2. O Livro de Jó
1. Autor e data de composição.
Se é difícil encontrar uma solução para o título e para o texto a ser usado, mais
difícil ainda é falar da autoria e da datação do livro. O autor ou redator final é
anônimo e o livro apresenta-se como uma obra fruto de composição. Os critérios
empregados para se determinar a datação são os mais variados: lingüístico, cultural,
dependência literária e conteúdo teológico.
a) linguístico: a língua hebraica usada no livro apresenta dificuldades, visto que
muitas palavras são obscuras aos filólogos e a mistura de elementos aramaicos em
Jó excede a de qualquer outro livro bíblico. Assim, há os que defendem que o livro é
uma tradução para o hebraico a partir do aramaico e colocam a obra de Jó no
período de florescimento do aramaico: a época pós-exílica.4
b) cultural: a religião presente no livro é do tipo primitiva, não
institucionalizada e remonta à época em que não existe sacerdócio e nem santuário.
A ira divina é aplacada mediante sacrifícios oferecidos pelo patriarca (Jó 1,5; 42,8;
cf. Nm 23,1.14.24). A riqueza mede-se pela quantidade de rebanhos e escravos (Jó
1,3; 42,12; cf. Gn 12,16; 32,5). A longevidade do patriarca Jó (cf. 42,17) somente se
iguala ou é superada nas gerações patriarcais.
c) dependência literária: existem traços literários típicos com a literatura de
Ugarit, em concreto com a épica de Kirta. Há ainda paralelos com o chamado Jó
babilônico conhecido pelas tablitas do século VII a.C., mas que possui uma forma
mais antiga pelo menos de 1000 anos. O mesmo se diga do paralelo sumério que
remonta mais ou menos ao ano 2000 a.C. Assim, acreditam os estudiosos, que o
livro de Jó seja uma reinterpretação de uma antiga épica relativa a um personagem
chamado Jó.
d) conteúdo teológico: o uso de “o” Satã, isto é, com artigo, levou alguns
estudiosos a relacionar o livro com o período persa. A assembléia dos deuses em 1,6 e
2,1 reflete um antigo elemento mitológico, que se encontra tanto na Mesopotâmia
quanto em Ugarit, bem como em alguns salmos e no 2o
Isaías. Todavia, a crítica mais
forte no conjunto do livro diz respeito à doutrina da retribuição, que se data, com mais
probabilidade e propriedade, no período pós-exílico.
A data do livro é desconhecida, existe uma tendência em considerá-lo pós-
exílico. A questão é complicada pelas afirmações de alguns estudiosos, segundo os
quais partes da obra são acréscimos posteriores (o poema sobre a Sabedoria no c.
28; os discursos de Eliú etc). Não existem alusões históricas no livro, nem mesmo
paralelos de Jó na literatura do Antigo Oriente Próximo laçam luz sobre a datação.
Alguns pensaram que Jó 3 dependeria de Jr 20,4-18, ou ainda procuraram pistas na
influência no Deutero-Isaías, ou julgaram que o exílio tivesse um impacto sobre o
livro, mas todos estes argumentos literários e teológicos são muito frágeis.
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A língua foi analisada ao menos sob dois pontos de vista: a presença de cananaísmos (especialmente a
influencia ugarítica) e dos aramaísmos (especialmente nos discursos de Eliú), mas o problema está longe
de encontrar uma solução [cf. A. BLOMMERDE, Northwest Semitic Grammar und Job, BibOr 22,
Roma, 1969].
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4. O Livro de Jó
para que as obras de Deus nele se possam manifestar. Jó chega a desafiar seus
amigos diretamente em 13,7.
3. Gênero Literário
É uma forma de diálogo filosófico-teológico, com conteúdo artificioso da
realidade, onde o protagonista do livro parecer ser um personagem histórico.
Para propor suas considerações sobre o problema acima citado, o autor
utiliza-se de uma narrativa de fundo histórico, visto que a forma abstrata não era
familiar aos orientais. Assim, apresenta sua reflexão através do drama criado de
um homem digno e aflito, chamado Jó. Possuidor de raro talento, o autor escreveu
com os artifícios didáticos e literários da sua época uma trama histórica com base
primitiva, que buscava refletir sobre a questão do justo sofredor e sobre o problema
do mal que o afligia.
Os capítulos 1-2 e 42, escritos em prosa, constituem o arcabouço de todo o
livro escrito em poesia, que fala da provação de Jó e sua fidelidade em meio a
tantos sofrimentos e como, no final, ele foi recompensado por Deus.
4. A pessoa de Deus no livro de Jó
É digna de nota a variedade dos nomes divinos no livro de Jó. No prólogo e no
epílogo, o narrador refere-se na maneira hebraica: YHWH, o único e verdadeiro Deus
e Senhor supremo, mas as personagens presentes no prólogo, incluindo o próprio
YHWH (cf. Jó 1,8b; 2,3a) empregam o termo genérico . A única exceção está
em 1,21b, onde Jó, por três vezes, usa YHWH, mesmo sendo uma citação.
Já no diálogo, por outro lado, somente uma vez usa-se YHWH (cf. 12,9) e
esta também é uma citação. é usado uma só vez em 5,8b. Nas outra vezes,
usam-se com freqüência três nomes arcaicos poéticos: , e (o
Onipotente). Destes, o primeiro e o segundo não são mais que paralelos ao terceiro.
Esta elaborada convenção confirma o monoteísmo, pois os cinco nomes aplicam-se
ao único Deus e, ao mesmo tempo, uma prova do contexto não israelítico. Jó e seus
amigos são "verdadeiros fieis", mas estão fora do âmbito da aliança com Israel.
Esses falam para a humanidade em geral, diante de um Deus conhecido certamente
através da revelação a Israel. Não esperavam alguma outra salvação de Deus,
senão o bem-estar individual nesta vida. Somente Jó esta procurando, como que às
apalpadelas, uma mais profunda e íntima relação, baseada não sobre a mera troca
de dons ou serviços, mas sobre a comunhão de amor. Os amigos não falam jamais
a Deus, somente Jó é quem a Ele se dirige.5
5. O conceito de sofrimento em Jó
O tema do justo sofredor está presente na literatura religiosa universal. Na
literatura grega, os homens são apresentados à semelhança dos deuses, que
querem vencer e dominar, mas não podem devido à ação dos deuses. Por isso, a
postura dos homens é de arrogância, por quererem se igualar aos deuses, e a
postura destes é de inveja não permitindo o avanço e o crescimento dos homens.
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R. A. F. MACKENZIE - Roland E. MURPHY, "GIOBBE", in Raymond E. BROWN - Joseph A.
FITZMYER - Roland E. MURPHY, Nuovo Grande Commentario Biblico, Brescia, Queriniana, 1997, 610.
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6. O Livro de Jó
poucos e bem definidos; a sua psicologia é traçada com o mínimo das palavras.
Cada diálogo é entre duas pessoas somente e os discursos são apertados e breves o
mais possível.
A estrutura literária dos capítulos 1-2 mostra uma notável simetria.
1,1-5: A pessoa de Jó, sua integridade e prosperidade;
1,6-22: A primeira provação de Jó
A primeira cena no céu: diálogo entre YHWH e Satã: 1,6-12;
Calamidades infligidas a Jó, perda dos bens: 1,13-19
Firmeza de Jó: 1,20-22
2,1-7a: segunda cena no céu: diálogo entre YHWH e Satã;
2,7b-10: Sofrimentos pessoais infligidos à pessoa de Jó;
2,11-13: Aparecimento dos três amigos de Jó.
7. Estrutura do Livro
1,1-2,13: o prólogo, à exceção dos discursos, narra que Jó era um homem rico
e piedoso, mas que perdeu todos os seus bens e foi atingido por uma doença muito
grave (provavelmente a lepra). A partir daí desencadeia-se um debate entre YHWH
e Satanás sobre a questão da virtude desinteressada de Jó, que se recusa a imputar a
Deus suas desgraças.
3,1 - 31,40: tem-se um diálogo entre Jó e seus amigos, Elifaz, Bildad, e Zofar.
Depois do discurso introdutório de Jó, o diálogo é dividido em três ciclos [4-14; 15-
21; 22-27]. Cada ciclo contém seis discursos: um discurso de cada um dos amigos e
uma resposta de Jó a cada um deles. Segue-se um discurso final elogiando a
sabedoria (c. 28); após isso, vem o discurso final de Jó (c. 29-31). O terceiro ciclo
parece ter sofrido algumas modificações. O discurso de Bildad (c. 25) é muito breve
e falta o discurso de Zofar. Os críticos concordam em que 26,5-14 e 27,7-23 - cujo
conteúdo está em consonância com as idéias dos amigos de Jó no curso do dialogo -
contêm parte dos discursos de Bildad e Zofar, embora não integralmente.
32 - 37: Quatro discursos de Eliú.
38 - 39: Teofania, com dois discursos de YHWH, seguidos pela submissão de
Jó (40,1-5).
40,6-41,34: Dois discursos acrescentados por YHWH, seguidos de uma
segunda submissão de Jó (42,1-6).
42,7-16: Epílogo, novamente em prosa, no qual YHWH pronuncia o seu
julgamento no debate com Jó e lhe restitui o dobro de seus bens.
8. Interpretação do livro de Jó
O autor quis exprimir suas dúvidas a respeito da concepção tradicional que
associava, quase que mecanicamente, virtude e felicidade ao justo; pecado e
desgraça ao ímpio, colocando em dúvida a tese deuteronomista da retribuição,
que afirmava que:
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8. O Livro de Jó
Segundo a Concepção Deuteronomista, toda vida feliz é um prêmio que vem
da fidelidade a Deus. Se sirvo bem a Deus, tenho o direito de ser bem servido por
Ele. É uma concepção utilitarista, que é presente e vigora ainda em nossos dias.
Dt 8,5-20: apresenta normas de conduta que estão na base das bênçãos;
Dt 28,1-30,20: as bênçãos prometidas pelo cumprimento dos mandamentos (cf.
30,15-20);
Sl 34,13-15; 37; 39
Pr 3,7-8.13-18; 4,18s (cf. Jo 9,2)
Assim:
todo benefício supõe = fidelidade a Deus
todo malefício supõe = infidelidade a Deus
base desta concepção = este modo de pensar está ligado à concepção
antropológica de que a vida terminava no presente. Portanto, prêmio e castigo se
dão nesta vida. Neste tipo de antropologia faltava a concepção da vida póstuma.
Alguns termos hebraicos podem ser esclarecedores.
rc^^B* () = carne, parte menos nobre do homem;
vp#n# () = alento, alma, sopro vital, respiração;
h~~Wr (ruah) = alento vital, alma, espírito, respiração, fôlego, sopro. Isto é, o
alento em geral; o alento como vida; sua manifestação na
respiração. Parte mais nobre do homem, enquanto que é
mais pobre.
Para o judeu, a morte separaria o homem sem aniquilá-lo totalmente. Por ex:
1Sm 28,8-19 → 1Cro 10,13s = o cadáver ia colocado no túmulo da família.
No loav= () = hades, abismo, reino da morte, morte; iam os <ya!p*r+
() = almas, espectros, defuntos habitantes do ; um espectro lúcido e
imortal que ficava num estado de sonolência e que não via se extinguir o núcleo da
sua personalidade.
Gn 25,8-10: Abraão vai unir-se aos seus;
Gn 37,33-35: Jacó diz que "descerá para onde está meu filho, no ;
Gn 49,29-32: a morte não punha termo à vida; é como se o morto ficasse
adormecido, com a possibilidade de acordar; daí a invocação dos mortos ser
condenada no Dt.
Período da Hesitação
Não é possível verificar e aceitar plenamente a tese Dtr da retribuição, pois
esta causa perplexidade em muitos casos.
Jr 12,1-6 (séc. VI a.C) = o profeta, justo sofredor, está perplexo diante da
prosperidade dos maus e injustos.
Ml 3,14-16 (séc. V-IV a.C) = põe a seguinte questão → que lucro há em observar os
mandamentos, em servir a Deus, se os iníquos prosperam e vencem?
Sl 73 = inveja-se os maus que prosperam, quase que os bons passam para o grupo
deles e sucumbem à tentação.
Ecl 7,15-16 = o justo morre na sua justiça e o ímpio vive na abundância.
Hab 1,2-4; 2,1-4 = tudo está invertido, mas não há explicação e deve-se aguardar.
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