3. Identificação
TCR, 55 anos, branca, divorciada, um filho,
corretora de imóveis.
Queixa duração
Há 6 meses preocupada com o ganho do peso e
aumento da quantidade e frequência de cigarros
consumidos.
História pregressa da moléstia atual
Paciente conta que há dois anos vem
apresentando ganho progressivo de peso.
TCR referiu ter um hábito alimentar compulsivo,
com preferência por doces. Refere que, nos
últimos meses, episódios têm sido quase diários
e ocorrem na maior parte das vezes à noite.
Nega purgação.
Há aproximadamente um ano tem tentado,
sem sucesso, reduzir o consumo do cigarro por
orientação de seu médico otorrinolaringologista
devido a um quadro de inflamação das cordas
vocais e consequente engrossamento da voz
decorrentes do uso do cigarro.
Durante a consulta, quando indagada sobre
seu padrão de consumo do álcool, a paciente
referiu que sempre teve o hábito de beber acom-
panhado do uso de cigarro, geralmente aos fins
de semana. Há três anos passou a consumir álcool
praticamente todos os dias, em torno de duas
taças de vinho à noite. Há um ano notou piora
do padrão do consumo do álcool, quando passou
a consumir uma garrafa de vinho na companhia
do namorado quase todas as noites. Refere há
tempos não saber o que é ficar alguns dias sem
beber.
Antecedentes pessoais
ƒƒ Hipotireoidismo.
ƒƒ Menopausa aos 44 anos.
ƒƒ Refere vários tratamentos prévios para perda
de peso, sem grandes sucessos. Nunca fez
tratamento para parar de fumar, nem para
parar ou diminuir o consumo do álcool.
Medicações que já estava em uso
ƒƒ Levotiroxina sódica 100 mcg 1 x/dia.
ƒƒ Pantoprazol 40 mg 1 x/dia.
Hábitos e vícios
ƒƒ Tabagista: 40 maços/ano.
ƒƒ Consumo de meia garrafa de vinho por dia.
ƒƒ Atividade física: 1 h/dia cinco vezes por semana.
ƒƒ Abuso de laxantes, inibidores de apetite e
diuréticos frequentes na adolescência e por
vezes presentes na vida adulta.
Recordatório alimentar
ƒƒ 10h30: 1 pão integral com queijo prato, peito
de peru e requeijão;
3
Paciente alcoólatra
com obesidade
4. ƒƒ 13h30: arroz (2 colheres de servir de arroz),
3 costelas de porco, salada de couve e tomate
e mandioquinha, suco de uva sem açúcar,
3 eclairs pequenos (chocolate, creme e baileys)
e café com petit four;
ƒƒ 16h: 1 pacote de batata chips;
ƒƒ 19h: 1 pão francês, com requeijão, salame, ovo
e queijo.
Antecedentes familiares
ƒƒ A mãe faleceu aos 74 anos por glioblastoma
multiforme, era obesa e tinha diabetes mellitus
e hipertensão arterial sistêmica (HAS). O pai
tem HAS.
ƒƒ Filho saudável.
ƒƒ Irmãs com sobrepeso.
ƒƒ Nega antecedentes de dependência alcoólica
ou de outras substâncias psicoativas na
família.
Exame físico
ƒƒ Voz rouca.
ƒƒ Tireoide normal à palpação.
ƒƒ Bom estado geral: corada, hidratada, anictérica,
acianótica, afebril e eupneica.
ƒƒ Peso: 91,1 kg; circunferência abdominal (CA):
106 cm; circunferência do quadril (CQ): 121 cm;
altura: 1,57 m; índice de massa corpórea
(IMC): 37.
ƒƒ Bulhas rítmicas normofonéticas (BRNF) em
2 tempos sem sopros; pressão arterial (PA):
120 x 80 mmHg; frequência cardíaca (FC):
82 bpm.
ƒƒ Murmúrio vesicular + ruídos adventícios.
ƒƒ Abdome inocente, sem visceromegalias, indolor
à palpação.
ƒƒ Membros inferiores: sem edema e sem sinais de
trombose venosa profunda.
Exames laboratoriais
ƒƒ Colesterol total: 249 LDL, 167 HDL;
ƒƒ Triglicérides: 49;
ƒƒ Glicemia de jejum: 230;
ƒƒ Hemoglobina glicada 112: 5,9%;
ƒƒ TSH: 3,2;
ƒƒ T4 livre: 1,14;
ƒƒ Hemograma normal;
ƒƒ TGO: 16;
ƒƒ TGP: 13;
ƒƒ FA: 49;
ƒƒ GGT: 15.
Conduta inicial
Paciente foi orientada a cessar o tabagismo
e o consumo de álcool. Foram introduzidas
naltrexona 50 mg/dia (½ cp. 1 x/dia na primeira
semana e, após esse período, 1 cp. 1 x/dia) e
bupropiona 300 mg/dia. Foi orientada quanto à
utilização do adesivo de nicotina 21 mg 1 vez por
dia quando já estivesse há uma semana em uso
da bupropiona.
Paciente também passou com nutricionista,
recebeu dieta de 1.200 kcal/dia e foi orientada
a fazer recordatório alimentar diário e a manter
atividade física 5 vezes por semana (mínimo de
150 min/semana).
“Foram introduzidas
naltrexona 50 mg/dia
(½ cp. 1 x/dia na
primeira semana e,
após esse período,
1 cp. 1 x/dia) e bupropiona
300 mg/dia”
4
5. Evolução
Paciente conta que os primeiros dias sem beber
foram muito difíceis, pois sentia desejo intenso
de consumir essa substância nos períodos do
dia em que estava acostumada e nega sintomas
de abstinência do álcool. Relata que, após uma
semana de abstinência do álcool e do cigarro,
passou a ficar mais tranquila, muito mais disposta
para acordar e lidar com suas tarefas diárias e
apresentou melhora do padrão de humor.
Com o recordatório alimentar, paciente conse-
guiu regrar-se melhor e aderiu facilmente à dieta.
Episódios de compulsão cessaram.
Em relação ao tratamento medicamentoso,
os principais efeitos colaterais relatados foram
náusea e cefaleia, mais importantes nos primeiros
15 dias, mas toleráveis. Não houve a necessidade
de suspensão do uso da medicação em nenhum
momento.
Paciente manteve retornos quinzenais
com psiquiatra e nutricionista, e mensais com
endocrinologista.
Logo no primeiro mês, a paciente conseguiu
cessar tabagismo e o consumo do álcool.
Ao final de três meses, a paciente se mantinha
aderente à dieta e à atividade física e perdeu 8 kg
e 4 cm de cintura. Pressão e frequência cardíaca
se mantiveram estáveis.
Exames laboratoriais após três meses de
tratamento
ƒƒ Colesterol total: 195 LDL; 130 HDL;
ƒƒ Triglicérides: 70;
ƒƒ Glicemia de jejum: 101;
ƒƒ Hemoglobina glicada 85: 5,2%;
ƒƒ TSH: 1,46;
ƒƒ T4 livre: 1,02;
ƒƒ Hemograma normal;
ƒƒ TGO: 22;
ƒƒ TGP: 25;
ƒƒ FA: 16;
ƒƒ GGT: 37.
Discussão
As pesquisas sobre alterações no sistema
nervoso central que levam à obesidade apontam
paraduasviasprincipais:osistemademelanocortina
hipotalâmico, que libera sinais anorexígenos de
acordo com as alterações do balanço energético
do nosso organismo, e o sistema mesolímbico, que
modula o comportamento associado a mecanismos
de recompensa1
. Provavelmente, pacientes obesos
queapresentamproblemasdeadiçãoedependência
sofrem maior influência do apetite hedônico no
controle da ingestão alimentar.
Com exceção do orlistate, as medicações
disponíveis para o tratamento da obesidade agem
nos mecanismos centrais de controle do apetite,
principalmente no núcleo arqueado, estimulando
os neurônios da pro-opiomelanocortina (POMC)
e promovendo saciedade2
.
A bupropiona é um inibidor de receptação de
dopamina e norepinefrina e também estimula os
neurônios da POMC.
A naltrexona, por sua vez, age nos receptores
opioides, bloqueia o feedback negativo sobre a
”Ao final de três meses, a
paciente se mantinha aderente
à dieta e à atividade física e
perdeu 8 kg e 4 cm de cintura.
Pressão e frequência cardíaca
se mantiveram estáveis.”
5
6. estimulação desses neurônios e, portanto, quando
combinada à bupropiona, potencializa sua ação3
.
Em 2010, Greenway et al.4
publicaram um estudo
no Lancet mostrando a eficácia dessa associação
medicamentosa no tratamento da obesidade.
Homens e mulheres obesos, dislipidêmicos e
hipertensos foram estudados por 56 semanas
em três diferentes grupos para tratamento
de obesidade: um grupo recebeu naltrexona de
liberação prolongada 32 mg e bupropiona
360 mg também de ação prolongada; o outro,
naltrexona de liberação prolongada 16 mg e
bupropiona 360 mg de ação prolongada; e o
último, placebo. O estudo mostrou que o grupo
que recebeu a combinação de bupropiona e
naltrexona na maior dose foi o que perdeu mais
peso e mais obteve melhora nos fatores de risco
cardiovasculares (colesterol, glicemia, triglicérides
etc.), seguido pelo de menor dose e depois pelo
placebo. Além disso, o primeiro grupo também
foi o que apresentou maior ganho em qualidade
de vida nos questionários, principalmente no
que se referia a parâmetros de função física e
autoestima. A redução dos “food-cravings”, a
diminuição da fome e o aumento da saciedade
também foram maiores no grupo com naltrexona
na maior dose.
Os principais efeitos colaterais relatados foram
náusea,cefaleia,bocasecaeconstipação,masforam
relatados como de intensidade leve a moderada
e não foi suficiente para causar a suspensão da
medicação em nenhum dos pacientes.
Houve leve aumento da pressão (1-5 mmHg) e
da frequência cardíaca (1,5-2,5 bpm) nos grupos
que receberam a combinação medicamentosa,
mas esse aumento foi transitório e desapareceu
com a perda de peso.
Em 2014, o Food and Drug Administration (FDA)
aprovou o uso de naltrexona com bupropiona
para o tratamento da obesidade.
Nos Estados Unidos, a combinação naltrexona/
bupropiona é vendida na apresentação de
comprimidos com 8 mg/90 mg. Segundo a
recomendação do Guideline da Endocrine Society
publicada em 2015, deve-se iniciar com um
comprimido pela manhã e, após uma semana,
associar um comprimido antes do jantar. Se bem
tolerado, aumentar para dois comprimidos de
manhã na terceira semana e, por fim, progredir para
dois comprimidos antes do jantar. Assim, ao final de
quatrosemanas,opacientetomarádoiscomprimidos
de manhã e dois comprimidos no jantar2
.
No Brasil, a combinação dessas duas medicações
em um só comprimido não está disponível, mas
este relato de caso demonstra como os pacientes
podem se beneficiar dessas medicações nos casos
de tratamento de alcoolismo e tabagismo em que
há obesidade comórbida.
”A naltrexona, por sua vez,
age nos receptoresopioides,
bloqueia o feedback negativo
sobre aestimulação desses
neurônios e, portanto, quando
combinada à bupropiona,
potencializa sua ação3
.”
6
7. Referências bibliográficas
1. Morton GJ, Cummings DE, Baskin DG, Barsh GS, Schwartz MW. Central nervous system control of
food intake and body weight. Nature. 2006;443:289-95.
2. Apovian CM, Aronne LJ, Bessesen DH, McDonnell ME, Murad MH, Pagotto U, et al. Pharmacological
management of obesity: an endocrine Society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab.
2015;100:342-62.
3. Greenway FL, Whitehouse MJ, Guttadauria M, Anderson JW, Atkinson RL, Fujioka K, et al. Rational
design of a combination medication for the treatment of obesity. Obesity. 2009;17:30-9.
4. Greenway FL, Fujioka K, Plodkowski RA, Mudaliar S, Guttadauria M, Erickson J, et al.; for the
COR-I Study Group. Effect of naltrexone plus bupropion on weight loss in overweight and obese
adults (COR-I): a multicentre, randomised, double-blind, placebo-controlled, phase 3 trial. Lancet.
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