Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
A Viagem dos Livros.pdf
1. 1.
Como gostava de ler e ia para uma viagem
longa o senhor J. decidiu pôr na mala seis
exemplares do mesmo livro.
2.
Para ser uma viagem a sério, o senhor J. não
deveria levar nada: nem um objecto. Em
direcção ao desconhecido, murmurava.
Quando estava então prestes a sair de casa,
agora sem qualquer mala, começava a pensar
que, assim, desprotegido, apanharia frio.
Decidia sempre, por isso, à última da hora,
ficar em casa.
3.
Um animal tinha a anatomia de um burro,
na parte da frente, e a anatomia de um
cavalo, na parte detrás. Como os dois irmãos
estavam convencidos de que as duas patas
de trás (de cavalo) eram bem mais rápidas
que as patas da frente (do burro) cada um
queria montar a parte de trás do animal,
deixando a parte da frente para o irmão.
Cada um deles estava convencido de que,
em viagem, chegaria primeiro o que estivesse
montado sobre as patas mais rápidas.
2. 4.
Escreveu Álvaro de Campos
“Eu acho que não vale a pena terIdo ao
Oriente e visto a India e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.”
Mas isso não é verdade, Caríssimo Álvaro de
Campos, não é mesmo verdade.
5.
Os pontos de vista são muitos como dizia
Eduardo Galeano.
A chuva é má? É boa?
“A chuva é uma maldição para o turista e
uma boa notícia para o camponês.”
6.
Porque viajamos? Porque não somos casas
nem montanhas.
Escreve Dino Buzzati
“Nunca tinha visto nada tão imóvel como
as montanhas, nem mesmo as casas eram
capazes de estar tão paradas”
Não seja uma montanha, senhorita e
senhorita.
3. 7.
Um aventureiro no livro “Filosofia
para exploradores polares” fala de um
montanhista que foi o primeiro a chegar ao
topo do Evereste em 1953.
Topo perigoso, subida perigosíssima. Mas ele
não morreu a subir ou a descer a montanha.
“Morreu por causa do tabaco.”
9.
“O que baila não tem por objectivo
caminhar”, Paul Valéry.
Imaginar uma viagem com dois objectivos:
caminhar e dançar.
8.
Um pássaro foi morto com um tiro. Acabara
de atravessar a fronteira.
As fronteiras são um pouco parvas, já se sabe.
4. 11.
Pessoa dizia: só viaja quem não tem
imaginação.
Mas também podemos dizer: só tem
imaginação quem viaja.
12.
Um cantor brasileiro, Chico César:
“De onde eu vim
Vim a pé.”
De onde vim, vim sem ajuda, vim pelo meu
pé, pelo meu esforço.
Viajar pode ser simplesmente percorrer o
caminho da casa à escola.
10.
Em Istambul há gatos por todo o lado.
“Em cada gato há outro gato
um pouco menos exacto
e um pouco menos opaco.”
Manuel António Pina
5. 14.
A viagem é também fazer perguntas
“Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha”
Escreve Sophia.
Que nome tem aquilo que eu não conheço.
Eis a razão da viagem.
15.
Numa pequena história de Ramón Gómez de
la Serna conta-se que dois comboios chegam,
num determinado momento, à mesma
estação, vindos em sentidos opostos. No
momento da paragem na estação, um homem
na janela de um comboio olha para uma
mulher que está na janela do outro comboio.
E o olhar entre esse homem e essa mulher
é tão forte que quando os dois comboios
arrancam, arrancam na mesma direcção.
Eis uma bela história de amor, e a viagem
idealizada. A viagem que muda o viajante
e que muda o mundo (ou, pelo
menos, a direcção dos comboios,
o que já não é mau).
13.
Os versos fortes de Cecília Meireles
“Por mais que seja querida,
há menos felicidade na volta
do que na ida.”
Será sempre assim?
6. 17.
Se eu viajar para o Oriente e a minha atenção
ficar em Lisboa, é evidente que tal uma
viagem parcial, menor.
É isso mesmo que acontece com os
apaixonados. Quem está apaixonado, se
viajar sozinho, é evidente que não sairá
do lugar, mesmo que percorra milhares de
quilómetros. É que, por definição, a atenção
da pessoa apaixonada está, por completo,
localizada na pessoa amada. Um apaixonado
que viaje sozinho não sairá do sítio.
18.
Racista é uma pessoa “que jamais mandou
analisar a sua árvore genealógica”, dizia
Millôr Fernandes.
Viajar para quê: para conhecer as nossas
infinitas árvores genealógicas.
16.
Claro que a viagem já há muito não é o que
se pensa. Deixou de ser a mera deslocação
no espaço. Não basta voar para uma cidade
longínqua porque só viajamos quando
levamos connosco a nossa atenção. Eis, aliás,
o elemento essencial da bagagem. Onde
deixamos a nossa atenção - num objecto que
fica em casa, num problema, numa pessoa?
7. 20.
Os turistas, por vezes, nas viagens são já
doentes da memória privada; turistas-
alzheimer antes de verdadeiramente o
serem, turistas que esquecem tudo o que
não filmaram ou fotografaram ou que, pelo
menos, parecem recear que isso aconteça.
Por isso estão sempre a fotografar.
21.
É difícil a vida competir com as imagens da
vida. Numa fotografia, a alegria poderá até
parecer melhor, depende da luz, do ângulo,
da posição das mãos, dos dedos e pernas.
Mas, de certo, desde sempre, uma família
parece sempre mais feliz numa fotografia em
viagem.
19.
Em Praga, nas zonas turísticas, tudo filma ou
fotografa.
Eu fotografo, logo existo. Ou talvez mais
ainda: sou fotografado, logo existo. Eis o
lema filosófico e pouco profundo das viagens
deste século.
8. 24.
“Observá-lo era para ela mais bonito do que
beijá-lo”, diz uma personagem do escritor
Robert Walser. Há quem queira ver a amada,
e há quem prefira beijá-la. E assim também
com as cidades nas viagens. Observar ou
tocar. Se beijares, deixas de ver o todo. Se
vires o todo, não conseguirás beijar.
23.
Nas viagens, nos locais com muita gente, há
encontros rudes.
Sou pisado grosseiramente. O homem olha
para mim, nem uma palavra; e no rosto nem
um vestígio, não digo de simpatia, mas de
humanidade.
Os irmãos Marx é que brincavam: “Eu nunca
esqueço uma cara, mas no seu caso vou fazer
uma excepção.”
22
“Há mais felicidade num bom filme do
que em toda a Nova Jersey. Foi por isso
que deixei Nova Jersey”, escreveu Harold
Brodkey.
As cidades para onde viaja não podem então
competir com os filmes pois a alegria a duas
dimensões é mais fácil. Ou talvez não. Ou
talvez não.
9. 26.
O pensador Régis Débray, a brincar,
diz que os atuais Ministérios dos Negócios
estrangeiros são os “Gabinetes que tratam
dos Bárbaros”. Os outros, os bárbaros.
Em algumas línguas utilizava-se a mesma
palavra para dizer Estrangeiro e Mudo.
Ou seja, o que fala outra língua, uma língua
que eu não entendo, é mudo. Aprender
uma língua é uma forma de viajar.
27.
Em Moscovo as ruas enormes, intermináveis,
são para andar. E não há cafés ou eles são raros
- não há sítios para um homem se sentar.
Dizem que Estaline tinha medo das cadeiras
e bancos em espaços públicos. As ruas eram
feitas para as pessoas circularem, e circular é o
contrário de parar. Quando as pessoas param,
juntam-se - e só pode existir um diálogo entre
várias pessoas se estas estiverem paradas. Sem
cadeiras as pessoas não param, não conversam
em grupos. No fundo, sem cadeiras, sem sítios
para parar durante muito tempo – e também
por causa, claro, do enorme frio - as pessoas
não poderiam discutir, planear
uma revolta. Circular, circular, eis
a ordem que estas longuíssimas
avenidas dão.
25.
É muito velha a aversão ao outro, ao
Estrangeiro. Para os gregos, os bárbaros eram
os que não falavam Grego. E a história, a
biografia das palavras, diz muito. Um bárbaro,
um incivilizado, era alguém a quem se falava
com a nossa língua natal e ele não entendia.
Viajar é, portanto, também perceber que nem
todos falam a nossa língua.
10. 29.
“O meu corpo não está contido entre as mi-
nhas botas e o meu chapéu”, já dizia um co-
nhecido verso de Walt Whitman. Só viajamos
quando mudamos a posição da nossa aten-
ção.
- Trouxeste tudo?
- Não, esqueci a minha atenção.
- E onde a esqueceste?
- Tenho quase a certeza que a deixei perto da
rapariga que amo.
30.
Viagens de milionários.
Conta o biógrafo Ray Monk que uma vez
Wittgenstein e um amigo estavam atrasados
e não havia nenhum comboio à hora que eles
precisavam - por isso Ludwig, ainda jovem, e
sendo de uma família muito rica, pensou em
alugar um comboio apenas para os dois; um
comboio que os levasse ao destino que que-
riam, à hora certa. Parece que o amigo o con-
venceu a abandonar a ideia.
28.
Sabe-se que Robert Walser era de uma
pontualidade excepcional. Considerava a
pontualidade uma obra-prima.
Trata-se pois de colocar a delicadeza no
ponto certo. Não fazer esperar o outro - arte
que deve ser tão valorizada como a escultura
ou a pintura. Fizeste o mais belo quadro,
sim, mas chegaste atrasado ao encontro
com o teu sapateiro. Eis uma falha artística
irremediável. A pontualidade dos aviões e
dos comboios, portanto, eis o fundamental.
11. 32.
“É melhor ir em primeira classe do que che-
gar”, escreveu Paul Theroux em O grande
bazar ferroviário “ou, como disse uma vez
o romancista inglês Michael Frayn, refor-
mulando a frase de McLuhan, “a viagem é
o objetivo”. Mas eu tinha escolhido a Ásia,
e quando me lembrava de que era a meio
mundo de distância ficava contente.”
33.
Escreve jack kerouac no célebre livro “Pela
Estrada Fora”: “E partimos de novo veloz-
mente, gerando vento para os nossos rostos
escaldantes e empastados.”
Uma viagem gera sempre vento. A viagem, a
verdadeira viagem, é uma criação de vento,
de um novo vento.
31.
Uma vez, na Bahia, Brasil, depois de duas ho-
ras de espera por um almoço que não chega-
va, perguntei ao senhor do restaurante quan-
to tempo ainda demora a comida a chegar. E
ele perguntou-me: tempo de relógio? Fiquei
logo a perceber que o meu estômago tinha
ainda que esperar mais um pouco.
Viajar também é isto: perceber que em al-
guns lados nem todas as horas têm sessenta
minutos.
12. 35.
Viajar sozinho ou acompanhado, é sempre
uma questão. Henry David Thoreau apresen-
ta uma opinião muito vincada:“ o homem
que anda sozinho pode partir hoje mesmo;
mas o que viaja em companhia tem de espe-
rar até que o outro se apronte, e muito tempo
pode passar-se antes que partam”.
Mas se e encontrares o grupo certo, ninguém
espera por ninguém; e depois todos avançam
acompanhados.
36.
Paul Theroux em “Viagem por áfrica que
conta que um determinado povo era muito
vago quando eles se referiam “ao calendário
ocidental, (…).” Theroux conta que “quando
eu perguntava (…) em que data determinada
coisa se tinha passado, ele começava a contar
pelos dedos.”
Podemos contar os séculos pelos dedos? Sim,
podemos.
34.
Bruce Chatwin, grande viajante. Um dos seus
mais importantes livros chama-se: Na pata-
gónia
“- Porque é que anda a pé? – perguntou-me
o velho. – Não sabe andar a cavalo? Nós aqui
odiamos caminhantes. Achamos que são ma-
lucos.
- Sei montar a cavalo – respondi - , mas pre-
firo andar. Tenho mais confiança nas pernas.”
As pernas, as companheiras de maior con-
fiança nas viagens.
13. 38.
Avião, carro, comboio, navio, tudo bem. Mas
Bill Bryson lembra que “as distâncias mudam
significativamente quando se percorre o
mundo a pé. Dois quilómetros é bastante,
quatro é algo já considerável, dezasseis, uma
distância colossal (…). “Só assim Tomamos
consciência de que o mundo é enorme”.
Andar a pé é uma lição de humildade.
39.
Um belíssimo conselho: não penses três
vezes antes de agir, duas são suficientes.
Pois bem, noutros cantos do mundo menos
tranquilos, não se chega sequer a pensar uma
vez antes de agir: age-se. A acção substitui
o pensamento. E por vezes substitui bem,
outras vezes substitui mal. Viajar é, portanto,
por vezes ir para países onde se pensa duas
vezes antes de agir para países onde se age
duas vezes antes de se pensar. Para onde
queres viajar?
37.
Dizia Eduardo Galeano
“Do ponto de vista do nativo, o pitoresco é o
turista.”
Podemos assim pensar a viagem como ir a
um sítio longínquo para as pessoas dessa
cidade verem o quanto pitorescos nós somos.
14. 41.
Uma história. Um homem perdido numa
viagem não grita, começa a dançar! - e
essa forma de rotação estética, essa forma
de desequilíbrio belo, que é a dança, tem
por efeito uma reorganização interior da
cabeça. Em suma, depois do baile o homem
perdido orienta-se, o seu cérebro passa a
ter o instinto dos pombos mais exactos um
cérebro que não vacila: avança para o Norte
com as pernas viradas para o norte.
42.
Malraux dizia que uma obra de arte era, para
quem a visse pela primeira vez, como uma
“operação às cataratas”. Passávamos a ver
melhor depois de ver algo muito forte e belo.
Assim também comas viagens. São
“operações às cataratas”
40.
Quero um voo para um sítio em que possa
ver muitas coisas diferentes – eis o que
poderá pedir alguém; quero um voo para um
sítio em que possa imaginar muitas coisas
diferentes – eis outro pedido, aparentemente
distinto (mas talvez não tanto).
“ A alma, disse ele, é composta
Do mundo exterior.” Escreveu Wallace
Stevens.
Precisamos de mundo exterior, portanto,
para não sermos apenas anatomia e apetite.
15. 44.
“O café. Oh, sim! Essa bebida que provoca
sono quando não a tomamos. “ (Alphonse
Allais)
Há cidades em que não precisamos de tomar
café. Nunca dão sono. Exemplo: México,
Marraquexe, etc., etc. É uma questão de
sobrevivência, não podes adormecer, é
perigoso. E é também um desperdício. São
cidades estimulantes demais. Nada de café,
portanto.
45.
A experiência de atravessar uma fronteira,
o passaporte, as formalidades, preencher
documentos.
É bom lembrar uns versos de Szymborska
“Ó que permeáveis são as fronteiras das
nações
Quantas nuvens impunemente as transpõem,
Quantas areias do deserto a despejarem-se
de um país para outro”.
Imaginar passaportes para as nuvens, para a
areia e para as coisas naturais.
43.
Numa viagem e num museu. O acto de
contemplar pode ser interpretado como
acção de preguiçoso, acção em que não se
investe energia, acção zero, acção que não
move músculo, acção de olhos.
E, no entanto, como explica por exemplo,
Heidegger, para os gregos contemplari
significa “separar e dividir uma coisa num
sector e aí cercá-la e circundá-la”. Em
primeiro lugar, contemplar é, pois, seleccionar
uma parte do todo, é destacar algo, é fazê-
lo brilhar, ou melhor: é ver o seu brilho – é
“partir e separar”.
Numa viagem, contemplar é fazer
brilhar.
16. 47.
Os guias, uma profissão.
Imaginei isto, foi um sonho mau.
O Museu da História Chinesa; um guia
de vinte e oito anos, acelerado, explica a
História chinesa; e é acelerado literalmente,
não nas palavras - o guia vai em corrida,
em passo de corrida, e atrás dele dezenas e
dezenas de turistas que querem ouvir e, por
isso, para conseguirem ouvir, têm de correr.
48.
Há muitas décadas, Paul Valéry dizia que
um dia as imagens iriam entrar na casa das
pessoas como entrava a água, o gás e a luz. E
eis que se cumpriu essa promessa/ameaça.
Não há torneiras de imagens, à primeira vista.
Mas, afinal talvez sim: uma televisão ou um
computador são uma torneiras de imagens,
torneiras que ininterruptamente vão deixando
cair na casa imagens e imagens e imagens,
biliões delas, de todos os cantos do mundo.
Não vais viajar porque já viste imagens desse
país? Eis um disparate.
46.
Um percurso rápido pelos Estados Unidos.
Numa das paragens, sentado numa cadeira
à espera de um voo e ao ver passar pessoas
com os olhos de todos os tamanhos, penso
como as civilizações são diferentes. Constato
a assertividade americana e lembro um dos
ensinamentos de Confúcio, contado por um
dos seus seguidores:
“Chin wen Tzu sempre pensava três vezes
antes de agir. Quando o Mestre ficou a saber
disso, comentou: Duas vezes é suficiente.”
17. 50.
Eu posso imaginar um elefante no momento
que quiser, mas não posso ver um elefante
no momento que quiser; apenas o poderei
ver quando o referido bicho estiver à minha
frente.
Para ver realmente um elefante africano
tenho de ir a África. Para imaginar um
elefante africano nem preciso de ir ao meu
sofá.
Viajo para ver. Regresso de uma viagem para
imaginar melhor.
51.
Escreve Alain de Botton que olhou com
atenção para a paisagem e não estava à
procura de nada, excepto de uma coisa, da
beleza.
Viajar como o acto de procurar a beleza
também longe de casa.
49.
Há viagens para tantos objectivos. Há um
verso de Júlia de Carvalho Hansen “Um avião
cruza os ares em direcção a um baptizado.”
Que viagens existem? As viagens por
curiosidade e as viagens por amor. Depois,
muitas outras.
18. 53.
Há tantos guias de viagem. Uns bons, outros
maus.
“Quem és tu, na verdade, que queres falar ou
cantar para a América?
Estudaste bem o país, os seus idiomas e os
seus homens?
Aprendeste a fisiologia, a frenologia, a
política, a geografia, o orgulho, a liberdade e
a amizade do país? Os seus fundamentos e
objectivos?”
Eis um guia turístico alternativo para visitar
os EUA por Walt Whitman. Viajar
estudando as tradições.
54.
“tenho andado só
lembrando que sou pó
tenho andado tanto
diabo querendo ser santo
yo no creo en caminos
pero los que hay hay”
Fragmento de de um poema de Paulo
Leminski. Há tantos caminhos. Muito mais
do que imaginas.
52.
Em algumas viagens, o caminho não é fácil.
Os caminhos de mundo não são todos auto-
estradas.
Escreve - Malcom Lowry em “Debaixo do
vulcão”
“…a estrada não tardou a tornar-se péssima;
agora quase não se podia pensar, quanto
mais falar...”
19. 56.
E sim, de novo o pesadelo. Os guias acelerados.
Quem faz de guia está bem assinalado - uma
camisa de cor verde que mais ninguém se
atreveria a usar, e depois aquilo: o guia é um
atleta, é necessário acompanhá-lo. Corre e ao
mesmo tempo vai falando, dando indicações,
apontando. Mas em corrida não é possível
parar diante de nada - o Museu é gigante - se
quisermos passar por todas as salas temos de
correr. Aos turistas, logo à entrada, é fornecido
um rigoroso equipamento de atleta. Todos
estão de fato de treino, equipados para essa
manifestação desportiva esteticamente bela
e repleta de informação (o museu),
mas sim: é preciso correr muito.
Este Museu não é para preguiçosos
- a placa da entrada é agora final-
mente entendida.
57.
Levo um livro de Adélia Prado na mala de
viagem. (Se levares o livro certo na mala de
viagem, a viagem correrá bem).
A escolha de livros a levar para uma viagem é
uma escolha decisiva.
55.
Versos lindíssimos de Chico César, estes
versos de homem forte, de pé forte:
“O meu pé marca o que pisa”.
Nenhum chão se esquecerá da passagem
daquele pé; é pé que deixa memória, que
deixa vestígio, que deixa sinal, que deixa
obra; eis o pé que marca o que pisa.
Viajar: deixar marca no que se pisa; ficar no
pé com marca do que se pisou.
20. 59.
Numa viagem, em Guadalajara, escutei uma
canção triste demais.
Há um limite para suportarmos a tristeza da
música – esse limite é determinado por nós,
pela nossa capacidade de resistir à última
tristeza. Lembro-me de dois versos de Adélia
Prado:
“Cantiga triste, pode com ela
é quem não perdeu a alegria”
Resisto, portanto.
60.
“Se eu soubesse inglês não era eu, era outra
pessoa”, escreveu Alberto Caeiro.
Quando se está num país em que os habitantes
falam uma língua ininteligível sente-se por
completo como verdadeira esta frase. Se queres
mudar de vida, aprende outra língua e outra e
outra.
Aprender uma língua é mudar de corpo.
Aprender uma nova língua é mudar de país
sem mudar de país; é uma mudança de solo
mental.
Viajar para aprender uma língua
é umas viagens mais sensatas.
É quase uma viagem dupla.
58.
O Tempo como um vento persistente, um
vento nada exuberante, mas persistente,
que não pára, que não aumenta nem
diminui a sua intensidade, e é isso que torna
aterrorizante o raio do Tempo.(Escreveu
Virginia Woolf, no livro “Ondas”: “Aquilo
que têm à vossa frente, este homem, este
Lovis, é apenas o que resta de algo que já foi
magnífico”.
Ver uma cidade em ruínas - ali está o que em
tempos foi magnífico.
Viajar para o moderno ou para
as ruínas. Dois caminhos diferentes.
21. 62.
O homem mais isolado do mundo, segundo
importantes documentos, foi Alfred M. Worden
da missão lunar Apolo XV, que esteve afastado de
um outro ser humano entre os dias “30 de Julho a
1 de agosto de 1971”, exactamente: 3596,4 Km.
(Três mil quinhentos e noventa e seis
quilómetros. Vírgula quatro.)
No fundo, é importante medir objectivamente a
distância entre um homem e outro. Não falar em
distâncias afectivas, psicológicas, existenciais, etc.
Medida é medida, distância é distância: metros.
Isto talvez seja a viagem mais soli-
tária da História.
63.
Ludwig Wittgenstein em 1908, com deza-
nove anos, queria construir um aeroplano.
Estudava engenharia.
Bertrand Russell que o recebe na univer-
sidade de Cambridge, escreve sobre o jovem
Wittgenstein que ainda não conhecia bem,
e diz: “O meu alemão vacila entre a filosofia
e a aviação”.
Filosofia: no limite, estar sentado a pensar.
Aviação: viajar bem por cima das nuvens –
– no fundo, outra forma de filosofar.
61.
Há definições maravilhosas de cidades.
Yehuda Amijai, poeta hebreu, chama a
Jerusalém a “Veneza de Deus”.
O que é um viajante?
Um viajante nunca está do lado de dentro a
olhar pela janela. Está sempre do lado de fora
a ser visto da janela.
22. 66.
Escrevia Pessoa (Bernardo Soares) no livro
do Desassossego “Deste quarto andar sobre
a cidade se pode pensar no infinito. Um
infinito com armazéns em baixo, é certo, mas
com estrelas no fim.”
Viajar com a imaginação num quarto andar.
65.
Linha do horizonte, linha a que se pode
chamar ficcional e pessoal. A linha do
horizonte é uma miragem recta, eis o que
é estranho, uma miragem geométrica. A
tua linha do horizonte, portanto, não está
no horizonte, como é evidente - está em
ti, meu caro, minha excelência! Depende
dos caminhos por andas, das decisões
tomadas; de avançar para um lado ou para
outro, de descer ou subir. Viajar: encontrar
novas linhas de horizonte, novas miragens,
portanto.
64.
Uma certa vez de carro, horas desastradas a querer
entrar em Roma sem conseguir. E finalmente,
sim, entro. Avanço e páro onde a paisagem urbana
começa a parecer essencial. Páro o carro, então,
aceno para um romano e faça uma pergunta; uma
pergunta simples, feita com modéstia e delicadeza.
Pergunto pelo centro de Roma.
Nessa altura, o romano olhou para mim durante
um segundo. A resposta, em italiano, vem
acompanhada pelo gesto que significa: que quer
este tonto?
- Por favor, o centro de Roma?
- Mas que centro? – Foi a resposta. - Tudo é centro!
Sim, em Roma tudo é centro.
E cada viajante poderá definir,
de forma privada, um centro.
23. 68.
Balzac faz uma crítica à cidade, à forma
como os olhares dos outros condicionam
o nosso movimento, tornando-o artificial
e falso. Explicita Balzac, com a sua ironia:
“Entre as duzentas e cinquenta e quatro
pessoas e meia (porque eu conto um senhor
sem pernas como uma fracção), cujo passo
analisei, não encontrei uma pessoa que
tivesse movimentos graciosos e naturais.”
E depois conclui: “A civilização corrompe
tudo! Adultera tudo, até o movimento.”
Viajar pela natureza para aprender a andar de
forma mais natural, eis um
possível objectivo.
69.
Debord citava o estudo de um sociólogo
que mostrava “a estreiteza da Paris real
em que vive cada cidadão”. Esse estudo
analisava “todos os movimentos efectuados
por uma estudante no decurso de um ano”,
mostrando que “os percursos desenham, sem
grandes desvios, um triângulo de reduzidas
dimensões, cujos vértices são a Faculdade de
Ciências Políticas, a casa da rapariga e a do
seu professor de piano.”.
Se não viajarmos, a nossa vida terá formas
geométricas fixas, entre trabalho e casa,
pouco sobra para os desvios.
Viajar é o desvio.
67.
Em certas cidades, com edifícios baixos
e muito distantes entre si, caminhar na
cidade é, em parte, trabalho físico, exigência
muscular e cardiovascular – coração e pernas
que aguentem - e em parte, então, trabalho
de amante de nuvens.
Quantas viagens fazemos para ver nuvens?
Há um clube de adoradores de nuvens em
Inglaterra. Cada viajante deveria inscrever-se
nesse clube. Urgentemente.
24. 71.
O errar, no sentido de errância - passeio sem
destino - essa tentativa de um indivíduo se
perder para encontrar depois um caminho
não comum, essa procura do erro, do não
acertar no previsível é, então, a procura de
uma nova experiência, de uma nova pessoa,
de uma nova palavra.
72.
Num curioso livro de contos, Stefan Grabinski,
considerado o “Poe polaco”, descreve uma
personagem, um revisor do comboio, Buron,
para quem o papel dos comboios “não
consistia em levar as pessoas dum sítio para
outro por razões de comunicação, mas pelo
movimento como tal.”
Apenas o movimento interessava e não os
pontos de partida e chegada.
Uma bela descrição de uma viagem clássica.
Não sei para onde vou.
70.
Procurar outros caminhos é procurar
outros lugares - lugares insólitos, lugares
raros, lugares individuais. E aí sim: poderás
encontrar o teu perigo, aquilo que te ameaça
a ti, e apenas a ti, precisamente porque estás
só nesse lugar novo.
Viajar sozinho? Estar só diante do estranho.
Viajar acompanhado? Estar acompanhado
diante do estranho.
25. 74.
No famoso conto de Borges “O Jardim dos
caminhos que se bifurcam” as possibilidades
são abertas: há uma “bifurcação no tempo,
não no espaço.” Em vez de, perante diversas
alternativas, se optar por eliminar outras,
Borges fala da possibilidade de se optar
simultaneamente por duas vias. Trata-se aqui
de nem sequer aceitar impossibilidades no
tempo.
No fundo era isto: viajarmos para dois
continentes ao mesmo tempo.
De facto, podemos fazer isso.
Istambul como exemplo.
75.
“Desde que o Mussolini lá está que os
comboios na Itália partem sempre à tabela”,
escreveu, na altura, a pena cínica de
Tucholsky. A ordem pode ser vista como um
sintoma de uma força que se exerceu.
Mas a pontualidade em democracia é
importante, claro, para o começo para o meio
e para o gim de uma viagem
73.
Face a uma ameaça que traz o teu nome
poderás defender-te com as armas que
também trazem o teu nome - com as únicas
armas que te defendem - “são precisas asas
quando se ama o abismo”, escreve Nietzsche.
Viajar é por vezes passar por certos perigos,
reencontrar por isso diferentes forças.
26. 77.
Apollinaire fala de uma nova arte cujo
instrumento era a própria cidade –
determinados percursos da cidade provocam
sensações específicas e a partir destas cria-
se algo. Para repetir será necessário voltar a
percorrer os mesmos caminhos para sentir o
mesmo.
Em algumas viagens sentimos isso: ir por
certos caminhos, entrar em certos museus,
é ir e entrar em determinadas emoções bem
concretas. Num cruzamento, poderemos
perguntar: por qual das emoções vias:
pela esquerda ou pela direita.
78.
Tantos problemas nos olhos, diz um médico.
A doença dos olhos, essa doença que é não
estar atento – existirá doença mais grave,
minha senhora? Bem mais grave que a
miopia e o estigmatismo: existirá doença
mais grave do que estar desatento ao belo
que existe pelas cidades quando viajamos?
76.
Cada existência define uma geografia e
um país: cada indivíduo é um indivíduo
geográfico, cada indivíduo é um mapa, e
este mapa será tanto mais individual quanto
mais desenhado pelo próprio e não por um
conjunto de mecanismos sociais.
Eu não sou apenas uma pessoa sou também
uma Geografia. por isso, vijar pode também
ser simplesmento isto: conhecer uma nova
pessoa.
27. 80.
Escreve Valéry,: “Sabia que passear me leva
muitas vezes a uma forte emissão de ideias,
e que se cria certa reciprocidade entre o meu
passo e os meus pensamentos, o meu passo
modificando os meus pensamentos;
O movimento exterior como algo que
começa no músculo e termina nos
raciocínios, como se o músculo inervasse
também as ideias.
Caminhar, portanto, em viagem, em sítios
diferentes, é pensar coisas diferentes.
81.
Há uma relação entre a perda da localização
e uma certa ausência ou suspensão de
afectos. Walter Benjamim, numa frase,
exprime extraordinariamente esta ideia:
“Um bairro extremamente confuso, um
emaranhado de ruas que durante anos evitei,
tornou-se-me subitamente compreensível
quando, certo dia, uma pessoa querida se
mudou para lá.”
Apaixona-te por uma pessoa de um certo
país e logo ficarás orientado nele.
79.
Em Agosto de 1989 numa conferência de
matemáticos em Poznam, na Polónia, a 320
Km de Varsóvia, o matemático Erdos propôs
uma corrida aos investigadores presentes.
Caminhar e correr são também assuntos da
matemática; é uma forma invertida de contar
pelos dedos - é contar pelos pés.
Conta-se pelos pés, mede-se, portanto, a
terra através das corridas e caminhadas bem
organizadas.
O pequeno tamanho do pé dá-nos indicações
sobre a vastidão do mundo.
Substituir a régua pelos pés, eis o
que o viajante faz. Lição de modéstia
do viajante.
28. 83.
Bruce Chatwin, esse grande viajante.
“- Uma vez conheci um italiano (…)
O seu nome era Garibaldi. (…) odiava cavalos
e casas. “
“Ia a pé até à Bolívia e, depois, descia até ao
estreito de Magalhães. Andava uns sessenta
quilómetros por dia e só trabalhava quando
precisava de botas novas.”
Um viajante obcecado por andar, por
caminhar.
Só trabalha quando as botas se estragam.
Preciso de trabalhar para comprar botas,
preciso de trabalhar para viajar.
84.
A leitura a certa altura torna-se mesmo um vício,
um vício corporal, orgânico, não intelectual, o
livro como uma substância tóxica, criadora de
dependência. Como escreve François Jacob:
“Haja um aviso numa paisagem, e a paisagem
desaparece; leio o aviso (...).”
O mundo real, concreto, torna-se uma nota
de rodapé das palavras; como se as coisas – as
maiores das montanhas, por exemplo, fossem,
afinal, apenas comentários e observações feitas
às palavras e não o inverso. Viajar para um país
em que não se consigo ler a língua, permite-me
estar atento à paisagem. Eu como
viajante vejo porque não suspendo
a leitura.
82.
A imaginação é um instrumento, uma coisa
que age sobre as outras, altera-as como a
“mescalina”, escreve Bachelard, a imaginação
“muda a dimensão dos objectos.”
Atenta ao mínimo, concentrando tempo
sobre o minúsculo, transforma-o em coisa
central; grande, portanto. Um filósofo lembra
a história de certos budistas que “conseguiam
ver uma grande paisagem numa ervilha.”
Ou seja, por vezes não é preciso viajar. Basta
uma ervilha.
29. 87.
O grande viajante por excelência, de espaço
e imaginação, Júlio Verne. Um dos maiores
responsáveis pelo maravilhamento que existe em
relação às viagens por balão: “Uma corrente mais
forte levou o balão para sudoeste. Que magnífico
espectáculo se desenrolava aos olhos dos viajantes!
(…) Os campos assemelhavam-se a amostras
de cores. Os bosques e flores pareciam ramos
de arbustos. Os habitantes da ilha eram como
insectos.”
Hoje, no avião, sentimos o mesmo. De cima, o
organismo ou a grande construção humana são
apenas forma e cor.
O pormenor perde importância,
mas o viajante abre muito os olhos.
86.
Escreve Vergílio Ferreira, que assistir a uma
conversa numa língua desconhecida é sentir
que o mundo, e não apenas a linguagem, nos
escapa: “...tu sentes aí no tactear do mundo
através de uma linguagem que lá não vai dar,
ou muito dificilmente, como num bêbado
que não acerta com o caminho.”
Um dos maiores estímulos para viajar?
Ouvir no nosso país, uma língua que
desconhecemos.
85.
Como reconhecer o outro? Como reconhecer
algo que une? Responde Zambrano,
lembrando os Pitagóricos: reconheci-o
porque “obedecia à mesma música”.
Dançar a mesma música com um
estrangeiro, numa viagem, eis uma das
melhores maneiras de reconhecimento.
Conheço-te bem: já dancei contigo.
30. 89.
Nasredin é uma personagem central das histórias
populares da Turquia e de outros países. É uma
mistura estranha: de sábio e tonto. Por vezes mais
tonto, outras vezes mais sábio.
Umas das histórias que se conta (numa das suas
muitas versões):
““Nasredin foi visitar um psiquiatra. Dirigiu-se ao
médico e disse:
- Estou muito confuso; preciso que me ajude. Isto
está a tornar-se insuportável. Todas as noites tenho
um sonho recorrente em que me encontro junto a
uma porta, que empurro e empurro e empurro. Todas
as noites acordo a transpirar, e a porta nunca se abre.”
O psiquiatra depois de reflectir pergun-
tou a Nasredin: lembra-se do que está
escrito na porta?
Nasredin disse que sim, que se lembra-
va perfeitamente. Está escrito: «Puxe»”.”
Umas razões para viajares? Escutar novas histórias.
90.
Um sonho. Carlo Stefano Broghi avança para
um espaço que derrapa muito carregando um
enorme peso numa mochila. Tenta pensar
como se fosse um comboio ou outro veículo
com rodas: se o peso for muito, se a força que
empurra para baixo for maior do que as forças
que empurram para os lados, um homem não
cairá, quando muito afundar-se-á.
Se não queres viajar, põe um peso excessivo na
mochila.
Com demasiado peso, não sias do mesmo sítio.
O que é alguém que não viaja? É alguém que
claramente carrega peso excessivo.
88.
O filósofo Walter Benjamin fala dos
materiais - como o vidro e o ferro - que
não seguram as marcas, que não guardam
vestígios. A nova civilização, segundo
Benjamin, seria algo como uma civilização
material desmemoriada, que privilegia o
esquecimento: apaga com facilidade as
marcas.
A viagem é aquilo que deixar marcas
na memória. O cérebro como material
antiquíssimo segura as marcas e os vestígios.
31. 92.
Viajar para ver museus. Há quem goste, há
quem não goste.
O argumento de quem não gosta: no Museu
estamos diante do que já foi feito. Nenhum
museu nos mostra o instante presente:
vemos no museu o que já aconteceu,
portanto: vemos o que não está a acontecer
(desviamos os olhos do presente). Entrar no
museu é sair do que acontece.
Há outras opiniões, claro.
93.
Lento, ou mesmo imóvel, o europeu tenta
encontrar mais uma linha do horizonte. É a
sua função, e é um dos seus trabalhos mais
nobres; sempre foi.
O viajante, portanto, como o homem que
busca linhas do horizonte (ali uma, ali outra!)
como outros buscam ouro.
91.
Do tronco para baixo, nas pernas, ficamos
cansados; do tronco para cima, mais
especificamente nos olhos, ficamos em estado
de ligeiro atordoamento visual. Para apreciadores
de céu e nuvens andar em Brasília é ir a uma
espécie de cinema obsessivo e especializado. E
percebemos então, finalmente, que os edifícios
de Niemeyer estão lá, afinal, apenas (e isso é
muitíssimo) para enquadrar o céu - uma moldura
feita de gigantesca arquitectura e engenharia.
32. 95.
Uma outra estranha personagem de Stefan
Grabinski, obcecada pelo movimento, que diz
que não tem bilhete e não precisa “porque ia
sem propósito definido, só para ir para a frente,
por prazer, pela inata necessidade de se mover.”
Havia tirado o bilhete não para um destino,
mas precisamente, se possível, para não chegar
ao destino, para continuar a avançar: um
bilhete não para um espaço, mas um bilhete
para o movimento.
Uma possível viagem.
Imaginar bilhetes que não são para sítios
(espaços) mas sim bilhetes de tempo.
Quero viajar durante 10 horas, não
me interessa para onde. Compro
dez horas de bilhete.
96.
O fascínio do outro lado da terra.
Lewis Carrol em Alice no país da Maravilhas
fala de uma queda que não tem fim. E diz: “-
Será que vou cair através da terra inteira? Vai
ser bem giro aparecer no meio das pessoas
que andam de cabeça para baixo!”
Já sabemos, pela ciência e pelas muitas
viagens, que as pessoas que estão no outro
ponto do globo não andam de cabeça para
baixo. Mas, apesar disso, ainda desconfiamos.
Será que não deixam de andar de cabeça
para baixo apenas quando nós
chegamos ao pé delas?
94.
Em “As cidades invisíveis”, Calvino fala da
cidade de Eutrópia composta de inúmeras
cidades, “uma só habitada, as outras estão
vazias”, existe uma rotação entre elas,
como explica Calvino: “No dia em que os
habitantes de Eutrópia se sentem atacados
pelo cansaço, e já ninguém suporta o seu
ofício, os seus parentes, a casa e a rua, as
dívidas, a gente que deve cumprimentar ou
que o cumprimenta, então todos os cidadãos
decidem transferir-se para a cidade vizinha
que está ali à espera, vazia.”
Viajar, já se sabe, é mudar de vida.
33. 98.
Há um estranho grupo de viajantes. Este
excerto de Alain de Botton mostra bem
como somos todos bem diferentes: “Embora
a pontualidade esteja no cerne do que
tipicamente entendemos como uma boa
viagem, muitas vezes desejei que o meu voo
estivesse atrasado, para ser forçado a passar
mais algum tempo no aeroporto.”
Sim, há loucos por aeroportos, por estações
de comboio, por portos de navio. Viajam não
para entrar para barcos, aviões ou comboios,
mas para ficarem por ali, a ver
os viajantes atrasados e agitados.
99.
Recordo muitas vezes esta frase da
extraordinária escritora brasileira Clarice
Lispector, que termina assim um dos seus
romances:
“De qualquer luta ou descanso me levantarei
forte e bela como um cavalo novo.”
A viagem, qualquer que ela seja? É luta e
descanso.
97.
Wenceslau de Moraes escreve, sobre as
Paisagens da china e do Japão:
“Há alguns dias, na cidade de Kobe, (…) irrompeu
a Primavera. Irrompeu: não há sombra de
exagero no vocábulo. Irrompeu, surgiu de um
pulo, fez explosão.”
Quando estamos longe de casa, as coisas do
mundo, até mesmo as naturais, parece que
aceleram. Até as flores.
34. 100.
Há um conto de Hans Christian Andersen
sobre uma moeda:
“A moeda já viajara muito, mas não sabia
onde estava. Só ouvia as outras dizerem que
eram francesas e italianas. Uma comentava
que se encontravam nesta cidade e outra
afirmava que se achavam naquela, mas a
moeda não fazia ideia do que queriam dizer.
Não se vê nada do mundo quando se está
sempre preso numa bolsa, que era o que lhe
acontecia. Um dia, reparou que a bolsa não
estava fechada e esgueirou-se até à abertura
para espreitar o mundo”.
Este conto pode ser sobre uma
moeda ou sobre uma pessoa que
não sai de casa.
101.
Não apenas os humanos se passeiam pelo
mundo. Escreveu Herman Melville, no
grande livro Moby Dick, “o mundo é um
navio efémero que não concluiu a sua
viagem”.
E sim, se olharmos bem, bem de cima, do
vasto espaço, a grande viagem não é a dos
humanos, mas a da própria Terra.
Essa, sim, é a grande viajante.