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AUGUSTO DE FRANCO
17/08/2013
I - Um dos problemas da democracia realmente existente - quer dizer, da
democracia reinventada pelos modernos: a democracia representativa - é
que ela induz à perigosa compreensão de que democracia é igual a
eleição.
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II - Desta fraqueza da democracia formal (que ainda vige na maioria dos
países que a adotam: uma pequena minoria dos 193 países existentes - a
rigor não mais do que 30 - se considerarmos a democracia adotada em
seu sentido representativo pleno) aproveita-se boa parte dos ditadores,
protoditadores e manipuladores. Hitler e Mussolini foram eleitos. Enver
Hoxa (na Albânia) promovia eleições. No Irã dos aiatolás tem eleições.
Difícil o regime que não promova eleições, mesmo quando em franca
transição autocratizante (como a Venezuela bolivariana herdeira de
Chávez ou a Nicarágua de Ortega).
III - Não, democracia não é igual a eleição. Nem mesmo esta limitada e
defeituosa democracia formal e representativa inventada pelos modernos
é tão inconsistente assim. Não basta alguém ser "democraticamente
eleito" (como repete o coro dos tolos neste momento sobre Morsi, da
Irmandade Muçulmana, no Egito) para haver democracia. É necessário
que, além de eletividade, haja liberdade, publicidade, rotatividade,
legalidade, institucionalidade e, como consequência de todos esses
princípios (incluído, é claro, o da eletividade), legitimidade. Vejamos um
por um:
1 - PUBLICIDADE. As regras que decorrem do princípio da
publicidade têm a ver com a transparência necessária (capaz de
ensejar uma efetiva accountability) dos atos do governo e a
dissolução do segredo dos negócios de Estado (que constitui uma
exigência real em circunstâncias que possam ameaçar a segurança
da sociedade democrática e o bem-estar dos cidadãos, mas que, na
maior parte dos casos, sob o pretexto de manter a segurança
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nacional e a ordem pública, constitui mero pretexto para ocultar
procedimentos autocratizantes ou privatizantes).
2 - ELETIVIDADE. As regras que decorrem do princípio da eletividade
são aquelas que disciplinam, de modo a tornar o mais equânime
que for possível (dentro das limitações impostas pelas diferenças de
força, riqueza e conhecimento existentes na sociedade em questão),
a escolha dos governantes pelos governados, o que compreende o
direito de voto para eleger representantes legislativos
(parlamentares) e executivos (governamentais) pelo sistema
universal, direto e secreto, em eleições livres, periódicas e isentas
(limpas), atribuindo-se a todos os cidadãos em condições legais de
votar o igual direito de ser votados (e a exigência adicional de que
os cidadãos devam pertencer a partidos é, como se pode ver, um
contrabando autocrático que atenta contra a transitividade do
princípio da eletividade, mas que ainda vige em boa parte dos
regimes democráticos).
3 - ROTATIVIDADE (ou alternância). As regras que decorrem do
princípio da rotatividade dizem respeito à efetiva possibilidade de
alternância no poder entre situação e oposição. Essa questão é
chave para distinguir as democracias das autocracias e, inclusive,
dos arremedos de democracia (ou seja, das democracias parasitadas
por forças autoritárias, aparentemente democráticas, mas que na
verdade querem restringi-la ou restringem-na objetivamente, seja
por meio de um processo claramente protoditatorial, seja por meio
de obscura manipulação política, em geral de natureza populista).
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Assumir a rotatividade ou a alternância em um sentido mais
ampliado significa também, como assinalou Felipe González (2007),
promover à categoria de princípio “a aceitabilidade da derrota como
elemento essencial do funcionamento democrático”.
4 - LEGALIDADE E INSTITUCIONALIDADE. As regras que decorrem
dos princípios da legalidade e da institucionalidade têm a ver com a
estrutura e o funcionamento do chamado Estado de direito,
contemplando a existência e o funcionamento de instituições
estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente
estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas
do governo. Se as leis são descumpridas ou dribladas ou se as
instituições são derruídas ou apenas ocupadas, aparelhadas,
pervertidas e degeneradas para servir aos propósitos políticos de
um grupo privado (instalado dentro ou fora do governo), então o
regime democrático corre perigo. Às vezes tal ameaça não é
suficiente para colocar em risco o sistema representativo formal,
mas – sem qualquer sombra de dúvida – quando isso acontece é
sinal de que está havendo um refreamento do processo de
democratização da sociedade. Se a lei (democraticamente
aprovada) for descumprida e não houver a sanção respectiva, a
democracia sempre sofrerá com tal violação, mesmo quando se
argumente que a lei é injusta (e ainda que o seja de fato: neste caso,
o papel dos democratas é propor a mudança da lei e não o de
afrontá-la ou descumpri-la). Mas toda lei democraticamente
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aprovada é legítima (na medida da legitimidade do processo que a
gerou).
5 - LEGITIMIDADE. Só é legítimo na democracia o ator político que
respeita – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto das regras
que emana dos princípios acima. Mas se, baseado nos votos que
obteve ou nos altos índices de popularidade que alcançou, um
representante (ou militante) considerar que pode desrespeitar,
falsificar ou manipular as regras emanadas desses princípios devido
a contar com o apoio da maioria da população (ou porque teria a
“proposta correta” ou a “ideologia verdadeira” para resolver todos
os problemas do mundo), então tal representante (ou militante)
deverá ser considerado ilegítimo do ponto de vista da democracia.
IV - Um governo "eleito democraticamente" que não governa
democraticamente (observando minimamente os cinco princípios acima)
não pode ser considerado democrático. Mas como as pessoas foram
induzidas a acreditar que democracia é igual a eleição, deixam-se
facilmente enganar pelos arremedos de democracia que são erigidos
continuamente em todo lugar (inclusive para tentar legitimar regimes
autocratizantes). Não há como consertar este defeito da democracia
representativa com mais democracia representativa, como sonham os
liberais: trata-se de um erro de projeto, de uma falha genética.
V - Esta falha genética da segunda democracia (a democracia realmente
existente, a democracia representativa inventada pelos modernos) faz
com que a democracia não tenha proteção eficaz contra o uso da
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democracia (entendida apenas como regime eleitoral) contra a própria
democracia. Qualquer grupo privado organizado pode se aproveitar das
liberdades democráticas e usar as eleições para conquistar o poder e, a
partir daí, iniciar um processo de autocratização do regime político:
privatizando a esfera pública, aparelhando o Estado, degenerando as
instituições e modificando as leis a favor do seu projeto de se eternizar no
comando. Organizações estruturadas para privatizar a esfera pública
(como os partidos) podem se constituir como verdadeiras quadrilhas para
disputar o butim (ou seja, saquear os recursos públicos) na base do spoil
system.
VII - Esta limitação estrutural (na verdade um erro de projeto da
democracia dos modernos) é a principal razão pela qual a democracia
representativa vem sendo questionada em todo lugar neste dealbar do
século 21. O aumento do descontentamento com os sistemas políticos
organizados sobre tais bases vem abrindo possibilidades para uma nova
reinvenção da democracia, uma terceira invenção da democracia, uma
democracia que seja: mais distribuída, mais interativa, mais direta, com
mandatos revogáveis, regida mais pela lógica da abundância do que da
escassez, mais vulnerável ao metabolismo das multidões e mais
responsiva aos projetos comunitários, mais cooperativa, mais diversa e
plural (não tendo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas
experimentações glocais).
Sobre a terceira invenção da democracia, leia mais:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-terceira-inveno-da-
democracia