SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 6
Baixar para ler offline
Medicina (Ribeirão Preto)                                                            Simpósio: MORTE: VALORES E DIMENSÕES
2005; 38 (1): 49-54                                                                            Capítulo VII




  O CUIDAR EM SITUAÇÃO DE MORTE: ALGUMAS REFLEXÕES

                                THE CARE IN DEATH SITUATIONS: SOME REFLECTIONS



                                      Luciana G. A. de Souza1 , Magali R. Boemer2


1
  Psicóloga. Docente da Faculdade de Ciências Humana de Aguaí – SP. 2Docente Aposentada. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
- USP.
CORRESPONDÊNCIA: Rua Júlio de Souza, 220. Jardim Santa Helena -CEP 13806-034 - Mogi Mirim – SP.- Fones: 19) 3862-3505 / 9762-8549.
E-mail: lugasouza@yahoo.com.br




           Souza LGA, Boemer MR.       O cuidar em situação de morte: algumas reflexões. Medicina (Ribeirão Preto)
              2005;38 (1): 49-54.

              Resumo: A percepção das vivências de morte e morrer tem sofrido transformações ao longo
           da história, passando de uma experiência tranqüila e até mesmo desejada a uma possibilidade
           impregnada de angústias e que deve ser evitada a todo custo. Neste contexto, os profissionais
           de saúde têm uma responsabilidade grande em discutir e refletir sobre a questão de modo que
           possam oferecer um cuidado autêntico e compromissado com o ser humano, em sua plenitude.
           Este trabalho se propõe a discutir, a partir da perspectiva da fenomenologia de Heidegger, a
           questão da morte como parte inerente à existência humana, atentando para a necessidade de
           que se compreendam as relações de cuidado e as formas de relacionamento humano de modo
           que se possibilite o preparo dos profissionais de saúde para compartilhar com os pacientes de
           um momento existencial que pode e deve ser vivido com dignidade.

               Descritores:     Morte. Profissional de Saúde. Relações de Cuidado.




       Para iniciar as reflexões deste artigo, faz-se              facetas de fenômenos que se encontram ocultos para
relevante uma breve apresentação para que o leitor                 uma consciência, no caso a do pesquisador.
possa se inteirar do contexto de onde proponho susci-                     Desta vivência, emergiram algumas inquieta-
tar algumas facetas do pensar o profissional de saúde              ções que deram origem à minha Monografia de Inici-
frente à morte do adulto. Realizei minha formação                  ação Científica e Dissertação de Mestrado1,2. O tema
acadêmica em psicologia, tendo, desde os anos inici-               que trabalhei mais profundamente em minha trajetó-
ais, um significativo interesse pelas questões existen-            ria científica foi a questão do cuidado da pessoa com
ciais. Em meus primeiros contatos com a pesquisa ci-               necessidades especiais como uma experiência que
entífica, tive a oportunidade de fazer parte do Grupo              implica em interagir com várias mortes, entendidas,
de Pesquisa “Estudos fenomenológicos sobre a morte                 em um primeiro momento, como não possibilidades e
e o morrer”, durante os anos de 1997 a 2001, grupo                 limitações humanas, provocadas pela deficiência. Para
este que é coordenado pela Professora Magali Rosei-                que o cuidado dessas pessoas possa ser realmente
ra Boemer, quando tive contato com os estudos de                   significativo há a necessidade de perceber que a pes-
diversos autores que tratavam de várias facetas do                 soa com necessidades especiais tem uma existência
tema em questão. Também pude conhecer o referen-                   diferente da esperada e, assim, também plena de pos-
cial teórico filosófico da Fenomenologia, que busca                sibilidades e realizações.
estudar o ser-pleno da existência humana e desvelar                       Ainda em minha formação profissional tive opor-


                                                                                                                              49
Souza LGA, Boemer MR




tunidade de estagiar junto ao Grupo de Apoio à Crian-               Nos anos 60, Kübler-Ross4 já se preocupava
ça com Câncer da FMRP-USP, por um período de                com os profissionais de saúde que cuidam de pacien-
um ano e meio, entre 1999 e 2000. Também estagiei           tes em situações de morte e morrer, propondo semi-
no Grupo de Reabilitação de Mulheres Mastectomi-            nários de discussão sobre o tema da morte. A autora
zadas da EERP-USP, por um ano, em 2001. Tais ex-            deparou-se com reações claramente hostis frente à
periências puderam me aproximar ainda mais do cui-          sua proposta, mas acreditou que a reflexão e discus-
dado com o paciente que vivenciou ou vivencia uma           são do tema poderiam suscitar questões importantes
doença grave.                                               sobre a vivência humana e mais ainda, sobre a natu-
       Em minha atuação profissional mais recente fui       reza do cuidado à pessoa que vivencia sua finitude.
professora de psicologia para o curso de Habilitação                Para Pitta9, o trabalho em saúde é vivido com
Técnico Profissionalizante em Enfermagem, nos anos          prazer e angústia. Prazer referente à valorização so-
de 2003 e 2004, na cidade de Mogi Guaçu – SP. Atu-          cial que esse cuidado tem em nossa cultura ocidental
almente trabalho clinicamente e sou docente da disci-       e, por conseqüência, os profissionais também são igual-
plina de Psicologia na Faculdade de Ciências Huma-          mente valorizados por serem pessoas destinadas ao
nas de Aguaí – SP, ministrando aulas para os cursos         cuidar de quem está sofrendo. Angústia, por sua vez,
de Pedagogia e Serviço Social e tendo sempre comi-          por trazer ao profissional o inevitável contato com sua
go a responsabilidade de abordar questões referentes        impotência frente à morte, o que pode ser fonte de
à compreensão da existência humana como proposta            estresse e sofrimento psíquico para esses trabalhado-
de formação de profissionais compromissados com o           res. Cabe aqui mencionar que, nas últimas décadas, a
ser humano em sua plenitude nas áreas de saúde e            situação do sistema de saúde brasileiro, tem se depa-
educação.                                                   rado com a insuficiência de recursos humanos, baixos
       Direcionando-me para o tema que me propo-            salários, precariedade de infra-estrutura, falta de me-
nho discutir, é importante ressaltar que, quando se pensa   dicamentos, o que vem obrigando os profissionais a
em refletir sobre questões de morte e morrer, é ne-         trabalharem em situações de grande exigência emo-
cessário considerar as transformações históricas pe-        cional. Neste contexto, inúmeras questões podem se
las quais passou a sociedade no que diz respeito às         apresentar como conflituosas para a equipe de saúde
atitudes diante da morte. Da morte vivida com prepa-        como: revelar ou não quando é diagnosticada uma
ro e tranqüilidade na Idade Média, ela passou a um          doença grave, possibilidade de envolvimento emocio-
momento de temor e aflição do homem nos dias atu-           nal com o paciente, que tipo de atenção deve ser dada
ais. A cultura ocidental lhe imprimiu uma intensa an-       ao doente fora de possibilidades terapêuticas, quando
gústia que pode ser percebida em situações de aver-         é preciso intervenção psicológica para pacientes em
são e terror frente ao simples imaginar tal possibilida-    estado grave, entre outras.
de. Espera-se que a morte ocorra no hospital, quando                Segundo Ayres10, quando pensamos em assis-
o indivíduo já atingiu uma idade avançada, devendo          tência em saúde, relacionamos de imediato o uso de
acontecer sem sofrimento para a pessoa, de prefe-           tecnologias para o bem estar físico e mental do ser
rência durante o sono3/8.                                   humano com a seguinte equação: “a ciência produz
       Diante disso, os profissionais de saúde são aque-    o conhecimento sobre as doenças, a tecnologia
les que têm a incumbência de zelar pelo cuidado da          transforma este conhecimento em saberes e ins-
saúde do homem, de modo a postergar, o máximo pos-          trumentos para a intervenção, os profissionais
sível essa vivência tão temida. Frente ao contato mui-      aplicam esses saberes e produz-se saúde”. Mas,
to próximo com situações que revelam a possibilidade        ressalta esse autor, é preciso considerar que este ca-
humana da morte, esses profissionais se vêem peran-         minho tem trazido grandes questionamentos no que se
te a expectativa de que sua função é curar e restabe-       refere à perda de limites entre o que os profissionais
lecer a saúde de todos os que lhes procuram, perden-        enxergam enquanto necessidade real de intervenção
do de vista que a morte é inerente à condição huma-         junto ao paciente e o que faz parte de sua ânsia pes-
na. Há situações em que, a despeito de todo o esforço       soal por encontrar a cura quando ela não é possível.
da equipe de saúde, o paciente morre, e isso passa a
ser vivenciado como frustração intensa por parte dos              Precisamos ter claro também que nem tudo
profissionais que sentem que não foram capazes de           que é importante para o bem estar pode ser imedi-
salvar a vida que lhes foi confiada.                        atamente traduzido e operado como conhecimen-

50
O cuidar em situação de morte: algumas reflexões




to técnico. (...) Precisamos estar atentos para o          gamadas pelo uso de hífens, como “ser-com”, “ser-ai”,
fato de que nunca, quando assistimos ‘a saúde de           “ser-no-mundo”, entre outras, como um idioma pró-
outras pessoas, mesmo estando na condição de               prio. “Heidegger proclama estar retornando, de
profissionais, nossa presença na frente do outro           fato, às origens da linguagem, estar realizando as
se resume ao papel de simples aplicador de co-             intenções autênticas do discurso humano” 13. Assim,
nhecimentos. Somos sempre alguém que, perceba-             este filósofo usa quase sempre palavras simples, mas
mos ou não, está respondendo perguntas do tipo:            com significação complexa, que busca traduzir o signifi-
‘ O que é bom pra mim?’, ‘ Como devo ser?’, ‘Como          cado original daquela palavra para que possa ser efetiva-
pode ser a vida?’ (Mendes Gonçalves e Schraiber,           mente utilizada para explicitar facetas da existência.
apud Ayres, 2003-2004)10.                                          É importante atentar para o pressuposto, se-
                                                           gundo este referencial, de que o “ser” sempre é um
       Pesados investimentos têm sido aplicados, nas       “ser-aí”, ou seja, está inserido em um mundo no qual
últimas décadas, em tecnologias para intervenções na       foi lançado e o habita, de forma que não há como
área da saúde na tentativa de melhorar as condições        conceber um ser isolado, sendo sempre um “ser-no-
de vida humana, trazendo a cura e/ou a reabilitação        mundo”, o que pode ser elucidado na citação:
para um número cada vez maior de enfermidades. No
entanto, apesar de trazer conforto e bem-estar ao ho-            Em oposição às soluções dadas pela ciência
mem moderno, temos percebido que tais inovações            e sua metodologia científica, a fenomenologia exis-
também podem estar favorecendo um contato profis-          tencial busca as soluções na descrição da experi-
sional-paciente cada vez mais desumano, desprovido         ência imediata. Vai à realidade vivida e busca a
de vínculos.                                               descrição cuidadosa da estrutura básica da expe-
       E atualmente, como nos posicionamos frente a        riência imediata. (...) A presença no mundo exter-
uma proposta semelhante à de Kübler-Ross4, na dé-          no torna-se evidente através da análise fenome-
cada de 60? Trataríamos com indiferença? Com hos-          nológica da experiência imediata do sujeito. Isso
tilidade? Com curiosidade? É importante perceber que,      quer dizer que através do fenômeno que se revela
em tempos atuais, o tema já não causa tanta aversão        à consciência é possível saber-se que o mundo está
e parece que caminhamos para propostas de inter-           aí e que se doa ao Ser. Onde quer que o Ser esteja
venções em saúde mais direcionadas para questões           presente, na sua realidade vivida, haverá mundo,
das reais necessidades do ser humano enquanto pas-         porque a própria existência humana é estar-no-
sível de morte. Entretanto, ainda temos um longo ca-       mundo. (Martins eBicudo, 1983, p. 38 14 .
minho a percorrer para que a morte, em nossa socie-
dade, seja respeitada e vivida com dignidade.                    Para Heidegger12, “ser-no-mundo” refere-se à
       Para que se possa pensar mais profundamente         maneira pela qual o homem encontra-se com suas
sobre o tema, proponho recorrermos à ontologia de          coisas e com as pessoas, preocupa-se com elas, num
Heidegger11,12, que foi um filósofo que embasou seu        mundo que lhe é familiar, remetendo também ao modo
pensar em alguns pressupostos teóricos filosóficos da      como o Ser-no-mundo se aproxima das pessoas ou
fenomenologia, que é o referencial teórico que recor-      coisas e/ou se afasta delas. Dessa forma, a fenome-
ro para tecer minhas reflexões. Este autor se preocu-      nologia se preocupa com o aspecto social do Ser, pas-
pa e questiona o significado da palavra “ser” ou “sen-     sando a pensar em como ele vive o seu Ser-com-os-
do” enquanto fundamento da existência do homem e           outros, como ele se relaciona, atua, sente e vive com
do mundo à sua volta. Para ele, o “ser” é a maneira        seus semelhantes.
como algo se torna manifesto, percebido, compreen-               Diante de tal referencial, a pessoa que tem uma
dido e, finalmente, conhecido pelo ser humano. Ele         doença grave é um ser que tem uma parte de si afeta-
procura as origens genuínas que possibilitam a tudo se     da pela enfermidade, se apresentando como um “sen-
manifestar, o que possibilita as várias maneiras de algo   do-doente” e que, segundo Boemer15,16 é uma pessoa
se tornar presente, manifesto, partindo do cotidiano       que tem seu mundo influenciado por esta vivência, que
para aproximar-se dos problemas fundamentais e não         compromete suas possibilidades de vir-a-ser, trazen-
dos conceitos pré-estabelecidos.                           do a perspectiva do não ser que passa a se revelar
       Cabe ainda ressaltar que este autor expressa        com a consciência de que todo ser humano é um ser-
seu entendimento do “ser” através de palavras amal-        para-a-morte.

                                                                                                                            51
Souza LGA, Boemer MR




       Heidegger11 aponta o ser-com ou o sendo-com         morte, ela é vista como uma intrusa na existência da
como um constitutivo do existir humano, do ser-aí. Ou      pessoa e também como uma ameaça à onipotência do
seja, faz parte da natureza do homem a busca por           profissional de saúde que é quem, supostamente, de-
contato, envolvimento com outros homens, outras exis-      veria impedir este processo, apresentando a cura para
tências. Com significa para ele junto, algo ou alguém      o sofrimento do enfermo.
na presença do outro. Sem essa palavra, não seria                 Assim sendo, podemos perceber situações onde,
possível o relacionar-se, o atuar, o sentir, o pensar...   pela angústia do cuidador diante da possibilidade de
Sem esta característica, a vida humana não teria sen-      morte do outro, alguns tipos de inter-relações se esta-
tido, já que para todas as ações estamos nos relacio-      belecem na tentativa de negar essa possibilidade exis-
nando com algo ou alguém, por exemplo: lidar com           tencial. Situações como tratar o paciente como obje-
algo, trabalhar com um material, brincar com alguém,       to, sem poder de reflexão ou decisão sobre a melhor
falar comigo.                                              forma de intervenção terapêutica, quando os profissi-
       Nessa perspectiva, o profissional de saúde tem      onais se apegam excessivamente a protocolos de atu-
o seu ser-aí envolvido com o ser-que-está-doente, e a      ação relativos ao quadro clínico apresentado. Ou ain-
partir do momento que assume o cuidado do paciente         da situações onde há a crença de que o paciente não
em estado grave, passa a ser-com-o-outro-que-está-         pode conhecer a gravidade de sua doença, de modo a
morrendo e esta relação sempre afeta, de alguma            ser protegido da ameaçadora notícia de que sua mor-
maneira, a sua existência.                                 te pode estar próxima.
       Ainda segundo a ontologia heideggeriana:                   É importante perceber que, à medida que, há
                                                           uma certa conspiração, chamada por Kübler-Ross4
       Para os filósofos da existência, a morte é          de “conspiração do silêncio”, do profissional de saú-
uma dimensão do completamento do ser-aí. O                 de, paciente e a família, há a ilusão de que a doença
Dasein, ou Ser-aí, chega à compreensão de sua              grave pode ser facilmente contornável frente aos tra-
totalidade e da significabilidade de si-mesmo que          tamentos propostos e que se trata apenas de uma si-
é inseparável da integridade, quando o Ser-aí se           tuação comum, cotidiana. Entretanto o paciente, na
defronta com a possibilidade de não ser-mais-aí.           maioria das vezes, percebe que algo não está indo bem
Enquanto o Dasein não houver chegado ao seu                e que seu quadro assusta os profissionais por ele res-
próprio fim, ele permanece incompleto, ele não             ponsáveis, podendo angustiar-se ainda mais, sem ter
chegou a completar sua inteireza, sua totalidade.          conhecimento da sua real situação e, o mais agravan-
O Dasein tem acesso ao significado do Ser - e este         te, sem a possibilidade de escolha sobre como deseja
é um ponto muito importante - porque somente o             passar seus últimos momentos de vida, refletindo so-
seu ser é finito. O Ser autêntico é, portanto, um          bre sua existência ou até tendo a oportunidade de re-
ser-para-a-morte, um Sein-zum-Tote, uma das mais           parar situações mal resolvidas e valorizar os relacio-
freqüentes citações de Heidegger, porém menos              namentos que fazem parte de seu mundo.
compreendida no pensamento moderno.                               As atitudes de negação por parte da equipe ou
(Heidegger, 2001) 12 .                                     profissional de saúde podem ser compreendidas como
                                                           uma necessidade mais relacionada às suas angústias
       A nossa experiência com as situações de mor-        pessoais de convívio com o morrer do que uma real
te e morrer advém da morte do outro, que nos remete        necessidade para o melhor cuidado para com o paci-
à percepção de que também somos seres para a mor-          ente. Observamos situações nas quais o profissional
te e que, em algum momento de nossa existência, pas-       nem ao menos buscou conhecer o paciente, seus
saremos pelo processo do morrer.                           anseios e projetos de vida e já concluiu que seria me-
       As intervenções de cuidado para com o paci-         lhor que ele ignorasse e não soubesse da gravidade do
ente se apresentarão permeadas pela nossa postura          quadro clínico, simulando uma situação de controle da
frente ao morrer, como o ser-cuidador percebe o ser-       situação. De acordo com Boemer16, em casos como
que-precisa-ser-cuidado. Esta percepção percorre um        o relatado acima, o principal prejudicado com essa
caminho que pode ser linear e que, ao seu final, se        conspiração é o próprio paciente com o sentimento de
encontra a morte ou ainda pode ser vida que a qual-        solidão e insegurança sobre sua própria vida.
quer instante pode se deparar com sua finitude.                   Ainda é importante ressaltar que, segundo essa
       A partir da primeira maneira de se perceber a       perspectiva filosófica da existência, o homem pode

52
O cuidar em situação de morte: algumas reflexões




ser-com de maneira autêntica ou inautêntica. Autên-      por ele, mimá-lo, manipulá-lo ainda que de forma sutil,
tica de forma a propiciar um verdadeiro envolvimen-      e aquela que possibilita ao outro assumir seus próprios
to entre o ser-no-mundo e seu objeto de atenção; já      caminhos, ainda que com o amparo desse alguém que
a maneira inautêntica de ser-com revela pouco en-        lhe é solícito.
volvimento, como se houvesse um não reconheci-                  Embora segundo o próprio autor seja impossí-
mento das significações e da dimensão existencial        vel manter apenas relações de autenticidade nas situ-
da pessoa ou do objeto com o qual se relaciona.          ações de cuidado, é preciso que se busque a relação
        Atento para o fato de que a autenticidade não    mais próxima possível com o paciente de quem se
aponta somente para experiências positivas e praze-      cuida de modo que ele possa ser percebido em sua
rosas, mas pode se remeter a dificuldades de aceita-     dimensão existencial. Um cuidado em que o profissio-
ção do processo de morte e morrer, experiências ne-      nal se precipita sobre a pessoa que é cuidada, acredi-
gativas no cuidar do paciente nestas situações,          tando que está fazendo o melhor, pode trazer inúme-
superproteção, infantilização, desde que essas pos-      ros prejuízos para a pessoa em tratamento, já que não
turas e atitudes estejam acontecendo de forma en-        vai haver uma co-existência entre o ser-cuidador e
volvente e significativa para os profissionais. Ainda    ser-cuidado, mas sim uma relação desprovida de sig-
para Heidegger11, a existência humana é permeada         nificado real a ser acrescentado para ambas as partes
por estados de autenticidade e inautenticidade que       envolvidas no ato de cuidar.
se alternam de modo que não é possível ao homem                 A partir das reflexões levantadas neste texto
viver de maneira exclusivamente autêntica sua rela-      podemos dizer que a morte, apesar de ser uma parte
ção com o outro ou com algo, já que haverá momen-        da existência humana, traz consigo uma grande carga
tos nos quais o referido objeto ou pessoa se tornará     de angústias e temores para quem dela se aproxima e
foco principal de sua existência e outros em que a       também para os profissionais de saúde que têm como
atenção se voltará para outras esferas da existência.    responsabilidade prestar assistência aos pacientes gra-
        Percebemos, em Steiner13, que a ontologia        vemente enfermos. Assim, apenas pela da compreen-
heideggeriana salienta a importância do cuidado en-      são dessa possibilidade existencial do “não–ser” é que
quanto “zelo”, “preocupação”, “sorge* ” que possi-       os médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos,
bilitaria a existência autêntica do ser humano, já que   entre tantos outros profissionais que trabalham com o
comprometida com seu ser-no-mundo. Entretanto, tal       paciente fora de possibilidades terapêuticas ou em
cuidado, estaria mais ligado às possibilidades mais      estado grave poderão experienciar o cuidado autênti-
próximas do ser humano em realizar coisas e ocu-         co com este ser-que-adoece, podendo se comprome-
par-se de seu cotidiano, preocupar-se com os seus        ter com uma assistência que não vise única e exclusi-
pertences e atividades.                                  vamente a cura, mas que favoreça o cuidado do paci-
        Uma segunda forma de cuidado, de acordo          ente como um ser pleno de humanidade, com necessi-
com Heidegger11, se refere à solicitude que seria o      dades afetivas, sociais e com o direito de viver seu
relacionar-se com alguém, com um outro, de manei-        morrer com dignidade e respeito. Nesse sentido, a fi-
ra envolvente e significativamente com ele, tendo        losofia de cuidados paliativos pode se apresentar como
como pressupostos a consideração e a paciência para      um caminho para melhor assistir a pessoa em seu
com o existir do outro. A solicitude ainda se expres-    morrendo, pois segundo essa proposta o cuidar é sem-
saria de duas maneiras: aquela que é caracterizada       pre possível ainda que a cura não faça parte de seu
por um precipitar-se por sobre o outro, fazer tudo       horizonte de possibilidades.




*Vocábulo no idioma alemão


                                                                                                                         53
Souza LGA, Boemer MR




            Souza LGA, Boemer MR. The care in death situations: some reflections. Medicina (Ribeirão Preto) 2005;
               38 (1): 49-54.

                Abstract: The perceptions about death and die have changed trough history, at first it was a
            pacific and wished experience but became a full of angst possibility, a situation that have to be
            avoid desperately. At this context, the health professionals have a great responsibility in promoting
            discussions and reflections about this question, trying to offer an authentic care, engaged whit the
            human being in his plenitude. This article has the purpose of discussing, based on Heidegger
            phenomenology, the death theme as a part of human existence, considering the necessity to
            understand the care practices and the ways of human relationships looking for enabling health
            workers to share with patients this existential moment that must to be lived with dignity.

                Keywords:       Death. Health Professionals. Care Relationships.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS                                            9 - Pitta A. Hospital: dor e morte como ofício. 3ed. São
                                                                          Paulo:Hucitec; 1994.
1 - Souza LGA. Cuidando do filho com deficiência mental:
    desvelamentos de vivências de pais no seu ser-com-o-filho.       10 - Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas em saú-
    [dissertação]. Ribeirão Preto:Escola de Enfermagem de Ribei-          de. Interface – Comunic Saúde Educ 2003/2004; 8(14):73-
    rão Preto da Universidade de São Paulo;2003.                          92.

2 - Souza LGA. O cuidar de pessoas portadoras de deficiência         11 - Heidegger M. Todos nós... ninguém – um enfoque
    mental: um estudo fenomenológico. [monografia, graduação              fenomenológico do social. Trad. DM Critelli e S Spanoides.
    Psicologia]. Ribeirão Preto: Faculdade de Filosofia Ciências e        São Paulo: Moraes; 1981.
    Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2000.
                                                                     12 - Heidegger M. Ser e Tempo. Trad. M S Cavalcante. Partes I e
3 - Ariés P. A história da morte no Ocidente. Trad. PV Siqueira.          II. Petrópolis:Vozes;2001.
    Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977.
                                                                     13 - Steiner G. As idéias de Heidegger. Trad. A Cabral. São Paulo:
4 - Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 7ed. Trad. P                 Cultrix; 1978.
    Menezes. São Paulo: Martins Fontes; 1996.
                                                                     14 - Martins J, Bicudo MAV. Estudos sobre existencialismo, fe-
5 - Kübler- Ross E. Perguntas e respostas sobre a morte e o               nomenologia e educação. São Paulo: Moraes; 1983.
    morrer. Trad. WD Silva e TL Kipnie. São Paulo: Martins Fontes;
    1979.                                                            15 - Boemer MR. A morte e o morrer. 3ed. Ribeirão Preto: Holos;
                                                                          1998.
6 - Kastenbaum R, Aisemberg R. Psicologia da morte. Trad. AP
    Lessa. São Paulo: Pioneira /EDUSP; 1993.                         16 - Boemer MR. O fenômeno morte: o pensar, o conviver, o
                                                                          educar. [tese].Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ri-
7 - Martins JS. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São          beirão Preto da Universidade de São Paulo; 1989.
    Paulo: Hucitec; 1983.

8 - Ziegler J. Os vivos e a morte. Trad. A Weissemerg. Rio de
    Janeiro: Zahar; 1977.




54

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Informações clinicas e a comunicação com o paciente.
Informações clinicas e a comunicação com o paciente.Informações clinicas e a comunicação com o paciente.
Informações clinicas e a comunicação com o paciente.Luciane Santana
 
A história da psicologia hospitalar
A história da psicologia hospitalarA história da psicologia hospitalar
A história da psicologia hospitalarAnderson Souza
 
Psicologia e clinica cirurgica
Psicologia e clinica cirurgicaPsicologia e clinica cirurgica
Psicologia e clinica cirurgicaPsicologia_2015
 
Manual de psicologia hospitalar
Manual de psicologia hospitalarManual de psicologia hospitalar
Manual de psicologia hospitalarSonya Frade
 
Psicologia hospitalar
Psicologia hospitalarPsicologia hospitalar
Psicologia hospitalarLuiz Vicente
 
Psicologia no Hospital Geral
Psicologia no Hospital GeralPsicologia no Hospital Geral
Psicologia no Hospital GeralEduardo Beck
 
Reação à Doença e à Hospitalização
Reação à Doença e à HospitalizaçãoReação à Doença e à Hospitalização
Reação à Doença e à Hospitalizaçãodanielahanashiro
 
A psicoterapia breve no hospital geral
A psicoterapia breve no hospital geralA psicoterapia breve no hospital geral
A psicoterapia breve no hospital geralThiago Cardoso
 
Modulo I – psicologia no contexto da humanização
Modulo I – psicologia no contexto da humanizaçãoModulo I – psicologia no contexto da humanização
Modulo I – psicologia no contexto da humanizaçãoArtur Mamed
 
Aula 1 introdução à psicologia aplicada ao cuidado
Aula 1   introdução à psicologia aplicada ao cuidadoAula 1   introdução à psicologia aplicada ao cuidado
Aula 1 introdução à psicologia aplicada ao cuidadoFelipe Saraiva Nunes de Pinho
 
Antropologia do Cuidar
Antropologia do CuidarAntropologia do Cuidar
Antropologia do CuidarFrei Ofm
 
Adoecimento morte - morrer (Dr_Nelson)
Adoecimento   morte - morrer (Dr_Nelson)Adoecimento   morte - morrer (Dr_Nelson)
Adoecimento morte - morrer (Dr_Nelson)Nelson Urio
 
Artigo depressão pósparto
Artigo depressão póspartoArtigo depressão pósparto
Artigo depressão póspartoMatheus Almeida
 
Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?
Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?
Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?Marta Elini Borges
 
Historia da psicologia hospitalar ensaios universitários - robertalouzeiro
Historia da psicologia hospitalar   ensaios universitários - robertalouzeiroHistoria da psicologia hospitalar   ensaios universitários - robertalouzeiro
Historia da psicologia hospitalar ensaios universitários - robertalouzeiroJac Muller
 
Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2
Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2
Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2Mateus Neves
 

Mais procurados (20)

Informações clinicas e a comunicação com o paciente.
Informações clinicas e a comunicação com o paciente.Informações clinicas e a comunicação com o paciente.
Informações clinicas e a comunicação com o paciente.
 
Plano de Ensino
Plano de EnsinoPlano de Ensino
Plano de Ensino
 
00
0000
00
 
A história da psicologia hospitalar
A história da psicologia hospitalarA história da psicologia hospitalar
A história da psicologia hospitalar
 
Psicologia e clinica cirurgica
Psicologia e clinica cirurgicaPsicologia e clinica cirurgica
Psicologia e clinica cirurgica
 
Manual de psicologia hospitalar
Manual de psicologia hospitalarManual de psicologia hospitalar
Manual de psicologia hospitalar
 
Psicologia hospitalar
Psicologia hospitalarPsicologia hospitalar
Psicologia hospitalar
 
Psicologia no Hospital Geral
Psicologia no Hospital GeralPsicologia no Hospital Geral
Psicologia no Hospital Geral
 
Reação à Doença e à Hospitalização
Reação à Doença e à HospitalizaçãoReação à Doença e à Hospitalização
Reação à Doença e à Hospitalização
 
A psicoterapia breve no hospital geral
A psicoterapia breve no hospital geralA psicoterapia breve no hospital geral
A psicoterapia breve no hospital geral
 
Modulo I – psicologia no contexto da humanização
Modulo I – psicologia no contexto da humanizaçãoModulo I – psicologia no contexto da humanização
Modulo I – psicologia no contexto da humanização
 
Aula 1 introdução à psicologia aplicada ao cuidado
Aula 1   introdução à psicologia aplicada ao cuidadoAula 1   introdução à psicologia aplicada ao cuidado
Aula 1 introdução à psicologia aplicada ao cuidado
 
Psicologia da Saude
Psicologia da Saude Psicologia da Saude
Psicologia da Saude
 
Antropologia do Cuidar
Antropologia do CuidarAntropologia do Cuidar
Antropologia do Cuidar
 
Adoecimento morte - morrer (Dr_Nelson)
Adoecimento   morte - morrer (Dr_Nelson)Adoecimento   morte - morrer (Dr_Nelson)
Adoecimento morte - morrer (Dr_Nelson)
 
Artigo depressão pósparto
Artigo depressão póspartoArtigo depressão pósparto
Artigo depressão pósparto
 
Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?
Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?
Psicologia da Saúde e o novo paradigma: novo paradigma?
 
Historia da psicologia hospitalar ensaios universitários - robertalouzeiro
Historia da psicologia hospitalar   ensaios universitários - robertalouzeiroHistoria da psicologia hospitalar   ensaios universitários - robertalouzeiro
Historia da psicologia hospitalar ensaios universitários - robertalouzeiro
 
Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2
Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2
Psicologia Hospitalar - Pacientes Terminais 2
 
Introdução à psicologia aplicada ao cuidado
Introdução à psicologia aplicada ao cuidadoIntrodução à psicologia aplicada ao cuidado
Introdução à psicologia aplicada ao cuidado
 

Semelhante a 7 o cuidar_situacao_morte

apresentação luto beta 2.pptx
apresentação luto beta 2.pptxapresentação luto beta 2.pptx
apresentação luto beta 2.pptxJooMurta3
 
O que eh saude
O que eh saudeO que eh saude
O que eh saudeIvy Marins
 
A morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrerA morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrerEliane Santos
 
Antropologia da saúde 2
Antropologia da saúde 2Antropologia da saúde 2
Antropologia da saúde 2Hotanilde Lima
 
LIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdf
LIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdfLIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdf
LIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdfylana4
 
produção cientifica psicologia referente a morte.pdf
produção cientifica psicologia referente a morte.pdfprodução cientifica psicologia referente a morte.pdf
produção cientifica psicologia referente a morte.pdfAndressaMolina3
 
Resumo do artigo como lidar com a morte.
Resumo do artigo como lidar com a morte.Resumo do artigo como lidar com a morte.
Resumo do artigo como lidar com a morte.grupoterminalidade
 
Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...
Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...
Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...grupoterminalidade
 
éTica e eutanásia
éTica e eutanásiaéTica e eutanásia
éTica e eutanásiaericacostas
 
Apresentação sensai "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...
Apresentação sensai  "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...Apresentação sensai  "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...
Apresentação sensai "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...Laryssasampaio
 
Aula central de transplantes maio
Aula central de transplantes  maioAula central de transplantes  maio
Aula central de transplantes maioMiguel Pedro
 
AULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdf
AULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdfAULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdf
AULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdfMirnaKathary1
 
Como trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúde
Como trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúdeComo trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúde
Como trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúdeAssociação Viva e Deixe Viver
 

Semelhante a 7 o cuidar_situacao_morte (20)

Texto 11 -
Texto 11 -Texto 11 -
Texto 11 -
 
apresentação luto beta 2.pptx
apresentação luto beta 2.pptxapresentação luto beta 2.pptx
apresentação luto beta 2.pptx
 
Psicologo hospitalar
Psicologo hospitalarPsicologo hospitalar
Psicologo hospitalar
 
Atividade
AtividadeAtividade
Atividade
 
Texto luto 1
Texto luto 1 Texto luto 1
Texto luto 1
 
O que eh saude
O que eh saudeO que eh saude
O que eh saude
 
A morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrerA morte e o processo de morrer
A morte e o processo de morrer
 
Psicologia e uti ii
Psicologia e uti iiPsicologia e uti ii
Psicologia e uti ii
 
Antropologia da saúde 2
Antropologia da saúde 2Antropologia da saúde 2
Antropologia da saúde 2
 
Apresentação sensai
Apresentação sensai Apresentação sensai
Apresentação sensai
 
LIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdf
LIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdfLIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdf
LIVRO - Crise Suicida Avaliação e manejo.pdf
 
2 morte consideracoes_pratica_medica
2 morte consideracoes_pratica_medica2 morte consideracoes_pratica_medica
2 morte consideracoes_pratica_medica
 
produção cientifica psicologia referente a morte.pdf
produção cientifica psicologia referente a morte.pdfprodução cientifica psicologia referente a morte.pdf
produção cientifica psicologia referente a morte.pdf
 
Resumo do artigo como lidar com a morte.
Resumo do artigo como lidar com a morte.Resumo do artigo como lidar com a morte.
Resumo do artigo como lidar com a morte.
 
Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...
Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...
Resumo do artigo: Reações e sentimentos de profissionais da enfermagem frente...
 
éTica e eutanásia
éTica e eutanásiaéTica e eutanásia
éTica e eutanásia
 
Apresentação sensai "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...
Apresentação sensai  "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...Apresentação sensai  "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...
Apresentação sensai "Relato de experiência - Formação e atuação do Grupo de ...
 
Aula central de transplantes maio
Aula central de transplantes  maioAula central de transplantes  maio
Aula central de transplantes maio
 
AULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdf
AULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdfAULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdf
AULA 01 INTRODUÇÃO A PSI APLICADA.pdf
 
Como trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúde
Como trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúdeComo trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúde
Como trabalhar com cuidados paliativos na atenção à saúde
 

Mais de Marcelo Oliveira Borges

Mais de Marcelo Oliveira Borges (10)

11 a relacao_doente_sem_possibilidade_manejo_terapeutico
11 a relacao_doente_sem_possibilidade_manejo_terapeutico11 a relacao_doente_sem_possibilidade_manejo_terapeutico
11 a relacao_doente_sem_possibilidade_manejo_terapeutico
 
10 intervencao junto_familia_paciente_alto_risco
10 intervencao junto_familia_paciente_alto_risco10 intervencao junto_familia_paciente_alto_risco
10 intervencao junto_familia_paciente_alto_risco
 
9 aspectos legais_%20morte
9 aspectos legais_%20morte9 aspectos legais_%20morte
9 aspectos legais_%20morte
 
8 morrendo bem_equipado
8 morrendo bem_equipado8 morrendo bem_equipado
8 morrendo bem_equipado
 
6 jovens tentam_suicidio
6 jovens tentam_suicidio6 jovens tentam_suicidio
6 jovens tentam_suicidio
 
5 tabagismo e_a_transdisciplinaridade
5 tabagismo e_a_transdisciplinaridade5 tabagismo e_a_transdisciplinaridade
5 tabagismo e_a_transdisciplinaridade
 
5 o jovem_sua_visao_imortalidade
5 o jovem_sua_visao_imortalidade5 o jovem_sua_visao_imortalidade
5 o jovem_sua_visao_imortalidade
 
4 sindrome infantil_defuncao_subita
4 sindrome infantil_defuncao_subita4 sindrome infantil_defuncao_subita
4 sindrome infantil_defuncao_subita
 
3 visao crianca_sobre_morte
3 visao crianca_sobre_morte3 visao crianca_sobre_morte
3 visao crianca_sobre_morte
 
1 a visao_morte_longo_tempo
1 a visao_morte_longo_tempo1 a visao_morte_longo_tempo
1 a visao_morte_longo_tempo
 

Último

Uso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia Hiperbárica
Uso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia HiperbáricaUso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia Hiperbárica
Uso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia HiperbáricaFrente da Saúde
 
Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...
Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...
Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...DL assessoria 31
 
700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf
700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf
700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdfMichele Carvalho
 
aula entrevista avaliação exame do paciente.ppt
aula entrevista avaliação exame do paciente.pptaula entrevista avaliação exame do paciente.ppt
aula entrevista avaliação exame do paciente.pptDaiana Moreira
 
cuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptx
cuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptxcuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptx
cuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptxMarcosRicardoLeite
 
Inteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdf
Inteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdfInteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdf
Inteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdfMedTechBiz
 
Fisiologia da Digestão sistema digestiv
Fisiologia da Digestão sistema digestivFisiologia da Digestão sistema digestiv
Fisiologia da Digestão sistema digestivProfessorThialesDias
 
88888888888888888888888888888663342.pptx
88888888888888888888888888888663342.pptx88888888888888888888888888888663342.pptx
88888888888888888888888888888663342.pptxLEANDROSPANHOL1
 
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane Spielmann
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane SpielmannAvanços da Telemedicina em dados | Regiane Spielmann
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane SpielmannRegiane Spielmann
 
APRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptx
APRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptxAPRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptx
APRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptxSESMTPLDF
 
Terapia Celular: Legislação, Evidências e Aplicabilidades
Terapia Celular: Legislação, Evidências e AplicabilidadesTerapia Celular: Legislação, Evidências e Aplicabilidades
Terapia Celular: Legislação, Evidências e AplicabilidadesFrente da Saúde
 

Último (11)

Uso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia Hiperbárica
Uso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia HiperbáricaUso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia Hiperbárica
Uso de Células-Tronco Mesenquimais e Oxigenoterapia Hiperbárica
 
Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...
Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...
Em um local de crime com óbito muitas perguntas devem ser respondidas. Quem é...
 
700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf
700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf
700740332-0601-TREINAMENTO-LAVIEEN-2021-1.pdf
 
aula entrevista avaliação exame do paciente.ppt
aula entrevista avaliação exame do paciente.pptaula entrevista avaliação exame do paciente.ppt
aula entrevista avaliação exame do paciente.ppt
 
cuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptx
cuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptxcuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptx
cuidados ao recem nascido ENFERMAGEM .pptx
 
Inteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdf
Inteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdfInteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdf
Inteligência Artificial na Saúde - A Próxima Fronteira.pdf
 
Fisiologia da Digestão sistema digestiv
Fisiologia da Digestão sistema digestivFisiologia da Digestão sistema digestiv
Fisiologia da Digestão sistema digestiv
 
88888888888888888888888888888663342.pptx
88888888888888888888888888888663342.pptx88888888888888888888888888888663342.pptx
88888888888888888888888888888663342.pptx
 
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane Spielmann
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane SpielmannAvanços da Telemedicina em dados | Regiane Spielmann
Avanços da Telemedicina em dados | Regiane Spielmann
 
APRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptx
APRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptxAPRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptx
APRESENTAÇÃO PRIMEIROS SOCORROS 2023.pptx
 
Terapia Celular: Legislação, Evidências e Aplicabilidades
Terapia Celular: Legislação, Evidências e AplicabilidadesTerapia Celular: Legislação, Evidências e Aplicabilidades
Terapia Celular: Legislação, Evidências e Aplicabilidades
 

7 o cuidar_situacao_morte

  • 1. Medicina (Ribeirão Preto) Simpósio: MORTE: VALORES E DIMENSÕES 2005; 38 (1): 49-54 Capítulo VII O CUIDAR EM SITUAÇÃO DE MORTE: ALGUMAS REFLEXÕES THE CARE IN DEATH SITUATIONS: SOME REFLECTIONS Luciana G. A. de Souza1 , Magali R. Boemer2 1 Psicóloga. Docente da Faculdade de Ciências Humana de Aguaí – SP. 2Docente Aposentada. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP. CORRESPONDÊNCIA: Rua Júlio de Souza, 220. Jardim Santa Helena -CEP 13806-034 - Mogi Mirim – SP.- Fones: 19) 3862-3505 / 9762-8549. E-mail: lugasouza@yahoo.com.br Souza LGA, Boemer MR. O cuidar em situação de morte: algumas reflexões. Medicina (Ribeirão Preto) 2005;38 (1): 49-54. Resumo: A percepção das vivências de morte e morrer tem sofrido transformações ao longo da história, passando de uma experiência tranqüila e até mesmo desejada a uma possibilidade impregnada de angústias e que deve ser evitada a todo custo. Neste contexto, os profissionais de saúde têm uma responsabilidade grande em discutir e refletir sobre a questão de modo que possam oferecer um cuidado autêntico e compromissado com o ser humano, em sua plenitude. Este trabalho se propõe a discutir, a partir da perspectiva da fenomenologia de Heidegger, a questão da morte como parte inerente à existência humana, atentando para a necessidade de que se compreendam as relações de cuidado e as formas de relacionamento humano de modo que se possibilite o preparo dos profissionais de saúde para compartilhar com os pacientes de um momento existencial que pode e deve ser vivido com dignidade. Descritores: Morte. Profissional de Saúde. Relações de Cuidado. Para iniciar as reflexões deste artigo, faz-se facetas de fenômenos que se encontram ocultos para relevante uma breve apresentação para que o leitor uma consciência, no caso a do pesquisador. possa se inteirar do contexto de onde proponho susci- Desta vivência, emergiram algumas inquieta- tar algumas facetas do pensar o profissional de saúde ções que deram origem à minha Monografia de Inici- frente à morte do adulto. Realizei minha formação ação Científica e Dissertação de Mestrado1,2. O tema acadêmica em psicologia, tendo, desde os anos inici- que trabalhei mais profundamente em minha trajetó- ais, um significativo interesse pelas questões existen- ria científica foi a questão do cuidado da pessoa com ciais. Em meus primeiros contatos com a pesquisa ci- necessidades especiais como uma experiência que entífica, tive a oportunidade de fazer parte do Grupo implica em interagir com várias mortes, entendidas, de Pesquisa “Estudos fenomenológicos sobre a morte em um primeiro momento, como não possibilidades e e o morrer”, durante os anos de 1997 a 2001, grupo limitações humanas, provocadas pela deficiência. Para este que é coordenado pela Professora Magali Rosei- que o cuidado dessas pessoas possa ser realmente ra Boemer, quando tive contato com os estudos de significativo há a necessidade de perceber que a pes- diversos autores que tratavam de várias facetas do soa com necessidades especiais tem uma existência tema em questão. Também pude conhecer o referen- diferente da esperada e, assim, também plena de pos- cial teórico filosófico da Fenomenologia, que busca sibilidades e realizações. estudar o ser-pleno da existência humana e desvelar Ainda em minha formação profissional tive opor- 49
  • 2. Souza LGA, Boemer MR tunidade de estagiar junto ao Grupo de Apoio à Crian- Nos anos 60, Kübler-Ross4 já se preocupava ça com Câncer da FMRP-USP, por um período de com os profissionais de saúde que cuidam de pacien- um ano e meio, entre 1999 e 2000. Também estagiei tes em situações de morte e morrer, propondo semi- no Grupo de Reabilitação de Mulheres Mastectomi- nários de discussão sobre o tema da morte. A autora zadas da EERP-USP, por um ano, em 2001. Tais ex- deparou-se com reações claramente hostis frente à periências puderam me aproximar ainda mais do cui- sua proposta, mas acreditou que a reflexão e discus- dado com o paciente que vivenciou ou vivencia uma são do tema poderiam suscitar questões importantes doença grave. sobre a vivência humana e mais ainda, sobre a natu- Em minha atuação profissional mais recente fui reza do cuidado à pessoa que vivencia sua finitude. professora de psicologia para o curso de Habilitação Para Pitta9, o trabalho em saúde é vivido com Técnico Profissionalizante em Enfermagem, nos anos prazer e angústia. Prazer referente à valorização so- de 2003 e 2004, na cidade de Mogi Guaçu – SP. Atu- cial que esse cuidado tem em nossa cultura ocidental almente trabalho clinicamente e sou docente da disci- e, por conseqüência, os profissionais também são igual- plina de Psicologia na Faculdade de Ciências Huma- mente valorizados por serem pessoas destinadas ao nas de Aguaí – SP, ministrando aulas para os cursos cuidar de quem está sofrendo. Angústia, por sua vez, de Pedagogia e Serviço Social e tendo sempre comi- por trazer ao profissional o inevitável contato com sua go a responsabilidade de abordar questões referentes impotência frente à morte, o que pode ser fonte de à compreensão da existência humana como proposta estresse e sofrimento psíquico para esses trabalhado- de formação de profissionais compromissados com o res. Cabe aqui mencionar que, nas últimas décadas, a ser humano em sua plenitude nas áreas de saúde e situação do sistema de saúde brasileiro, tem se depa- educação. rado com a insuficiência de recursos humanos, baixos Direcionando-me para o tema que me propo- salários, precariedade de infra-estrutura, falta de me- nho discutir, é importante ressaltar que, quando se pensa dicamentos, o que vem obrigando os profissionais a em refletir sobre questões de morte e morrer, é ne- trabalharem em situações de grande exigência emo- cessário considerar as transformações históricas pe- cional. Neste contexto, inúmeras questões podem se las quais passou a sociedade no que diz respeito às apresentar como conflituosas para a equipe de saúde atitudes diante da morte. Da morte vivida com prepa- como: revelar ou não quando é diagnosticada uma ro e tranqüilidade na Idade Média, ela passou a um doença grave, possibilidade de envolvimento emocio- momento de temor e aflição do homem nos dias atu- nal com o paciente, que tipo de atenção deve ser dada ais. A cultura ocidental lhe imprimiu uma intensa an- ao doente fora de possibilidades terapêuticas, quando gústia que pode ser percebida em situações de aver- é preciso intervenção psicológica para pacientes em são e terror frente ao simples imaginar tal possibilida- estado grave, entre outras. de. Espera-se que a morte ocorra no hospital, quando Segundo Ayres10, quando pensamos em assis- o indivíduo já atingiu uma idade avançada, devendo tência em saúde, relacionamos de imediato o uso de acontecer sem sofrimento para a pessoa, de prefe- tecnologias para o bem estar físico e mental do ser rência durante o sono3/8. humano com a seguinte equação: “a ciência produz Diante disso, os profissionais de saúde são aque- o conhecimento sobre as doenças, a tecnologia les que têm a incumbência de zelar pelo cuidado da transforma este conhecimento em saberes e ins- saúde do homem, de modo a postergar, o máximo pos- trumentos para a intervenção, os profissionais sível essa vivência tão temida. Frente ao contato mui- aplicam esses saberes e produz-se saúde”. Mas, to próximo com situações que revelam a possibilidade ressalta esse autor, é preciso considerar que este ca- humana da morte, esses profissionais se vêem peran- minho tem trazido grandes questionamentos no que se te a expectativa de que sua função é curar e restabe- refere à perda de limites entre o que os profissionais lecer a saúde de todos os que lhes procuram, perden- enxergam enquanto necessidade real de intervenção do de vista que a morte é inerente à condição huma- junto ao paciente e o que faz parte de sua ânsia pes- na. Há situações em que, a despeito de todo o esforço soal por encontrar a cura quando ela não é possível. da equipe de saúde, o paciente morre, e isso passa a ser vivenciado como frustração intensa por parte dos Precisamos ter claro também que nem tudo profissionais que sentem que não foram capazes de que é importante para o bem estar pode ser imedi- salvar a vida que lhes foi confiada. atamente traduzido e operado como conhecimen- 50
  • 3. O cuidar em situação de morte: algumas reflexões to técnico. (...) Precisamos estar atentos para o gamadas pelo uso de hífens, como “ser-com”, “ser-ai”, fato de que nunca, quando assistimos ‘a saúde de “ser-no-mundo”, entre outras, como um idioma pró- outras pessoas, mesmo estando na condição de prio. “Heidegger proclama estar retornando, de profissionais, nossa presença na frente do outro fato, às origens da linguagem, estar realizando as se resume ao papel de simples aplicador de co- intenções autênticas do discurso humano” 13. Assim, nhecimentos. Somos sempre alguém que, perceba- este filósofo usa quase sempre palavras simples, mas mos ou não, está respondendo perguntas do tipo: com significação complexa, que busca traduzir o signifi- ‘ O que é bom pra mim?’, ‘ Como devo ser?’, ‘Como cado original daquela palavra para que possa ser efetiva- pode ser a vida?’ (Mendes Gonçalves e Schraiber, mente utilizada para explicitar facetas da existência. apud Ayres, 2003-2004)10. É importante atentar para o pressuposto, se- gundo este referencial, de que o “ser” sempre é um Pesados investimentos têm sido aplicados, nas “ser-aí”, ou seja, está inserido em um mundo no qual últimas décadas, em tecnologias para intervenções na foi lançado e o habita, de forma que não há como área da saúde na tentativa de melhorar as condições conceber um ser isolado, sendo sempre um “ser-no- de vida humana, trazendo a cura e/ou a reabilitação mundo”, o que pode ser elucidado na citação: para um número cada vez maior de enfermidades. No entanto, apesar de trazer conforto e bem-estar ao ho- Em oposição às soluções dadas pela ciência mem moderno, temos percebido que tais inovações e sua metodologia científica, a fenomenologia exis- também podem estar favorecendo um contato profis- tencial busca as soluções na descrição da experi- sional-paciente cada vez mais desumano, desprovido ência imediata. Vai à realidade vivida e busca a de vínculos. descrição cuidadosa da estrutura básica da expe- E atualmente, como nos posicionamos frente a riência imediata. (...) A presença no mundo exter- uma proposta semelhante à de Kübler-Ross4, na dé- no torna-se evidente através da análise fenome- cada de 60? Trataríamos com indiferença? Com hos- nológica da experiência imediata do sujeito. Isso tilidade? Com curiosidade? É importante perceber que, quer dizer que através do fenômeno que se revela em tempos atuais, o tema já não causa tanta aversão à consciência é possível saber-se que o mundo está e parece que caminhamos para propostas de inter- aí e que se doa ao Ser. Onde quer que o Ser esteja venções em saúde mais direcionadas para questões presente, na sua realidade vivida, haverá mundo, das reais necessidades do ser humano enquanto pas- porque a própria existência humana é estar-no- sível de morte. Entretanto, ainda temos um longo ca- mundo. (Martins eBicudo, 1983, p. 38 14 . minho a percorrer para que a morte, em nossa socie- dade, seja respeitada e vivida com dignidade. Para Heidegger12, “ser-no-mundo” refere-se à Para que se possa pensar mais profundamente maneira pela qual o homem encontra-se com suas sobre o tema, proponho recorrermos à ontologia de coisas e com as pessoas, preocupa-se com elas, num Heidegger11,12, que foi um filósofo que embasou seu mundo que lhe é familiar, remetendo também ao modo pensar em alguns pressupostos teóricos filosóficos da como o Ser-no-mundo se aproxima das pessoas ou fenomenologia, que é o referencial teórico que recor- coisas e/ou se afasta delas. Dessa forma, a fenome- ro para tecer minhas reflexões. Este autor se preocu- nologia se preocupa com o aspecto social do Ser, pas- pa e questiona o significado da palavra “ser” ou “sen- sando a pensar em como ele vive o seu Ser-com-os- do” enquanto fundamento da existência do homem e outros, como ele se relaciona, atua, sente e vive com do mundo à sua volta. Para ele, o “ser” é a maneira seus semelhantes. como algo se torna manifesto, percebido, compreen- Diante de tal referencial, a pessoa que tem uma dido e, finalmente, conhecido pelo ser humano. Ele doença grave é um ser que tem uma parte de si afeta- procura as origens genuínas que possibilitam a tudo se da pela enfermidade, se apresentando como um “sen- manifestar, o que possibilita as várias maneiras de algo do-doente” e que, segundo Boemer15,16 é uma pessoa se tornar presente, manifesto, partindo do cotidiano que tem seu mundo influenciado por esta vivência, que para aproximar-se dos problemas fundamentais e não compromete suas possibilidades de vir-a-ser, trazen- dos conceitos pré-estabelecidos. do a perspectiva do não ser que passa a se revelar Cabe ainda ressaltar que este autor expressa com a consciência de que todo ser humano é um ser- seu entendimento do “ser” através de palavras amal- para-a-morte. 51
  • 4. Souza LGA, Boemer MR Heidegger11 aponta o ser-com ou o sendo-com morte, ela é vista como uma intrusa na existência da como um constitutivo do existir humano, do ser-aí. Ou pessoa e também como uma ameaça à onipotência do seja, faz parte da natureza do homem a busca por profissional de saúde que é quem, supostamente, de- contato, envolvimento com outros homens, outras exis- veria impedir este processo, apresentando a cura para tências. Com significa para ele junto, algo ou alguém o sofrimento do enfermo. na presença do outro. Sem essa palavra, não seria Assim sendo, podemos perceber situações onde, possível o relacionar-se, o atuar, o sentir, o pensar... pela angústia do cuidador diante da possibilidade de Sem esta característica, a vida humana não teria sen- morte do outro, alguns tipos de inter-relações se esta- tido, já que para todas as ações estamos nos relacio- belecem na tentativa de negar essa possibilidade exis- nando com algo ou alguém, por exemplo: lidar com tencial. Situações como tratar o paciente como obje- algo, trabalhar com um material, brincar com alguém, to, sem poder de reflexão ou decisão sobre a melhor falar comigo. forma de intervenção terapêutica, quando os profissi- Nessa perspectiva, o profissional de saúde tem onais se apegam excessivamente a protocolos de atu- o seu ser-aí envolvido com o ser-que-está-doente, e a ação relativos ao quadro clínico apresentado. Ou ain- partir do momento que assume o cuidado do paciente da situações onde há a crença de que o paciente não em estado grave, passa a ser-com-o-outro-que-está- pode conhecer a gravidade de sua doença, de modo a morrendo e esta relação sempre afeta, de alguma ser protegido da ameaçadora notícia de que sua mor- maneira, a sua existência. te pode estar próxima. Ainda segundo a ontologia heideggeriana: É importante perceber que, à medida que, há uma certa conspiração, chamada por Kübler-Ross4 Para os filósofos da existência, a morte é de “conspiração do silêncio”, do profissional de saú- uma dimensão do completamento do ser-aí. O de, paciente e a família, há a ilusão de que a doença Dasein, ou Ser-aí, chega à compreensão de sua grave pode ser facilmente contornável frente aos tra- totalidade e da significabilidade de si-mesmo que tamentos propostos e que se trata apenas de uma si- é inseparável da integridade, quando o Ser-aí se tuação comum, cotidiana. Entretanto o paciente, na defronta com a possibilidade de não ser-mais-aí. maioria das vezes, percebe que algo não está indo bem Enquanto o Dasein não houver chegado ao seu e que seu quadro assusta os profissionais por ele res- próprio fim, ele permanece incompleto, ele não ponsáveis, podendo angustiar-se ainda mais, sem ter chegou a completar sua inteireza, sua totalidade. conhecimento da sua real situação e, o mais agravan- O Dasein tem acesso ao significado do Ser - e este te, sem a possibilidade de escolha sobre como deseja é um ponto muito importante - porque somente o passar seus últimos momentos de vida, refletindo so- seu ser é finito. O Ser autêntico é, portanto, um bre sua existência ou até tendo a oportunidade de re- ser-para-a-morte, um Sein-zum-Tote, uma das mais parar situações mal resolvidas e valorizar os relacio- freqüentes citações de Heidegger, porém menos namentos que fazem parte de seu mundo. compreendida no pensamento moderno. As atitudes de negação por parte da equipe ou (Heidegger, 2001) 12 . profissional de saúde podem ser compreendidas como uma necessidade mais relacionada às suas angústias A nossa experiência com as situações de mor- pessoais de convívio com o morrer do que uma real te e morrer advém da morte do outro, que nos remete necessidade para o melhor cuidado para com o paci- à percepção de que também somos seres para a mor- ente. Observamos situações nas quais o profissional te e que, em algum momento de nossa existência, pas- nem ao menos buscou conhecer o paciente, seus saremos pelo processo do morrer. anseios e projetos de vida e já concluiu que seria me- As intervenções de cuidado para com o paci- lhor que ele ignorasse e não soubesse da gravidade do ente se apresentarão permeadas pela nossa postura quadro clínico, simulando uma situação de controle da frente ao morrer, como o ser-cuidador percebe o ser- situação. De acordo com Boemer16, em casos como que-precisa-ser-cuidado. Esta percepção percorre um o relatado acima, o principal prejudicado com essa caminho que pode ser linear e que, ao seu final, se conspiração é o próprio paciente com o sentimento de encontra a morte ou ainda pode ser vida que a qual- solidão e insegurança sobre sua própria vida. quer instante pode se deparar com sua finitude. Ainda é importante ressaltar que, segundo essa A partir da primeira maneira de se perceber a perspectiva filosófica da existência, o homem pode 52
  • 5. O cuidar em situação de morte: algumas reflexões ser-com de maneira autêntica ou inautêntica. Autên- por ele, mimá-lo, manipulá-lo ainda que de forma sutil, tica de forma a propiciar um verdadeiro envolvimen- e aquela que possibilita ao outro assumir seus próprios to entre o ser-no-mundo e seu objeto de atenção; já caminhos, ainda que com o amparo desse alguém que a maneira inautêntica de ser-com revela pouco en- lhe é solícito. volvimento, como se houvesse um não reconheci- Embora segundo o próprio autor seja impossí- mento das significações e da dimensão existencial vel manter apenas relações de autenticidade nas situ- da pessoa ou do objeto com o qual se relaciona. ações de cuidado, é preciso que se busque a relação Atento para o fato de que a autenticidade não mais próxima possível com o paciente de quem se aponta somente para experiências positivas e praze- cuida de modo que ele possa ser percebido em sua rosas, mas pode se remeter a dificuldades de aceita- dimensão existencial. Um cuidado em que o profissio- ção do processo de morte e morrer, experiências ne- nal se precipita sobre a pessoa que é cuidada, acredi- gativas no cuidar do paciente nestas situações, tando que está fazendo o melhor, pode trazer inúme- superproteção, infantilização, desde que essas pos- ros prejuízos para a pessoa em tratamento, já que não turas e atitudes estejam acontecendo de forma en- vai haver uma co-existência entre o ser-cuidador e volvente e significativa para os profissionais. Ainda ser-cuidado, mas sim uma relação desprovida de sig- para Heidegger11, a existência humana é permeada nificado real a ser acrescentado para ambas as partes por estados de autenticidade e inautenticidade que envolvidas no ato de cuidar. se alternam de modo que não é possível ao homem A partir das reflexões levantadas neste texto viver de maneira exclusivamente autêntica sua rela- podemos dizer que a morte, apesar de ser uma parte ção com o outro ou com algo, já que haverá momen- da existência humana, traz consigo uma grande carga tos nos quais o referido objeto ou pessoa se tornará de angústias e temores para quem dela se aproxima e foco principal de sua existência e outros em que a também para os profissionais de saúde que têm como atenção se voltará para outras esferas da existência. responsabilidade prestar assistência aos pacientes gra- Percebemos, em Steiner13, que a ontologia vemente enfermos. Assim, apenas pela da compreen- heideggeriana salienta a importância do cuidado en- são dessa possibilidade existencial do “não–ser” é que quanto “zelo”, “preocupação”, “sorge* ” que possi- os médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, bilitaria a existência autêntica do ser humano, já que entre tantos outros profissionais que trabalham com o comprometida com seu ser-no-mundo. Entretanto, tal paciente fora de possibilidades terapêuticas ou em cuidado, estaria mais ligado às possibilidades mais estado grave poderão experienciar o cuidado autênti- próximas do ser humano em realizar coisas e ocu- co com este ser-que-adoece, podendo se comprome- par-se de seu cotidiano, preocupar-se com os seus ter com uma assistência que não vise única e exclusi- pertences e atividades. vamente a cura, mas que favoreça o cuidado do paci- Uma segunda forma de cuidado, de acordo ente como um ser pleno de humanidade, com necessi- com Heidegger11, se refere à solicitude que seria o dades afetivas, sociais e com o direito de viver seu relacionar-se com alguém, com um outro, de manei- morrer com dignidade e respeito. Nesse sentido, a fi- ra envolvente e significativamente com ele, tendo losofia de cuidados paliativos pode se apresentar como como pressupostos a consideração e a paciência para um caminho para melhor assistir a pessoa em seu com o existir do outro. A solicitude ainda se expres- morrendo, pois segundo essa proposta o cuidar é sem- saria de duas maneiras: aquela que é caracterizada pre possível ainda que a cura não faça parte de seu por um precipitar-se por sobre o outro, fazer tudo horizonte de possibilidades. *Vocábulo no idioma alemão 53
  • 6. Souza LGA, Boemer MR Souza LGA, Boemer MR. The care in death situations: some reflections. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 49-54. Abstract: The perceptions about death and die have changed trough history, at first it was a pacific and wished experience but became a full of angst possibility, a situation that have to be avoid desperately. At this context, the health professionals have a great responsibility in promoting discussions and reflections about this question, trying to offer an authentic care, engaged whit the human being in his plenitude. This article has the purpose of discussing, based on Heidegger phenomenology, the death theme as a part of human existence, considering the necessity to understand the care practices and the ways of human relationships looking for enabling health workers to share with patients this existential moment that must to be lived with dignity. Keywords: Death. Health Professionals. Care Relationships. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 9 - Pitta A. Hospital: dor e morte como ofício. 3ed. São Paulo:Hucitec; 1994. 1 - Souza LGA. Cuidando do filho com deficiência mental: desvelamentos de vivências de pais no seu ser-com-o-filho. 10 - Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas em saú- [dissertação]. Ribeirão Preto:Escola de Enfermagem de Ribei- de. Interface – Comunic Saúde Educ 2003/2004; 8(14):73- rão Preto da Universidade de São Paulo;2003. 92. 2 - Souza LGA. O cuidar de pessoas portadoras de deficiência 11 - Heidegger M. Todos nós... ninguém – um enfoque mental: um estudo fenomenológico. [monografia, graduação fenomenológico do social. Trad. DM Critelli e S Spanoides. Psicologia]. Ribeirão Preto: Faculdade de Filosofia Ciências e São Paulo: Moraes; 1981. Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2000. 12 - Heidegger M. Ser e Tempo. Trad. M S Cavalcante. Partes I e 3 - Ariés P. A história da morte no Ocidente. Trad. PV Siqueira. II. Petrópolis:Vozes;2001. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977. 13 - Steiner G. As idéias de Heidegger. Trad. A Cabral. São Paulo: 4 - Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 7ed. Trad. P Cultrix; 1978. Menezes. São Paulo: Martins Fontes; 1996. 14 - Martins J, Bicudo MAV. Estudos sobre existencialismo, fe- 5 - Kübler- Ross E. Perguntas e respostas sobre a morte e o nomenologia e educação. São Paulo: Moraes; 1983. morrer. Trad. WD Silva e TL Kipnie. São Paulo: Martins Fontes; 1979. 15 - Boemer MR. A morte e o morrer. 3ed. Ribeirão Preto: Holos; 1998. 6 - Kastenbaum R, Aisemberg R. Psicologia da morte. Trad. AP Lessa. São Paulo: Pioneira /EDUSP; 1993. 16 - Boemer MR. O fenômeno morte: o pensar, o conviver, o educar. [tese].Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ri- 7 - Martins JS. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São beirão Preto da Universidade de São Paulo; 1989. Paulo: Hucitec; 1983. 8 - Ziegler J. Os vivos e a morte. Trad. A Weissemerg. Rio de Janeiro: Zahar; 1977. 54