandesa publicou informações sobre criptomoedas e os riscos associados a elas, como parte de sua orientação sobre as opções de investimento. Em particular, destaca os seguintes três pontos sobre criptomoedas: são ativos de alto risco e altamente voláteis; seu preço pode subir e descer muito rapidamente; e não são regulamentados na Nova Zelândia A FMA também publicou comentários sobre ofertas iniciais de moedas (ICOs) e serviços de criptomoeda (incluindo trocas, carteiras e corretagem). As informações referem-se à aplicação do marco regulatório existente para produtos e serviços financeiros. Com relação aos ICOs, a orientação afirma que: Estar ou não
  • 46. Da mesma forma, na Holanda, as reservas aplicáveis a um ICO específico dependem de o token ofertado ser considerado uma garantia ou uma unidade em um investimento coletivo, uma avaliação feita caso a caso. Nem todos os países vêem o advento da tecnologia blockchain e criptomoedas como uma ameaça, embora por diferentes razões. Parte da jurisdição pesquisada, apesar de não reconhecer as criptomoedas como moeda legal, vê um potencial na tecnologia por trás disso e está desenvolvendo um regime regulatório favorável à criptomoeda como um meio de atrair investimentos em empresas de tecnologia que se destacam neste setor, como Espanha48 , Bielorrússia, Ilhas Cayman e Luxemburgo49 . Algumas jurisdições estão procurando ir ainda mais longe e desenvolver seu próprio sistema de criptomoedas. Esta categoria inclui uma lista diversificada de países, como as Ilhas Marshall, a Venezuela, os países membros do Banco Central do Caribe Oriental (ECCB) e a Lituânia. Além disso, alguns países que emitiram avisos ao público sobre as armadilhas dos investimentos em criptomoedas também determinaram que o tamanho do mercado de criptomoedas é muito pequeno para ser motivo de conteúdo suficiente para justificar a regulamentação e /ou a proibição neste momento (Bélgica, África do Sul e Reino Unido)50 . Uma das muitas questões que surgem de permitir investimentos e o uso de criptomoedas é a questão da tributação. A esse respeito, o desafio parece ser como categorizar as criptomoedas e as atividades específicas que as envolvem para fins de sujeito à regulamentação depende se o ICO inclui um "produto financeiro" está sendo oferecido a investidores de varejo na Nova Zelândia (ou seja, uma "oferta regulada" está sendo feita). Se um token oferecido por meio de um ICO é um produto financeiro e, em caso afirmativo, que tipo de produto depende das características específicas e da substância econômica do token. A FMA então explica como um token pode ser considerado um dos quatro tipos de produtos financeiros estabelecidos na Lei de Conduta dos Mercados Financeiros de 2013 (sendo títulos de dívida, ações, produtos de investimento gerenciado e derivativos), e se sim, quais são as obrigações do emissor. 48 Comunicado Conjunto de la Comisión Nacional del Mercado de Valores (CNMV) y Banco de España [Joint Press Statement by CNMV and Banco de España on “Cryptocurrencies” and “Initial Coin Offerings” (ICOs)] (Feb. 8, 2018). <Disponível em: https://www.cnmv.es/loultimo/NOTACONJUNTAriptoES%20final.pdf> 49 España Busca Aprobar una Legislación Amistosa para las Criptomoneda. Spain Seeks to Approve Friendly Legislation Towards Cryptocurrencies], Harwareate (Feb. 18, 2018). <Disponível em: https://hardwareate.com/espana-busca-aprobar-una-legislacion-amistosas-las-criptomonedas> 50 As Ilhas Marshall promulgaram legislação autorizando o lançamento de sua “criptomoeda” para servir como moeda de curso legal para cidadãos e empresas na ilha. A moeda será conhecida como soberana, ou SOV, e servirá como “moeda de curso legal das Ilhas Marshall para todas as dívidas, encargos públicos, impostos e contribuições”. Circulará como moeda legal além do dólar americano O SOV será introduzido em uma oferta inicial de moeda (ICO), após a qual os residentes das Ilhas Marshall receberão os meios para manter, salvar e conduzir transações com o SOV, e os comerciantes nas Ilhas Marshall terão acesso a um aplicativo de computador que permitirá que eles recebam pagamentos feitos com o SOV.
  • 47. tributação. Isso é importante principalmente porque os ganhos obtidos com mineração ou venda de moedas criptografadas são categorizados como renda e os ganhos de capital invariavelmente determinam a faixa de imposto aplicável. Os países pesquisados classificaram as criptomoedas de maneira diferente para fins fiscais, conforme ilustrado pelos exemplos a seguir: Principalmente devido a uma decisão de 2015 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), os ganhos em investimentos em criptomoeda não estão sujeitos ao imposto sobre valor agregado nos Estados-Membros da União Europeia51 . Na maioria dos países pesquisados que têm ou estão em processo de desviar as regras de tributação, a mineração de criptomoedas também está isenta de tributação. No entanto, na Rússia52 , a mineração que excede um certo limite de consumo de energia é tributável. Em um pequeno número de jurisdições pesquisadas, as criptomoedas são aceitas como meio de pagamento. A Ilha de Man e o México também permitem o uso de criptomoedas como meio de pagamento junto com sua moeda nacional53 . Assim como os governos ao redor do mundo que financiam vários projetos ao segregar títulos do governo, o governo de Antígua e Barbuda permite o financiamento de projetos e instituições de caridade por meio de ICOs apoiadas pelo governo54 . As diferentes reações das distintas autoridades regulatórias globais delimitam duas problemáticas centrais no que diz respeito à regulamentação desses ativos. A um, a autoridade competente para fazê-lo, tendo em vista que as reações regulatórias oscilaram, 51 O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decidiou no caso Skatterverket v. David Hedqvist que o imposto sobre valor agregado não incidiria sobre os estados-membro da União Europeia. 52 Lei nº. 419059-7, Federal Law of the Russian Federation on Digital Financial Assets, <Disponível em: http://asozd2c.duma. gov.ru/addwork/scans.nsf/ID/E426461949B66ACC4325825600217475/$FILE/419059- 7_20032018_419059-7.PDF?OpenElement (em Russo) 53 A lei mexicana para Regulamentar Empresas de Tecnologia Financeira, promulgada em março de 2018, inclui um capítulo sobre operações com “ativos virtuais”. Este capítulo define ativos virtuais como representações de valor registradas eletronicamente e utilizadas pelo público como meio de pagamento para todos os tipos de transações legais, que só podem ser transferidas eletronicamente. Além disso, o México promulgou uma lei estendendo a aplicação de suas leis relativas à lavagem de dinheiro a ativos virtuais, exigindo, assim, que instituições financeiras que prestam serviços relacionados a esses ativos relatem transações que excedam determinados valores. 54 Comunicado à imprensa. CNET Antigua, The Government of Antigua and Barbuda Supports CNET’s Investment Development Projects and Charities Funded by the Initial Coin Offering for Development <disponível em: https://www.prnewswire.com/news-releases/the-government-of-antigua-and-barbuda- supports-cnets-investment-development-projects-and-charities-funded-by-the-initial-coin-offering-for- development-300605628.html>