Abordagem jurisprudencial do abandono afetivo no Brasil
1. 5. JURISPRUDÊNCIA
Não obstante a complexidade das relações familiares, há que se verificar o caráter
recente dos litígios referentes à temática do Abandono Afetivo, visto que as primeiras
demandas individuais ajuizadas no Sistema Judiciário Brasileiro remontam ao início dos anos
2000. Evidente, portanto, que o paradigma familiar tradicional, que considerava tal entidade
como uma entidade sedimentada por laços biológicos e com funções reprodutivas e
econômicas, conduzia a um cenário em que os Juízos eram provocados para decidir, em geral,
sobre direitos sucessórios ou acerca de partilha de bens. Portanto, apenas com a flexibilização
advinda da Principiologia Constitucional de 1988, que forçou a emergência de valores
relativos à pessoa humana, foi possível uma certa alteração no perfil dos pedidos judiciais,
diante de um compromisso ético das relações afetivas.
Nesse sentido, a primeira ação judicial que reconheceu a responsabilidade civil pelo
abandono afetivo ocorreu no ano de 2003, na 2ª Vara Cível da Comarca de Capoão da Coroa
(RS). Na ocasião, o genitor foi condenado ao pagamento de 200 salários mínimos à filha de
09 anos, com base no inadimplemento dos deveres do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Conforme o teor da sentença, o magistrado alegou que o Judiciário não pode obrigar ninguém
a ser pai, mas aquele que o aceita deve desincumbir-se da função. Ainda assim, no curso
processual, diante das ainda incipientes reflexões doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema,
o Ministério Público emitiu parecer no sentido da extinção da demanda com base na
impossibilidade jurídica do pedido. 1
No mesmo ano, a 31ª Vara Cível Central da Comarca de São Paulo reconheceu, com
base em perícia médica, o nexo causal entre os tratamentos psicológicos aos quais a
demandante foi submetida e a conduta omissiva do pai. Assim, o réu foi condenado a ressarcir
os valores advindos da ajuda médica, bem como ao pagamento de danos morais, visto que "a
paternidade não gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda,
portanto independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua
companhia". 2
Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no ano de 2004, indeferiu uma
ação de responsabilização civil por abandono afetivo com base no Princípio da Legalidade.
Ao considerar a ausência de amparo legal da referida pretensão, afirmou tratar-se de uma
1
2ª Vara Cível da Comarca de Capoão da Canoa, Rio Grande do Sul, Processo Cível º 141130012032-0, Juiz
Mário Romano Maggioni, Capão da Canoa, 15 set 2003.
2
Íntegra da sentença disponível em: Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 6, n. 25, ago/set
2005, p. 151-160.
2. demanda gananciosa e oportunista. No ano seguinte, o mesmo órgão colegiado negou pedido
indenizatório em litígio em que se afirmava conduta omissiva do genitor- que era, segundo a
autora, consciente do vínculo biológico- no reconhecimento da paternidade a fim de elidir
eventuais obrigações. Na hipótese, o relator alegou inexistência de má-fé do réu e não deu
provimento à Apelação.3
No entanto, o primeiro grande julgado referente ao tema sobreveio em 2005, em sede
de recurso especial apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça. No litígio, ajuizado na 19ª
Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, o demandante solicitava o recebimento de valores
indenizatórios a título de danos morais com base nos traumas advindos da ausência de
convivência familiar com o pai, que se separara da genitora quando o autor ainda era muito
jovem. Na defesa, alegou-se que a mãe criara múltiplos obstáculos aos contatos, não podendo
ser imputadas ao réu as sequelas psicopatológicas do filho. Nesse sentido, ao não identificar
correlação entre a eventual conduta omissiva e o dano, o juízo singular não deferiu o pedido.4
Ocorre, entretanto, que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais reformou o julgado, deu
provimento à apelação cível e condenou o réu ao pagamento dos danos morais ao
demandante. Em análise da referida decisão judicial, Maria Berenice Dias, em tom elogioso,
afirmou que, se os pais não conseguem dimensionar a necessidade de amar e de conviver com
os filhos, torna-se imperioso que a Justiça imponha de forma coacta a referida obrigação. 5
Assim, foi interposto o Recurso Especial 757. 411 na Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça. Na ocasião, a interpretação divergiu do Acórdão prolatado pelo TJ/MG ao
considerar que o abandono afetivo não poderia ser enquadrado como hipótese de ato ilícito.
Na fundamentação da tese vencedora, do Relator Ministro Fernando Gonçalves, ficou
assinalado que a previsão de perda do poder familiar ao genitor negligente( prevista no artigo
24 do ECA e no dispositivo de nº 1638, II, do Código Civil de 2002) era a mais a grave pena a
ser imputada e já cumpria satisfatoriamente a função sancionatória. Ademais, considerou-se
que eventual ressarcimento impossibilitaria a reconstrução do relacionamento familiar,
conforme o voto da relatoria: 6
“A questão da indenização por abandono moral é nova no Direito Brasileiro.
Há notícia de três ações envolvendo o tema, uma do Rio Grande do Sul,
outra de São Paulo e a presente, oriunda de Minas Gerais, a primeira
a chegar ao conhecimento desta Corte. A matéria é polêmica e alcançar-se
uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos problemas mais
instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos
3
Apelação Cível nº 2004.001.13664 (Relator Des. Mário dos Santos Paulo. j. 19/07/2004)
4
RECURSO ESPECIAL Nº 757.411 - MG (2005/0085464-3)
5
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.
417.
6
RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP (2009/0193701-9)
3. extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis
de reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com
a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja
repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e
transferida ao autor do fato. Assim situações anteriormente tidas como "fatos
da vida", hoje são tratadas como danos que merecem a atenção do Poder
Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa. Os que
defendem a inclusão do abandono moral como dano indenizável reconhecem
ser impossível compelir alguém a amar, mas afirmam que "a indenização
conferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao
cumprimento de seus deveres, mas atende duas relevantes funções, além da
compensatória: a punitiva e a dissuasória. No caso de abandono ou do
descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos
filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar,
antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24,
quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico,
com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser
imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente,
dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a
sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai
por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo
abandono moral.
Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica
com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e
vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão
de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor,
mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no
relacionamento amoroso.
Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a
indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de
afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao
contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida
durante o processo litigioso?
Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos
enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja
perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos. Por certo um litígio
entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver
acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do
pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto
o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem
mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com
outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido.
Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou
a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria
alcançada com a indenização pleiteada. Nesse contexto, inexistindo a
possibilidade de reparação a que alude o art.159 do Código Civil de 1916,
não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de
indenização. Diante do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento
para afastar a possibilidade de indenização nos casos de abandono moral.
4. Salutar, no entanto, a manifestação de Rodrigo da Cunha Pereira, que exerceu as
funções de advogado do demandante na lide, acerca do conteúdo decisório emitido pelo STJ.
Alegou, nesse sentido, que a perda do poder familiar termina por ser um prêmio ao genitor
omisso. Ademais, considerou que o argumento de agravamento das relações familiares pela
indenização era incabível, dado que o ajuizamento de um litígio nesse sentido já pressupunha
um autor descrente da possibilidade de revigorar os laços afetivos.7
Apesar do entendimento firmado pelo STJ, o cenário jurisprudencial após o ano de
2005 revelou uma contínua elevação do número de demandas de responsabilidade civil por
abandono afetivo, o que engendrou uma intensa controvérsia jurisprudencial, sobretudo nas
instâncias inferiores. Evidentemente, nos graus recursais, o precedente firmado pelo Resp.
757. 411 autorizava a reforma de boa parte dos julgados que reconheciam o caráter ilícito das
condutas omissivas ora tratadas. Não por outros motivos, o Tribunal reafirmou a tese
vencedora do Ministro Fernando Gonçalves durante o Resp. 514.350/SP, de relatoria do
Ministro Aldir Passarinho. 8
Em maio de 2012, no entanto, ocorreu uma mudança paradigmática da orientação
jurisprudencial da Corte quando do julgamento do Resp. 1.159.242. Na ocasião, houve
condenação do genitor ao pagamento de 200 mil reais por negação de assistência à filha
demandante durante a infância e a adolescência. A tese vencedora considerou que o amor
refoge aos lindes legais, mas o cuidado é corolário da liberdade de geração dos filhos, o que
levou a Ministra Relatora Nancy Andrighi a afirmar que “Amar é faculdade, cuidar é dever”.
O voto vencido do Ministro Massami Uyeda, no entanto, reafirmou os argumentos do
Resp 757.411 e acrescentou que o provimento do recurso acarretaria uma insegurança jurídica
pelo eventual ajuizamento em massa de demandas indenizatórias, o que provocaria uma
monetarização das relações afetivas e uma potencialização de mágoas íntimas. Por sua vez,
Paulo de Tarso Sanseverino seguiu votou a favor da condenação, mas alertou tratar-se de um
reconhecimento excepcional do dano moral e considerou a impossibilidade de enquadrar-se o
abandono afetivo como modalidade de responsabilidade civil extracontratual, de modo que
fixou entendimento intermediário.
7
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo. IN Revista Brasileira de
Direito das Famílias e Sucessões. Nº 29. Ago-Set 2012.
8
STJ- RECURSO ESPECIAL : RESP 514350 SP 2003/0020955-3
5. Ressalta-se, ademais, que o voto da Ministra Relatora considerou a responsabilidade
civil por abandono afetivo como ensejadora de danos morais in re ipsa, isto é, que tornam
desnecessária a comprovação por laudos ou perícias. Nesse sentido, criou-se uma contudente
dissidência doutrinária sobre a adequação da decisão, de forma que Flávio Tartuce criticou o
referido entendimento alegando que concretizava a possibilidade de condenações com base
em um abandono afetivo hipotético.9
Dessarte, o Resp. 1.159.242 representou mudança paradigmática da Jurisprudência
nacional, sobretudo ao esclarecer que a responsabilidade civil por abandono afetivo não
ensejava uma obrigação de amar, mas sim um adimplemento dos deveres de assistência
incumbidos aos genitores pelo Art. 227 da Constituição Federal. Assim, referida baliza
decisória orientou uma miríade de demandas individuais ajuizadas a partir de 2012, com
destaque para sentença da Vara da Fazenda Pública e de Registros de Cariacica (ES), que
reconheceu a possibilidade de retirada de sobrenome do genitor omisso. 10
Por fim, deve-se ressaltar que o reconhecimento da responsabilidade civil por
abandono afetivo pelo Superior Tribunal de Justiça não deve representar um deferimento
irrestrito dos pedidos ressarcitórios, dada a permanência da necessidade de aferição das
circunstâncias fáticas concretas a fim de verificar a constatação do nexo entre uma conduta
omissiva culposa e os danos morais ao filho. Por tal motivo, no ano de 2015, a Corte negou,
em sede de Recurso Especial, pedido indenizatório de servidora pública, com base na falta de
assistência do genitor. Na ocasião, não obstante tenham reafirmado o caráter ilícito do
abandono afetivo, os ministros verificaram que só houve comprovação da paternidade 38 anos
após o nascimento.11
No mesmo sentido, em outro julgado, o STJ recomendou prudência no julgamento das
demandas de abandono afetivo, diante da complexidade das relações familiares. Assim, a fim
de evitar a transformação do Judiciário em uma indústria indenizatória, o Tribunal negou a
pretensão da demandante, fruto de um relacionamento extraconjugal e reconhecida aos 10
anos, que solicitava ressarcimento por danos morais advindos do tratamento recebido do pai.
Na ocasião, os ministros verificaram que, embora o ideal fosse um contato maior, não houve
descumprimento total dos encargos da paternidade. 12
Conclui-se, portanto, que o amadurecimento democrático conduziu a um cenário no
qual o abandono afetivo é considerado ato ilícito, dado o descumprimento de um dever
9
PESTANA, Bruno Lima Soares. A Trajetória do Abandono Afetivo sob a ótica Jurisprudencial,
Doutrinária e Legislativa. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013, p. 47
10
Idem Ibidem. P. 63
11
RESP. 1.374.778/RS. Recurso Especial 2013/0039924-3
12
RESP. 1.493.125/SP- Recurso Especial 2014/0131352-4
6. jurídico advindo do Art. 227, da Lex mater. No entanto, tal conclusão não afasta a necessidade
de aferição das circunstâncias fáticas pelo magistrado.
7. jurídico advindo do Art. 227, da Lex mater. No entanto, tal conclusão não afasta a necessidade
de aferição das circunstâncias fáticas pelo magistrado.