1. Universidade católica Portuguesa Hagiógrafos
Professor Dr. Ricardo Freire
JOB1
O livro de Job está dividido em duas secções nas quais se encontram dois
géneros literários; o narrativo e o poético. Na primeira secção narrativa é apresentado
um homem honesto e simultaneamente feliz, profundamente religioso, abençoado com
todas as classes de riquezas materiais. Ainda nesta secção este mesmo homem é
arrebatado por uma série de desgraças que lhe tiram os seus bens, os seus filhos, e
também a sua saúde física. No entanto Job mantem a sua fidelidade a Deus e a sua
integridade religiosa; «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor
mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor!» (Jb1, 21). Segundo G.
Von Rad o enredo não trata de uma simples «narração popular» que surge
espontaneamente, mas sim uma prosa de extraordinário valor artístico. O seu objectivo é
claro: saber se existe uma religiosidade desinteressada. Job mostra que a resposta é
afirmativa.
Na segunda secção do livro, a maior e a mais essencial, encontramos os diálogos
poéticos realizados por Job e seus amigos, a respeito dos problemas suscitados pelo
aparecimento do sofrimento humano e das grandes desgraças que o homem enfrenta ao
longo da vida. Estes diálogos desenrolam-se em três grandes discursos, nos quais Job
responde aos seus amigos (caps. 4.14; 15-21; 22-27). Os capítulos 32-37 formam um
pesado e amplo discurso com o quarto amigo, Elihú. A partir do capítulo 38ss encontra-
se a resposta de Deus.
Nos diálogos, é manifestado a grande novidade de Job. De um lado os amigos de
Job revelam um discurso intimamente ligado à tradição sapiencial antiga. Para eles a
conduta fundamental de comportamento do homem, está intimamente ligada à
correspondência entre conduta e retribuição. Ou seja, estão convencidos de que o
terrível sofrimento de Job é a manifestação de uma sentença divina. Portanto
aconselham vivamente Job a aceitar a correcção e a reconciliar-se com Deus, para não ir
contra a vontade de Deus. Por outro lado vemos Job a concordar com os seus amigos a
respeito da origem do sofrimento. Também para Job este está relacionado com uma
directa intervenção divina. No entanto Job vai discordar radicalmente dos conselhos dos
seus amigos. Pois não é capaz de conceber um Deus que condene um inocente, um
justo. Então Job vai criticar Deus, vai negar o direito de Deus tratar assim um homem.
A verdadeira novidade de Job deve-se ao facto de este vincular Deus com o
sofrimento humano de uma maneira muito mais profunda e mais comprometida. Para
Job Deus desce até as profundezas mais dramáticas da existência humana. O Deus de
Job não é o mesmo dos seus amigos, ou seja, não é um Deus que reduz tudo à norma, de
forma a retribuir de acordo com a conduta, castigando fazendo sofrer. O Deus de Job é
um Deus pessoal, que incide com toda a sua potência no sofrimento humano.
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G. VON RAD, Sabiduria en Israel, Biblioteca Biblica, Madrid 1985, pp. 262 - 300
Porto
2012
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2. Universidade católica Portuguesa Hagiógrafos
Professor Dr. Ricardo Freire
QOHÉLET
Qohélet é o título original do livro, embora seja também conhecido por
Eclesiastes. Este último nome surge da tradução grega do original hebraico Qohélet.
Relativamente ao aspecto formal do livro, mais propriamente ao género literário,
este enquadra-se no género de «testemunho real». A nível de conteúdo, o Qohélet
apresenta formas tipicamente sapiencial de reflexão, de confissão, poemas didácticos,
de máximas e de considerações várias de cariz autobiográfico, com as quais o autor
chama a atenção para a finalidade da existência humana. A problemática do livro segue
fielmente os passos da tradição sapiencial, ou seja, procura conhecer o curso dos
acontecimentos, assim como, procura indagar o que é bom para o homem. No entanto, o
caminho que vai percorrer vai ser diferente do caminho da reflexão sapiencial
tradicional.
Os princípios fundamentais da sua reflexão são os seguintes:
Um exame discursivo da existência não produz um significado sólido, uma vez
que tudo é vaidade.
Os acontecimentos dependem, na sua totalidade, de uma decisão divina.
O homem é incapaz de conhecer as disposições de Deus, ou seja, a sua acção no universo.
Podemos ver, a partir destes três pontos, que o livro é uma obra desconcertante
que vai questionar/criticar os valores que na perspectiva da sabedoria tradicional
gozavam de um estatuto especial. A sabedoria antiga tinha como referência a
possibilidade de o homem conhecer a obra de Deus e de a dominar. É neste ponto, no
modo de conceber a relação do homem com a obra de Deus, que reside a novidade de
Qohélet. Na perspectiva de Qohélet o homem é totalmente incapaz de perceber, e muito
menos, de compreender os postulados dessa relação. O facto de o homem não ter acesso
a certas determinações, e de as experimentar na sua própria vida, vai levar Qohélet a
considerar que tudo é vaidade e fadiga. Esta postura vai levar Qohélet para além dos
limites sapienciais. Provocando uma ruptura com a sabedoria dogmatizada. No entanto,
Qohélet vai reconhecer Deus como o autor de todas essas determinações misteriosas.
Pontos convergentes entre Job e Qohélet:
Pelo que me apercebi da leitura dos dois textos existe efectivamente pontos
convergentes. Num primeiro ponto realço a questão da experiência religiosa pessoal de
ambos, as quais vão contra a tradição sapiencial antigas. Num segundo ponto destaco a
crítica que ambos fazem a essa mesma tradição. Um terceiro e último ponto, penso que
se prende com o contributo que Job e Qohélet tiveram para a resolução de algumas
aporias teológicas existentes à época; como se verifica nas questões do sofrimento e da
retribuição do bem e do mal.
Daniel José de Figueiredo Mendes
Porto
2012
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