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CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   1




                                                 MÓDULO 3

 CULTURAS E HISTÓRIA
DOS POVOS INDÍGENAS



 Reconhecendo preconceitos
  sobre os povos indígenas




    Vanderléia Paes Leite Mussi
    Antonio H. Aguilera Urquiza
        Vera Lucia F. Vargas




          Campo Grande, MS
               2010
2   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS


                                          PRESIDENTE DA REPÚBLICA
                                            Luiz Inácio Lula da Silva
                                          MINISTRO DA EDUCAÇÃO
                                              Fernando Haddad
                                           SECRETÁRIO EXECUTIVO
                                                 Jairo Jorge
                      SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE
                                          André Lázaro
                                 SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
                                       Carlos Eduardo Bielschowsky
                            UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
                                                    REITORA
                                           Célia Maria da Silva Oliveira
                                                 VICE-REITOR
                                         João Ricardo Filgueiras Tognini

                     COORDENADORA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA - UFMS
                     COORDENADORA DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS
                                      Angela Maria Zanon

                COORDENADOR ADJUNTO DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS
                                 João Ricardo Viola dos Santos

             COORDENADOR DO CURSO DE CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS
                               Antonio Hilario Aguilera Urquiza

                                 Obra aprovada pelo Conselho Editorial da UFMS

           CONSELHO EDITORIAL UFMS                                         CÂMARA EDITORIAL
         Dercir Pedro de Oliveira (Presidente)                                      SÉRIE
     Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento
             Claudete Cameschi de Souza
              Edgar Aparecido da Costa.
                 Edgar Cézar Nolasco
              Elcia Esnarriaga de Arruda
                     Gilberto Maia                                          Angela Maria Zanon
                 José Francisco Ferrari                                 Dario de Oliveira Lima Filho
                  Maria Rita Marques                                   Damaris Pereira Santana Lima
        Maria Tereza Ferreira Duenhas Monreal                          Jacira Helena do Valle Pereira
            Rosana Cristina Zanelatto Santos                     Magda Cristina Junqueira Godinho Mongelli
                  Sonia Regina Jurado
                   Ynes da Silva Felix




                            Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
                    (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

                              Mussi, Vanderléia Paes Leite
                 M989c           Culturas e história dos povos indígenas, módulo 3 : reconhecendo
                              preconceitos sobre os povos indígenas / Vanderléia Paes Leite Mussi,
                              Antonio H. Aguilera Urquiza, Vera Lucia F. Vargas.— Campo Grande,
                              MS : Ed. UFMS, 2010.
                                  58 p. : il. ; 30 cm.


                                   ISBN 978-85-7613-289-9


                                 1. Ensino a distância. 2. Professores – Formação. 3. Educação
                               multicultural. 4. Nativos – Brasil – História I.Urquiza, Antonio H.
                              Aguilera. II. Vargas, Vera Lucia F. III. Título.


                                                                              CDD (22) 371.3944
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   3

                                                                               SUMÁRIO




Apresentação _____________________________________________________ 5


CAPÍTULO I
As Sociodiversidades Indígenas no Brasil ___________________________ 9
História: lições do passado – depois de 1500... _________________________ 9
A outra visão do contato ___________________________________________ 13


CAPÍTULO II
Visão da Literatura ______________________________________________ 15
A explicação na visão do contato ___________________________________ 15
Literatura: lições dos mitos _________________________________________ 18
Literatura: versão dos mitos indígenas
- a explicação do Ritual do Kuarup __________________________________ 23


CAPÍTULO III
Imaginário do Índio Amazônico ___________________________________ 31


CAPÍTULO IV
Desconstrução de Discursos:
Entendimento do Etnocentrismo em Antropologia __________________ 35


CAPÍTULO V
Povos Indígenas:
Múltiplos Olhares e Múltiplos Entendimentos _____________________ 45


ATIVIDADES _____________________________________________________ 53


CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________ 57


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________ 58
4   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   5

                                                                                APRESENTAÇÃO




     O curso de Formação de Professores na temática CULTURAS E
HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS insere-se no processo de consolidação
da Rede de Educação para a Diversidade (REDE), uma iniciativa de várias
instituições do Governo Federal: Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), em parceria com a Universidade
Aberta do Brasil (UAB) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Ensino Superior (CAPES). O objetivo da Rede de Educação para a Diversidade
(REDE) é estabelecer um grupo permanente de formação inicial e continuada a
distância para a disseminação e desenvolvimento de metodologias educacionais
de inserção dos temas das áreas da diversidade, quais sejam: educação de jovens
e adultos, educação do campo, educação indígena, educação ambiental,
educação patrimonial, educação para os Direitos Humanos, educação das relações
étnico-raciais, de gênero e orientação sexual e temas da atualidade no cotidiano
das práticas das redes de ensino pública e privada de educação básica no Brasil.
     Culturas e História dos Povos Indígenas é um curso de formação
continuada de professores de educação básica, com carga horária de 240h
distribuído em módulos, o qual se insere na Rede de Educação para a
Diversidade (REDE). Ofertado na modalidade semipresencial, por meio do
sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), o curso visa formar professores
e profissionais da educação capazes de compreender os temas da diversidade
e, dentre eles, a temática das “culturas e história dos povos indígenas no Brasil”,
e introduzi-los entre os conteúdos pedagógicos e no cotidiano da escola.
     O propósito mais amplo deste curso é a formação continuada de professores,
como forma de procurar responder de maneira dinâmica a uma educação
inserida em uma sociedade cada vez mais dinâmica. Desta forma, o objetivo
mais amplo é promover o debate sobre a educação como um direito fundamental,
que precisa ser garantido a todos e todas sem qualquer distinção, promovendo a
cidadania, a igualdade de direitos e o respeito à diversidade sociocultural, étnico-
racial, etária e geracional, de gênero e orientação afetivo-sexual e às pessoas
com necessidades especiais. Os professores e profissionais da educação têm
como principal desafio garantir a efetividade do direito à educação a todos e
cada um dos brasileiros, estabelecendo políticas e mecanismos de participação
e controle social que assegurem aos grupos historicamente desfavorecidos
6   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                  condições para sua emancipação e afirmação cidadã. Neste sentido, a temática
                  deste curso insere-se neste contexto, que é o de trazer à luz dos conteúdos
                  curriculares a temática das “culturas e história dos povos indígenas do Brasil”,
                  temática silenciada durante tanto tempo e responsável pelo desconhecimento
                  deste importante seguimento do povo brasileiro na atualidade.
                       Este curso de formação continuada propõe módulos temáticos que abrangem
                  um largo espectro dos temas das “culturas e história dos povos indígenas”, visando
                  formar professores e outros profissionais da educação da rede de ensino de
                  educação básica para a promoção e compreensão da educação como direito
                  fundamental e estratégia para a promoção do desenvolvimento humano das
                  diversas populações, para a inclusão de saberes diversos e enfrentamento de
                  todo o tipo de discriminação e preconceito, particularmente contra os povos
                  indígenas. O curso visa também proporcionar o estabelecimento de uma rede
                  de colaboração virtual para a discussão e compartilhamento de informações e
                  aprendizagens sobre práticas pedagógicas inclusivas na escola.
                       Nos últimos anos, principalmente após a Constituição Federal de 1988 e a
                  LDB (lei nº 9394/96), percebemos a emergência de uma nova legislação que
                  insere nos currículos da Educação Básica a proposta de temas referentes à história
                  e cultura afro-brasileira e, ultimamente, à história e cultura dos povos indígenas
                  (Lei nº 11.645/2008). Trata-se de elementos constitutivos de nosso substrato
                  cultural, mas, que por motivos históricos, foi ideologicamente relegado ao quase
                  esquecimento e, quando trazido à tona, foi feito com um viés etnocêntrico e
                  repleto de preconceitos.
                        Educar hoje, para a diversidade e a cidadania, é tratar desta histórica dívida
                  para com os grupos historicamente desfavorecidos e, dentre eles, os povos
                  indígenas e negros de forma objetiva, proporcionando o debate construtivo
                  através do acesso às informações relegadas às novas gerações. Quanto à nossa
                  realidade regional específica, podemos dizer que Mato Grosso do Sul caracteriza-
                  se por ser uma região de fronteiras, de acolhida e, ao mesmo tempo de trânsito.
                  É, na atualidade, o segundo Estado brasileiro em população indígena, contando
                  oficialmente, com 08 etnias, destacando-se dentre elas, os Guarani e Kaiowá
                  com quase 40 mil pessoas, os Terena com 20 mil e os Kadiwéu com 1.500 pessoas.
                  Todos estes povos possuem suas particularidades históricas e convivem com as
                  problemáticas atuais de conflitos agrários, subsistência, preconceitos de todos os
                  tipos, violências, etc.
                       Mato Grosso do Sul é, também, uma porta que está aberta aos circuitos
                  ilegais que integram lugares e economias e desintegram estruturas sociais. O
                  Estado é, na verdade, um laboratório onde acontecem processos fronteiriços e
                  dinâmicos de integração de toda natureza, sejam eles aparentes, dissimulados,
                  legais, funcionais, ilícitos, construtivos, históricos, estruturais ou conjunturais,
                  espaço privilegiado para a discussão dos temas da diversidade e, dentre eles,
                  especialmente o que diz respeito à trajetória histórica e cultural dos povos
                  indígenas.
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   7

     A partir deste conjunto de elementos que conformam nosso contexto regional
serão conjugados, de forma dialógica, os conteúdos teórico-práticos propostos
pelo curso em seus seis módulos (Módulo 01- Conceitos de EAD e ferramenta
Moodle; 02- Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo; 03-
Reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas; 04- Marcos conceituais
referentes à diversidade sociocultural; 5- Projeto pedagógico sobre a temática;
6- Seminário de encerramento), além da avaliação.
    Quanto ao presente texto, referente ao 3º Módulo – Reconhecendo
preconceitos sobre os povos indígenas, é composto por cinco sub-temas,
desenvolvidos na sequência:
     I) Visão da História
     • História: lições do passado – depois de 1500...
     • A outra visão do contato
     II) Visão da Literatura
     • A explicação mítica na visão do contato
     • Literatura: lições dos mitos
     • Literatura: versão dos mitos indígenas – a explicação do Ritual do Kuarup
     III) Imaginário do Índio Amazônico
     IV) Desconstrução de discursos: entendimento do etnocentrismo em
     antropologia
     V) Povos Indígenas: múltiplos olhares e múltiplos entendimentos
     Diante de uma sociedade cada vez mais caracterizada pela diversidade e
seus imensos desafios lançados cotidianamente aos educadores, desejamos a
todos/as que estes conteúdos sejam úteis para embasar reflexões e práticas criativas
sobre os aspectos da diversidade e a necessidade da introdução do tema das
Culturas e História dos povos indígenas nas práticas pedagógicas, sempre
em vista da construção de uma sociedade cada vez mais plural e participativa.
8   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   9

                                                                                CAPÍTULO I




                        As Sociedades Indígenas
                                        no Brasil

                  Este terceiro módulo pretende, concretamente, apresentar elementos es-
                  senciais sobre a questão dos preconceitos a respeito dos povos indígenas
                  no Brasil, para, dessa forma, desconstruir as informações equivocadas e
                  reconstruir as características culturais destes povos e, dessa forma, facilitar
                  as discussões posteriores sobre os temas específicos da história e cultura
                  dos povos indígenas.

       Ao retornarmos no tempo, por meio dos livros de História ou pelos escritos
literários, podemos ver a imagem dos povos indígenas sendo construída de múl-
tiplas formas: como dóceis, passivos, gentis, ou como silvícolas, selvagens,
indômitos, insolentes, preguiçosos. Seja qual for a imagem construída em deter-
minado tempo e em diferentes contextos históricos, os povos indígenas nunca
se apresentaram como sujeitos de nossa História, ou como parte integrante da
construção da nossa identidade latino-americana. Histórica e culturalmente, são
apresentados como seres que estão à margem, aqueles que auxiliam e nunca
constroem; e, dependendo das circunstâncias, são apenas figurantes na constru-
ção da história brasileira, atuando como coadjuvantes de sua própria história. Se
os discursos foram sendo construídos ou por meio dos livros de história ou por
meio da literatura, então, proponho que juntos possamos identificá-los e
compreendê-los, para a partir daí começar um outro movimento circular: o da
desconstrução! A propósito, não podemos nos esquecer, de que todo discurso é
carregado de intencionalidades.



             1.1 História: Lições do Passado
                   - Depois de 1500...
     Após Cristóvão Colombo ter descoberto terra firme, em 1492, na região
que hoje conhecemos como as Antilhas, na América Central, a “descoberta” do
Brasil por Cabral, representava uma virada nos acontecimentos daquela época;
e a chamada “captura” das especiarias asiáticas pelos portugueses também mo-
dificou profundamente a evolução do mundo ocidental.
      Descoberto o Novo Mundo, os interesses europeus misturaram estrategi-
camente a fé com a colonização, e se ambas deveriam caminhar juntas, estaria
aí, então, uma justificativa adequada para a cristianização dos habitantes da ter-
10   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                   ra recém descoberta (os indígenas), de maneira que não oferecessem resistên-
                   cia aos seus interesses exploratórios. Desqualificados como seres humanos, vis-
                   tos como animais sem alma, bárbaros, demônios e seres indômitos... estava
                   justificada não só a necessidade de sua cristianização, como de sua sujeição à
                   civilização afirmada como redentora pelo conquistador. Aqui se constitui o pon-
                   to de partida para a construção das imagens e discursos aplicados aos povos
                   indígenas e que se tem propagado até os dias atuais.
                         Reconhecido o território, Colombo se converteria em um caçador de es-
                   cravos e ávido garimpador de ouro; afinal, eram bens para serem vendidos ou
                   trocados na Espanha, por finas mercadorias. Se o ouro é maleável às mãos do
                   colonizador, os indígenas, entretanto, apesar de considerados bens de uso e
                   troca, não eram totalmente desprovidos de vontade e de resistência a quem lhes
                   feria o corpo e a alma.
                         Convém observar que geralmente os livros de história apontam as especia-
                   rias, a água em abundância, a mão-de-obra dócil e disponível, as safras agrícolas
                   fartas e constantes como sendo os principais fatores que motivaram todo o pro-
                   cesso de colonização e exploração concebido pela metrópole; no entanto, é
                   preciso considerar, também, outro fator que nem sempre é citado, mas foi a
                   causa de muita luta e custou o sangue de milhares de pessoas espalhados pelo
                   sertão do Brasil: o ouro e, no rastro de sua cata, os nativos. A propósito, podemos
                   dizer que o movimento de resistência indígena começa a ser uma constante e
                   ganha mais relevo, junto aos não indígenas, a partir deste período.
                        Não se pretende, com esta reflexão, fazer uma análise crítica dos livros
                   didáticos de História e Literatura; antes disso, o propósito é partir das proposi-
                   ções discursivas de alguns autores e obras, tomando-os como ponto de partida
                   para o entendimento de generalizações e equívocos em relação às comunida-
                   des indígenas, que se cristalizaram com o tempo e se estenderam ao senso co-
                   mum, tendo reflexos negativos até os dias atuais.
                        De modo geral, na História do Brasil os indígenas aparecem como
                   Desqualificados enquanto seres humanos, vistos como animais sem alma, bár-
                   baros, demônios. No livro intitulado: História das Cavernas ao Terceiro Milênio
                   das autoras: Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos Braick a figura dos indígenas
                   aparece no bojo do Descobrimento no item O Olhar dos Vencidos da seguinte
                   forma:
                                         [...] Nativos que devoravam os prisioneiros de guerra, animais exóticos, a
                                         própria exuberância da flora tropical geravam espanto e temor. O que
                                         havia sido encontrado afinal, o jardim do paraíso ou as portas do inferno?
                                         Todavia, o choque e o medo foram ainda maiores entre os nativos do
                                         Novo Mundo. Aos olhos dos indígenas, os conquistadores assemelhavam-
                                         se a figuras monstruosas montadas em outros monstros, os cavalos, também
                                         desconhecidos (Mota, 1997, p. 115).

                         A representação que se faz frente ao processo de descobrimento, traz à
                   tona uma visão eurocêntrica que marca a trajetória de contato. A ressalva que se
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   11

faz é a de que nesta trajetória de contato só aparece nos livros de História a
visão dos “Vencidos” e de forma unilateral. Como tentativa de mostrar os dois
lados apontaremos, mais adiante, a visão de contato que os Povos indígenas
apresentavam sobre os não indígenas.
      Convém observar que na Unidade III do referido livro, no item que trata
dos Nossos Contemporâneos Indígenas, é retomada a discussão chamando a
atenção para os riscos de generalizações no exame da cultura das sociedades
tribais: Sociedades Indígenas a partir das reflexões de Antonella Tassinari. Na
sequência, assume o risco das generalizações, afirmando que a vida social dos
indígenas estava centrada nas relações familiares e no papel que cada elemento
ocupava na comunidade.
     A par dos riscos, as terminologias utilizadas ainda mostram que há falta de
entendimento do que representam tais grupos étnicos no universo Latino-Ame-
ricano e que ainda são muito explicitas as expressões generalizantes; vejamos
como isso ocorre: [...] Os ameríndios dominavam a arte de fazer fogo a partir da
rotação rápida de um pedaço de madeira dura em outro mais flexível. [...] A
tribo era organização social mais abrangente dessas populações. Outro ponto
que nos chama a atenção, além das terminologias generalizantes, é a indistinção
que se faz entre as nações indígenas americanas, registrando na mesma ordem
de apresentação os povos indígenas do Brasil e os povos da América do Norte,
além dos Pré-colombianos (Mota, 1997, p. 158 a 160). Desta forma, os jovens
que estão tendo contato pela primeira vez com documentos escritos tratando da
História do Brasil ainda não têm como discernir o tempo histórico e as
especificidades culturais que permeiam a compreensão de tais grupos étnicos.
Assim sendo, tais visões generalizantes não contribuem, portanto, para o enten-
dimento crítico das especificidades culturais destes povos além de submetê-los
a uma ordem de comparação simplista, e equivocada!
     Neste sentido, a presença dos indígenas nos livros didáticos é quase sem-
pre fragmentada, depreciativa e, muitas vezes, de uma forma secundária, as-
sociando-se a ideia de que falar de “índio” é falar de passado. Nos livros de
História, principalmente, a figura do índio aparece em função do colonizador.
E da mesma forma que aparecem na história do Brasil, acabam por desapare-
cer como um passe de mágica ou simplesmente como uma cegueira histórica!
O problema resultante das sucessivas propostas tanto dos livros de História
quanto dos livros de Literatura é que além de imagens fragmentadas e
distorcidas, conforme já mencionada, tais iniciativas acabam por não preparar
as crianças e os jovens para entender a presença dos povos indígenas nem no
presente e nem no futuro.
     Nesta perspectiva propositiva, Everardo Rocha (1984) aponta que a figura
do índio no livro didático representa uma forma vazia que confere sentido ao
mundo dos não-indígenas (dos brancos). Os indígenas são tidos como seres “alu-
gados” nas Histórias do Brasil, de modo que se constroem as imagens de acordo
com as alternâncias de funções. Por exemplo, em um mesmo livro, eles podem
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                   aparecer de três formas diferentes: em um primeiro momento, no capítulo do
                   “descobrimento” aparece como a figura do “selvagem”, “primitivo”, “antropó-
                   fago”, isso na tentativa de mostrar o quanto os colonizadores europeus eram
                   superiores. Já no capítulo que trata da catequese, a figura do índio é vista como
                   “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas virgens”, o que vem demonstrar o quanto
                   eles precisavam de religião, bem como de “proteção”. E no capítulo posterior,
                   que trata da “etnia brasileira”, a figura do índio já é a de um ser “corajoso”,
                   “altivo”, cheio de “amor a liberdade”, que por ser tão livre era incapaz de
                   trabalhar (Rocha, 1984, p. 17-19).
                        Conviria observar que a gênese da reflexão antropológica é contemporâ-
                   nea ao período do descobrimento. No entanto, de acordo com as concepções
                   de François Laplantine (2006), o Renascimento (séc. XV e XVI) começa a explo-
                   rar espaços até então desconhecidos e a construir discursos sobre os povos que
                   lá habitavam. As primeiras observações e os primeiros discursos sobre esses po-
                   vos provinham, principalmente, dos relatos de viajantes e dos relatórios dos mis-
                   sionários, principalmente dos Jesuítas. Assim, inúmeras questões se colocavam
                   na época a respeito daqueles seres recém descobertos como, por exemplo, se
                   eles eram seres humanos, se pertenciam mesmo à humanidade; se, por serem
                   extremamente selvagens, tinham alma? Com isto, o critério essencial para atri-
                   buir-lhes um estatuto humano era estritamente de cunho religioso.
                        Desta forma, ainda de acordo com as concepções do referido autor
                   (Laplantine, 2006, p.41), entre os critérios utilizados pelos europeus, a partir do
                   século XIV, para conferir ao índio um estatuto humano, além do religioso, con-
                   forme mencionado podemos situar alguns dos comportamentos usuais mais dis-
                   seminados:
                                         [...] a aparência física: eles estão nus ou vestidos de peles de animais;
                                         Os comportamentos alimentares: eles “comem carne crua”, e é todo o
                                         imaginário do canibalismo que irá aqui se elaborar;
                                         A inteligência tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles
                                         falam “uma língua ininteligível (Laplantine, 2006, p.41).

                          Desta forma, o discurso da alteridade vai sendo construído a partir de
                   metáforas zoológicas, ou seja, das associações de condutas iguais às dos animais
                   bem como as referências a variadas ausências como: “sem moral, sem religião,
                   sem lei, sem Estado, sem escrita, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem
                   arte, sem passado, sem futuro”.



                                    1.2. A Outra Visão do Contato
                        No final do século XV e início do século XVI, havia muitas curiosidades e
                   indagações acerca desses “novos” seres humanos, ou seja, os chamados nativos;
                   nesse período, inicia-se a busca por modelos explicativos da diferença. Em um
                   primeiro momento, todos são tomados pelo impacto do novo que causa estra-
                   nheza e perplexidade perante o desconhecido; e a violência ao outro, que
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   13

incomoda e instaura a desordem de um mundo tão estável, como era o mundo
medieval: essa visão de mundo é que iria permear as relações entre povos,
sociedades e culturas.
      O contato físico entre essas culturas tão diferentes pode ser visto como um
longo processo de aproximação e construção de imagens em que, primeira-
mente, houve troca de ornamentos, cujo significado cada um “traduziu” nos
termos de sua própria cultura. No segundo momento, a apreensão do “outro”
foi feita de uma forma bastante violenta, pois, na falta de entendimento desse
“nativo” como um ser autônomo e habitante da terra recém conhecida, o euro-
peu colocou-o como “primitivo”, em uma condição de “atraso” ao desenvolvi-
mento. E assim, ideologicamente a imagem do “outro” e sua cultura, ou seja,
daquele que é diferente de nós, foi sendo construída de forma distorcida: ora
primitivo e violento, ora bonzinho e romanceado, como na história de Iracema,
ora sem alma, bárbaro, incivilizado, entre outras qualificações. Em outras pala-
vras, podemos dizer que ao “outro” foi negado o mínimo de autonomia para
falar de si mesmo (Rocha, 1984 p.16 a 21). Mas afinal, se a ideia do europeu era
a de que os povos nativos, ou seja, os indígenas eram primitivos, atrasados, vio-
lentos, indóceis, preguiçosos... qual era a visão que os indígenas faziam a respei-
to do homem não-indígena?
      Para os indígenas, a origem do homem não-indígena, conhecido como ci-
vilizado, também é alvo de muito interesse, mas também de muitas dúvidas.
Enfim, como seres humanos, indígenas e não-indígenas constroem hipóteses
sobre si mesmos e sobre o “outro”, assuntando seus mistérios e esforçando-se
por decifrar seus enigmas. É como se um dissesse ao outro: “Decifra-me ou te
devoro!”. E o mais interessante é que, para ambos, indígenas e não-indígenas, o
nome é o lume, é a luz, como diziam os gregos, ou seja, dar nomes às coisas é
iluminá-las pelo conhecimento. A linguagem, portanto, desempenha um fator
de grande importância para entendimentos, se bem que, para desentendimen-
tos, também.
      Assim, os povos indígenas, ao se referirem aos brasileiros não-indígenas,
usam termos diferenciados; por exemplo, os Tenetehara (povo do Maranhão e
Pará) quando queriam se referir aos não-indígenas costumavam chamá-los de
“Karaiw”, ou de “Caraíba”, palavra que aparece entre outros povos de língua
tupi desde o século XVI. Os Tupinambá usavam o termo caraíba para se referi-
rem aos seus pajés-profetas, homens com habilidades de falar com os espíritos e
ter sabedoria da previsão. Antes disso, costumava chamar os luso-brasileiros de
“mázán”, termo equivalente a “marinheiro” ou mesmo português.
      Os Tupinambá também costumavam chamar os franceses que estiveram no
Rio de Janeiro de “maíra”, ou seja, “encantado”, terminologia que, na visão
indígena, representava o herói civilizador; posteriormente, passaram a distin-
gui-los por meio de uma expressão que significava “povo de hábitos diferen-
tes”. Já os Avá-Canoeiro, povo tupi do alto Rio Tocantins, chamam ainda hoje os
não-indígenas de “maíra”. Os atuais Guarani, que descendem dos Carijó e
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                   Guarani do século XVI, chamam de juruá, aos não indígenas, termo sem signifi-
                   cado especial, assim como os Terena, do Mato Grosso do Sul, chamam-nos de
                   purutuye.
                         Em síntese, observa-se que nessa concepção indígena, os europeus apare-
                   cem como seres especiais dotados de poderes divinos, ou simplesmente como
                   homens comuns, mas com dons de encantar; já, para os europeus, os indígenas
                   não passavam de seres selvagens, silvícolas, primitivos ou povo sem alma; aliás,
                   até o século XVIII, ainda se tinha dúvida se os indígenas podiam ser considera-
                   dos cristãos, dignos de serem batizados, ou até mesmo se eram seres humanos,
                   indivíduos, gente, conforme já mencionados...
                        Que contraste! Para os indígenas, como se viu, o homem branco era consi-
                   derado um ser supremo, dotado de sabedoria, dons extraordinários e encanta-
                   mentos. Veja que no encontro das culturas cada um, ou cada cultura, possui uma
                   forma diferenciada de olhar. Como percebemos com o relato de Macunaíma,
                   do escritor Mário de Andrade, para uns, Cruzeiro do Sul; para outros, Pai do
                   Mutum. E, acima das diferenças de cultura e de concepção de mundo, as estre-
                   las continuam a brilhar e o céu é para todos!
                         Nesse sentido, quando cada povo, cada cultura se encontra, se conhece,
                   reconhece e interage, vão surgindo explicações cheias de fantasia ou muitas
                   vezes lógicas definitivas: cada um se esforça para impor as suas crenças ao ou-
                   tro, como ocorre com a origem do homem. Assim como existem variadas expli-
                   cações fornecidas pelos estudiosos sobre a origem do homem no continente
                   americano, o mesmo ocorre com os povos não-indígenas, que também buscam
                   fornecer explicações sobre a origem do homem branco.
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   15

                                                                             CAPÍTULO II




                                                                   Visão da
                                                                  Literatura

                   Inicialmente, neste capítulo, estaremos atentos para a compreensão dos
                   (pré) conceitos presentes em alguns dos mais importantes textos literários
                   produzidos sobre os povos indígenas no Brasil, todos eles assumindo uma
                   concepção etnocêntrica, com ligeiras variações quando relacionados aos
                   povos indígenas.




                    2.1 A explicação Mítica
                     na Visão do Contato
     Embora os indígenas não dispusessem dos mesmos recursos tecnológicos
das sociedades não-indígenas, auxiliados por sofisticados instrumentos de preci-
são, eles também fornecem respostas sobre a origem do homem branco, por
meio de explicações míticas. A falta de precisão está diretamente ligada à carên-
cia de conhecimento dos fenômenos físicos, biológicos e humanos. Por exem-
plo, como esses indígenas vão dar explicações geográficas sobre os não-indíge-
nas, quando, na verdade, com raras exceções não ultrapassam os espaços que
percorrem em suas aldeias?
      Mas afinal, em que consiste a preocupação dos indígenas com a origem dos
brancos civilizados e como isso pode ser constatado em suas explicações míticas?
Retomando os estudos de Júlio Cezar Melatti (2007), é possível entender como
isso acontece na prática; mas a “prática”, aqui, deve ser entendida como con-
cepção de mundo, aquela tal de “cosmovisão” de que já falamos e que se mani-
festa nos relatos lendários, ou seja, por meio de narrativas míticas, muito própri-
as da educação indígena. Afinal, nas sociedades indígenas, são as narrativas que
ensinam definitivamente e a conduta do dia a dia é a demonstração concreta de
que a lição foi aprendida.
       Aqui vão dois exemplos muito interessantes. O primeiro mostra que nas
várias aldeias dos índios Timbira, que vivem no sul do Maranhão, e norte de
Goiás, os indígenas acreditam que o homem branco surgiu da transformação de
um menino chamado “Aukê”. A história desse menino era mais ou menos assim:
antigamente não havia civilizados, mas apenas índios. Uma mulher indígena
ficou grávida e toda vez que ia tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu
filho, que ainda não tinha nem nascido, saía do seu ventre e se transformava em
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                   um animal, brincando à beira d’água; depois, a criança voltava outra vez ao
                   ventre materno. A mãe não dizia nada a ninguém.
                        Um dia, o menino nasceu. Aukê, ainda recém-nascido, transformava-se
                   em rapaz, em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia temiam os
                   poderes sobrenaturais de Aukê e, de acordo com seu avô materno, resolveram
                   matá-lo; nas primeiras tentativas, não tiveram sucesso. Conta-se que uma vez,
                   seu avô, em nova tentativa de matá-lo, levou-o para o alto de um morro e em-
                   purrou-o de lá no abismo. O menino, porém, ao cair não morreu, pois virou
                   folha seca e foi caindo devagarzinho, voltando para a aldeia são e salvo! Foi
                   então que o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirar Aukê, o que
                   realmente ocorreu.
                        Dias depois, quando o avô foi ao local do assassinato para recolher as cinzas
                   do menino, achou no lugar uma grande casa de fazenda, com bois e outros
                   animais domésticos. Aukê não havia morrido, mas transformou-se no primeiro
                   homem civilizado e ordenou ao avô que fosse buscar os outros habitantes da
                   aldeia. Todos vieram e Aukê pediu que escolhessem entre a espingarda e o
                   arco. Como os índios ficaram com medo de pegar a espingarda, preferiram o
                   arco. Por terem preferido o arco, permaneceram como índios. Se tivessem es-
                   colhido a espingarda, teriam se transformado em civilizados. Aukê chorou com
                   pena dos índios por não terem escolhido a civilização.
                        Com essa história, em que os índios Timbira explicam a origem dos não-
                   indígenas chamados de civilizados, também é possível depreender alguns con-
                   ceitos e determinadas explicações sobre aquela nação indígena. Por exemplo, o
                   estado de submissão e pobreza em que eles vivem diante dos brancos, ou seja,
                   dos não-indígenas. É importante notar que os “civilizados” conhecidos pelos
                   Timbira são os que estão mais próximos de suas aldeias, destacando-se entre
                   eles os que possuem maiores recursos materiais, ou seja, os fazendeiros, gran-
                   des proprietários e possuidores de gado bovino, considerado de grande valor
                   entre os homens. Por isso Aukê aparece na figura de um fazendeiro criador, por
                   conhecerem bem apenas uma área restrita e estarem submetidos à influência
                   desses ricos proprietários rurais; isso reflete a explicação da origem dos brancos,
                   geralmente poderosos, o que constitui, portanto, uma visão circunscrita à reali-
                   dade em que vivem. A propósito, também convém observar que na explicação
                   mitológica feita pelos Timbira o conceito de “civilizado” é apresentado como
                   uma analogia feita aos não indígenas, ou seja, aos “brancos”.
                        O outro exemplo é retirado da cultura dos Kadiwéu, que habitam a região
                   do Estado de Mato Grosso do Sul; são remanescentes dos índios “Guaykuru”,
                   que domesticaram o cavalo e com ele dominaram toda a região, mantendo os
                   grupos indígenas de outras procedências étnicas em um sistema semelhante ao
                   da “vassalagem”, onde havia trocas de proteção por alimentos e mulheres. Con-
                   tam que até mesmo os espanhóis e portugueses foram aprisionados pelos
                   “Guaykuru”. Seus guerreiros, para se defenderem dos inimigos, costumavam
                   cavalgar dependurados na crina do cavalo, no sentido horizontal, para não se-
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   17

rem vistos. Quando corriam pelos campos, quem os via da posição contrária,
tinham a impressão de que eram apenas cavalos selvagens, correndo em dispa-
rada.
      Bem, mas voltemos à explicação dos Kadiwéu sobre a origem do homem
branco. Conta a história, que os próprios Kadiwéu (e outros povos, como os
Terena, os Kinikinau, os Kaingang, os bolivianos, enfim, todos os homens) foram
tirados pelo herói “Go-noêno-hôdi” de dentro de um buraco. Enquanto outros
povos receberam do herói terras e outros dons, os Kadiwéu não receberam
nada, ficando somente com o privilégio de lutar contra os outros, tomando-lhes
os seus bens. O mito, portanto, explicava não somente a origem dos povos, mas
também os seus princípios de dominação e a relação com outros povos. Em uma
versão mais atualizada deste mito, os Kadiwéu não esperaram mais o herói “Go-
noêno-hôdi”, que fora buscar seus patrícios, ou seja, mais presentes para eles.
Saindo da letargia da espera, os Kadiwéu foram buscar alimentos, como frutas e
mel nas matas. Ao regressar, o herói disse para os Kadiwéu que eles poderiam
ficar como estavam, ou seja, livres pelos campos, lutando por sua subsistência;
quanto aos demais povos, deveriam fazer o seu próprio roçado, fixando-se em
algum lugar.
     Ao prestar a atenção
aos dois mitos, tanto o                                   SAIBA MAIS!
Timbira quanto o Kadi-       Que a história dos índios guaicurus está ligada à inserção do cavalo em
wéu, observe que a pre-      terras da América espanhola, em 1541. Chegando da Espanha, o novo
ocupação com a ori-          Governador Nuñez Cabeza de Vaca, sabendo que o povoado de
gem do homem não-in-         Buenos Aires encontrava-se abandonado, resolveu viajar por terra com
dígena estava ligada à       seus soldados da Ilha de Santa Catarina, até Assunção do Paraguai, em
percepção da diferença       lombo de cavalo. Chegando ao rio Paraná, encontrou os índios guaranis
de posses: o homem           que, na troca de presentes, o auxiliou na construção de jangadas, ser-
branco marca a sua pre-      vindo de transporte para navegarem rio abaixo até Assunção. Em terri-
sença – e sua existência     tório brasileiro, os cavalos se reproduziram e foram caçados pelos
no mundo- como possui-       guaicurus. Foram domados pelos índios e acabaram sendo utilizados
dor de coisas que os in-     tanto nas caçadas, quanto nas guerras contra os inimigos. Os guaicurus
dígenas gostariam de ter,    se tornaram tão exímios cavaleiros que ao se dependurarem na crina
na suposição de torna-       do cavalo, tornavam-se “invisíveis” aos olhos do inimigo, pois ao cor-
rem a vida de todos mui-     rerem de lado davam a impressão de que os cavalos estavam sozinhos
to mais fácil e agradável!   (Trecho do texto retirado do livro de Acyr Vaz Guimarães: Quinhentas
     Se as narrativas de-    Léguas em Canoa de Araraitaguaba às Minas do Cuiabá: as monções
monstram que a imagem        Paulistas, 2000).
do outro fica sempre
distorcida ou desfocada,
numa clara deficiência de compreensão, o que é necessário fazer para que não
ocorra tanto estranhamento entre ambas as partes? Na visão que um faz do
outro é preciso relativizar essa diferença, ou seja, na forma de uma cultura en-
tender a outra, a diferença não deveria se transformar em hierarquia, em supe-
18   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                   riores e inferiores, ou em bons e maus. O importante seria que se percebessem
                   mutuamente em sua dimensão maior: a riqueza por serem diferentes e o orgu-
                   lho de terem identidade cultural.



                                   2.2 Literatura: Lições dos Mitos
                                         Meus senhores e minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do
                                         Mutum! Juro que é o Pai do Mutum, minha gente, que está lá no campo vasto
                                         do céu! (Mário de Andrade – Macunaíma)

                         Quem nunca ouviu falar do grande literário Mário de Andrade? Ele foi um
                   dos maiores escritores da literatura brasileira. A literatura contribuiu muito para
                   a formação de uma identidade cultural e para a construção de discursos; se lidos
                   de forma distorcida, esses discursos resultam em uma visão preconceituosa. Rei-
                   terando o que já foi mencionado, não é propósito fazer aqui uma critica à His-
                   tória nem tampouco à Literatura, mas mostrar como, por meio da História e da
                   Literatura, os discursos foram sendo historicamente construídos.
                        Retomando a epigrafe de Mário de Andrade, podemos dizer que não ouvi-
                   mos o choro de Macunaíma, tão longe que estava lá no fundo do Mato-Virgem.
                   Mas ele com certeza chorou como todos nós fazemos ao nascer. Esse indiozinho
                   preguiçoso, segundo o escritor Mário de Andrade, representa todos os brasilei-
                   ros e brasileiras que, como ele, querem exercer o seu direito de viver, crescer,
                   amar, trabalhar, se divertir... Por sinal, o folgado do Macunaíma, quando cres-
                   ceu, queria ter direito a tudo, menos ao trabalho; não que o índio não gostasse
                   de trabalhar, mas a forma como eles concebem as relações de trabalho é bem
                   diferente da forma que os não indígenas entendem. Os indígenas não trabalham
                   para acumular riquezas, eles trabalham para sobreviver; o tempo deles não é
                   para ficar em torno do relógio controlando o horário de entrar no serviço. Até
                   porque eles têm outras atividades que consideram tão importantes quanto tra-
                   balhar como, por exemplo: conversar com os filhos à beira da fogueira contan-
                   do-lhes a história de sua aldeia, de sua geração passada; ensinar os filhos a fazer
                   redes, cestos, trançados, cerâmicas; a dançar, rezar, nadar, pescar, correr pelas
                   matas - não podemos esquecer que alguns indígenas já não têm mais matas para
                   correr e nem rios para pescar-.
                        O entendimento do que significa trabalho e tempo dedicado a esta ativida-
                   de vai variar de acordo com cada cultura, com cada povo. Alguns povos indíge-
                   nas, por exemplo, dedicam apenas três a quatro horas por dia para a realização
                   de atividade de subsistência; para eles o trabalho exerce mais uma função social
                   do que capitalista1, o que será detalhado mais adiante. Interessa no momento
                   chamar a atenção para duas expressões; “preguiçoso” e “folgado”, que, sugeridas
                   por Mario de Andrade e disseminadas no senso comum, contribuíram para pro-


                   1
                     Sobre a questão do trabalho nas sociedades indígenas ler SAHLINS, Marshal. A Economia da
                   Idade da Pedra. 2a. Edição. Akal editor, 1977, 1983.
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   19

pagar a ideia de que o índio é preguiçoso e não gosta de trabalhar. Na realidade
é mais fácil incorporar tal proposição ao discurso, do que conhecer a forma de
organização social desses grupos para então entender as tão variadas formas e
concepções de trabalho. Para alguns grupos indígenas, o trabalho não tem o
nosso entendimento porque não precisam de dinheiro para a subsistência.
      Atualmente, são poucos os povos indígenas que vivem da caça e da pesca;
há muitos povos que não têm matas para caçar e nem rios mais para pescar,
passando a viver nas cidades em busca de alternativas de vida, ainda que mise-
ráveis. Se perguntarem para alguns desses povos o que querem na vida, com
certeza gostariam de viver como antes: em matas ricas com abundância de caça
e frutos, rios férteis de peixe (como ainda ocorre no Xingu), espaço para as roças
coletivas, plantas nativas para o preparo de remédios e muita lenha para manter
a roda do fogo e a chama acesa de suas tradições.
     E por falar em tradição, já voltando às lições dos mitos e fechando esta
discussão sobre a economia, vamos ver o que está dizendo o nosso herói,
Macunaíma, para as pessoas ao seu redor? Parece até um político fazendo dis-
curso em véspera de eleição... Bem, você que o viu nascer, lá no fundo do
Mato-Virgem, não deve ter se esquecido dele, não é mesmo? Como pode per-
ceber, ele já está falando e está todo cheio de sabença, corrigindo as ideias das
pessoas. Pois saiba que Macunaíma deixou a sua aldeia tapanhuma
e resolveu ir para São Paulo, em busca da muiraquitã, o seu
amuleto da sorte, como fazem muitos indígenas brasileiros, em
busca das grandes cidades. E essa é uma realidade ainda mal
conhecida, e cheia de preconceito por parte dos não indíge-
nas; é preciso conhecer melhor a vida desses indígenas que
vivem em contextos urbanos e como têm reorganizado suas vi-
das em um meio tão hostil; quais são as estratégias de inserção,
com pessoas indiferentes às suas dificuldades de adaptação2.
     Voltemos ao nosso herói: bem no meio da cidade, ele corrige as pessoas,
dizendo que o Cruzeiro do Sul, na verdade, é uma grande ave de asas abertas,
o mutum, pai de todos os mutuns que povoam as nossas matas. O que é o mutum?
Ora, é uma ave negra, de grande porte, que lembra, mais ou menos, um peru;
para Macunaíma, esse mutum feito de estrelas é o pai de todos os mutuns da
terra. Bonito, não é mesmo? Pois é assim que muitos povos indígenas pensam a
respeito da origem das espécies e até do próprio homem; eles são muito inte-
ressados em saber sobre os seus antepassados: em seus mitos, ora afirmam que
são descendentes de grandes guerreiros da própria região; ora de navegantes
vindos de outros continentes, que aqui desembarcaram, espalhando-se por todo
canto; e há mitos, também, que sugerem a origem mágica de sua aldeia, fruto



2
  Sobre a temática dos indígenas em contextos urbanos ver: Mussi, Vanderléia Paes Leite. As
estratégias de inserção dos índios Terena: da aldeia ao espaço urbano (1990-2005). Tese de dou-
torado. UNESP Campus de Assis - São Paulo, 2006. 332 f.
20   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                   da vontade de algum deus. É esse pensamento mítico dos indígenas que dá ao
                   nosso herói Macunaíma a certeza sobre a origem dos seres do mundo.
                         Nos dias de hoje, esse é o grande problema na relação entre culturas dife-
                   rentes, ou seja, há uma grande falta de sensibilidade com a visão de mundo de
                   pessoas que são de culturas diferentes da nossa. Afinal, nós temos de nos educar
                   a aceitar como verdadeiras, também, outras concepções da vida, diferentes da
                   nossa. Como vimos em relação à constelação apontada por Macunaíma, para
                   uns é o Cruzeiro do Sul, para outros, o Pai do Mutum; e indiferentes aos nomes
                   que recebem dos homens, as estrelas não deixam de ser o que são e continuam
                   a brilhar no campo vasto do céu, não é mesmo?
                        Neste ponto da conversa, seria importante deixarmos um pouco o nosso
                   herói e companheiro nessa longa viagem histórica e cultural de Macunaíma.
                   Mas, por enquanto, vamos deixá-lo à vontade, lá na cidade de São Paulo, tentan-
                   do convencer as pessoas de que o Cruzeiro do Sul, nada mais é do que o Pai do
                   Mutum; pelo visto, a discussão ainda vai se alongar noite adentro e nós temos
                   um outro ponto também importante no entendimento da construção destes dis-
                   cursos. De momento, podemos retomar outras personagens da nossa literatura,
                   como Iracema e Martim, protagonistas do romance Iracema, do escritor José de
                   Alencar. Vamos acompanhar a conversa entre a virgem dos lábios de mel e o
                   guerreiro português, perdido nas matas densas dos índios tabajaras, no interior
                   do Ceará. E o guerreiro diz a Iracema:
                                         _Quebras comigo a flecha da paz?
                                          _Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Don-
                                         de vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
                                          _Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos
                                         já possuíram, e hoje têm os meus.
                                          _Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldei-
                                         as, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.

                        Como podemos depreender, Iracema e Martim estão selando um pacto de
                   amizade, em plena floresta. Só para satisfazer a sua curiosidade, saiba que Martim
                   chegou repentinamente ao lugar em que Iracema tomava banho de sol e, muito
                   assustada, o feriu com uma flechada, mas logo se arrependeu e cuidou do rapaz.
                   Para um bom leitor, já dá para perceber que a flecha que feriu Martim é a
                   própria flecha do Cupido, não é mesmo? É ler para conferir, pois o romance é
                   uma das obras-primas do Romantismo brasileiro, um verdadeiro hino de louvor
                   à nossa cultura e à nossa história.
                         Porém, o assunto que nos diz respeito é outro; observe como o escritor
                   cearense dá a sua versão poética a respeito dos primeiros contatos entre os
                   colonizadores portugueses – ou invasores?- e o então chamado gentio, isto é,
                   aquele que não era cristão. De forma figurada, o autor sugere que foi uma rela-
                   ção de amor, sem dúvida, mas marcada pelo sacrifício. E, apesar de ter sido
                   Martim o ferido, a história reverte a situação e marca o nativo pela dor da colo-
                   nização. Observe, também, que Martim está no interior do território cearense,
                   nas terras tabajaras, ainda invioláveis, vindo de outro território brasileiro, já con-
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   21

quistado. São terras que os indígenas já possuíram, mas agora estão nas mãos dos
portugueses que, aos poucos, vão tomando tudo o que a vista alcança. E que
vista gulosa tinha o colonizador português! Foram empurrando as fronteiras do
território, ainda desconhecido, até onde puderam, plantando fortificações, ar-
raiais e vilarejos ao longo de suas jornadas de conquista. Como terão sido os
contatos com os indígenas, para além da romanceada visão de José de Alencar?
Que concepções de homem e de mundo foram sendo construídas no contato
entre os europeus e os indígenas na visão do autor? Ora, pelo excerto acima já
é possível depreender que nesta relação do contato apresentada por José de
Alencar não houve resistência, não houve conflito, mas um grande pacto de
amizade que resultou em uma linda história de puro romance... E, mais uma vez
a se cria a ideia do indígena “passivo”, receptivo e incapaz de resistir a qualquer
ação contrária a sua concepção de mundo.
     O autor Julio Cesar Melatti (2007) chama a atenção para o fato de que além
dos romancistas e poetas brasileiros José de Alencar e Gonçalves Dias, serem
divulgadores dessa “visão romântica do índio: altivo, cortês e corajoso”; tam-
bém foram propagadores de informações etnográficas errôneas. Segundo Melatti,
José Alencar faz a índia Iracema atirar flechas, quando, na realidade entre os
indígenas, somente os homens usam o arco e flecha. Já com relação a Gonçalves
Dias, que não incluímos aqui nesta reflexão, mas que também tem sua parcela
de contribuição na literatura brasileira, ao escrever Os Timbiras, por sua vez,
“atribui aos Timbira, que são índios da família lingüística Jê, costumes que per-
tenciam aos Tupinambá, tronco linguístico Tupi. Já em I-Juca-Pirama, aos Timbira
era atribuído o uso da antropofagia e do cauim (bebida feita através de fermen-
tação de milho e/ou mandioca); em Os Timbiras, eram atribuídos aos persona-
gens de nomes Tupi (Melat7i,2007, p. 175). O autor informa ainda que Gonçal-
ves Dias demonstrou conhecimento da época a respeito dos índios quando
escreveu Brasil e Oceania e que sua opção pecos Timbira como um dos princi-
pais objetos de seus poemas indigenistas tenha ocorrido pelo fato de que estes
indígenas eram provenientes do Maranhão, terra do poeta. A questão do equí-
voco se deu por ter atribuído costumes Tupinambá aos Timbira por não conhe-
cer nenhum costume dos Timbira; e também porque considerava os costumes
dos Tupinambá como sendo mais nobres e altivos.
     Bem, mas ao falarmos de literatura brasileira temos de considerar as duas
visões literárias: os mitos indígenas a partir da cosmovisão dos indígenas bem
como a visão literária do não indígena a partir das concepções ocidentais, a
partir da realidade indígena. Para isso, vamos retomar o mito do Quarup escrito
por Antônio Callado:
                   Ninguém ia dormir cedo aquela noite no Posto Capitão Vasconcelos. Vilar
                   transformava o trabalho do quarup numa espécie de violento folguedo. (...)
                   Os jiraus do moquém afogueados pelos braseiros transbordaram do terreiro,
                   se espalhavam pelas cercanias. As tribos recém-chegadas davam sua mãozi-
                   nha aos anfitriões. Cuias de caxiri circularam. Mulheres puseram-se a dançar
                   em fila. E voltava Vilar segurando pela proa, acima da cabeça avermelhada
22   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                                         pelo fogo, uma ubá com os últimos peixes (...). A ubá foi despejada no meio
                                         do terreiro e até os curumins e cunhantãs às gargalhadas puseram-se a esca-
                                         mar peixe, a limpar peixe, a botar peixe nos moquéns. (...)
                                         Maivotsinim criou a raça humana fazendo quarups, com os quais criou os
                                         homens, homens como Canato, Sariruá, Apucaiaca e o Anta, que agora fazi-
                                         am quarups para criar Maivotsinim. (Quarup – Antônio Callado – Círculo do
                                         Livro, p. 179 e 187)

                         O romance Quarup3, do escritor Antônio Callado, é uma das mais impor-
                   tantes obras da literatura brasileira contemporânea. É a história do padre Nando,
                   que deixa o mosteiro franciscano onde vivia, no Recife, e parte para o Xingu
                   com o objetivo de conhecer o mundo e os índios. O seu sonho era o de recons-
                   truir em plena Amazônia, uma sociedade harmoniosa e socialista, como fizeram
                   jesuítas e índios guarani, no século XVIII, no sul do País. Assim que chegou ao
                   Posto Capitão Vasconcelos, Padre Nando teve a rara oportunidade de acompa-
                   nhar a organização de uma das cerimônias indígenas mais importantes, o quarup.
                   Como você percebeu no excerto acima, Vilar, uma espécie de empreiteiro de
                   obras, está ajudando a trazer o peixe que será servido na cerimônia; é tanto
                   peixe que vem carregado em uma canoa, a ubá, para ser despejado no meio do
                   terreiro.
                        Você notou como tudo é feito com grande alegria? As mulheres dançam e
                   todos bebem o caxiri, uma bebida feita à base da fermentação da mandioca. Até
                   as crianças, curumins (meninos) e cunhantãs (meninas), ajudam os adultos no
                   preparo da comida, escamando o peixe e, com certeza, preparando o beiju,
                   para os convidados. Sim, observe que os convidados vão chegando e já entram
                   no clima da festa, também ajudando no preparo da comida. Se nos concentrar-
                   mos um pouco na história, dá até para sentir o cheiro do peixe sendo assado no
                   moquém. Sabe o que é um moquém? É onde o peixe é moqueado, isto é, assa-
                   do; para isso é feita uma armação de varas verdes, parecendo uma grelha, com
                   o fogo por baixo. Tudo muito bem feito, para não causar risco aos que preparam
                   e aos que comem.
                        Mas que festa é essa, tão importante, a ponto de dar nome a um romance
                   famoso da nossa literatura? Observe no excerto acima, que um tal de Maivotsinim
                   criou os homens, por meio de quarup... Pelo visto, esse criador de homens é
                   uma divindade indígena que merece todo respeito, porque, afinal, é o pai da
                   humanidade; mais interessante, ainda, é que esse pai, depois de ter criado o
                   homem, precisa ser constantemente recriado, pelos seus próprios filhos, na ce-
                   rimônia do quarup. O quarup, portanto, é uma festa ritualística em que os indí-
                   genas se reconciliam, se unem ao seu criador e reverenciam os seus mortos, de
                   uma forma alegre e cheia de prazeres: muita comida, muita música, muita dan-
                   ça, além da conversa descontraída com amigos e parentes... Mais uma bonita


                   3
                     Convém observar que no romance de Antonio Callado, Quarup é grafado com “Q”; já no
                   estudo de Pedro Agostinho o nome é grafado com “K”, obedecendo às normas padronizadas e
                   aspectos linguísticos estabelecidos pela Associação Brasileira de Antropologia para grafar nomes
                   Indígenas.
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   23

tradição, mais um mito indígena que nos mostra a sensibilidade deste povo com
seus antepassados míticos, que foi incluído na literatura brasileira.



                     2.3 Literatura:
              versão dos mitos indígenas
          – a explicação do Ritual do Kuarup
      De acordo com os estudiosos, as cosmologias indígenas representam mo-
delos complexos, dos quais faz parte a sociedade humana. Os mitos são narrati-
vas que procuram responder sobre a origem da própria existência; são veículos
de informação sobre a concepção do Universo, ou seja, sobre a forma de cria-
ção do mundo, a origem do “homem branco”, os rituais da agricultura, as rela-
ções ecológicas entre animais, plantas e seres humanos; enfim, sobre a existên-
cia de todos os seres da face da terra. Essa palavra (mitho) é de origem grega e
significa exatamente isso: uma história, ou narrativa, por meio da qual os ho-
mens explicam os mistérios da vida e do mundo. Você já ouviu falar de um mito
grego que procura explicar a origem do eterno sofrimento humano, no esforço
interminável pela sobrevivência? Leia então a história (ou o mito) de Sísifo... é
muito interessante.
      Falamos que as cosmologias indígenas representam modelos complexos,
mas afinal, o que isso significa? Não é tão difícil de entender e, para isso, nada
melhor do que uma explicação com exemplos: relata-nos uma estudiosa, Alcinda
Ramos (1995), que entre os povos indígenas Sanumá (Yanomami) que vivem no
norte de Roraima, quando uma criança nasce fisicamente normal, dias depois
do nascimento, seu pai vai caçar. O nome do animal que ele caçar será dado à
criança, isto é, se ele matar uma onça a criança será chamada de onça. Assim, o
pai literalmente sai para caçar o nome do(a) filho(a); por conta disso, a caçada
deve ser feita com muita atenção e cuidado, porque, além do nome, a criança
também receberá do animal morto um certo espírito que, ao morrer, se instala
em seu corpo.
     Ao trazer o animal amarrado em um cipó para casa, o pai deve trazê-lo
com todo cuidado possível e, ao chegar em casa, os parentes de sua mulher
preparam a carne do animal caçado e a distribuem para todos da casa. Nem a
mãe e nem o pai da criança devem comer da carne, porque acreditam que, ao
comê-la, podem colocar em risco a vida da criança recém-nascida. Logo, so-
mente os parentes consanguíneos da mulher (mãe da criança) poderão comer e
dizer se a carne é de boa qualidade ou não. Se a carne for de boa qualidade,
eles acreditam que a criança viverá; caso contrário, eles acreditam que a crian-
ça morrerá.
    Se fizermos uma interpretação desse “mito”, do ponto de vista material, ou
de um outro ponto de vista estranho à cosmologia dos sanumá, essa caçada
poderia significar apenas uma forma corriqueira e festiva de fornecer carne à
24   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                   aldeia. Portanto, os sanumá, quando vão caçar para o ritual de denominação de
                   um recém-nascido, têm bem clara a sua responsabilidade familiar e tribal; a
                   obrigação do pai não é só a de “caçar” um nome e um bom futuro para o seu
                   novo filho, ele também tem um sério compromisso com os seus antepassados,
                   que o ensinaram e continuam ensinando a ver o mundo, a entender o universo,
                   a criar os filhos e a entender a própria existência.
                         Na sociedade não-indígena, quando uma criança nasce é fornecida a ela
                   um nome, sem necessariamente o pai ou a mãe saírem para o mato caçar; o
                   critério de escolha é bem diferente e cada família tem o seu jeito de escolher o
                   nome de seu filho(a). Se fizermos uma leitura do ritual sanumá do ponto de vista
                   economicista, ou até mesmo de forma apressada, a caçada não representaria
                   mais do que uma forma de fornecer carne à aldeia. Os sanumá quando vão
                   caçar, têm muito claros os seus compromissos míticos e tribais; sabem que têm
                   responsabilidades não só com o seu novo filho como também com os seus ante-
                   passados: foram eles que os ensinaram a ver o mundo, a entender o universo, a
                   criar os filhos, a entender a própria existência (Ramos, 1995, p. 24 e 25).
                        Mas retomemos outros rituais, aqui tratados, como o Kuarup. Na versão
                   escrita por estudiosos da área, é possível compreender melhor as nuanças so-
                   bre esse importante ritual, de forma menos romanceada e mais próxima da
                   realidade e destes povos. No estudo realizado por Pedro Agostinho, a festa do
                   Kuarup é realizada pelas aldeias indígenas do Alto Xingu que visam vivificar a
                   lembranças das origens do cosmos xinguano, que cria o mito de, Mavutsini, no
                   Murená – centro do mundo. Com esse mito de origem o cosmos foi estabele-
                   cido no universo xinguano e sua harmonia somente foi quebrada com a morte
                   da mulher mãe primordial, mulher fabricada por Mavutsini e mãe dos gêmeos
                   Kwat e Yaí. Nas palavras de Agostinho (1974, apud. Marchezan, 1990, p. 97) é
                   “a irrupção da morte, o afastamento do ideal estabelecido pela narrativa
                   paradigmática e mítica” (Agostinho, 1974, apud. Marchezan, 1990, p. 97).
                   Convém observar que nesta versão literária, não aparece a figura do Capitão
                   Vasconcelos nem a do Padre Nando, mas unicamente os membros da comuni-
                   dade indígena.
                         De acordo com o autor, a morte tem a função de reorganização social, pois
                   quando desorganiza o cosmos xinguano, se funda o caos. Neste sentido, quando
                   morre um membro da comunidade, todo o grupo precisa se reestruturar diante
                   de tal perda. Assim sendo, a celebração do Kuarup exerce esta função: a de
                   reorganizar de tudo, a fim de restabelecer a ordem social. O mito precisa ser
                   ritualizado para que não haja o sentimento de alguma desintegração da comuni-
                   dade tribal. Repondo a perda do mundo xinguano, “o mito é a expressão viva
                   dos tempos primordiais, ideais, quando tal perda não existia”.
                        O comportamento mítico-religioso e ritualístico dos indígenas do Xingu busca
                   esse ideal e acaba por atingi-lo simbolicamente no ritual do Kuarup. Acham-se,
                   assim, “reintegrados na mitologia xinguana, na sua comemoração. Sua cultura é
                   reativada, como foi a cosmovisão de seu grupo”.
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   25

     Desta forma, fazendo-se um Kuarup, cria-se alguém, lembra-se um ente
querido e todas as demais aldeias vizinhas comparecem para participar do ritu-
al. “O Kuarup faz a passagem do indefinido (caos) para o estruturado, o cosmos,
mantendo viva a lembrança das origens, da criação dos primeiros seres huma-
nos, quando a morte não era conhecida”. Neste ritual o Kuarup apaga a presen-
ça da morte e acaba por repor a vida no mundo xinguano.
      É por isso que no ritual do Kuarup é trazido um tronco de madeira e a madei-
ra que, segundo os xinguanos, é a própria substância de onde vieram. Esse tronco
é que repõe a perda, de acordo com o paradigma da narrativa mítica. Com isto, o
ciclo Kuarup, para Marchezan (1990, p. 197), “corresponde a um recriar simbóli-
co do cosmos xinguano, cujas características sociais básicas se expressam pela
própria estrutura e conteúdo mítico da festa, recriar esse em que as forças destrutivas
da morte e da desintegração social se vencem, e a partir do qual nova vida ressur-
ge, num estruturar de vitalidade” (Marchezan, 1990, p. 197). Logo, o Kuarup é
um ciclo de festas que começa em um ritual fúnebre em uma festa de luto. Esse
ritual tem seu ponto de partida em um grupo de indígenas de uma mesma aldeia,
os (enterradores) dirigindo-se aos enlutados (donos de um morto líder ou de linha-
gem dessa aldeia) que propõem o enterro pelo Kuarup.
      A morte de um líder ou de uma linhagem do povo xinguano é perigosa para
a aldeia e parentes próximos. Com isto, torna-se necessária a “reparação do dano”,
ou seja, para que o funcionamento da aldeia ocorra e a reparação seja feita, é
realizada, por meio do ciclo do Kuarup, a organização social dessa festa, em que,
segundo comentários de Luiz Gonzaga Marchezan apoiando-se nos estudos de
Pedro Agostinho (1974), os indígenas do Xingu “mergulham no início dos inícios
de seus mitos de origem e reintegram o presente no passado, anulando assim o
tempo de conflito e dor em que os deixou o acontecimento de uma morte”.

                                           RITUAL KUARUP




                Fonte: http://silnunesprof.blogspot.com/2010/04/homenagem-aos-nossos-iraos-nativos.html
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                       Na concepção indígena, a vida está presa, portanto, a uma teia de relações
                   que podem ser conferidas na íntegra do estudo do autor:
                                         VIDA

                                         1 – Ao nascer um ser humano, a natureza contrai um crédito com a comuni-
                                         dade (através do grupo familiar desse recém-nascido).

                                         2 – A comunidade, com esse nascimento, contrai um débito com a natureza,
                                         assumindo esse crédito com a família.

                                         3 – E a família contrai um débito com a comunidade.

                                         Após a morte de indivíduos importantes para a comunidade, essa relação
                                         entre crédito e débito, esse contrato, precisa ser resolvido. A resolução vem
                                         num outro contrato, num outro pacto, que dá origem ao ciclo do Kuarup, ao
                                         ritual funerário do Kuarup, propriamente dito.

                                         A morte prende-se a outro tipo de reações:



                                         MORTE

                                         1 – A família (o grupo familiar, dono do morto) precisa pagar o débito (da
                                         vida de um de seus elementos) com a comunidade (que contraiu por ela um
                                         débito com a natureza, com o nascimento dessa criatura. O grupo familiar
                                         (dono do morto) precisa entregar o morto à comunidade (representada pelos
                                         enterradores).

                                         2 – A comunidade (enterradores) paga o débito à natureza enterrando, en-
                                         tregando a ela o morto.

                                         O grupo familiar, dono do morto, está pagando seu débito junto à comunida-
                                         de quando deixa entrar em seu espaço privado o cortejo de pessoas alheias
                                         a esse espaço (os enterradores) e deixa levar o morto do espaço familiar,
                                         íntimo, ao seu espaço de retorno à natureza- a sepultura, no centro da aldeia.
                                         Nesse ato o contrato tribal é cumprido. Contrato, de acordo com a etimologia
                                         da própria palavra, significa pacto, pacto para o começo de um novo assunto;
                                         é a ação de inicio desse novo assunto:



                                         CONTRATO

                                         1 – A família paga seu débito à comunidade (recebendo da natureza alguém
                                         vivo e entregando-lhe morto).

                                         2 – A comunidade paga seu débito à Natureza (devolvendo morto alguém que
                                         havia recebido vivo, através de uma família sua); substituindo a morte pela
                                         vida, através do Kuarup, a figura de madeira que é a essência da vida xinguana.

                                         Após enterro, enlutados e enterradores renovam sua pintura; esse fazer sem-
                                         pre se repete nas etapas do ciclo do Kuarup depois dos ritos funerários. Em
                                         continuidade ao percurso da festa, estabelece-se um novo entendimento
                                         entre os enlutados e os enterradores: estes pedem autorização para a cons-
                                         trução do “apenap” – uma “cerquinha baixa e feita de troncos que rodeia
                                         temporariamente as sepulturas (Pedro Agostinho, 1974, p. 56; apud.
                                         Marchezan, 1990). Novamente fica instaurada a relação entre enterradores
                                         e donos dos mortos.
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   27

Renasce a idéia da Vida

A prestação de serviços, pela troca é, portanto, feita entre os indígenas,
relacionando os mundos da natureza e da cultura. Da mesma forma o im-
plante do Kuarup não deixa de refletir relacionamento idêntico entre aque-
les dois mundos. O Kuarup reproduz a idéia de reposição na cultura xinguana
(já dissemos que a madeira é tida como a essência do xinguano): ele repõe
alguém à Mãe Terra, saldando o débito da comunidade junto à Natureza,
para que esta continue contribuindo com comida, com vida. Por isso é fre-
qüente a troca de serviços por comida em todo o ciclo do Kuarup; ela apare-
ce em várias etapas que vão conquistando a vida nas constantes relações,
envolvidas nas trocas, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura, que
levantam o luto da comunidade tribal, até um banho simbólico realizando
que marca afinal do luto.

O Kuarup é plantado numa procissão idêntica à do enterro. As flautas uruá
previamente anunciam essa etapa. Segundo Pedro Agostinho, o alto de im-
plante do Kuarup rememora, através dos marakaip (cantores) que cantam
ao seu redor, o acontecimento mítico do ato criador.

O tronco da árvore é tra-               O tronco (ou troncos) de
Zido da mata, na horizon-               árvore é colocado no
Tal, oculto, indefinido,                meio do terreiro, na ver-
“morto”. O tronco vem da                tical, definido Kuarup
Natureza. É um crédito                  “tal”, “vivo”. A comunida-
Que a natureza dá à co-                 de, com o crédito obtido
Munidade para que ela                   junto à natureza, substi-
Promova outra vida.                     Tui uma morte, pagando
                                        Seu débito com a nature
                                        Za. Normaliza sua vida
                                        Tribal.


MORTE                  X                VIDA



Luta: um ritual intertribal pela vida

A luta (huka-huka) é o clímax do Kuarup, inaugurando uma nova etapa de
vida numa comunidade xinguano, uma vez que a perda ocorrida nessa tribo
xinguana já está, nesse momento, reposta dentro do espaço comunitário. O
pacto tribal já está novamente firmado.

A luta representa então um pacto intertribal, geral, após a reposição de uma
vida, cujo resgate pela tribo dá à comunidade um novo crédito. Esse novo
crédito está representado no substituto da vida, na figura de madeira, no
Kuarup; mai especificamente, o crédito está simbolizado no cinto do Kuarup,
um adorno que passa a ser o prêmio da comunidade na disputa intertribal,
que se resume numa luta.

Com essa prática instaura-se novamente entre a comunidade xinguana a
adversidade tribal e completa-se, assim, o resgate da vida suspensa durante
o luto. A comunidade, que é credora da reposição de uma vida, doa, através
do cinto do Kuarup, esse crédito, reatando os compromissos intertribais com
a vida.
28   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                                         O pequi: o mito que instaura a idéia da vida.

                                         Após a luta há a distribuição da castanha do pequi: os nativos esperam que
                                         ela amadureça e caia da árvore. Uma vez caída, madura, ela é colocada em
                                         cima da sepultura, cobrindo-a.

                                         Quando, depois da luta, a castanha passa a ser distribuída, sua distribuição
                                         é feita pela moça púbere, que até esse momento estava reclusa e que, agora,
                                         libertada no ciclo do Kuarup, já pode procriar.

                                         O pequi é objeto de troca entre as tribos xinguanas participantes do Kuarup.
                                         Segundo a história da criação dos cosmos xinguano, ele veio das cinzas do
                                         jacaré, e este, por sua vez, é tido como conquistador das mulheres. O Kuarup
                                         reúne uma comunidade intertribal. Assim, quando a tribo promotora da
                                         festa oferece o pequi aos visitantes, no encerramento dos festejos, por meio
                                         de suas púberes libertadas para a procriação da vida, também oferece aquela
                                         fruta em troca da liberdade das mulheres da aldeia, para que procriem
                                         somente com os homens da própria aldeia. Os visitantes homens são poten-
                                         ciais conquistadores de mulheres, são jacarés (inclusive, a própria tribo reco-
                                         nhece que seu morto festejado foi um jacaré, pois o pequi oferecido fica
                                         depositado em sua sepultura até a hora da distribuição, no final da festa).
                                         Nessa fase dos festejos, com o luto suspenso, o curso da vida na aldeia que
                                         promoveu o Kuarup voltou a sua plenitude, incluindo todas as suas adversi-
                                         dades diante das tribos visitantes. O pequi, em mais esse ato de troca,
                                         substitui, isto é, dilui a potencial pretensão dos homens das outras aldeias em
                                         conquistar as mulheres da aldeia promotora da festa. Com isso o pequi
                                         ganha também um sentido de ordenador da procriação da vida para os
                                         xinguanos, o que é confirmado pelas origens dessa castanha na sua mitologia.
                                         O Pequi, segundo essa mitologia, “nasceu com quatro diferentes cores, con-
                                         forme a direção dos ramos (norte, azul; sul, verde: leste, branco; oeste,
                                         vermelho)” (Agostinho, 1974, p. 188; apud. Marchezan, 1990).

                                         A festa é encerrada com muita comida. A comida, como vimos, é um paga-
                                         mento freqüente feito como troca de serviços realizados desde os preparati-
                                         vos do ciclo de Kuarup (paga-se com ele prestações de serviços pelo inicio do
                                         processo de levantamento do luto da aldeia), até o seu encerramento na
                                         confraternização entre as comunidades das várias tribos participantes da
                                         festa. A comida representa sempre a vida nessa festa. Assim, ela inicia o ciclo
                                         Kuarup e encerra esse mesmo ciclo, que relembra a história da origem da
                                         vida da comunidade xinguana, no tempo e no espaço de uma das aldeias
                                         (Marchezan, 1990, p. 99 a 102 ).

                          Assim sendo, é possível depreender, a partir dessa discussão, que as socie-
                   dades indígenas não são desprovidas de história, de alma, de Lei, de direitos, de
                   estruturas complexas de organização, cujos discursos, muitas vezes equivocados
                   e vazios, não dão conta de “traduzir”. Entretanto, também não podemos des-
                   prezar as revelações da poesia, certo? Nem tampouco descartar todos os livros
                   de história. Às vezes, um poema nos toca de tal forma a sensibilidade, a intuição
                   fica tão aguçada, que ficamos sabendo dos mistérios do mundo sem o recurso da
                   lógica e da filosofia. E esse toque de magia na forma de conhecer o mundo, é
                   muito cultivado entre os povos indígenas, constituindo-se também em uma he-
                   rança que deles recebemos. Afinal, se os europeus e asiáticos engendraram o
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   29

raciocínio lógico, a especulação filosófica, nós desenvolvemos a intuição, a adi-
vinhação, como disse outro poeta modernista, o Oswald de Andrade. No seu
sarcástico Manifesto Antropófago – o manifesto do homem brasileiro que devo-
ra as culturas estrangeiras - esse poeta imita ironicamente o poeta Shakespeare,
explicando qual é o grande dilema do brasileiro: “Tupi our not tupi; that is the
question”, ou seja, ser ou não ser índio eis a questão! Mas apesar de toda força
da intuição e da magia, apesar de sabermos que temos em nossa alma a memó-
ria tatuada de nossos antepassados indígenas, apesar de tudo isso, vamos nos
ater a aspectos mais concretos dessa herança cultural indígena, de modo que a
fantasia possa colaborar com a razão.
     Neste sentido, se a fantasia pode colaborar com a razão, convém saber
dosar a fantasia, de modo que não se transforme tudo em senso comum. O que
permanece no senso comum é, na verdade, muitas ideias equivocadas que ain-
da continuam sendo veiculadas por meio dos livros didáticos, ou pela escola, ou
ainda pela mídia a respeito destes povos. Vejam algumas delas:


 “São todos iguais”: desconhece-se e nega-se a grande diversidade sociocultural
 e linguística que há entre os povos indígenas;
 “São do passado”: primeiro, nega-se a presença dos povos indígenas como
 parte da população brasileira e como integrante do futuro do país; segundo,
 considera-se o índio como representante da “infância” da humanidade, como
 remanescente de um estágio civilizatório há muito ultrapassado pelos “civili-
 zados”;
 “Os índios não têm história”: decorrente da noção anterior, esta baseia-se
 na falsa certeza de que os povos indígenas “pararam no tempo”, “não evoluí-
 ram”, vivem como na “nossa” pré-história. Como consequência, imagina-se
 erroneamente que as sociedades e culturas indígenas não se transformam,
 não se desenvolvem, e que suas tradições são absolutamente imutáveis;
 “São seres primitivos”: “atrasados”, que precisam ser “civilizados”: nega-se
 aos povos indígenas o direito à autodeterminação e à autonomia de suas
 escolhas e desqualifica-se seu patrimônio histórico e cultural. Isto impede
 que se admita e reconheça a existência de ciências e de teorias sociais indíge-
 nas, de uma arte e religião próprias; enfim, de um saber indígena;
 “São aculturados”: não são mais índios; imagina-se que quando os povos
 indígenas alteram alguns aspectos no seu modo de viver, tornam-se
 “aculturados”, deixam de ser “autênticos” e não podem mais reivindicar ter-
 ras ou outros direitos relativos à condição de índios. (Texto retirado na ínte-
 gra do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas MEC/SECAD,
 2005).
30   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   31

                                                                                CAPÍTULO III




                                                    Imaginário do
                                                 Índio Amazônico

     O imaginário do índio da Amazônia não é um fato novo na história, pois
remonta a algumas décadas, a começar pela lendária passagem em busca do
eldorado1, que tinha o poder de aguçar o imaginário das pessoas sobre a origem
dos homens e sua transformação em divindades, deuses. Sem a intenção de
fazer uma longa digressão, mas seguindo nesta proposição, não do imaginário,
mas da representação do real, podemos dizer em relação à origem do homem
americano que ainda há muitas hipóteses a serem comprovadas. Se sua origem
tem a marca de nascimento aqui mesmo, ou se foi criado pela divina ação dos
deuses. Outros, entretanto, podem afirmar que o homem americano é descen-
dente de algum povo navegante que atravessou o oceano e veio chegar em
algum ponto do nosso continente, dispersando-se, depois, por todo o território
americano.
     Assim, a presença do homem no continente americano ainda continua sendo
tema de pesquisa, no sentido de compreender a evolução do processo de che-
gada e adaptação neste continente. Há inúmeras versões sobre seu surgimento.
Para uns esses povos vieram da África e se dispersaram em busca de novos con-
tinentes, novas regiões de climas e recursos naturais variados. É preciso dizer,
portanto, que há muitas lacunas na história, sobre a origem do homem america-
no; ou seja, há muitas perguntas sem respostas a respeito do povoamento da
América. Atualmente, quem se dedica aos estudos sobre a origem do homem
americano são os antropólogos físicos e sociais, os arqueólogos, os etnólogos,
linguistas, biólogos e geólogos que procuram conhecer não só a origem, as ca-
racterísticas, mas também quando e como a nossa espécie chegou à América.
     Uma das hipóteses mais aceita pelos estudiosos é a de que os nossos ante-
passados teriam chegado ao continente americano atravessando a região do
Estreito de Bering, no extremo norte da América, no Alasca. Essa parte do con-


1
 O “Eldorado” é um mito espanhol que fala da existência de uma cidade toda em ouro. Assim,
muitos conquistadores, sendo um deles o próprio Irala, em jornada ao Peru, em 1542, saíam em
busca desse ouro interrogando os índios, com o intuito de obter alguma informação para que
pudesse chegar a essa terra encantada. De acordo com os relatos de Métraux, as terras chaquenhas,
em si, não constituíam um fator importante, mas o seu papel histórico se tornou decisivo à medida
em que se tornou uma espécie de “portão de passagem para as fabulosas terras do oeste, das quais
os Guarani receberam objetos de prata e ouro vistos pelos espanhóis da boca do rio da Prata ao
Paraguai”. (MÉTRAUX, 1963)
32   COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS



                   tinente americano ainda estava ligada ao continente asiático, por uma estreita
                   faixa de terra. Isto significa que o Alasca era ligado à Sibéria, o que permitia
                   então a passagem de animais e homens, de um continente para o outro, por
                   terra firme.
                         Ao chegar à América do Sul, mais especificamente ao norte desse conti-
                   nente, encontra-se uma densa e úmida floresta chamada amazônica; e, mais
                   para o sul, estendem-se as planícies de cerrados. Em vista dessa diversidade
                   ecológica, é natural que houvesse tantas diferenças culturais e sócio-políticas
                   entre os povos que ali habitavam. E mais ainda é possível dizer: as diferenças
                   históricas do processo de formação desses povos pioneiros são perceptíveis nas
                   diferentes formas de adaptação e de organização de suas sociedades; tais pecu-
                   liaridades apresentam inúmeras formas de cultura, rica na diversidade de mani-
                   festações religiosas, artísticas, políticas e, até econômicas.
                        Até há pouco tempo, era aceita a ideia de que a América do Sul apresenta-
                   va uma distinção fundamental e contrastante entre os povos do altiplano andino,
                   tidos como detentores de uma alta civilização, e os povos da floresta tropical,
                   socialmente toscos e atrasados, sem qualquer complexidade cultural ou política.
                   Entretanto, investigações recentes (ver Carlos Fausto: Os Índios Antes do Brasil,
                   Zahar, 2000) já demonstram o quanto é variada e rica a cultura desses povos
                   que se desenvolveram à sombra da cordilheira dos Andes, seja, por exemplo, os
                   povos das várzeas amazonenses, como o marajoara, seja os que, mais ao sul,
                   circundavam o Chaco.
                        O homem, ao se deslocar, foi se adaptando a este novo sistema e criando
                   formas próprias de organização social, econômica, política e cultural, bem como
                   se protegendo das adversidades causadas pela natureza. Assim, cada sociedade
                   que se desenvolveu na América do Sul, percorreu caminhos culturais próprios.
                   Sobre os caminhos buscados pelos povos que habitavam o Brasil, os que sempre
                   estiveram mais em evidência, sobretudo nas últimas décadas, foram os povos da
                   Amazônia, pois além de possuírem uma densidade populacional maior, cerca
                   de 60%, entre dos demais povos indígenas de outras regiões do País também
                   apresentam em sua dinâmica de organização social uma influência menor na
                   relação de contato, visto que são povos que vivem mais distante das cidades, em
                   grandes áreas preservadas pelas matas e rios. Outro aspecto significativo que
                   também merece registro é que ainda há alguns grupos na região amazônica que
                   ainda não foram contatados pela sociedade não indígena.
                        A propósito, conviria observar que é difícil definir o que seja um determi-
                   nado povo, pois há muitas variantes em torno das línguas faladas. Geralmente,
                   quando nos referimos a um determinado grupo é mais por indicação da forma
                   como eles eram conhecidos no período do contato, ou como ficaram conheci-
                   dos por seus grupos vizinhos, do que por meio de informações diretas fornecidas
                   por eles.
                       Embora tenha ocorrido um crescimento significativo da população indíge-
                   na no Brasil, há grupos considerados “extintos” e grupos que ainda não permiti-
CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III   33

ram um contato mais direto e permanente com a cultura ocidental: são conhe-
cidos como “índios isolados”.
      Dessa forma, é na Amazônia que se encontra uma das maiores organiza-
ções indígena no Brasil, a COIAB2. Tal organização possui cerca de 75 organiza-
ções membros dos nove Estados da Amazônia Brasileira, sendo: Amazonas, Acre,
Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. São or-
ganizadas por meio de associações locais, federações regionais, com
especificdades de atuação via organização de mulheres, professores e estudan-
tes indígenas. Assim sendo, juntas, essas comunidades somam aproximadamen-
te 430 mil pessoas, o que representa cerca de 60% da população indígena bra-
sileira. Por isso, o imáginário de que só há povos indígenas na Amazônia, devido
muita vezes às suas pinturas corporais, rituais e vestimentas, é tão evidente e
disseminados no senso comum que acaba por causar prejuízo aos demais povos
indígenas do Brasil, originando exclusão e preconceitos. Quando a grande im-
prensa fala de indígena, logo apresentam a imagem de algum grupo amazônico.




2
  Há por todas as regiões do Brasil, fora da região amazônica, a criação de diversas organizações
indígenas no sentido de reivindicar uma atenção por parte do Governo para estabelecer políticas
públicas de reconhecimento e atendimento a estes povos. De acordo com estas organizações
deve-se reconhecer a dinâmica de organização social e política de cada etnia do País, sem que
haja parâmetros de comparação entre eles (grupos fora da Amazônia) com os povos da Amazô-
nia.
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Culturas e Histórias dos Povos Indígenas

  • 1.
  • 2. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 1 MÓDULO 3 CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS Reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas Vanderléia Paes Leite Mussi Antonio H. Aguilera Urquiza Vera Lucia F. Vargas Campo Grande, MS 2010
  • 3. 2 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS PRESIDENTE DA REPÚBLICA Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAÇÃO Fernando Haddad SECRETÁRIO EXECUTIVO Jairo Jorge SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE André Lázaro SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Carlos Eduardo Bielschowsky UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL REITORA Célia Maria da Silva Oliveira VICE-REITOR João Ricardo Filgueiras Tognini COORDENADORA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA - UFMS COORDENADORA DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS Angela Maria Zanon COORDENADOR ADJUNTO DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS João Ricardo Viola dos Santos COORDENADOR DO CURSO DE CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS Antonio Hilario Aguilera Urquiza Obra aprovada pelo Conselho Editorial da UFMS CONSELHO EDITORIAL UFMS CÂMARA EDITORIAL Dercir Pedro de Oliveira (Presidente) SÉRIE Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento Claudete Cameschi de Souza Edgar Aparecido da Costa. Edgar Cézar Nolasco Elcia Esnarriaga de Arruda Gilberto Maia Angela Maria Zanon José Francisco Ferrari Dario de Oliveira Lima Filho Maria Rita Marques Damaris Pereira Santana Lima Maria Tereza Ferreira Duenhas Monreal Jacira Helena do Valle Pereira Rosana Cristina Zanelatto Santos Magda Cristina Junqueira Godinho Mongelli Sonia Regina Jurado Ynes da Silva Felix Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Mussi, Vanderléia Paes Leite M989c Culturas e história dos povos indígenas, módulo 3 : reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas / Vanderléia Paes Leite Mussi, Antonio H. Aguilera Urquiza, Vera Lucia F. Vargas.— Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2010. 58 p. : il. ; 30 cm. ISBN 978-85-7613-289-9 1. Ensino a distância. 2. Professores – Formação. 3. Educação multicultural. 4. Nativos – Brasil – História I.Urquiza, Antonio H. Aguilera. II. Vargas, Vera Lucia F. III. Título. CDD (22) 371.3944
  • 4. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 3 SUMÁRIO Apresentação _____________________________________________________ 5 CAPÍTULO I As Sociodiversidades Indígenas no Brasil ___________________________ 9 História: lições do passado – depois de 1500... _________________________ 9 A outra visão do contato ___________________________________________ 13 CAPÍTULO II Visão da Literatura ______________________________________________ 15 A explicação na visão do contato ___________________________________ 15 Literatura: lições dos mitos _________________________________________ 18 Literatura: versão dos mitos indígenas - a explicação do Ritual do Kuarup __________________________________ 23 CAPÍTULO III Imaginário do Índio Amazônico ___________________________________ 31 CAPÍTULO IV Desconstrução de Discursos: Entendimento do Etnocentrismo em Antropologia __________________ 35 CAPÍTULO V Povos Indígenas: Múltiplos Olhares e Múltiplos Entendimentos _____________________ 45 ATIVIDADES _____________________________________________________ 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________ 57 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________ 58
  • 5. 4 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
  • 6. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 5 APRESENTAÇÃO O curso de Formação de Professores na temática CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS insere-se no processo de consolidação da Rede de Educação para a Diversidade (REDE), uma iniciativa de várias instituições do Governo Federal: Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), em parceria com a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES). O objetivo da Rede de Educação para a Diversidade (REDE) é estabelecer um grupo permanente de formação inicial e continuada a distância para a disseminação e desenvolvimento de metodologias educacionais de inserção dos temas das áreas da diversidade, quais sejam: educação de jovens e adultos, educação do campo, educação indígena, educação ambiental, educação patrimonial, educação para os Direitos Humanos, educação das relações étnico-raciais, de gênero e orientação sexual e temas da atualidade no cotidiano das práticas das redes de ensino pública e privada de educação básica no Brasil. Culturas e História dos Povos Indígenas é um curso de formação continuada de professores de educação básica, com carga horária de 240h distribuído em módulos, o qual se insere na Rede de Educação para a Diversidade (REDE). Ofertado na modalidade semipresencial, por meio do sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), o curso visa formar professores e profissionais da educação capazes de compreender os temas da diversidade e, dentre eles, a temática das “culturas e história dos povos indígenas no Brasil”, e introduzi-los entre os conteúdos pedagógicos e no cotidiano da escola. O propósito mais amplo deste curso é a formação continuada de professores, como forma de procurar responder de maneira dinâmica a uma educação inserida em uma sociedade cada vez mais dinâmica. Desta forma, o objetivo mais amplo é promover o debate sobre a educação como um direito fundamental, que precisa ser garantido a todos e todas sem qualquer distinção, promovendo a cidadania, a igualdade de direitos e o respeito à diversidade sociocultural, étnico- racial, etária e geracional, de gênero e orientação afetivo-sexual e às pessoas com necessidades especiais. Os professores e profissionais da educação têm como principal desafio garantir a efetividade do direito à educação a todos e cada um dos brasileiros, estabelecendo políticas e mecanismos de participação e controle social que assegurem aos grupos historicamente desfavorecidos
  • 7. 6 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS condições para sua emancipação e afirmação cidadã. Neste sentido, a temática deste curso insere-se neste contexto, que é o de trazer à luz dos conteúdos curriculares a temática das “culturas e história dos povos indígenas do Brasil”, temática silenciada durante tanto tempo e responsável pelo desconhecimento deste importante seguimento do povo brasileiro na atualidade. Este curso de formação continuada propõe módulos temáticos que abrangem um largo espectro dos temas das “culturas e história dos povos indígenas”, visando formar professores e outros profissionais da educação da rede de ensino de educação básica para a promoção e compreensão da educação como direito fundamental e estratégia para a promoção do desenvolvimento humano das diversas populações, para a inclusão de saberes diversos e enfrentamento de todo o tipo de discriminação e preconceito, particularmente contra os povos indígenas. O curso visa também proporcionar o estabelecimento de uma rede de colaboração virtual para a discussão e compartilhamento de informações e aprendizagens sobre práticas pedagógicas inclusivas na escola. Nos últimos anos, principalmente após a Constituição Federal de 1988 e a LDB (lei nº 9394/96), percebemos a emergência de uma nova legislação que insere nos currículos da Educação Básica a proposta de temas referentes à história e cultura afro-brasileira e, ultimamente, à história e cultura dos povos indígenas (Lei nº 11.645/2008). Trata-se de elementos constitutivos de nosso substrato cultural, mas, que por motivos históricos, foi ideologicamente relegado ao quase esquecimento e, quando trazido à tona, foi feito com um viés etnocêntrico e repleto de preconceitos. Educar hoje, para a diversidade e a cidadania, é tratar desta histórica dívida para com os grupos historicamente desfavorecidos e, dentre eles, os povos indígenas e negros de forma objetiva, proporcionando o debate construtivo através do acesso às informações relegadas às novas gerações. Quanto à nossa realidade regional específica, podemos dizer que Mato Grosso do Sul caracteriza- se por ser uma região de fronteiras, de acolhida e, ao mesmo tempo de trânsito. É, na atualidade, o segundo Estado brasileiro em população indígena, contando oficialmente, com 08 etnias, destacando-se dentre elas, os Guarani e Kaiowá com quase 40 mil pessoas, os Terena com 20 mil e os Kadiwéu com 1.500 pessoas. Todos estes povos possuem suas particularidades históricas e convivem com as problemáticas atuais de conflitos agrários, subsistência, preconceitos de todos os tipos, violências, etc. Mato Grosso do Sul é, também, uma porta que está aberta aos circuitos ilegais que integram lugares e economias e desintegram estruturas sociais. O Estado é, na verdade, um laboratório onde acontecem processos fronteiriços e dinâmicos de integração de toda natureza, sejam eles aparentes, dissimulados, legais, funcionais, ilícitos, construtivos, históricos, estruturais ou conjunturais, espaço privilegiado para a discussão dos temas da diversidade e, dentre eles, especialmente o que diz respeito à trajetória histórica e cultural dos povos indígenas.
  • 8. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 7 A partir deste conjunto de elementos que conformam nosso contexto regional serão conjugados, de forma dialógica, os conteúdos teórico-práticos propostos pelo curso em seus seis módulos (Módulo 01- Conceitos de EAD e ferramenta Moodle; 02- Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo; 03- Reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas; 04- Marcos conceituais referentes à diversidade sociocultural; 5- Projeto pedagógico sobre a temática; 6- Seminário de encerramento), além da avaliação. Quanto ao presente texto, referente ao 3º Módulo – Reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas, é composto por cinco sub-temas, desenvolvidos na sequência: I) Visão da História • História: lições do passado – depois de 1500... • A outra visão do contato II) Visão da Literatura • A explicação mítica na visão do contato • Literatura: lições dos mitos • Literatura: versão dos mitos indígenas – a explicação do Ritual do Kuarup III) Imaginário do Índio Amazônico IV) Desconstrução de discursos: entendimento do etnocentrismo em antropologia V) Povos Indígenas: múltiplos olhares e múltiplos entendimentos Diante de uma sociedade cada vez mais caracterizada pela diversidade e seus imensos desafios lançados cotidianamente aos educadores, desejamos a todos/as que estes conteúdos sejam úteis para embasar reflexões e práticas criativas sobre os aspectos da diversidade e a necessidade da introdução do tema das Culturas e História dos povos indígenas nas práticas pedagógicas, sempre em vista da construção de uma sociedade cada vez mais plural e participativa.
  • 9. 8 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
  • 10. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 9 CAPÍTULO I As Sociedades Indígenas no Brasil Este terceiro módulo pretende, concretamente, apresentar elementos es- senciais sobre a questão dos preconceitos a respeito dos povos indígenas no Brasil, para, dessa forma, desconstruir as informações equivocadas e reconstruir as características culturais destes povos e, dessa forma, facilitar as discussões posteriores sobre os temas específicos da história e cultura dos povos indígenas. Ao retornarmos no tempo, por meio dos livros de História ou pelos escritos literários, podemos ver a imagem dos povos indígenas sendo construída de múl- tiplas formas: como dóceis, passivos, gentis, ou como silvícolas, selvagens, indômitos, insolentes, preguiçosos. Seja qual for a imagem construída em deter- minado tempo e em diferentes contextos históricos, os povos indígenas nunca se apresentaram como sujeitos de nossa História, ou como parte integrante da construção da nossa identidade latino-americana. Histórica e culturalmente, são apresentados como seres que estão à margem, aqueles que auxiliam e nunca constroem; e, dependendo das circunstâncias, são apenas figurantes na constru- ção da história brasileira, atuando como coadjuvantes de sua própria história. Se os discursos foram sendo construídos ou por meio dos livros de história ou por meio da literatura, então, proponho que juntos possamos identificá-los e compreendê-los, para a partir daí começar um outro movimento circular: o da desconstrução! A propósito, não podemos nos esquecer, de que todo discurso é carregado de intencionalidades. 1.1 História: Lições do Passado - Depois de 1500... Após Cristóvão Colombo ter descoberto terra firme, em 1492, na região que hoje conhecemos como as Antilhas, na América Central, a “descoberta” do Brasil por Cabral, representava uma virada nos acontecimentos daquela época; e a chamada “captura” das especiarias asiáticas pelos portugueses também mo- dificou profundamente a evolução do mundo ocidental. Descoberto o Novo Mundo, os interesses europeus misturaram estrategi- camente a fé com a colonização, e se ambas deveriam caminhar juntas, estaria aí, então, uma justificativa adequada para a cristianização dos habitantes da ter-
  • 11. 10 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS ra recém descoberta (os indígenas), de maneira que não oferecessem resistên- cia aos seus interesses exploratórios. Desqualificados como seres humanos, vis- tos como animais sem alma, bárbaros, demônios e seres indômitos... estava justificada não só a necessidade de sua cristianização, como de sua sujeição à civilização afirmada como redentora pelo conquistador. Aqui se constitui o pon- to de partida para a construção das imagens e discursos aplicados aos povos indígenas e que se tem propagado até os dias atuais. Reconhecido o território, Colombo se converteria em um caçador de es- cravos e ávido garimpador de ouro; afinal, eram bens para serem vendidos ou trocados na Espanha, por finas mercadorias. Se o ouro é maleável às mãos do colonizador, os indígenas, entretanto, apesar de considerados bens de uso e troca, não eram totalmente desprovidos de vontade e de resistência a quem lhes feria o corpo e a alma. Convém observar que geralmente os livros de história apontam as especia- rias, a água em abundância, a mão-de-obra dócil e disponível, as safras agrícolas fartas e constantes como sendo os principais fatores que motivaram todo o pro- cesso de colonização e exploração concebido pela metrópole; no entanto, é preciso considerar, também, outro fator que nem sempre é citado, mas foi a causa de muita luta e custou o sangue de milhares de pessoas espalhados pelo sertão do Brasil: o ouro e, no rastro de sua cata, os nativos. A propósito, podemos dizer que o movimento de resistência indígena começa a ser uma constante e ganha mais relevo, junto aos não indígenas, a partir deste período. Não se pretende, com esta reflexão, fazer uma análise crítica dos livros didáticos de História e Literatura; antes disso, o propósito é partir das proposi- ções discursivas de alguns autores e obras, tomando-os como ponto de partida para o entendimento de generalizações e equívocos em relação às comunida- des indígenas, que se cristalizaram com o tempo e se estenderam ao senso co- mum, tendo reflexos negativos até os dias atuais. De modo geral, na História do Brasil os indígenas aparecem como Desqualificados enquanto seres humanos, vistos como animais sem alma, bár- baros, demônios. No livro intitulado: História das Cavernas ao Terceiro Milênio das autoras: Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos Braick a figura dos indígenas aparece no bojo do Descobrimento no item O Olhar dos Vencidos da seguinte forma: [...] Nativos que devoravam os prisioneiros de guerra, animais exóticos, a própria exuberância da flora tropical geravam espanto e temor. O que havia sido encontrado afinal, o jardim do paraíso ou as portas do inferno? Todavia, o choque e o medo foram ainda maiores entre os nativos do Novo Mundo. Aos olhos dos indígenas, os conquistadores assemelhavam- se a figuras monstruosas montadas em outros monstros, os cavalos, também desconhecidos (Mota, 1997, p. 115). A representação que se faz frente ao processo de descobrimento, traz à tona uma visão eurocêntrica que marca a trajetória de contato. A ressalva que se
  • 12. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 11 faz é a de que nesta trajetória de contato só aparece nos livros de História a visão dos “Vencidos” e de forma unilateral. Como tentativa de mostrar os dois lados apontaremos, mais adiante, a visão de contato que os Povos indígenas apresentavam sobre os não indígenas. Convém observar que na Unidade III do referido livro, no item que trata dos Nossos Contemporâneos Indígenas, é retomada a discussão chamando a atenção para os riscos de generalizações no exame da cultura das sociedades tribais: Sociedades Indígenas a partir das reflexões de Antonella Tassinari. Na sequência, assume o risco das generalizações, afirmando que a vida social dos indígenas estava centrada nas relações familiares e no papel que cada elemento ocupava na comunidade. A par dos riscos, as terminologias utilizadas ainda mostram que há falta de entendimento do que representam tais grupos étnicos no universo Latino-Ame- ricano e que ainda são muito explicitas as expressões generalizantes; vejamos como isso ocorre: [...] Os ameríndios dominavam a arte de fazer fogo a partir da rotação rápida de um pedaço de madeira dura em outro mais flexível. [...] A tribo era organização social mais abrangente dessas populações. Outro ponto que nos chama a atenção, além das terminologias generalizantes, é a indistinção que se faz entre as nações indígenas americanas, registrando na mesma ordem de apresentação os povos indígenas do Brasil e os povos da América do Norte, além dos Pré-colombianos (Mota, 1997, p. 158 a 160). Desta forma, os jovens que estão tendo contato pela primeira vez com documentos escritos tratando da História do Brasil ainda não têm como discernir o tempo histórico e as especificidades culturais que permeiam a compreensão de tais grupos étnicos. Assim sendo, tais visões generalizantes não contribuem, portanto, para o enten- dimento crítico das especificidades culturais destes povos além de submetê-los a uma ordem de comparação simplista, e equivocada! Neste sentido, a presença dos indígenas nos livros didáticos é quase sem- pre fragmentada, depreciativa e, muitas vezes, de uma forma secundária, as- sociando-se a ideia de que falar de “índio” é falar de passado. Nos livros de História, principalmente, a figura do índio aparece em função do colonizador. E da mesma forma que aparecem na história do Brasil, acabam por desapare- cer como um passe de mágica ou simplesmente como uma cegueira histórica! O problema resultante das sucessivas propostas tanto dos livros de História quanto dos livros de Literatura é que além de imagens fragmentadas e distorcidas, conforme já mencionada, tais iniciativas acabam por não preparar as crianças e os jovens para entender a presença dos povos indígenas nem no presente e nem no futuro. Nesta perspectiva propositiva, Everardo Rocha (1984) aponta que a figura do índio no livro didático representa uma forma vazia que confere sentido ao mundo dos não-indígenas (dos brancos). Os indígenas são tidos como seres “alu- gados” nas Histórias do Brasil, de modo que se constroem as imagens de acordo com as alternâncias de funções. Por exemplo, em um mesmo livro, eles podem
  • 13. 12 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS aparecer de três formas diferentes: em um primeiro momento, no capítulo do “descobrimento” aparece como a figura do “selvagem”, “primitivo”, “antropó- fago”, isso na tentativa de mostrar o quanto os colonizadores europeus eram superiores. Já no capítulo que trata da catequese, a figura do índio é vista como “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas virgens”, o que vem demonstrar o quanto eles precisavam de religião, bem como de “proteção”. E no capítulo posterior, que trata da “etnia brasileira”, a figura do índio já é a de um ser “corajoso”, “altivo”, cheio de “amor a liberdade”, que por ser tão livre era incapaz de trabalhar (Rocha, 1984, p. 17-19). Conviria observar que a gênese da reflexão antropológica é contemporâ- nea ao período do descobrimento. No entanto, de acordo com as concepções de François Laplantine (2006), o Renascimento (séc. XV e XVI) começa a explo- rar espaços até então desconhecidos e a construir discursos sobre os povos que lá habitavam. As primeiras observações e os primeiros discursos sobre esses po- vos provinham, principalmente, dos relatos de viajantes e dos relatórios dos mis- sionários, principalmente dos Jesuítas. Assim, inúmeras questões se colocavam na época a respeito daqueles seres recém descobertos como, por exemplo, se eles eram seres humanos, se pertenciam mesmo à humanidade; se, por serem extremamente selvagens, tinham alma? Com isto, o critério essencial para atri- buir-lhes um estatuto humano era estritamente de cunho religioso. Desta forma, ainda de acordo com as concepções do referido autor (Laplantine, 2006, p.41), entre os critérios utilizados pelos europeus, a partir do século XIV, para conferir ao índio um estatuto humano, além do religioso, con- forme mencionado podemos situar alguns dos comportamentos usuais mais dis- seminados: [...] a aparência física: eles estão nus ou vestidos de peles de animais; Os comportamentos alimentares: eles “comem carne crua”, e é todo o imaginário do canibalismo que irá aqui se elaborar; A inteligência tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam “uma língua ininteligível (Laplantine, 2006, p.41). Desta forma, o discurso da alteridade vai sendo construído a partir de metáforas zoológicas, ou seja, das associações de condutas iguais às dos animais bem como as referências a variadas ausências como: “sem moral, sem religião, sem lei, sem Estado, sem escrita, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro”. 1.2. A Outra Visão do Contato No final do século XV e início do século XVI, havia muitas curiosidades e indagações acerca desses “novos” seres humanos, ou seja, os chamados nativos; nesse período, inicia-se a busca por modelos explicativos da diferença. Em um primeiro momento, todos são tomados pelo impacto do novo que causa estra- nheza e perplexidade perante o desconhecido; e a violência ao outro, que
  • 14. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 13 incomoda e instaura a desordem de um mundo tão estável, como era o mundo medieval: essa visão de mundo é que iria permear as relações entre povos, sociedades e culturas. O contato físico entre essas culturas tão diferentes pode ser visto como um longo processo de aproximação e construção de imagens em que, primeira- mente, houve troca de ornamentos, cujo significado cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura. No segundo momento, a apreensão do “outro” foi feita de uma forma bastante violenta, pois, na falta de entendimento desse “nativo” como um ser autônomo e habitante da terra recém conhecida, o euro- peu colocou-o como “primitivo”, em uma condição de “atraso” ao desenvolvi- mento. E assim, ideologicamente a imagem do “outro” e sua cultura, ou seja, daquele que é diferente de nós, foi sendo construída de forma distorcida: ora primitivo e violento, ora bonzinho e romanceado, como na história de Iracema, ora sem alma, bárbaro, incivilizado, entre outras qualificações. Em outras pala- vras, podemos dizer que ao “outro” foi negado o mínimo de autonomia para falar de si mesmo (Rocha, 1984 p.16 a 21). Mas afinal, se a ideia do europeu era a de que os povos nativos, ou seja, os indígenas eram primitivos, atrasados, vio- lentos, indóceis, preguiçosos... qual era a visão que os indígenas faziam a respei- to do homem não-indígena? Para os indígenas, a origem do homem não-indígena, conhecido como ci- vilizado, também é alvo de muito interesse, mas também de muitas dúvidas. Enfim, como seres humanos, indígenas e não-indígenas constroem hipóteses sobre si mesmos e sobre o “outro”, assuntando seus mistérios e esforçando-se por decifrar seus enigmas. É como se um dissesse ao outro: “Decifra-me ou te devoro!”. E o mais interessante é que, para ambos, indígenas e não-indígenas, o nome é o lume, é a luz, como diziam os gregos, ou seja, dar nomes às coisas é iluminá-las pelo conhecimento. A linguagem, portanto, desempenha um fator de grande importância para entendimentos, se bem que, para desentendimen- tos, também. Assim, os povos indígenas, ao se referirem aos brasileiros não-indígenas, usam termos diferenciados; por exemplo, os Tenetehara (povo do Maranhão e Pará) quando queriam se referir aos não-indígenas costumavam chamá-los de “Karaiw”, ou de “Caraíba”, palavra que aparece entre outros povos de língua tupi desde o século XVI. Os Tupinambá usavam o termo caraíba para se referi- rem aos seus pajés-profetas, homens com habilidades de falar com os espíritos e ter sabedoria da previsão. Antes disso, costumava chamar os luso-brasileiros de “mázán”, termo equivalente a “marinheiro” ou mesmo português. Os Tupinambá também costumavam chamar os franceses que estiveram no Rio de Janeiro de “maíra”, ou seja, “encantado”, terminologia que, na visão indígena, representava o herói civilizador; posteriormente, passaram a distin- gui-los por meio de uma expressão que significava “povo de hábitos diferen- tes”. Já os Avá-Canoeiro, povo tupi do alto Rio Tocantins, chamam ainda hoje os não-indígenas de “maíra”. Os atuais Guarani, que descendem dos Carijó e
  • 15. 14 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS Guarani do século XVI, chamam de juruá, aos não indígenas, termo sem signifi- cado especial, assim como os Terena, do Mato Grosso do Sul, chamam-nos de purutuye. Em síntese, observa-se que nessa concepção indígena, os europeus apare- cem como seres especiais dotados de poderes divinos, ou simplesmente como homens comuns, mas com dons de encantar; já, para os europeus, os indígenas não passavam de seres selvagens, silvícolas, primitivos ou povo sem alma; aliás, até o século XVIII, ainda se tinha dúvida se os indígenas podiam ser considera- dos cristãos, dignos de serem batizados, ou até mesmo se eram seres humanos, indivíduos, gente, conforme já mencionados... Que contraste! Para os indígenas, como se viu, o homem branco era consi- derado um ser supremo, dotado de sabedoria, dons extraordinários e encanta- mentos. Veja que no encontro das culturas cada um, ou cada cultura, possui uma forma diferenciada de olhar. Como percebemos com o relato de Macunaíma, do escritor Mário de Andrade, para uns, Cruzeiro do Sul; para outros, Pai do Mutum. E, acima das diferenças de cultura e de concepção de mundo, as estre- las continuam a brilhar e o céu é para todos! Nesse sentido, quando cada povo, cada cultura se encontra, se conhece, reconhece e interage, vão surgindo explicações cheias de fantasia ou muitas vezes lógicas definitivas: cada um se esforça para impor as suas crenças ao ou- tro, como ocorre com a origem do homem. Assim como existem variadas expli- cações fornecidas pelos estudiosos sobre a origem do homem no continente americano, o mesmo ocorre com os povos não-indígenas, que também buscam fornecer explicações sobre a origem do homem branco.
  • 16. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 15 CAPÍTULO II Visão da Literatura Inicialmente, neste capítulo, estaremos atentos para a compreensão dos (pré) conceitos presentes em alguns dos mais importantes textos literários produzidos sobre os povos indígenas no Brasil, todos eles assumindo uma concepção etnocêntrica, com ligeiras variações quando relacionados aos povos indígenas. 2.1 A explicação Mítica na Visão do Contato Embora os indígenas não dispusessem dos mesmos recursos tecnológicos das sociedades não-indígenas, auxiliados por sofisticados instrumentos de preci- são, eles também fornecem respostas sobre a origem do homem branco, por meio de explicações míticas. A falta de precisão está diretamente ligada à carên- cia de conhecimento dos fenômenos físicos, biológicos e humanos. Por exem- plo, como esses indígenas vão dar explicações geográficas sobre os não-indíge- nas, quando, na verdade, com raras exceções não ultrapassam os espaços que percorrem em suas aldeias? Mas afinal, em que consiste a preocupação dos indígenas com a origem dos brancos civilizados e como isso pode ser constatado em suas explicações míticas? Retomando os estudos de Júlio Cezar Melatti (2007), é possível entender como isso acontece na prática; mas a “prática”, aqui, deve ser entendida como con- cepção de mundo, aquela tal de “cosmovisão” de que já falamos e que se mani- festa nos relatos lendários, ou seja, por meio de narrativas míticas, muito própri- as da educação indígena. Afinal, nas sociedades indígenas, são as narrativas que ensinam definitivamente e a conduta do dia a dia é a demonstração concreta de que a lição foi aprendida. Aqui vão dois exemplos muito interessantes. O primeiro mostra que nas várias aldeias dos índios Timbira, que vivem no sul do Maranhão, e norte de Goiás, os indígenas acreditam que o homem branco surgiu da transformação de um menino chamado “Aukê”. A história desse menino era mais ou menos assim: antigamente não havia civilizados, mas apenas índios. Uma mulher indígena ficou grávida e toda vez que ia tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu filho, que ainda não tinha nem nascido, saía do seu ventre e se transformava em
  • 17. 16 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS um animal, brincando à beira d’água; depois, a criança voltava outra vez ao ventre materno. A mãe não dizia nada a ninguém. Um dia, o menino nasceu. Aukê, ainda recém-nascido, transformava-se em rapaz, em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia temiam os poderes sobrenaturais de Aukê e, de acordo com seu avô materno, resolveram matá-lo; nas primeiras tentativas, não tiveram sucesso. Conta-se que uma vez, seu avô, em nova tentativa de matá-lo, levou-o para o alto de um morro e em- purrou-o de lá no abismo. O menino, porém, ao cair não morreu, pois virou folha seca e foi caindo devagarzinho, voltando para a aldeia são e salvo! Foi então que o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirar Aukê, o que realmente ocorreu. Dias depois, quando o avô foi ao local do assassinato para recolher as cinzas do menino, achou no lugar uma grande casa de fazenda, com bois e outros animais domésticos. Aukê não havia morrido, mas transformou-se no primeiro homem civilizado e ordenou ao avô que fosse buscar os outros habitantes da aldeia. Todos vieram e Aukê pediu que escolhessem entre a espingarda e o arco. Como os índios ficaram com medo de pegar a espingarda, preferiram o arco. Por terem preferido o arco, permaneceram como índios. Se tivessem es- colhido a espingarda, teriam se transformado em civilizados. Aukê chorou com pena dos índios por não terem escolhido a civilização. Com essa história, em que os índios Timbira explicam a origem dos não- indígenas chamados de civilizados, também é possível depreender alguns con- ceitos e determinadas explicações sobre aquela nação indígena. Por exemplo, o estado de submissão e pobreza em que eles vivem diante dos brancos, ou seja, dos não-indígenas. É importante notar que os “civilizados” conhecidos pelos Timbira são os que estão mais próximos de suas aldeias, destacando-se entre eles os que possuem maiores recursos materiais, ou seja, os fazendeiros, gran- des proprietários e possuidores de gado bovino, considerado de grande valor entre os homens. Por isso Aukê aparece na figura de um fazendeiro criador, por conhecerem bem apenas uma área restrita e estarem submetidos à influência desses ricos proprietários rurais; isso reflete a explicação da origem dos brancos, geralmente poderosos, o que constitui, portanto, uma visão circunscrita à reali- dade em que vivem. A propósito, também convém observar que na explicação mitológica feita pelos Timbira o conceito de “civilizado” é apresentado como uma analogia feita aos não indígenas, ou seja, aos “brancos”. O outro exemplo é retirado da cultura dos Kadiwéu, que habitam a região do Estado de Mato Grosso do Sul; são remanescentes dos índios “Guaykuru”, que domesticaram o cavalo e com ele dominaram toda a região, mantendo os grupos indígenas de outras procedências étnicas em um sistema semelhante ao da “vassalagem”, onde havia trocas de proteção por alimentos e mulheres. Con- tam que até mesmo os espanhóis e portugueses foram aprisionados pelos “Guaykuru”. Seus guerreiros, para se defenderem dos inimigos, costumavam cavalgar dependurados na crina do cavalo, no sentido horizontal, para não se-
  • 18. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 17 rem vistos. Quando corriam pelos campos, quem os via da posição contrária, tinham a impressão de que eram apenas cavalos selvagens, correndo em dispa- rada. Bem, mas voltemos à explicação dos Kadiwéu sobre a origem do homem branco. Conta a história, que os próprios Kadiwéu (e outros povos, como os Terena, os Kinikinau, os Kaingang, os bolivianos, enfim, todos os homens) foram tirados pelo herói “Go-noêno-hôdi” de dentro de um buraco. Enquanto outros povos receberam do herói terras e outros dons, os Kadiwéu não receberam nada, ficando somente com o privilégio de lutar contra os outros, tomando-lhes os seus bens. O mito, portanto, explicava não somente a origem dos povos, mas também os seus princípios de dominação e a relação com outros povos. Em uma versão mais atualizada deste mito, os Kadiwéu não esperaram mais o herói “Go- noêno-hôdi”, que fora buscar seus patrícios, ou seja, mais presentes para eles. Saindo da letargia da espera, os Kadiwéu foram buscar alimentos, como frutas e mel nas matas. Ao regressar, o herói disse para os Kadiwéu que eles poderiam ficar como estavam, ou seja, livres pelos campos, lutando por sua subsistência; quanto aos demais povos, deveriam fazer o seu próprio roçado, fixando-se em algum lugar. Ao prestar a atenção aos dois mitos, tanto o SAIBA MAIS! Timbira quanto o Kadi- Que a história dos índios guaicurus está ligada à inserção do cavalo em wéu, observe que a pre- terras da América espanhola, em 1541. Chegando da Espanha, o novo ocupação com a ori- Governador Nuñez Cabeza de Vaca, sabendo que o povoado de gem do homem não-in- Buenos Aires encontrava-se abandonado, resolveu viajar por terra com dígena estava ligada à seus soldados da Ilha de Santa Catarina, até Assunção do Paraguai, em percepção da diferença lombo de cavalo. Chegando ao rio Paraná, encontrou os índios guaranis de posses: o homem que, na troca de presentes, o auxiliou na construção de jangadas, ser- branco marca a sua pre- vindo de transporte para navegarem rio abaixo até Assunção. Em terri- sença – e sua existência tório brasileiro, os cavalos se reproduziram e foram caçados pelos no mundo- como possui- guaicurus. Foram domados pelos índios e acabaram sendo utilizados dor de coisas que os in- tanto nas caçadas, quanto nas guerras contra os inimigos. Os guaicurus dígenas gostariam de ter, se tornaram tão exímios cavaleiros que ao se dependurarem na crina na suposição de torna- do cavalo, tornavam-se “invisíveis” aos olhos do inimigo, pois ao cor- rem a vida de todos mui- rerem de lado davam a impressão de que os cavalos estavam sozinhos to mais fácil e agradável! (Trecho do texto retirado do livro de Acyr Vaz Guimarães: Quinhentas Se as narrativas de- Léguas em Canoa de Araraitaguaba às Minas do Cuiabá: as monções monstram que a imagem Paulistas, 2000). do outro fica sempre distorcida ou desfocada, numa clara deficiência de compreensão, o que é necessário fazer para que não ocorra tanto estranhamento entre ambas as partes? Na visão que um faz do outro é preciso relativizar essa diferença, ou seja, na forma de uma cultura en- tender a outra, a diferença não deveria se transformar em hierarquia, em supe-
  • 19. 18 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS riores e inferiores, ou em bons e maus. O importante seria que se percebessem mutuamente em sua dimensão maior: a riqueza por serem diferentes e o orgu- lho de terem identidade cultural. 2.2 Literatura: Lições dos Mitos Meus senhores e minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do Mutum! Juro que é o Pai do Mutum, minha gente, que está lá no campo vasto do céu! (Mário de Andrade – Macunaíma) Quem nunca ouviu falar do grande literário Mário de Andrade? Ele foi um dos maiores escritores da literatura brasileira. A literatura contribuiu muito para a formação de uma identidade cultural e para a construção de discursos; se lidos de forma distorcida, esses discursos resultam em uma visão preconceituosa. Rei- terando o que já foi mencionado, não é propósito fazer aqui uma critica à His- tória nem tampouco à Literatura, mas mostrar como, por meio da História e da Literatura, os discursos foram sendo historicamente construídos. Retomando a epigrafe de Mário de Andrade, podemos dizer que não ouvi- mos o choro de Macunaíma, tão longe que estava lá no fundo do Mato-Virgem. Mas ele com certeza chorou como todos nós fazemos ao nascer. Esse indiozinho preguiçoso, segundo o escritor Mário de Andrade, representa todos os brasilei- ros e brasileiras que, como ele, querem exercer o seu direito de viver, crescer, amar, trabalhar, se divertir... Por sinal, o folgado do Macunaíma, quando cres- ceu, queria ter direito a tudo, menos ao trabalho; não que o índio não gostasse de trabalhar, mas a forma como eles concebem as relações de trabalho é bem diferente da forma que os não indígenas entendem. Os indígenas não trabalham para acumular riquezas, eles trabalham para sobreviver; o tempo deles não é para ficar em torno do relógio controlando o horário de entrar no serviço. Até porque eles têm outras atividades que consideram tão importantes quanto tra- balhar como, por exemplo: conversar com os filhos à beira da fogueira contan- do-lhes a história de sua aldeia, de sua geração passada; ensinar os filhos a fazer redes, cestos, trançados, cerâmicas; a dançar, rezar, nadar, pescar, correr pelas matas - não podemos esquecer que alguns indígenas já não têm mais matas para correr e nem rios para pescar-. O entendimento do que significa trabalho e tempo dedicado a esta ativida- de vai variar de acordo com cada cultura, com cada povo. Alguns povos indíge- nas, por exemplo, dedicam apenas três a quatro horas por dia para a realização de atividade de subsistência; para eles o trabalho exerce mais uma função social do que capitalista1, o que será detalhado mais adiante. Interessa no momento chamar a atenção para duas expressões; “preguiçoso” e “folgado”, que, sugeridas por Mario de Andrade e disseminadas no senso comum, contribuíram para pro- 1 Sobre a questão do trabalho nas sociedades indígenas ler SAHLINS, Marshal. A Economia da Idade da Pedra. 2a. Edição. Akal editor, 1977, 1983.
  • 20. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 19 pagar a ideia de que o índio é preguiçoso e não gosta de trabalhar. Na realidade é mais fácil incorporar tal proposição ao discurso, do que conhecer a forma de organização social desses grupos para então entender as tão variadas formas e concepções de trabalho. Para alguns grupos indígenas, o trabalho não tem o nosso entendimento porque não precisam de dinheiro para a subsistência. Atualmente, são poucos os povos indígenas que vivem da caça e da pesca; há muitos povos que não têm matas para caçar e nem rios mais para pescar, passando a viver nas cidades em busca de alternativas de vida, ainda que mise- ráveis. Se perguntarem para alguns desses povos o que querem na vida, com certeza gostariam de viver como antes: em matas ricas com abundância de caça e frutos, rios férteis de peixe (como ainda ocorre no Xingu), espaço para as roças coletivas, plantas nativas para o preparo de remédios e muita lenha para manter a roda do fogo e a chama acesa de suas tradições. E por falar em tradição, já voltando às lições dos mitos e fechando esta discussão sobre a economia, vamos ver o que está dizendo o nosso herói, Macunaíma, para as pessoas ao seu redor? Parece até um político fazendo dis- curso em véspera de eleição... Bem, você que o viu nascer, lá no fundo do Mato-Virgem, não deve ter se esquecido dele, não é mesmo? Como pode per- ceber, ele já está falando e está todo cheio de sabença, corrigindo as ideias das pessoas. Pois saiba que Macunaíma deixou a sua aldeia tapanhuma e resolveu ir para São Paulo, em busca da muiraquitã, o seu amuleto da sorte, como fazem muitos indígenas brasileiros, em busca das grandes cidades. E essa é uma realidade ainda mal conhecida, e cheia de preconceito por parte dos não indíge- nas; é preciso conhecer melhor a vida desses indígenas que vivem em contextos urbanos e como têm reorganizado suas vi- das em um meio tão hostil; quais são as estratégias de inserção, com pessoas indiferentes às suas dificuldades de adaptação2. Voltemos ao nosso herói: bem no meio da cidade, ele corrige as pessoas, dizendo que o Cruzeiro do Sul, na verdade, é uma grande ave de asas abertas, o mutum, pai de todos os mutuns que povoam as nossas matas. O que é o mutum? Ora, é uma ave negra, de grande porte, que lembra, mais ou menos, um peru; para Macunaíma, esse mutum feito de estrelas é o pai de todos os mutuns da terra. Bonito, não é mesmo? Pois é assim que muitos povos indígenas pensam a respeito da origem das espécies e até do próprio homem; eles são muito inte- ressados em saber sobre os seus antepassados: em seus mitos, ora afirmam que são descendentes de grandes guerreiros da própria região; ora de navegantes vindos de outros continentes, que aqui desembarcaram, espalhando-se por todo canto; e há mitos, também, que sugerem a origem mágica de sua aldeia, fruto 2 Sobre a temática dos indígenas em contextos urbanos ver: Mussi, Vanderléia Paes Leite. As estratégias de inserção dos índios Terena: da aldeia ao espaço urbano (1990-2005). Tese de dou- torado. UNESP Campus de Assis - São Paulo, 2006. 332 f.
  • 21. 20 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS da vontade de algum deus. É esse pensamento mítico dos indígenas que dá ao nosso herói Macunaíma a certeza sobre a origem dos seres do mundo. Nos dias de hoje, esse é o grande problema na relação entre culturas dife- rentes, ou seja, há uma grande falta de sensibilidade com a visão de mundo de pessoas que são de culturas diferentes da nossa. Afinal, nós temos de nos educar a aceitar como verdadeiras, também, outras concepções da vida, diferentes da nossa. Como vimos em relação à constelação apontada por Macunaíma, para uns é o Cruzeiro do Sul, para outros, o Pai do Mutum; e indiferentes aos nomes que recebem dos homens, as estrelas não deixam de ser o que são e continuam a brilhar no campo vasto do céu, não é mesmo? Neste ponto da conversa, seria importante deixarmos um pouco o nosso herói e companheiro nessa longa viagem histórica e cultural de Macunaíma. Mas, por enquanto, vamos deixá-lo à vontade, lá na cidade de São Paulo, tentan- do convencer as pessoas de que o Cruzeiro do Sul, nada mais é do que o Pai do Mutum; pelo visto, a discussão ainda vai se alongar noite adentro e nós temos um outro ponto também importante no entendimento da construção destes dis- cursos. De momento, podemos retomar outras personagens da nossa literatura, como Iracema e Martim, protagonistas do romance Iracema, do escritor José de Alencar. Vamos acompanhar a conversa entre a virgem dos lábios de mel e o guerreiro português, perdido nas matas densas dos índios tabajaras, no interior do Ceará. E o guerreiro diz a Iracema: _Quebras comigo a flecha da paz? _Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Don- de vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? _Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus. _Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldei- as, e à cabana de Araquém, pai de Iracema. Como podemos depreender, Iracema e Martim estão selando um pacto de amizade, em plena floresta. Só para satisfazer a sua curiosidade, saiba que Martim chegou repentinamente ao lugar em que Iracema tomava banho de sol e, muito assustada, o feriu com uma flechada, mas logo se arrependeu e cuidou do rapaz. Para um bom leitor, já dá para perceber que a flecha que feriu Martim é a própria flecha do Cupido, não é mesmo? É ler para conferir, pois o romance é uma das obras-primas do Romantismo brasileiro, um verdadeiro hino de louvor à nossa cultura e à nossa história. Porém, o assunto que nos diz respeito é outro; observe como o escritor cearense dá a sua versão poética a respeito dos primeiros contatos entre os colonizadores portugueses – ou invasores?- e o então chamado gentio, isto é, aquele que não era cristão. De forma figurada, o autor sugere que foi uma rela- ção de amor, sem dúvida, mas marcada pelo sacrifício. E, apesar de ter sido Martim o ferido, a história reverte a situação e marca o nativo pela dor da colo- nização. Observe, também, que Martim está no interior do território cearense, nas terras tabajaras, ainda invioláveis, vindo de outro território brasileiro, já con-
  • 22. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 21 quistado. São terras que os indígenas já possuíram, mas agora estão nas mãos dos portugueses que, aos poucos, vão tomando tudo o que a vista alcança. E que vista gulosa tinha o colonizador português! Foram empurrando as fronteiras do território, ainda desconhecido, até onde puderam, plantando fortificações, ar- raiais e vilarejos ao longo de suas jornadas de conquista. Como terão sido os contatos com os indígenas, para além da romanceada visão de José de Alencar? Que concepções de homem e de mundo foram sendo construídas no contato entre os europeus e os indígenas na visão do autor? Ora, pelo excerto acima já é possível depreender que nesta relação do contato apresentada por José de Alencar não houve resistência, não houve conflito, mas um grande pacto de amizade que resultou em uma linda história de puro romance... E, mais uma vez a se cria a ideia do indígena “passivo”, receptivo e incapaz de resistir a qualquer ação contrária a sua concepção de mundo. O autor Julio Cesar Melatti (2007) chama a atenção para o fato de que além dos romancistas e poetas brasileiros José de Alencar e Gonçalves Dias, serem divulgadores dessa “visão romântica do índio: altivo, cortês e corajoso”; tam- bém foram propagadores de informações etnográficas errôneas. Segundo Melatti, José Alencar faz a índia Iracema atirar flechas, quando, na realidade entre os indígenas, somente os homens usam o arco e flecha. Já com relação a Gonçalves Dias, que não incluímos aqui nesta reflexão, mas que também tem sua parcela de contribuição na literatura brasileira, ao escrever Os Timbiras, por sua vez, “atribui aos Timbira, que são índios da família lingüística Jê, costumes que per- tenciam aos Tupinambá, tronco linguístico Tupi. Já em I-Juca-Pirama, aos Timbira era atribuído o uso da antropofagia e do cauim (bebida feita através de fermen- tação de milho e/ou mandioca); em Os Timbiras, eram atribuídos aos persona- gens de nomes Tupi (Melat7i,2007, p. 175). O autor informa ainda que Gonçal- ves Dias demonstrou conhecimento da época a respeito dos índios quando escreveu Brasil e Oceania e que sua opção pecos Timbira como um dos princi- pais objetos de seus poemas indigenistas tenha ocorrido pelo fato de que estes indígenas eram provenientes do Maranhão, terra do poeta. A questão do equí- voco se deu por ter atribuído costumes Tupinambá aos Timbira por não conhe- cer nenhum costume dos Timbira; e também porque considerava os costumes dos Tupinambá como sendo mais nobres e altivos. Bem, mas ao falarmos de literatura brasileira temos de considerar as duas visões literárias: os mitos indígenas a partir da cosmovisão dos indígenas bem como a visão literária do não indígena a partir das concepções ocidentais, a partir da realidade indígena. Para isso, vamos retomar o mito do Quarup escrito por Antônio Callado: Ninguém ia dormir cedo aquela noite no Posto Capitão Vasconcelos. Vilar transformava o trabalho do quarup numa espécie de violento folguedo. (...) Os jiraus do moquém afogueados pelos braseiros transbordaram do terreiro, se espalhavam pelas cercanias. As tribos recém-chegadas davam sua mãozi- nha aos anfitriões. Cuias de caxiri circularam. Mulheres puseram-se a dançar em fila. E voltava Vilar segurando pela proa, acima da cabeça avermelhada
  • 23. 22 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS pelo fogo, uma ubá com os últimos peixes (...). A ubá foi despejada no meio do terreiro e até os curumins e cunhantãs às gargalhadas puseram-se a esca- mar peixe, a limpar peixe, a botar peixe nos moquéns. (...) Maivotsinim criou a raça humana fazendo quarups, com os quais criou os homens, homens como Canato, Sariruá, Apucaiaca e o Anta, que agora fazi- am quarups para criar Maivotsinim. (Quarup – Antônio Callado – Círculo do Livro, p. 179 e 187) O romance Quarup3, do escritor Antônio Callado, é uma das mais impor- tantes obras da literatura brasileira contemporânea. É a história do padre Nando, que deixa o mosteiro franciscano onde vivia, no Recife, e parte para o Xingu com o objetivo de conhecer o mundo e os índios. O seu sonho era o de recons- truir em plena Amazônia, uma sociedade harmoniosa e socialista, como fizeram jesuítas e índios guarani, no século XVIII, no sul do País. Assim que chegou ao Posto Capitão Vasconcelos, Padre Nando teve a rara oportunidade de acompa- nhar a organização de uma das cerimônias indígenas mais importantes, o quarup. Como você percebeu no excerto acima, Vilar, uma espécie de empreiteiro de obras, está ajudando a trazer o peixe que será servido na cerimônia; é tanto peixe que vem carregado em uma canoa, a ubá, para ser despejado no meio do terreiro. Você notou como tudo é feito com grande alegria? As mulheres dançam e todos bebem o caxiri, uma bebida feita à base da fermentação da mandioca. Até as crianças, curumins (meninos) e cunhantãs (meninas), ajudam os adultos no preparo da comida, escamando o peixe e, com certeza, preparando o beiju, para os convidados. Sim, observe que os convidados vão chegando e já entram no clima da festa, também ajudando no preparo da comida. Se nos concentrar- mos um pouco na história, dá até para sentir o cheiro do peixe sendo assado no moquém. Sabe o que é um moquém? É onde o peixe é moqueado, isto é, assa- do; para isso é feita uma armação de varas verdes, parecendo uma grelha, com o fogo por baixo. Tudo muito bem feito, para não causar risco aos que preparam e aos que comem. Mas que festa é essa, tão importante, a ponto de dar nome a um romance famoso da nossa literatura? Observe no excerto acima, que um tal de Maivotsinim criou os homens, por meio de quarup... Pelo visto, esse criador de homens é uma divindade indígena que merece todo respeito, porque, afinal, é o pai da humanidade; mais interessante, ainda, é que esse pai, depois de ter criado o homem, precisa ser constantemente recriado, pelos seus próprios filhos, na ce- rimônia do quarup. O quarup, portanto, é uma festa ritualística em que os indí- genas se reconciliam, se unem ao seu criador e reverenciam os seus mortos, de uma forma alegre e cheia de prazeres: muita comida, muita música, muita dan- ça, além da conversa descontraída com amigos e parentes... Mais uma bonita 3 Convém observar que no romance de Antonio Callado, Quarup é grafado com “Q”; já no estudo de Pedro Agostinho o nome é grafado com “K”, obedecendo às normas padronizadas e aspectos linguísticos estabelecidos pela Associação Brasileira de Antropologia para grafar nomes Indígenas.
  • 24. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 23 tradição, mais um mito indígena que nos mostra a sensibilidade deste povo com seus antepassados míticos, que foi incluído na literatura brasileira. 2.3 Literatura: versão dos mitos indígenas – a explicação do Ritual do Kuarup De acordo com os estudiosos, as cosmologias indígenas representam mo- delos complexos, dos quais faz parte a sociedade humana. Os mitos são narrati- vas que procuram responder sobre a origem da própria existência; são veículos de informação sobre a concepção do Universo, ou seja, sobre a forma de cria- ção do mundo, a origem do “homem branco”, os rituais da agricultura, as rela- ções ecológicas entre animais, plantas e seres humanos; enfim, sobre a existên- cia de todos os seres da face da terra. Essa palavra (mitho) é de origem grega e significa exatamente isso: uma história, ou narrativa, por meio da qual os ho- mens explicam os mistérios da vida e do mundo. Você já ouviu falar de um mito grego que procura explicar a origem do eterno sofrimento humano, no esforço interminável pela sobrevivência? Leia então a história (ou o mito) de Sísifo... é muito interessante. Falamos que as cosmologias indígenas representam modelos complexos, mas afinal, o que isso significa? Não é tão difícil de entender e, para isso, nada melhor do que uma explicação com exemplos: relata-nos uma estudiosa, Alcinda Ramos (1995), que entre os povos indígenas Sanumá (Yanomami) que vivem no norte de Roraima, quando uma criança nasce fisicamente normal, dias depois do nascimento, seu pai vai caçar. O nome do animal que ele caçar será dado à criança, isto é, se ele matar uma onça a criança será chamada de onça. Assim, o pai literalmente sai para caçar o nome do(a) filho(a); por conta disso, a caçada deve ser feita com muita atenção e cuidado, porque, além do nome, a criança também receberá do animal morto um certo espírito que, ao morrer, se instala em seu corpo. Ao trazer o animal amarrado em um cipó para casa, o pai deve trazê-lo com todo cuidado possível e, ao chegar em casa, os parentes de sua mulher preparam a carne do animal caçado e a distribuem para todos da casa. Nem a mãe e nem o pai da criança devem comer da carne, porque acreditam que, ao comê-la, podem colocar em risco a vida da criança recém-nascida. Logo, so- mente os parentes consanguíneos da mulher (mãe da criança) poderão comer e dizer se a carne é de boa qualidade ou não. Se a carne for de boa qualidade, eles acreditam que a criança viverá; caso contrário, eles acreditam que a crian- ça morrerá. Se fizermos uma interpretação desse “mito”, do ponto de vista material, ou de um outro ponto de vista estranho à cosmologia dos sanumá, essa caçada poderia significar apenas uma forma corriqueira e festiva de fornecer carne à
  • 25. 24 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS aldeia. Portanto, os sanumá, quando vão caçar para o ritual de denominação de um recém-nascido, têm bem clara a sua responsabilidade familiar e tribal; a obrigação do pai não é só a de “caçar” um nome e um bom futuro para o seu novo filho, ele também tem um sério compromisso com os seus antepassados, que o ensinaram e continuam ensinando a ver o mundo, a entender o universo, a criar os filhos e a entender a própria existência. Na sociedade não-indígena, quando uma criança nasce é fornecida a ela um nome, sem necessariamente o pai ou a mãe saírem para o mato caçar; o critério de escolha é bem diferente e cada família tem o seu jeito de escolher o nome de seu filho(a). Se fizermos uma leitura do ritual sanumá do ponto de vista economicista, ou até mesmo de forma apressada, a caçada não representaria mais do que uma forma de fornecer carne à aldeia. Os sanumá quando vão caçar, têm muito claros os seus compromissos míticos e tribais; sabem que têm responsabilidades não só com o seu novo filho como também com os seus ante- passados: foram eles que os ensinaram a ver o mundo, a entender o universo, a criar os filhos, a entender a própria existência (Ramos, 1995, p. 24 e 25). Mas retomemos outros rituais, aqui tratados, como o Kuarup. Na versão escrita por estudiosos da área, é possível compreender melhor as nuanças so- bre esse importante ritual, de forma menos romanceada e mais próxima da realidade e destes povos. No estudo realizado por Pedro Agostinho, a festa do Kuarup é realizada pelas aldeias indígenas do Alto Xingu que visam vivificar a lembranças das origens do cosmos xinguano, que cria o mito de, Mavutsini, no Murená – centro do mundo. Com esse mito de origem o cosmos foi estabele- cido no universo xinguano e sua harmonia somente foi quebrada com a morte da mulher mãe primordial, mulher fabricada por Mavutsini e mãe dos gêmeos Kwat e Yaí. Nas palavras de Agostinho (1974, apud. Marchezan, 1990, p. 97) é “a irrupção da morte, o afastamento do ideal estabelecido pela narrativa paradigmática e mítica” (Agostinho, 1974, apud. Marchezan, 1990, p. 97). Convém observar que nesta versão literária, não aparece a figura do Capitão Vasconcelos nem a do Padre Nando, mas unicamente os membros da comuni- dade indígena. De acordo com o autor, a morte tem a função de reorganização social, pois quando desorganiza o cosmos xinguano, se funda o caos. Neste sentido, quando morre um membro da comunidade, todo o grupo precisa se reestruturar diante de tal perda. Assim sendo, a celebração do Kuarup exerce esta função: a de reorganizar de tudo, a fim de restabelecer a ordem social. O mito precisa ser ritualizado para que não haja o sentimento de alguma desintegração da comuni- dade tribal. Repondo a perda do mundo xinguano, “o mito é a expressão viva dos tempos primordiais, ideais, quando tal perda não existia”. O comportamento mítico-religioso e ritualístico dos indígenas do Xingu busca esse ideal e acaba por atingi-lo simbolicamente no ritual do Kuarup. Acham-se, assim, “reintegrados na mitologia xinguana, na sua comemoração. Sua cultura é reativada, como foi a cosmovisão de seu grupo”.
  • 26. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 25 Desta forma, fazendo-se um Kuarup, cria-se alguém, lembra-se um ente querido e todas as demais aldeias vizinhas comparecem para participar do ritu- al. “O Kuarup faz a passagem do indefinido (caos) para o estruturado, o cosmos, mantendo viva a lembrança das origens, da criação dos primeiros seres huma- nos, quando a morte não era conhecida”. Neste ritual o Kuarup apaga a presen- ça da morte e acaba por repor a vida no mundo xinguano. É por isso que no ritual do Kuarup é trazido um tronco de madeira e a madei- ra que, segundo os xinguanos, é a própria substância de onde vieram. Esse tronco é que repõe a perda, de acordo com o paradigma da narrativa mítica. Com isto, o ciclo Kuarup, para Marchezan (1990, p. 197), “corresponde a um recriar simbóli- co do cosmos xinguano, cujas características sociais básicas se expressam pela própria estrutura e conteúdo mítico da festa, recriar esse em que as forças destrutivas da morte e da desintegração social se vencem, e a partir do qual nova vida ressur- ge, num estruturar de vitalidade” (Marchezan, 1990, p. 197). Logo, o Kuarup é um ciclo de festas que começa em um ritual fúnebre em uma festa de luto. Esse ritual tem seu ponto de partida em um grupo de indígenas de uma mesma aldeia, os (enterradores) dirigindo-se aos enlutados (donos de um morto líder ou de linha- gem dessa aldeia) que propõem o enterro pelo Kuarup. A morte de um líder ou de uma linhagem do povo xinguano é perigosa para a aldeia e parentes próximos. Com isto, torna-se necessária a “reparação do dano”, ou seja, para que o funcionamento da aldeia ocorra e a reparação seja feita, é realizada, por meio do ciclo do Kuarup, a organização social dessa festa, em que, segundo comentários de Luiz Gonzaga Marchezan apoiando-se nos estudos de Pedro Agostinho (1974), os indígenas do Xingu “mergulham no início dos inícios de seus mitos de origem e reintegram o presente no passado, anulando assim o tempo de conflito e dor em que os deixou o acontecimento de uma morte”. RITUAL KUARUP Fonte: http://silnunesprof.blogspot.com/2010/04/homenagem-aos-nossos-iraos-nativos.html
  • 27. 26 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS Na concepção indígena, a vida está presa, portanto, a uma teia de relações que podem ser conferidas na íntegra do estudo do autor: VIDA 1 – Ao nascer um ser humano, a natureza contrai um crédito com a comuni- dade (através do grupo familiar desse recém-nascido). 2 – A comunidade, com esse nascimento, contrai um débito com a natureza, assumindo esse crédito com a família. 3 – E a família contrai um débito com a comunidade. Após a morte de indivíduos importantes para a comunidade, essa relação entre crédito e débito, esse contrato, precisa ser resolvido. A resolução vem num outro contrato, num outro pacto, que dá origem ao ciclo do Kuarup, ao ritual funerário do Kuarup, propriamente dito. A morte prende-se a outro tipo de reações: MORTE 1 – A família (o grupo familiar, dono do morto) precisa pagar o débito (da vida de um de seus elementos) com a comunidade (que contraiu por ela um débito com a natureza, com o nascimento dessa criatura. O grupo familiar (dono do morto) precisa entregar o morto à comunidade (representada pelos enterradores). 2 – A comunidade (enterradores) paga o débito à natureza enterrando, en- tregando a ela o morto. O grupo familiar, dono do morto, está pagando seu débito junto à comunida- de quando deixa entrar em seu espaço privado o cortejo de pessoas alheias a esse espaço (os enterradores) e deixa levar o morto do espaço familiar, íntimo, ao seu espaço de retorno à natureza- a sepultura, no centro da aldeia. Nesse ato o contrato tribal é cumprido. Contrato, de acordo com a etimologia da própria palavra, significa pacto, pacto para o começo de um novo assunto; é a ação de inicio desse novo assunto: CONTRATO 1 – A família paga seu débito à comunidade (recebendo da natureza alguém vivo e entregando-lhe morto). 2 – A comunidade paga seu débito à Natureza (devolvendo morto alguém que havia recebido vivo, através de uma família sua); substituindo a morte pela vida, através do Kuarup, a figura de madeira que é a essência da vida xinguana. Após enterro, enlutados e enterradores renovam sua pintura; esse fazer sem- pre se repete nas etapas do ciclo do Kuarup depois dos ritos funerários. Em continuidade ao percurso da festa, estabelece-se um novo entendimento entre os enlutados e os enterradores: estes pedem autorização para a cons- trução do “apenap” – uma “cerquinha baixa e feita de troncos que rodeia temporariamente as sepulturas (Pedro Agostinho, 1974, p. 56; apud. Marchezan, 1990). Novamente fica instaurada a relação entre enterradores e donos dos mortos.
  • 28. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 27 Renasce a idéia da Vida A prestação de serviços, pela troca é, portanto, feita entre os indígenas, relacionando os mundos da natureza e da cultura. Da mesma forma o im- plante do Kuarup não deixa de refletir relacionamento idêntico entre aque- les dois mundos. O Kuarup reproduz a idéia de reposição na cultura xinguana (já dissemos que a madeira é tida como a essência do xinguano): ele repõe alguém à Mãe Terra, saldando o débito da comunidade junto à Natureza, para que esta continue contribuindo com comida, com vida. Por isso é fre- qüente a troca de serviços por comida em todo o ciclo do Kuarup; ela apare- ce em várias etapas que vão conquistando a vida nas constantes relações, envolvidas nas trocas, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura, que levantam o luto da comunidade tribal, até um banho simbólico realizando que marca afinal do luto. O Kuarup é plantado numa procissão idêntica à do enterro. As flautas uruá previamente anunciam essa etapa. Segundo Pedro Agostinho, o alto de im- plante do Kuarup rememora, através dos marakaip (cantores) que cantam ao seu redor, o acontecimento mítico do ato criador. O tronco da árvore é tra- O tronco (ou troncos) de Zido da mata, na horizon- árvore é colocado no Tal, oculto, indefinido, meio do terreiro, na ver- “morto”. O tronco vem da tical, definido Kuarup Natureza. É um crédito “tal”, “vivo”. A comunida- Que a natureza dá à co- de, com o crédito obtido Munidade para que ela junto à natureza, substi- Promova outra vida. Tui uma morte, pagando Seu débito com a nature Za. Normaliza sua vida Tribal. MORTE X VIDA Luta: um ritual intertribal pela vida A luta (huka-huka) é o clímax do Kuarup, inaugurando uma nova etapa de vida numa comunidade xinguano, uma vez que a perda ocorrida nessa tribo xinguana já está, nesse momento, reposta dentro do espaço comunitário. O pacto tribal já está novamente firmado. A luta representa então um pacto intertribal, geral, após a reposição de uma vida, cujo resgate pela tribo dá à comunidade um novo crédito. Esse novo crédito está representado no substituto da vida, na figura de madeira, no Kuarup; mai especificamente, o crédito está simbolizado no cinto do Kuarup, um adorno que passa a ser o prêmio da comunidade na disputa intertribal, que se resume numa luta. Com essa prática instaura-se novamente entre a comunidade xinguana a adversidade tribal e completa-se, assim, o resgate da vida suspensa durante o luto. A comunidade, que é credora da reposição de uma vida, doa, através do cinto do Kuarup, esse crédito, reatando os compromissos intertribais com a vida.
  • 29. 28 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS O pequi: o mito que instaura a idéia da vida. Após a luta há a distribuição da castanha do pequi: os nativos esperam que ela amadureça e caia da árvore. Uma vez caída, madura, ela é colocada em cima da sepultura, cobrindo-a. Quando, depois da luta, a castanha passa a ser distribuída, sua distribuição é feita pela moça púbere, que até esse momento estava reclusa e que, agora, libertada no ciclo do Kuarup, já pode procriar. O pequi é objeto de troca entre as tribos xinguanas participantes do Kuarup. Segundo a história da criação dos cosmos xinguano, ele veio das cinzas do jacaré, e este, por sua vez, é tido como conquistador das mulheres. O Kuarup reúne uma comunidade intertribal. Assim, quando a tribo promotora da festa oferece o pequi aos visitantes, no encerramento dos festejos, por meio de suas púberes libertadas para a procriação da vida, também oferece aquela fruta em troca da liberdade das mulheres da aldeia, para que procriem somente com os homens da própria aldeia. Os visitantes homens são poten- ciais conquistadores de mulheres, são jacarés (inclusive, a própria tribo reco- nhece que seu morto festejado foi um jacaré, pois o pequi oferecido fica depositado em sua sepultura até a hora da distribuição, no final da festa). Nessa fase dos festejos, com o luto suspenso, o curso da vida na aldeia que promoveu o Kuarup voltou a sua plenitude, incluindo todas as suas adversi- dades diante das tribos visitantes. O pequi, em mais esse ato de troca, substitui, isto é, dilui a potencial pretensão dos homens das outras aldeias em conquistar as mulheres da aldeia promotora da festa. Com isso o pequi ganha também um sentido de ordenador da procriação da vida para os xinguanos, o que é confirmado pelas origens dessa castanha na sua mitologia. O Pequi, segundo essa mitologia, “nasceu com quatro diferentes cores, con- forme a direção dos ramos (norte, azul; sul, verde: leste, branco; oeste, vermelho)” (Agostinho, 1974, p. 188; apud. Marchezan, 1990). A festa é encerrada com muita comida. A comida, como vimos, é um paga- mento freqüente feito como troca de serviços realizados desde os preparati- vos do ciclo de Kuarup (paga-se com ele prestações de serviços pelo inicio do processo de levantamento do luto da aldeia), até o seu encerramento na confraternização entre as comunidades das várias tribos participantes da festa. A comida representa sempre a vida nessa festa. Assim, ela inicia o ciclo Kuarup e encerra esse mesmo ciclo, que relembra a história da origem da vida da comunidade xinguana, no tempo e no espaço de uma das aldeias (Marchezan, 1990, p. 99 a 102 ). Assim sendo, é possível depreender, a partir dessa discussão, que as socie- dades indígenas não são desprovidas de história, de alma, de Lei, de direitos, de estruturas complexas de organização, cujos discursos, muitas vezes equivocados e vazios, não dão conta de “traduzir”. Entretanto, também não podemos des- prezar as revelações da poesia, certo? Nem tampouco descartar todos os livros de história. Às vezes, um poema nos toca de tal forma a sensibilidade, a intuição fica tão aguçada, que ficamos sabendo dos mistérios do mundo sem o recurso da lógica e da filosofia. E esse toque de magia na forma de conhecer o mundo, é muito cultivado entre os povos indígenas, constituindo-se também em uma he- rança que deles recebemos. Afinal, se os europeus e asiáticos engendraram o
  • 30. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 29 raciocínio lógico, a especulação filosófica, nós desenvolvemos a intuição, a adi- vinhação, como disse outro poeta modernista, o Oswald de Andrade. No seu sarcástico Manifesto Antropófago – o manifesto do homem brasileiro que devo- ra as culturas estrangeiras - esse poeta imita ironicamente o poeta Shakespeare, explicando qual é o grande dilema do brasileiro: “Tupi our not tupi; that is the question”, ou seja, ser ou não ser índio eis a questão! Mas apesar de toda força da intuição e da magia, apesar de sabermos que temos em nossa alma a memó- ria tatuada de nossos antepassados indígenas, apesar de tudo isso, vamos nos ater a aspectos mais concretos dessa herança cultural indígena, de modo que a fantasia possa colaborar com a razão. Neste sentido, se a fantasia pode colaborar com a razão, convém saber dosar a fantasia, de modo que não se transforme tudo em senso comum. O que permanece no senso comum é, na verdade, muitas ideias equivocadas que ain- da continuam sendo veiculadas por meio dos livros didáticos, ou pela escola, ou ainda pela mídia a respeito destes povos. Vejam algumas delas: “São todos iguais”: desconhece-se e nega-se a grande diversidade sociocultural e linguística que há entre os povos indígenas; “São do passado”: primeiro, nega-se a presença dos povos indígenas como parte da população brasileira e como integrante do futuro do país; segundo, considera-se o índio como representante da “infância” da humanidade, como remanescente de um estágio civilizatório há muito ultrapassado pelos “civili- zados”; “Os índios não têm história”: decorrente da noção anterior, esta baseia-se na falsa certeza de que os povos indígenas “pararam no tempo”, “não evoluí- ram”, vivem como na “nossa” pré-história. Como consequência, imagina-se erroneamente que as sociedades e culturas indígenas não se transformam, não se desenvolvem, e que suas tradições são absolutamente imutáveis; “São seres primitivos”: “atrasados”, que precisam ser “civilizados”: nega-se aos povos indígenas o direito à autodeterminação e à autonomia de suas escolhas e desqualifica-se seu patrimônio histórico e cultural. Isto impede que se admita e reconheça a existência de ciências e de teorias sociais indíge- nas, de uma arte e religião próprias; enfim, de um saber indígena; “São aculturados”: não são mais índios; imagina-se que quando os povos indígenas alteram alguns aspectos no seu modo de viver, tornam-se “aculturados”, deixam de ser “autênticos” e não podem mais reivindicar ter- ras ou outros direitos relativos à condição de índios. (Texto retirado na ínte- gra do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas MEC/SECAD, 2005).
  • 31. 30 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
  • 32. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 31 CAPÍTULO III Imaginário do Índio Amazônico O imaginário do índio da Amazônia não é um fato novo na história, pois remonta a algumas décadas, a começar pela lendária passagem em busca do eldorado1, que tinha o poder de aguçar o imaginário das pessoas sobre a origem dos homens e sua transformação em divindades, deuses. Sem a intenção de fazer uma longa digressão, mas seguindo nesta proposição, não do imaginário, mas da representação do real, podemos dizer em relação à origem do homem americano que ainda há muitas hipóteses a serem comprovadas. Se sua origem tem a marca de nascimento aqui mesmo, ou se foi criado pela divina ação dos deuses. Outros, entretanto, podem afirmar que o homem americano é descen- dente de algum povo navegante que atravessou o oceano e veio chegar em algum ponto do nosso continente, dispersando-se, depois, por todo o território americano. Assim, a presença do homem no continente americano ainda continua sendo tema de pesquisa, no sentido de compreender a evolução do processo de che- gada e adaptação neste continente. Há inúmeras versões sobre seu surgimento. Para uns esses povos vieram da África e se dispersaram em busca de novos con- tinentes, novas regiões de climas e recursos naturais variados. É preciso dizer, portanto, que há muitas lacunas na história, sobre a origem do homem america- no; ou seja, há muitas perguntas sem respostas a respeito do povoamento da América. Atualmente, quem se dedica aos estudos sobre a origem do homem americano são os antropólogos físicos e sociais, os arqueólogos, os etnólogos, linguistas, biólogos e geólogos que procuram conhecer não só a origem, as ca- racterísticas, mas também quando e como a nossa espécie chegou à América. Uma das hipóteses mais aceita pelos estudiosos é a de que os nossos ante- passados teriam chegado ao continente americano atravessando a região do Estreito de Bering, no extremo norte da América, no Alasca. Essa parte do con- 1 O “Eldorado” é um mito espanhol que fala da existência de uma cidade toda em ouro. Assim, muitos conquistadores, sendo um deles o próprio Irala, em jornada ao Peru, em 1542, saíam em busca desse ouro interrogando os índios, com o intuito de obter alguma informação para que pudesse chegar a essa terra encantada. De acordo com os relatos de Métraux, as terras chaquenhas, em si, não constituíam um fator importante, mas o seu papel histórico se tornou decisivo à medida em que se tornou uma espécie de “portão de passagem para as fabulosas terras do oeste, das quais os Guarani receberam objetos de prata e ouro vistos pelos espanhóis da boca do rio da Prata ao Paraguai”. (MÉTRAUX, 1963)
  • 33. 32 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS tinente americano ainda estava ligada ao continente asiático, por uma estreita faixa de terra. Isto significa que o Alasca era ligado à Sibéria, o que permitia então a passagem de animais e homens, de um continente para o outro, por terra firme. Ao chegar à América do Sul, mais especificamente ao norte desse conti- nente, encontra-se uma densa e úmida floresta chamada amazônica; e, mais para o sul, estendem-se as planícies de cerrados. Em vista dessa diversidade ecológica, é natural que houvesse tantas diferenças culturais e sócio-políticas entre os povos que ali habitavam. E mais ainda é possível dizer: as diferenças históricas do processo de formação desses povos pioneiros são perceptíveis nas diferentes formas de adaptação e de organização de suas sociedades; tais pecu- liaridades apresentam inúmeras formas de cultura, rica na diversidade de mani- festações religiosas, artísticas, políticas e, até econômicas. Até há pouco tempo, era aceita a ideia de que a América do Sul apresenta- va uma distinção fundamental e contrastante entre os povos do altiplano andino, tidos como detentores de uma alta civilização, e os povos da floresta tropical, socialmente toscos e atrasados, sem qualquer complexidade cultural ou política. Entretanto, investigações recentes (ver Carlos Fausto: Os Índios Antes do Brasil, Zahar, 2000) já demonstram o quanto é variada e rica a cultura desses povos que se desenvolveram à sombra da cordilheira dos Andes, seja, por exemplo, os povos das várzeas amazonenses, como o marajoara, seja os que, mais ao sul, circundavam o Chaco. O homem, ao se deslocar, foi se adaptando a este novo sistema e criando formas próprias de organização social, econômica, política e cultural, bem como se protegendo das adversidades causadas pela natureza. Assim, cada sociedade que se desenvolveu na América do Sul, percorreu caminhos culturais próprios. Sobre os caminhos buscados pelos povos que habitavam o Brasil, os que sempre estiveram mais em evidência, sobretudo nas últimas décadas, foram os povos da Amazônia, pois além de possuírem uma densidade populacional maior, cerca de 60%, entre dos demais povos indígenas de outras regiões do País também apresentam em sua dinâmica de organização social uma influência menor na relação de contato, visto que são povos que vivem mais distante das cidades, em grandes áreas preservadas pelas matas e rios. Outro aspecto significativo que também merece registro é que ainda há alguns grupos na região amazônica que ainda não foram contatados pela sociedade não indígena. A propósito, conviria observar que é difícil definir o que seja um determi- nado povo, pois há muitas variantes em torno das línguas faladas. Geralmente, quando nos referimos a um determinado grupo é mais por indicação da forma como eles eram conhecidos no período do contato, ou como ficaram conheci- dos por seus grupos vizinhos, do que por meio de informações diretas fornecidas por eles. Embora tenha ocorrido um crescimento significativo da população indíge- na no Brasil, há grupos considerados “extintos” e grupos que ainda não permiti-
  • 34. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 33 ram um contato mais direto e permanente com a cultura ocidental: são conhe- cidos como “índios isolados”. Dessa forma, é na Amazônia que se encontra uma das maiores organiza- ções indígena no Brasil, a COIAB2. Tal organização possui cerca de 75 organiza- ções membros dos nove Estados da Amazônia Brasileira, sendo: Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. São or- ganizadas por meio de associações locais, federações regionais, com especificdades de atuação via organização de mulheres, professores e estudan- tes indígenas. Assim sendo, juntas, essas comunidades somam aproximadamen- te 430 mil pessoas, o que representa cerca de 60% da população indígena bra- sileira. Por isso, o imáginário de que só há povos indígenas na Amazônia, devido muita vezes às suas pinturas corporais, rituais e vestimentas, é tão evidente e disseminados no senso comum que acaba por causar prejuízo aos demais povos indígenas do Brasil, originando exclusão e preconceitos. Quando a grande im- prensa fala de indígena, logo apresentam a imagem de algum grupo amazônico. 2 Há por todas as regiões do Brasil, fora da região amazônica, a criação de diversas organizações indígenas no sentido de reivindicar uma atenção por parte do Governo para estabelecer políticas públicas de reconhecimento e atendimento a estes povos. De acordo com estas organizações deve-se reconhecer a dinâmica de organização social e política de cada etnia do País, sem que haja parâmetros de comparação entre eles (grupos fora da Amazônia) com os povos da Amazô- nia.
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