Artigo da Dr. Rosa Vasconcelos, Juíza Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, para a Newsletter do mês de Outubro de 2020 da Delegação de Cascais da Ordem dos Advogados.
O impacto do Covid-19 no Mundo Judiciário: uma aplicação da Teoria da Relatividade
1. O impacto do COVID-19 no Mundo Judiciário: uma aplicação da
Teoria da Relatividade
Dado o tema em epígrafe, perdoar-se-á que me refira à opinião que se
diz que os chineses têm sobre a Revolução Francesa: “ainda é cedo
para dizer”. No caso, não é certamente necessário ser chinês para ter a
mesma opinião.
Até aqui podemos todos dizer, com um suspiro de alívio, que nos
Tribunais Judiciais as coisas não têm corrido mal.
Alinhavando conclusões com base no que aconteceu até agora – e
tendo bem presente que “o que hoje é verdade amanhã pode ser
mentira” – o que se pode dizer é que, por enquanto, a pandemia em
curso afectou menos os tempos do que os espaços da Justiça. A Teoria
da Relatividade, porém, aponta para uma concepção do tempo como
uma quarta dimensão do espaço, e os impactos da pandemia num e
noutro podiam servir para ilustrar como ambos se relacionam no
funcionamento do sistema judiciário.
Os tempos da Justiça
Quando, em Janeiro de 2020, surgiram as primeiras notícias do
coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-1 a generalidade dos Juízos
dos diversos Tribunais Judiciais do país apresentava pendências
processuais e tempos médios de duração dos processos muito
razoáveis, em muitas situações inferiores a um ano.
Levantado o estado de emergência e finda a suspensão dos prazos para
a prática de actos processuais nos processos de natureza não urgente
(artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e artigo 8º da Lei n.º
16/2020, de 29 de Maio) a generalidade dos Juízos dos diversos
Tribunais Judiciais do país ainda continua a apresentar pendências
processuais e tempos médios de duração dos processos razoáveis.
2. Entre outras razões, quer isto dizer que os Tribunais Judiciais são
estruturalmente robustos, resultado duma cultura de esforço e de
dedicação de todos os que neles trabalham e resultado também
do investimento consistente na Justiça dos últimos anos, desde a
reorganização judiciária de 2014 que apostou na especialização,
até às recentes medidas de apoio à generalização da tramitação
electrónica dos processos e à utilização diversificada das novas
tecnologias. No início da pandemia a generalidade dos Juízes, dos
Magistrados do Ministério Público e dos Oficiais de Justiça tinham
já condições para tramitar os processos à distância. E fizeram-no.
Não obstante a resiliência do sistema o impacto duma crise
económica e social, que continua a avolumar-se no horizonte,
naturalmente que se fará sentir de forma acentuada nos Tribunais,
particularmente nas jurisdições laboral, do comércio e de
execuções, obrigando ao reforço de meios humanos já hoje muito
depauperados.
Os espaços da Justiça
Se no imediato a pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-
2 não afectou de forma significativa a resposta dos Tribunais
Judiciais o seu impacto na organização do serviço tem constituído
um desafio para todos, em particular no que respeita ao modo e
condições de realização de audiências de julgamento e demais
diligências processuais. E neste particular, regista-se a colaboração
dos membros das Delegações da Ordem dos Advogados que têm
feito chegar aos Tribunais não só críticas mas também as
sugestões de melhoria.
A par dos Planos de Contingência inicialmente elaborados, com
definição dos procedimentos a adoptar em cada Tribunal em caso
de possível infecção pelo SARS-COV-2 e que, no essencial, se
reconduzem ao isolamento das pessoas com sintomatologia
associada ao COVID-19, ao contacto com o SNS e à avaliação da
necessidade de desinfeção de espaços, impõe-se no dia-a-dia
garantir que o funcionamento do Tribunal constitua o menor risco
possível para a saúde dos que nele trabalham e dos que a ele se
dirigem. A este respeito os Conselhos Superiores da Magistratura
e do Tribunais Administrativos e Fiscais, a Procuradoria Geral da
República e a Direção Geral da Administração da Justiça, em
articulação com a Direção Geral da Saúde fixaram medidas para
reduzir o risco de transmissão do vírus.
3. Delas constam orientações quanto ao distanciamento físico a
observar no atendimento presencial, nas audiências de
julgamento e nas demais diligências. E, ultrapassadas as
dificuldades iniciais de economato (obtenção de máscaras, de
viseiras e de produtos de desinfecção), tem sido precisamente
nestas áreas do atendimento e da realização de julgamentos e
demais diligências que os problemas têm surgido, agora que
está assente que em tempo de pandemia umas e outras
devem continuar a ser presenciais (artigo 6º-A da Lei n.º 1-
A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 16/2020, de 29
de Maio).
Ora, em nenhum Palácio da Justiça dos grandes centros
urbanos o número de salas de audiência disponíveis é
equivalente ao número de Magistrados. Nessa medida foi
necessário reajustar o tempo de atribuição de sala por Juízo e
por Juiz deixando para trás o tradicional “overbooking” e a
gestão centralizada de salas de audiência.
A mesma necessidade de distanciamento físico entre as
pessoas obrigou a abandonar a prática de realização de
diligências nos gabinetes de Magistrados Judiciais e do
Ministério Público aumentando a já grande pressão na
utilização de salas de audiência.
Ora – como uma versão hipotética da Teoria da Relatividade
prediria –, as alterações do espaço implicam alterações do
tempo, e não só tiveram de ser reagendados diversos
julgamentos, como é impossível voltar ao anterior ritmo de
agendamentos ao menos enquanto o vírus não for debelado.
Ou seja: a COVID-19 obrigou a alterar toda a organização dos
espaços e, em consequência, todo o modo de agendamento
dos julgamentos e das diligências nos Tribunais. E, como o
teletrabalho, a tramitação processual à distância e um olhar
mais atento para as questões da higiene, esta mudança que
veio para ficar.
Rosa Vasconcelos