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Está debruçada na amurada. O mar, azul, plano e límpido espraia-se à sua frente.
Apesar de ser um dia de inverno o mar está mais calmo do que em muitos dias de verão. Sente-se
vagamente feliz e liberta. A praia está deserta, o areal plano está despido das barracas irritantes do
verão. Só se veem algumas gaivotas, e dois caminhantes solitários que, como ela, apreciam a
calmaria da solidão, à beira mar. É por isso que ama Sesimbra. Esta vila piscatória sempre lhe
transmitiu um conforto familiar. Ali sempre se sentiu como se estivesse no aconchego da sua casa,
protegida e, ao mesmo tempo, em comunhão com a infinidade do mar.
Gosta de olhar para o horizonte porque lhe dá, desde pequena, uma sensação de infinito.
Curiosamente não sabe nadar. Ama o mar mas teme-o também. Nunca aprendeu a nadar na piscina
porque quando era pequena, tal nunca lhe foi permitido, e mais velha, por puro comodismo ou
inércia. É ativa e decidida mas tem de estar motivada para as coisas. Nadar não é uma prioridade na
sua vida. Aquilo que lhe dá prazer é ver a paisagem marítima e caminhar, de mão dada, à beira mar.
É o que costuma fazer com o amor da sua vida, quando ambos têm disponibilidade.
Em garota ia muitas vezes à praia com a avó. Era uma mulher forte e decidida, que se guiava
inflexivelmente por rotinas, e que as impunha a todos os que a rodeavam. No verão, iam
invariavelmente durante duas semanas, de manhã cedo até por volta das onze horas, para a praia da
Cruz – Quebrada, na zona da linha. O percurso era sempre o mesmo. Apanhavam o elétrico e
desciam perto da praia. Era a praia que ficava mais próximo. Uma vez foram para a praia de Algés.
Gostou mais porque era diferente. Mas a avó não . Foi uma quebra na rotina e a avó não gostava
disso.
Puxa pela memória e lembra-se de algumas brincadeiras com os irmãos. O irmão, mais
velho e mais afoito, aproveitou aquelas viagens rituais à praia, para aprender a nadar. Tem a
sensação de que era quem mais apreciava aqueles momentos. Era mais rebelde e inconformista.
Talvez por isso foi o primeiro a rebelar-se contra as regras e rotinas impostas.
Mas estas lembranças estão dissipadas e perdidas na memória. Não lhe apetece recordar um
passado tão distante. Prefere viver o presente e saboreá-lo sem pressas. O presente é aquilo que
existe mesmo, é real e viável. O passado permenece na memória mas já não pode fazer nada para
alterar o que quer que seja. Não pode lá voltar. É uma viagem impossível. Mas a memória prega-lhe
algumas partidas de vez em quando, e recentemente isso acontece cada vez com mais frequência.
De repente dá consigo a reviver situações, sobretudo com aqueles que já partiram. A recente e
inesperada morte da avó afetou-a mais do que quer reconhecer. Sempre disse que a avó era uma
personagem única, que devia ficar registada, para a posteridade, como personagem de um romance.
Dizia aquilo com algum aborrecimento porque a relação entre as duas deteorou-se desde que
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concordou em que a avó saísse do lar, onde detestava estar, e fosse viver com ela. Soube desde o
primeiro momento que era uma decisão errada, mas o desejo de a proteger sobrepos-se a um
prudente bom senso.
A avó odiava que lhe dessem ordens e lhe controlassem a vida. Odiava aqueles com quem
tinha de viver, em dependência. Usava habilmente duas armas o controlo e a vitimização. Alternava
uma e outra consoante as situações e a seu bel prazer.
A avó sempre fez parte da sua vida. Sempre sentiu por ela um carinho especial mas também
tinha consciência de que não queria viver com ela. Quando era pequena e dormia algumas vezes em
casa da avó assolava-a ideia de que os pais podiam morrer e teria de viver com os avós. Essa ideia
provocava-lhe calafrios e rezava para que nada de mal acontecesse aos pais. O avô comunista
ferrenho e ateu declarado, não tinha uma boa relação com os pais. A ideia que guardou na memória
é que o avô sempre foi uma figura um pouco marginalizada pela família. Era inteligente,
informado, inconformista e perfecionista. Com ela foi sempre atento e muito carinhoso. Sabia e
sentia que era a neta preferida e isso sempre lhe agradou. Amava o avô e sente saudades dele.
Faleceu quando estava grávida do filho. Morreu num lar, onde a avó o pôs, apesar de nunca o ter
admitido. Era mais confortável dizer que não tinha sido ela a escolher aquele lar horrível. Pobre
avô, merecia ter morrido em casa, perto da mulher a quem sempre amou e protegeu. Mas o egoísmo
da avó falou mais alto. Por isso sabe que sempre gostou da avó mas não consegue esquecer-se do
seu grande egoísmo e do seu talento para urdir e manipular.
A visão do mar está-lhe a provocar nostalgia. É melhor regressar a casa e ao seu presente.
A subida um pouco íngreme permite-lhe conduzir e ver ao longe o farol onde tem dando
tantos passeios com o marido. Tem saudades daqueles passeios de mão dada, ao longo do caminho
estreito, povoado de gaivotas, que leva ao pequeno farol. A ida imprevisível do marido para o Porto
e a sua posterior mudança para Braga, devido à atividade profissional, provocou uma violenta
alteração da sua rotina diária. Estava tão habituada à presença constante do marido nos últimos três
anos, que tem sido dolorosa a separação. Sente falta de se enroscar à noite nos seus braços, de
acordar e senti-lo perto de si, do ritual de lhe levar o pequeno almoço à cama, de tantas pequenas
grandes coisas que lhe proporcionavam uma felicida extrema.
Agora tem saudades permanentes do marido. Sente sempre que lhe falta algo, o que a
inquieta e lhe provoca uma sensação de angústia que se esforço por afastar. Tem de ser forte e
aceitar a vida como ela é. O amor que sente pelo marido é superior a tudo. Sabe que o amor que os
une não vai esmorecer com esta separação física que espera não ser para sempre. Tem de ser lúcida
e pragmática e apreciar a presença do filho que é a luz da sua vida.
As viagens a Braga, que são uma nova rotina, ajudam-na a recuperar, em parte, o equilíbrio que a
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presença do marido lhe dá. Braga é uma cidade onde a presença do divino é mais palpável do que
em qualquer outra cidade que conhece., mas não se sente em casa, e sabe que o marido também
não. No entanto, ambos têm consciência de que vai ser a sua cidade, por uns tempos. Nenhum dos
dois tem raízes em Braga mas esforçam-se por superar angústias e criar laços. O que lhe interessa é
estar perto do marido. Dormir nos seus braços e acordar ao seu lado. A pouco e pouco vão-se
habituando a esta nova realidade. Gosta de estar no quarto, quando o marido está a trabalhar. Sabe
que ele está perto e isso é-lhe suficiente. Mas a presença do marido em casa faz-lhe falta. Sente a
sua ausência de uma forma dolorosa.
O regresso a casa não está a ser fácil. As lembranças invadem-na, constantemente, e estão
a estragar o prazer daquele passeio a Sesimbra que tinha decidido ser calmo e relaxante. O filho está
em casa da irmã porque gosta de estar com os primos. São quase todos da mesma idade e entendem-
se bem.
Quando chegar a casa vai retomar a escrita do seu primeiro romance. Há anos que tinha
decicido que um dia havia de escrever um romance. Os últimos acontecimentos da sua vida e o
turbilhão de emoções obrigaram-na a iniciar o projeto adiado. Escrever provoca-lhe uma acalmia
que nem os ansiólitos a que teve de recorrer lhe dão. A personagem do seu romance tem algumas
semelhanças consigo. Ela também se deixa perder cada vez mais nos recantos da memória. Aos
noventa e poucos anos está-se mais perto do fim do que do início, por isso o passado é mais
atraente. Não é o que se passa consigo que acabou de completar meio século de vida. Espera ter
ainda um bom percurso pela frente, embora prefira não olhar para o futuro longínquo e incerto e
apreciar o presente, ainda que manchado pelos efeitos nefastos da crise económica que lhe
amargura a vida e a de todos aqueles que conhece.
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Chegou a casa, na entrada do prédio cruzou-se com o sr. Joaquim. É o vizinho simpático e
atento que lhe relembra, constantemente, que a boa vizinhança e a solidariedade afinal não são
palavras vãs, embora estejam em vias de extinção. A sua casa é o lugar onde se sente protegida.
Faltam-lhe agora o marido e o filho. Deita-se no sofá com o KiKo em cima do peito a ronronar. É
uma gato que trouxe bebé do lar da avó. Pegou nele por curiosodade porque sempre gostou de gatos
amarelos, longe de adotar mais um gato, mas o Kiko não era da mesma opinião. Agarrou-se à sua
camisola com a força determinada de quem lutava por um lar quente e seguro. O marido também
teve dó do bichinho e o Kiko passou a pertencer à família onde já havia uma Tuxa temperamental,
um Rex esquizofrénico e um Bóbi pachorrento e comilão. O Bóbi partiu de velhice. Ficaram os três
turbulentos, cada um amigo e dedicado, à sua maneira. Não há dúvida que são uma boa companhia.
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Não se sente completamente só e angustiada graças à sua presença, por vezes barulhenta. O Ti- Rex,
como gosta de lhe chamar, ladra por tudo e por nada. O Kiko e a Tuxa quando estão juntos é uma
alegria e um perigo para as cortinas e para tudo o que se lhes atravesse à frente. Apetece-lhe evadir-
se, gostava de partir com o marido rumo ao desconhecido.Tem a certeza de que o filho preferia
ficar com os tios e primos porque é um comodista e não aprecia viagens. Mas se a Inesita também
fosse era mais animado. A Inesita é a filha do Zé, o seu marido. Os quatro juntos partiriam de carro,
de avião ou de combóio, tanto fazia, sem um rumo definido.
Nas duas viagens que fez sozinha com o filho, antes de conhecer o marido, só programou o
indispensável. O prazer de viajar é deixar-se levar pelo momento e descobrir o inesperado, apreciar
o desconhecido. Olhar para as pessoas, para os espaços, inspirar a liberdade, sentir a emoção da
descoberta dos novos lugares e costumes. Sente sempre que a timidez que a caracteriza se esvai
como por magia. Não viaja para conhecer pessoas, para estabelecer relações.Viaja pelo prazer da
descoberta, do inabitual, da quebra de rotinas. Gosta de criar novas rotinas, passear sem um rumo
predefinido, alheia aos horários com que se debate no seu dia a dia, tão marcado pelas regras
implacáveis e frustrantes das horas e dos horários a cumprir. É a parte mais insuportável da sua
profissão de professora, os horários. Este ano letivo decidiram abolir os toques, mas eles continuam
lá, mesmo sem se ouvirem. Perde a noção de quantas vezes olha por dia para o relógio, desde que se
levanta até que se deita. Mesmo durante a noite acontece-lhe acordar e ir logo ver as horas. Às
vezes controla-se porque tem medo de que ainda falte muito para o relógio tocar e que fique com
espertina. Então é uma luta silenciosa entre a vontade de ver as horas e o medo de confirmar de que
está quase na hora de se levantar, ou que ainda falta muito tempo e está a perder momentos
preciosos de sono, com ansiedades parvas. Por isso, ao fim de semana ou quando está de férias e,
sobretudo, quando a distância de casa é significativa, a noção de tempo esvai-se. Raramente olha
para o relógio e quando o faz não é para obedecer ao seu ritmo tirano. Não há horas para nada. O
que mais a irritava na avó era a mania das horas. Horas para isto, horas para aquilo. Dias para lavar
a roupa, dias para engomar. Um horror.. As férias com os pais eram a mesma coisa. O pai também é
fanático com os horários. Mesmo de férias a hora do almoço era sagrada. Levantava-se como se
tivesse de ir trabalhar e estragava-lhe o prazer de se sentir liberta do relógio. Nunca mais fez férias
com a família. O que é bom na maturidade é a lucidez e a determinação em fazer só aquilo que lhe
apetece. A coragem de romper com aquilo que considerava deveres e lhe causavam aborrecimento.
Tantas férias e fins de semana estragados, tanto tempo desperdiçado. A idade, além das rugas, da
celulite e dos cabelos brancos, dá-lhe a liberdade de viver a sua vida sem dar satisfações a ninguém.
Agora só vai onde lhe apetece e com quem lhe apetece, Acabaram-se as transigências, só com medo
de ofender suscetibilidades.
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O ronronar do gato dá-lhe sono e conforta-a. Percebe que as memórias estão mais teimosas
que nunca. Vão e vêm, mas deve ser por estar sozinha. Afinal não vai escrever, a sua personagem
nonagenáriavai terá de esperar por amanhã. É uma velha casmurra e embirrenta que teima em levá-
la para o princípio do século, para uma crise económica e política semelhante à que está a viver.
Está farta de crises. Também não vale a pena ligar a televisão num canal informativo porque as
notícias são sempre as mesmas deprimentes. A sua dificuldade em pagar as contas é partihada pela
maior parte dos portugueses, sem falar nos gregos, nos espanhóis, nos italianos, nos irlandeses e
mais recentemente nos cipriotas, que também estão a sentir na pele os efeitos da maior mentira dos
finais do século vinte e princípios deste, uma europa una, solidária onde todos teriam liberdade e
uma vida confortável. Grande logro. Pelos vistos é ótimo para a banca e para os países mais ricos do
norte, entre os quais se encontra a Alemanha moralista que se esqueceu da sua triste História. Vai
dormir um pouco.
Liga a televisão num dos canais que gravou. É um filme da Fox, um filme policial passado
no Hawai. Tem a certeza de que as primeira imagens a vão fazer mergulhar num sono confortável e
relaxante. Se apagar a televisão acorda e perde o sono. Já experimentou. A televisão é um excelente
suporífero. Não sabe quanto tempo dormiu, mas já é noite cerrada. Deve ter-se mexido durante o
sono porque o comodista do Kiko já não está no seu peito. Detesta que o incomodem, como todo o
gato que se preze, e está confortavelmente esticado na poltrona que era da avó. Na verdade tinha
comprado a poltrona para a pôr no escritório e deitar-se nela para se descomprimir da correção dos
testes e do trabalho burocrático da escola, mas nunca aproveitou o conforto da poltrona enquanto a
teve no escritório. Mudou-a para o quarto porque achava que aí ia finalmente dar-lhe o devido uso.
Puro engano, a poltrona rapidamente se transformou em cabide.
Com a vinda da avó resolveu cerder-lha e como sempre a cobiçada poltrona foi motivo de
críticas ácidas, que lhe dava cabo da costas, que era horrível, enfim, só se calou quando lhe deu seis
alomofadas para minimizar o desconforto da poltrona que toda a gente considera confortável. É
verdade que desde o falecimento da avó retomou a posse da poltrona, e finalmente senta-se nela
com regularidade. A avó tinha uma certa razão em relação às dores nas costas. A artrose obriga-a
também a pôr não as seis almofadas, mas uma atrás das costas.
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Chamo-me Eulália e nasci no início do século XX. Sou oriunda duma família lisboeta,
com origens minhotas pelo lado materno, vivi despreocupada e confortavelmente com os meus pais
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e os meus quatro irmãos, três raparigas e um rapaz, até aos dezassete anos. O meu pai faleceu
inesperadamente e deixou a mãe viúva e desamparada, com a difícil tarefa de acabar de criar os
filhos, sobretudo os dois mais pequenos. A minha irmã mais velha casou-se passado pouco tempo.
O marido era bombeiro, tinha um ordenado razoável mas que diluia no jogo e na bebida. A minha
irmã a seguir a mim engravidou aos quinze anos, o que não era assim tão inusitado na época e
casou-se. O marido, cuja família confortavelmemte burguesa lhe proporcionou uma vida
desafogada, nunca se opos a que ajudasse a família.
Mas eu, Eulália, tive de ir trabalhar e a vida de menina que gostava de estar com as
amigas e ir aos bailes foi substituída pela sala da D. Ester onde, depois de apanhar alfinentes nos
primeiros tempos, aprendi a bordar e a costurar, atividades que sempre me deram prazer ao longo da
vida. Não é para me gabar mas tinha talento para os bordados. Com o tempo aprendi a fazer tricô e
renda. Todos me diziam que tinha mãos de artista. A minha neta mais nova, curiosamente aquela
com quem sempre tive menos ou nenhuma afinidade, para ser franca, herdou o meu talento e
algumas manias. Também tem a obsessão pelas gavetas rigorosamente arrumadas e dias estipulados
para as atividades domésticas.
Aqui sentada na poltrona que a minha neta me deu e que me arruina as costas, já nada me
resta a não ser perder-me nas memórias do passado longínquo. Aqueles que fizeram parte da minha
vida, ao longo de tantos anos, foram-se perdendo pelo caminho. Pergunto a mim mesma, tantas
vezes, porque é que fui ficando. Nunca pensei em viver tanto tempo. Tive escarlatina quando era
miúda e em vez de tomar os comprimidos enormes que me davam, porque naquele tempo a
escarlatina era uma doença, quase sempre mortal, escondia-os debaixo da língua e depois deitava-os
fora. Já casada fiz tantos abortos que acabei por ter uma pirotenite. Aos trinta e sete anos, como as
hemorragias eram cada vez mais abundantes, tive de fazer uma operação de barriga aberta, agora
chama-se Histeroctemia, segundo me diz a minha neta que é professora. Na verdade tenho duas
netas professoras. Mas onde é que eu ia, sim, estava a falar da minha operação. A sorte é que fui
operada numa clínica privada porque depois da operação tive uma pneumonia. Deve ser por isso
que fiquei com bronquite crónica. Depois transformou-se em bronquite asmática como me disse o
doutor Romão que era um excelente médico. Fumava tanto que morreu aos quarenta e tal anos com
um cancro. Tive muita pena porque me compreendia bem. Depois fiquei com uma doutora, não me
lembro agora do nome, mas era também uma jóia de pessoa. Isso era quando eu era dona da minha
vida e não tinha de dar satisfações a ninguém, nem dependia de ninguém. Se não fosse ter-me
esquecido de tomar os comprimidos, não tinha ido parar ao hospital e ainda estava no centro de dia
e na minha rica casinha. Mas meteram-me num lar e acabei por andar ao mando dos outros.
Bem, mas estava a falar das minhas doenças. Agora os médicos daquele hospital que não
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presta para nada, lá em Setúbal, e a minha neta mais velha têm a mania de dizer que eu tenho uma
doença mais complicada chamada DPOC ou lá o que é. Ela e o marido. Obrigam-me a andar
agarrada a uma garrafa de oxigénio. Manias. Pensam que sabem tudo. Esquecem-se de que quando
nasceram já eu cá andava há muito tempo. O que vale é que quando os vejo pelas costas tiro a
porcaria do oxigénio. Por causa desta maldita botija até me perdi na memória. Vai dar um filme de
que gosto muito. É melhor distrair-me um pouco. Daqui a um bocado chegam eles e acaba-se o
sossego. Só gosto de me perder nas recordações do passado quando estou sozinha. Fecho os olhos,
arranjo estas almofadas e parece que volto a ser a rapariga cheia de de força que já fui um dia.
Lembro-me das dificuldades, da crise económica e política daqueles tempos. A sopa dos pobres,
também chamada a sopa do Sidónio porque foi criada pelo então presidente Sidónio Pais, a que a
minha família teve de recorrer diariametne, durante tanto tempo, marcou-mepara sempre. Talvez
seja por isso que me tornei esquisita com a comida e cada vez mais com o avançar dos anos.
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Está cansada de escrever. Doem-lhe as costas. Quando escreve perde a noção do tempo. Que
horas serão, tem de ir fazer o jantar para o filho, esteve três dias sem o filho e pareceu-lhe uma
eternidade. Apetece-lhe mimá-lo. Vai também telefonar ao seu bichinho porque está cheia de
saudades. Felizmente o fim de semana aproxima-se e vai passá-lo a Braga com o marido. Mas o
filho, o João, quer ficar sozinho em casa, como de costume. Desde que a avó partiu sabe que deixá-
lo sozinho, no fundo para ele é melhor, porque a bisa era cada vez mais exigente e intolerante.
Estava sempre a chamá-lo, não lhe dava sossego. Ainda por cima estava cada vez mais esquisita
com a comida e reclamava a todo o momento. O João queixava-se de que a bisa não o deixava em
paz.
Como um bom caranguejo, com ascendente escorpião, odeia que o pressionem e lhe façam
marcação cerrada. O filho é um rapaz atinado e responsável. Se tomava conta da bisa, da casa, dos
animais e dele próprio, é óbvio que agora também o faz, mas sem a bisa. Ele não diz nada mas sente
que o filho ficou traumatizado com a partida inesperada da avó. Ainda por cima nesse fim de
semana estava em Braga e foi o filho quem assistiu à partida da avó para o hospital de onde já não
regressou.
Com o tempo, apercebeu-se de que a morte da avó não a tinha afetado só a si. Afinal, a sua
partida súbita, apesar da idade avançada, apanhou todos de surpresa.. Alguém com uma
personalidade tão marcante nunca parte, pelo menos enquanto estiver viva na memória dos outros
Até o pai que lhe dizia sarcasticamente que ela devia muitos anos ao coveiro, ficou
consternado com a sua partida e apesar de não ser um homem de grandes conversas, às vezes fala
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dela com saudade. O João, tão independente, deixou de gostar de estar em casa sózinho. É preciso
tempo. Não para esquecer, porque a saudade e a ausência daqueles que amamos é cada vez mais
premente. Aprendemos, com o tempo, tão somente, é a lidar com a ausência. Há os que estão
ausentes, distantes no espaço físico, e por muito grande que seja a saudade ela mitiga-se com o
telemóvel, com uma viagem de alfa ou até mesmo com o skype. É o que acontece com as saudades
imensa que sente do marido. Mas aqueles que partem da vida, ficam noutra dimensão. Sente a
presença da avó, sabe que ela está por perto a cuidar de todos. Por vezes a aborrecer-se com algum
comentário ou atitude. Mas não lhe pode falar, tocar-lhe, senti-la, nem ouvir a sua voz, até mesmo
as suas críticas ou queixumes. Sente falta da sua companhia, sobretudo quando ela ainda estava
bem, passeavam juntas e conversavam muito. Tinha uma convesrsa interessante, opiniões válidas
sobre tudo. Às vezes não concordava com ela mas eram bom conversarem. Só deixou de conversar
com a avó e de passear com ela quando começaram a coabitar. Foi a rutura na sua harmonia.
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A avó partiu, fez três anos em janeiro. Partiu, subitamente, e deixou um vaziu enorme.
Carregou, durante imensso tempo o sentimento de culpa pela falta de paciência com que se
relacionou com a avó, durante o último ano da sua vida.
Não devia ter ido a Braga, nesse fim de semana. A avó disse que era só uma
constipaçãozinha, mas ela devia ter ficado. O Zé já tinha falado com os bombeiros. Se a avó tivesse
ido para o hospital de Setúbal, como era costume, talvez ainda cá estivesse em corpo. A avó não
quis. Ela foi ter com o Zé, o marido, a Braga, como estava combinado. No sábado à noite falou com
a avó pelo telefone e foi ríspida com ela. A avó queixava-se de que o João, o filho, não lhe aquecia o
leite bem. Na altura duvidou. Mais tarde, confirmou que não era por mal, mas o filho não aquecia
bem o leite no microondas.
Tenho saudades tuas avó. Saudades e remorsos. Sei que já me perdoaste o mau feitio, a falta
de paciência... mas nunca mais vamos poder conversar.
Tantas oportunidades perdidas, nos últimos tempos em que ainda aqui estavas. Sinto a tua
falta todos os dias, mas também te sinto perto de mim. Acho que agora nos compreendemos melhor
que nunca. Cada vez mais, encontro pontos em comum contigo.
Passou tanto tempo desde a última vez que escreveu. Tantos acontecimentos. Tantas
mudanças.
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O Tempo passa sem se dar por isso. Tomamos consciência e, tudo está tão fiferente
connosco, e com os que nos rodeiam.
Não se sente a mesma pessoa de há três anos. Não sabe como é que vai continuar a narrativa.
Não lhe apetece recordar, ao pormemor os acontecimentos dos últimos anos.
O Zé regressou a casa. Dá explicações. Finalmente ambos se sentem realmente casados.
São um, sendo dois. O João concluiu o décimo segundo ano. Está a estudar para fazer o exame de
Matemática A e candidatar-se ao Polotécnico de Setúbal.
O trabalho como professora já não é tão entusiasmante como anteriormente. O trabalho
triplicou, diversificou-se e transformou-se num fardo que carrega. Continua a gostar de ensinar.
Gosta dos alunos e eles gostam dela e respeitam-na. Mas a sobrecarga horária e a multiplicação de
funções tornaram a função de professor num pesadelo. Quanto mais anos de serviço se tem, maior é
o trabalho.
Avó, sei que tens tomado conta de mim e o avô também. Sinto que neste momento estás aqui
a meu lado. Não nos abandonas e eu tenho-te sempre comigo. Sabes que quando me refiro a ti,
também incluo o avõ. Sempre o amei muito e ele amava-me também. Era a neta preferida. Agora
são um só. Duas almas que se uniram na Luz da eternidade.
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A minha neta às vezes não me compreende. Talvez quando eu partir perceba realmente o
que me vai na alma. Sempre tive uma vida preenchida. Casei-me, mas nunca me afastei da minha
família. Apesar de ter podido ir para uma boa casa com o meu marido Fernando e a Zulina, a nossa
filha, sempre quis ficar perto da família. Tios, primos, irmãos, vizinhos que eram como se fossem
família. Tinha a chave da casa de todos eles. E habituei-me, desde, nova a ajudar os que me
rodeavam.
A minha melhor amiga morreu tuberculosa. Também vivia perto da minha casa. Eu já tinha a
Zulina, mas nunca abandonei a minha amiga que já cuspia sangue. Uma vez disse-me «deves ter
nojo de mim. De certeza que já não és capaz de me dar um beijo». Dei-lhe logo um beijo, para ela
perceber que a minha amizade por ela, era superior à doença. Nunca me passou pela cabeça que ela
me podia contagiar.
Eu era forte, dava a volta a tudo e até à vida. As dificuldades económicas naquele tempo era
muitas, mas eu sempre fui uma mulher de trabalho. Tive várias ocupações: trabalhei nas azeitonas,
no mercado; fiz sacos. Sei bordar e costurar. Faço renda e tricô. Cozinho bem e sempre ajudei
quem me pedia ajuda. A minha irmã mais velha era uma desorganizada com o dinheiro. O meu
cunhado era bombeiro. Mas também era jogador. Eu tinha de estar sempre por perto, para compor
9
as coisas.
Depois do João falecer tive de a apoiar e organizá-la economicamente. A minha irmã mais
velha nunca passou da segunda classe, na escola. Estudámos na Escola da Promotora que é
particular e é uma excelente escola. Tinhamos apoio escolar e alguns benefícios, por sermos muitos
irmãos. A minha filha também lá estudou e a Isabel, a minha neta mais velha (com quem vivo
agora), andou lá até à segunda classe. Depois a minha filha e o meu genro foram morar para os
Olivais e as miúdas foram para lá estudar.
Mas o que estava a dizer é que era eu quem tomava conta de todos. Sempre gostei de
organizar as coisas. Sou metódica.
Apesar de só ter tirado a quarta classe antiga, aprendi muita coisa. E fartei-me de ler.
Devorava livros e interessava-mme por tudo.
Agora é que estou para aqui. Tive um derrame num dos olhos e quase não vejo nada .Foi de
tanto fazer tricô, com lâ escura, à noite. Nós quando somos novos não pensamos nas consequências
dos nossos atos, nem nas doenças. Acho que, apesar de estar sempre toda a vida rodeada pela
presença da morte, sempre me julguei invencível. A minha neta Isabel sempre me disse que eu
chegava aos cem anoos. Pelo menos que passava dos noventa. Eu dizia-lhe que não, porque à
medida que foram partindo aqueles que me enchiam os dias, comecei a sentir-me inútil. Tenho
remorsos de ter posto o meu marido num lar. Sei que quando nos encontrarmos, novamente, ele me
vai recriminar.
Mas enfim.. É a vida. Nem sempre tomamos as atitudes mais acertadas. Fiquei cheia de
remorsos. E quando chegou a minha vez de ir para um lar, só porque me esqueci de tomar os
comprimidos, naquele dia, é que vi o horror que é. Sair da minha rica casa, apesar do prédio
precisar de obras e andar ao mandado dos outros.
Agora estou paraa aqui, agarrada auma garrafa de oxigénio. Já não tenho forças para nada.
O que eu fui e o que sou, agora. Por isso é que apesar de gostar da vida, já não sinto prazer em
nada. Tudo me aborrece. Ainda há algumas séries na televisão e alguns programas de música que
me entretêm. Mas tenho de ter os fones nos ouvidos, porque ouço mal e a televisão tem de estar
muito alta.
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Foi hoje, parti. Parecia só uma simples constipação, mas era mais complicado.
8
Sei que as minhas netas mais velhas sentem muito a minha falta. O Zé também gostava
muito de mim. A minha filha e o meu genro também já estão com idade. Tenho de olhar por todos.
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A Isabel acende-me velas, para mim e para o avô. Também se lembra dos pais do Zé e do sr.
Gomes. Lembra-se também de todos os que partiram e estão connosco. Ela pede para eu esar na luz.
Eu só não. Nós todos. Junto dos anjos, de Jesus e Maria.
O céu é um local tranquilo. Mas, as preocupações continuam. Aqueles que lá estão em baixo
têm tantos problemas que, afinal, sinto-me outra vez útil. Posso zelar por todos. Não tenho a chave
da casa deles, porque já não preciso. Tenho a chave dos seus corações.
9
Avó, um dia vamos reencontrar-nos. Por agora olha por nós. Todos continuamos a precisar
muito de ti. Ajuda-nos a viver um dia de cada vez e a ultrapassarmos os obstáculos do dia a dia.
Fica bem avó, com o avô e, com todos aqueles que nós amámos, e nos amaram.
FIM
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As memórias de Eulália

  • 1. 1 Está debruçada na amurada. O mar, azul, plano e límpido espraia-se à sua frente. Apesar de ser um dia de inverno o mar está mais calmo do que em muitos dias de verão. Sente-se vagamente feliz e liberta. A praia está deserta, o areal plano está despido das barracas irritantes do verão. Só se veem algumas gaivotas, e dois caminhantes solitários que, como ela, apreciam a calmaria da solidão, à beira mar. É por isso que ama Sesimbra. Esta vila piscatória sempre lhe transmitiu um conforto familiar. Ali sempre se sentiu como se estivesse no aconchego da sua casa, protegida e, ao mesmo tempo, em comunhão com a infinidade do mar. Gosta de olhar para o horizonte porque lhe dá, desde pequena, uma sensação de infinito. Curiosamente não sabe nadar. Ama o mar mas teme-o também. Nunca aprendeu a nadar na piscina porque quando era pequena, tal nunca lhe foi permitido, e mais velha, por puro comodismo ou inércia. É ativa e decidida mas tem de estar motivada para as coisas. Nadar não é uma prioridade na sua vida. Aquilo que lhe dá prazer é ver a paisagem marítima e caminhar, de mão dada, à beira mar. É o que costuma fazer com o amor da sua vida, quando ambos têm disponibilidade. Em garota ia muitas vezes à praia com a avó. Era uma mulher forte e decidida, que se guiava inflexivelmente por rotinas, e que as impunha a todos os que a rodeavam. No verão, iam invariavelmente durante duas semanas, de manhã cedo até por volta das onze horas, para a praia da Cruz – Quebrada, na zona da linha. O percurso era sempre o mesmo. Apanhavam o elétrico e desciam perto da praia. Era a praia que ficava mais próximo. Uma vez foram para a praia de Algés. Gostou mais porque era diferente. Mas a avó não . Foi uma quebra na rotina e a avó não gostava disso. Puxa pela memória e lembra-se de algumas brincadeiras com os irmãos. O irmão, mais velho e mais afoito, aproveitou aquelas viagens rituais à praia, para aprender a nadar. Tem a sensação de que era quem mais apreciava aqueles momentos. Era mais rebelde e inconformista. Talvez por isso foi o primeiro a rebelar-se contra as regras e rotinas impostas. Mas estas lembranças estão dissipadas e perdidas na memória. Não lhe apetece recordar um passado tão distante. Prefere viver o presente e saboreá-lo sem pressas. O presente é aquilo que existe mesmo, é real e viável. O passado permenece na memória mas já não pode fazer nada para alterar o que quer que seja. Não pode lá voltar. É uma viagem impossível. Mas a memória prega-lhe algumas partidas de vez em quando, e recentemente isso acontece cada vez com mais frequência. De repente dá consigo a reviver situações, sobretudo com aqueles que já partiram. A recente e inesperada morte da avó afetou-a mais do que quer reconhecer. Sempre disse que a avó era uma personagem única, que devia ficar registada, para a posteridade, como personagem de um romance. Dizia aquilo com algum aborrecimento porque a relação entre as duas deteorou-se desde que 1
  • 2. concordou em que a avó saísse do lar, onde detestava estar, e fosse viver com ela. Soube desde o primeiro momento que era uma decisão errada, mas o desejo de a proteger sobrepos-se a um prudente bom senso. A avó odiava que lhe dessem ordens e lhe controlassem a vida. Odiava aqueles com quem tinha de viver, em dependência. Usava habilmente duas armas o controlo e a vitimização. Alternava uma e outra consoante as situações e a seu bel prazer. A avó sempre fez parte da sua vida. Sempre sentiu por ela um carinho especial mas também tinha consciência de que não queria viver com ela. Quando era pequena e dormia algumas vezes em casa da avó assolava-a ideia de que os pais podiam morrer e teria de viver com os avós. Essa ideia provocava-lhe calafrios e rezava para que nada de mal acontecesse aos pais. O avô comunista ferrenho e ateu declarado, não tinha uma boa relação com os pais. A ideia que guardou na memória é que o avô sempre foi uma figura um pouco marginalizada pela família. Era inteligente, informado, inconformista e perfecionista. Com ela foi sempre atento e muito carinhoso. Sabia e sentia que era a neta preferida e isso sempre lhe agradou. Amava o avô e sente saudades dele. Faleceu quando estava grávida do filho. Morreu num lar, onde a avó o pôs, apesar de nunca o ter admitido. Era mais confortável dizer que não tinha sido ela a escolher aquele lar horrível. Pobre avô, merecia ter morrido em casa, perto da mulher a quem sempre amou e protegeu. Mas o egoísmo da avó falou mais alto. Por isso sabe que sempre gostou da avó mas não consegue esquecer-se do seu grande egoísmo e do seu talento para urdir e manipular. A visão do mar está-lhe a provocar nostalgia. É melhor regressar a casa e ao seu presente. A subida um pouco íngreme permite-lhe conduzir e ver ao longe o farol onde tem dando tantos passeios com o marido. Tem saudades daqueles passeios de mão dada, ao longo do caminho estreito, povoado de gaivotas, que leva ao pequeno farol. A ida imprevisível do marido para o Porto e a sua posterior mudança para Braga, devido à atividade profissional, provocou uma violenta alteração da sua rotina diária. Estava tão habituada à presença constante do marido nos últimos três anos, que tem sido dolorosa a separação. Sente falta de se enroscar à noite nos seus braços, de acordar e senti-lo perto de si, do ritual de lhe levar o pequeno almoço à cama, de tantas pequenas grandes coisas que lhe proporcionavam uma felicida extrema. Agora tem saudades permanentes do marido. Sente sempre que lhe falta algo, o que a inquieta e lhe provoca uma sensação de angústia que se esforço por afastar. Tem de ser forte e aceitar a vida como ela é. O amor que sente pelo marido é superior a tudo. Sabe que o amor que os une não vai esmorecer com esta separação física que espera não ser para sempre. Tem de ser lúcida e pragmática e apreciar a presença do filho que é a luz da sua vida. As viagens a Braga, que são uma nova rotina, ajudam-na a recuperar, em parte, o equilíbrio que a 2
  • 3. presença do marido lhe dá. Braga é uma cidade onde a presença do divino é mais palpável do que em qualquer outra cidade que conhece., mas não se sente em casa, e sabe que o marido também não. No entanto, ambos têm consciência de que vai ser a sua cidade, por uns tempos. Nenhum dos dois tem raízes em Braga mas esforçam-se por superar angústias e criar laços. O que lhe interessa é estar perto do marido. Dormir nos seus braços e acordar ao seu lado. A pouco e pouco vão-se habituando a esta nova realidade. Gosta de estar no quarto, quando o marido está a trabalhar. Sabe que ele está perto e isso é-lhe suficiente. Mas a presença do marido em casa faz-lhe falta. Sente a sua ausência de uma forma dolorosa. O regresso a casa não está a ser fácil. As lembranças invadem-na, constantemente, e estão a estragar o prazer daquele passeio a Sesimbra que tinha decidido ser calmo e relaxante. O filho está em casa da irmã porque gosta de estar com os primos. São quase todos da mesma idade e entendem- se bem. Quando chegar a casa vai retomar a escrita do seu primeiro romance. Há anos que tinha decicido que um dia havia de escrever um romance. Os últimos acontecimentos da sua vida e o turbilhão de emoções obrigaram-na a iniciar o projeto adiado. Escrever provoca-lhe uma acalmia que nem os ansiólitos a que teve de recorrer lhe dão. A personagem do seu romance tem algumas semelhanças consigo. Ela também se deixa perder cada vez mais nos recantos da memória. Aos noventa e poucos anos está-se mais perto do fim do que do início, por isso o passado é mais atraente. Não é o que se passa consigo que acabou de completar meio século de vida. Espera ter ainda um bom percurso pela frente, embora prefira não olhar para o futuro longínquo e incerto e apreciar o presente, ainda que manchado pelos efeitos nefastos da crise económica que lhe amargura a vida e a de todos aqueles que conhece. 2 Chegou a casa, na entrada do prédio cruzou-se com o sr. Joaquim. É o vizinho simpático e atento que lhe relembra, constantemente, que a boa vizinhança e a solidariedade afinal não são palavras vãs, embora estejam em vias de extinção. A sua casa é o lugar onde se sente protegida. Faltam-lhe agora o marido e o filho. Deita-se no sofá com o KiKo em cima do peito a ronronar. É uma gato que trouxe bebé do lar da avó. Pegou nele por curiosodade porque sempre gostou de gatos amarelos, longe de adotar mais um gato, mas o Kiko não era da mesma opinião. Agarrou-se à sua camisola com a força determinada de quem lutava por um lar quente e seguro. O marido também teve dó do bichinho e o Kiko passou a pertencer à família onde já havia uma Tuxa temperamental, um Rex esquizofrénico e um Bóbi pachorrento e comilão. O Bóbi partiu de velhice. Ficaram os três turbulentos, cada um amigo e dedicado, à sua maneira. Não há dúvida que são uma boa companhia. 3
  • 4. Não se sente completamente só e angustiada graças à sua presença, por vezes barulhenta. O Ti- Rex, como gosta de lhe chamar, ladra por tudo e por nada. O Kiko e a Tuxa quando estão juntos é uma alegria e um perigo para as cortinas e para tudo o que se lhes atravesse à frente. Apetece-lhe evadir- se, gostava de partir com o marido rumo ao desconhecido.Tem a certeza de que o filho preferia ficar com os tios e primos porque é um comodista e não aprecia viagens. Mas se a Inesita também fosse era mais animado. A Inesita é a filha do Zé, o seu marido. Os quatro juntos partiriam de carro, de avião ou de combóio, tanto fazia, sem um rumo definido. Nas duas viagens que fez sozinha com o filho, antes de conhecer o marido, só programou o indispensável. O prazer de viajar é deixar-se levar pelo momento e descobrir o inesperado, apreciar o desconhecido. Olhar para as pessoas, para os espaços, inspirar a liberdade, sentir a emoção da descoberta dos novos lugares e costumes. Sente sempre que a timidez que a caracteriza se esvai como por magia. Não viaja para conhecer pessoas, para estabelecer relações.Viaja pelo prazer da descoberta, do inabitual, da quebra de rotinas. Gosta de criar novas rotinas, passear sem um rumo predefinido, alheia aos horários com que se debate no seu dia a dia, tão marcado pelas regras implacáveis e frustrantes das horas e dos horários a cumprir. É a parte mais insuportável da sua profissão de professora, os horários. Este ano letivo decidiram abolir os toques, mas eles continuam lá, mesmo sem se ouvirem. Perde a noção de quantas vezes olha por dia para o relógio, desde que se levanta até que se deita. Mesmo durante a noite acontece-lhe acordar e ir logo ver as horas. Às vezes controla-se porque tem medo de que ainda falte muito para o relógio tocar e que fique com espertina. Então é uma luta silenciosa entre a vontade de ver as horas e o medo de confirmar de que está quase na hora de se levantar, ou que ainda falta muito tempo e está a perder momentos preciosos de sono, com ansiedades parvas. Por isso, ao fim de semana ou quando está de férias e, sobretudo, quando a distância de casa é significativa, a noção de tempo esvai-se. Raramente olha para o relógio e quando o faz não é para obedecer ao seu ritmo tirano. Não há horas para nada. O que mais a irritava na avó era a mania das horas. Horas para isto, horas para aquilo. Dias para lavar a roupa, dias para engomar. Um horror.. As férias com os pais eram a mesma coisa. O pai também é fanático com os horários. Mesmo de férias a hora do almoço era sagrada. Levantava-se como se tivesse de ir trabalhar e estragava-lhe o prazer de se sentir liberta do relógio. Nunca mais fez férias com a família. O que é bom na maturidade é a lucidez e a determinação em fazer só aquilo que lhe apetece. A coragem de romper com aquilo que considerava deveres e lhe causavam aborrecimento. Tantas férias e fins de semana estragados, tanto tempo desperdiçado. A idade, além das rugas, da celulite e dos cabelos brancos, dá-lhe a liberdade de viver a sua vida sem dar satisfações a ninguém. Agora só vai onde lhe apetece e com quem lhe apetece, Acabaram-se as transigências, só com medo de ofender suscetibilidades. 4
  • 5. O ronronar do gato dá-lhe sono e conforta-a. Percebe que as memórias estão mais teimosas que nunca. Vão e vêm, mas deve ser por estar sozinha. Afinal não vai escrever, a sua personagem nonagenáriavai terá de esperar por amanhã. É uma velha casmurra e embirrenta que teima em levá- la para o princípio do século, para uma crise económica e política semelhante à que está a viver. Está farta de crises. Também não vale a pena ligar a televisão num canal informativo porque as notícias são sempre as mesmas deprimentes. A sua dificuldade em pagar as contas é partihada pela maior parte dos portugueses, sem falar nos gregos, nos espanhóis, nos italianos, nos irlandeses e mais recentemente nos cipriotas, que também estão a sentir na pele os efeitos da maior mentira dos finais do século vinte e princípios deste, uma europa una, solidária onde todos teriam liberdade e uma vida confortável. Grande logro. Pelos vistos é ótimo para a banca e para os países mais ricos do norte, entre os quais se encontra a Alemanha moralista que se esqueceu da sua triste História. Vai dormir um pouco. Liga a televisão num dos canais que gravou. É um filme da Fox, um filme policial passado no Hawai. Tem a certeza de que as primeira imagens a vão fazer mergulhar num sono confortável e relaxante. Se apagar a televisão acorda e perde o sono. Já experimentou. A televisão é um excelente suporífero. Não sabe quanto tempo dormiu, mas já é noite cerrada. Deve ter-se mexido durante o sono porque o comodista do Kiko já não está no seu peito. Detesta que o incomodem, como todo o gato que se preze, e está confortavelmente esticado na poltrona que era da avó. Na verdade tinha comprado a poltrona para a pôr no escritório e deitar-se nela para se descomprimir da correção dos testes e do trabalho burocrático da escola, mas nunca aproveitou o conforto da poltrona enquanto a teve no escritório. Mudou-a para o quarto porque achava que aí ia finalmente dar-lhe o devido uso. Puro engano, a poltrona rapidamente se transformou em cabide. Com a vinda da avó resolveu cerder-lha e como sempre a cobiçada poltrona foi motivo de críticas ácidas, que lhe dava cabo da costas, que era horrível, enfim, só se calou quando lhe deu seis alomofadas para minimizar o desconforto da poltrona que toda a gente considera confortável. É verdade que desde o falecimento da avó retomou a posse da poltrona, e finalmente senta-se nela com regularidade. A avó tinha uma certa razão em relação às dores nas costas. A artrose obriga-a também a pôr não as seis almofadas, mas uma atrás das costas. 3 Chamo-me Eulália e nasci no início do século XX. Sou oriunda duma família lisboeta, com origens minhotas pelo lado materno, vivi despreocupada e confortavelmente com os meus pais 5
  • 6. e os meus quatro irmãos, três raparigas e um rapaz, até aos dezassete anos. O meu pai faleceu inesperadamente e deixou a mãe viúva e desamparada, com a difícil tarefa de acabar de criar os filhos, sobretudo os dois mais pequenos. A minha irmã mais velha casou-se passado pouco tempo. O marido era bombeiro, tinha um ordenado razoável mas que diluia no jogo e na bebida. A minha irmã a seguir a mim engravidou aos quinze anos, o que não era assim tão inusitado na época e casou-se. O marido, cuja família confortavelmemte burguesa lhe proporcionou uma vida desafogada, nunca se opos a que ajudasse a família. Mas eu, Eulália, tive de ir trabalhar e a vida de menina que gostava de estar com as amigas e ir aos bailes foi substituída pela sala da D. Ester onde, depois de apanhar alfinentes nos primeiros tempos, aprendi a bordar e a costurar, atividades que sempre me deram prazer ao longo da vida. Não é para me gabar mas tinha talento para os bordados. Com o tempo aprendi a fazer tricô e renda. Todos me diziam que tinha mãos de artista. A minha neta mais nova, curiosamente aquela com quem sempre tive menos ou nenhuma afinidade, para ser franca, herdou o meu talento e algumas manias. Também tem a obsessão pelas gavetas rigorosamente arrumadas e dias estipulados para as atividades domésticas. Aqui sentada na poltrona que a minha neta me deu e que me arruina as costas, já nada me resta a não ser perder-me nas memórias do passado longínquo. Aqueles que fizeram parte da minha vida, ao longo de tantos anos, foram-se perdendo pelo caminho. Pergunto a mim mesma, tantas vezes, porque é que fui ficando. Nunca pensei em viver tanto tempo. Tive escarlatina quando era miúda e em vez de tomar os comprimidos enormes que me davam, porque naquele tempo a escarlatina era uma doença, quase sempre mortal, escondia-os debaixo da língua e depois deitava-os fora. Já casada fiz tantos abortos que acabei por ter uma pirotenite. Aos trinta e sete anos, como as hemorragias eram cada vez mais abundantes, tive de fazer uma operação de barriga aberta, agora chama-se Histeroctemia, segundo me diz a minha neta que é professora. Na verdade tenho duas netas professoras. Mas onde é que eu ia, sim, estava a falar da minha operação. A sorte é que fui operada numa clínica privada porque depois da operação tive uma pneumonia. Deve ser por isso que fiquei com bronquite crónica. Depois transformou-se em bronquite asmática como me disse o doutor Romão que era um excelente médico. Fumava tanto que morreu aos quarenta e tal anos com um cancro. Tive muita pena porque me compreendia bem. Depois fiquei com uma doutora, não me lembro agora do nome, mas era também uma jóia de pessoa. Isso era quando eu era dona da minha vida e não tinha de dar satisfações a ninguém, nem dependia de ninguém. Se não fosse ter-me esquecido de tomar os comprimidos, não tinha ido parar ao hospital e ainda estava no centro de dia e na minha rica casinha. Mas meteram-me num lar e acabei por andar ao mando dos outros. Bem, mas estava a falar das minhas doenças. Agora os médicos daquele hospital que não 6
  • 7. presta para nada, lá em Setúbal, e a minha neta mais velha têm a mania de dizer que eu tenho uma doença mais complicada chamada DPOC ou lá o que é. Ela e o marido. Obrigam-me a andar agarrada a uma garrafa de oxigénio. Manias. Pensam que sabem tudo. Esquecem-se de que quando nasceram já eu cá andava há muito tempo. O que vale é que quando os vejo pelas costas tiro a porcaria do oxigénio. Por causa desta maldita botija até me perdi na memória. Vai dar um filme de que gosto muito. É melhor distrair-me um pouco. Daqui a um bocado chegam eles e acaba-se o sossego. Só gosto de me perder nas recordações do passado quando estou sozinha. Fecho os olhos, arranjo estas almofadas e parece que volto a ser a rapariga cheia de de força que já fui um dia. Lembro-me das dificuldades, da crise económica e política daqueles tempos. A sopa dos pobres, também chamada a sopa do Sidónio porque foi criada pelo então presidente Sidónio Pais, a que a minha família teve de recorrer diariametne, durante tanto tempo, marcou-mepara sempre. Talvez seja por isso que me tornei esquisita com a comida e cada vez mais com o avançar dos anos. 4 Está cansada de escrever. Doem-lhe as costas. Quando escreve perde a noção do tempo. Que horas serão, tem de ir fazer o jantar para o filho, esteve três dias sem o filho e pareceu-lhe uma eternidade. Apetece-lhe mimá-lo. Vai também telefonar ao seu bichinho porque está cheia de saudades. Felizmente o fim de semana aproxima-se e vai passá-lo a Braga com o marido. Mas o filho, o João, quer ficar sozinho em casa, como de costume. Desde que a avó partiu sabe que deixá- lo sozinho, no fundo para ele é melhor, porque a bisa era cada vez mais exigente e intolerante. Estava sempre a chamá-lo, não lhe dava sossego. Ainda por cima estava cada vez mais esquisita com a comida e reclamava a todo o momento. O João queixava-se de que a bisa não o deixava em paz. Como um bom caranguejo, com ascendente escorpião, odeia que o pressionem e lhe façam marcação cerrada. O filho é um rapaz atinado e responsável. Se tomava conta da bisa, da casa, dos animais e dele próprio, é óbvio que agora também o faz, mas sem a bisa. Ele não diz nada mas sente que o filho ficou traumatizado com a partida inesperada da avó. Ainda por cima nesse fim de semana estava em Braga e foi o filho quem assistiu à partida da avó para o hospital de onde já não regressou. Com o tempo, apercebeu-se de que a morte da avó não a tinha afetado só a si. Afinal, a sua partida súbita, apesar da idade avançada, apanhou todos de surpresa.. Alguém com uma personalidade tão marcante nunca parte, pelo menos enquanto estiver viva na memória dos outros Até o pai que lhe dizia sarcasticamente que ela devia muitos anos ao coveiro, ficou consternado com a sua partida e apesar de não ser um homem de grandes conversas, às vezes fala 7
  • 8. dela com saudade. O João, tão independente, deixou de gostar de estar em casa sózinho. É preciso tempo. Não para esquecer, porque a saudade e a ausência daqueles que amamos é cada vez mais premente. Aprendemos, com o tempo, tão somente, é a lidar com a ausência. Há os que estão ausentes, distantes no espaço físico, e por muito grande que seja a saudade ela mitiga-se com o telemóvel, com uma viagem de alfa ou até mesmo com o skype. É o que acontece com as saudades imensa que sente do marido. Mas aqueles que partem da vida, ficam noutra dimensão. Sente a presença da avó, sabe que ela está por perto a cuidar de todos. Por vezes a aborrecer-se com algum comentário ou atitude. Mas não lhe pode falar, tocar-lhe, senti-la, nem ouvir a sua voz, até mesmo as suas críticas ou queixumes. Sente falta da sua companhia, sobretudo quando ela ainda estava bem, passeavam juntas e conversavam muito. Tinha uma convesrsa interessante, opiniões válidas sobre tudo. Às vezes não concordava com ela mas eram bom conversarem. Só deixou de conversar com a avó e de passear com ela quando começaram a coabitar. Foi a rutura na sua harmonia. 5 A avó partiu, fez três anos em janeiro. Partiu, subitamente, e deixou um vaziu enorme. Carregou, durante imensso tempo o sentimento de culpa pela falta de paciência com que se relacionou com a avó, durante o último ano da sua vida. Não devia ter ido a Braga, nesse fim de semana. A avó disse que era só uma constipaçãozinha, mas ela devia ter ficado. O Zé já tinha falado com os bombeiros. Se a avó tivesse ido para o hospital de Setúbal, como era costume, talvez ainda cá estivesse em corpo. A avó não quis. Ela foi ter com o Zé, o marido, a Braga, como estava combinado. No sábado à noite falou com a avó pelo telefone e foi ríspida com ela. A avó queixava-se de que o João, o filho, não lhe aquecia o leite bem. Na altura duvidou. Mais tarde, confirmou que não era por mal, mas o filho não aquecia bem o leite no microondas. Tenho saudades tuas avó. Saudades e remorsos. Sei que já me perdoaste o mau feitio, a falta de paciência... mas nunca mais vamos poder conversar. Tantas oportunidades perdidas, nos últimos tempos em que ainda aqui estavas. Sinto a tua falta todos os dias, mas também te sinto perto de mim. Acho que agora nos compreendemos melhor que nunca. Cada vez mais, encontro pontos em comum contigo. Passou tanto tempo desde a última vez que escreveu. Tantos acontecimentos. Tantas mudanças. 8
  • 9. O Tempo passa sem se dar por isso. Tomamos consciência e, tudo está tão fiferente connosco, e com os que nos rodeiam. Não se sente a mesma pessoa de há três anos. Não sabe como é que vai continuar a narrativa. Não lhe apetece recordar, ao pormemor os acontecimentos dos últimos anos. O Zé regressou a casa. Dá explicações. Finalmente ambos se sentem realmente casados. São um, sendo dois. O João concluiu o décimo segundo ano. Está a estudar para fazer o exame de Matemática A e candidatar-se ao Polotécnico de Setúbal. O trabalho como professora já não é tão entusiasmante como anteriormente. O trabalho triplicou, diversificou-se e transformou-se num fardo que carrega. Continua a gostar de ensinar. Gosta dos alunos e eles gostam dela e respeitam-na. Mas a sobrecarga horária e a multiplicação de funções tornaram a função de professor num pesadelo. Quanto mais anos de serviço se tem, maior é o trabalho. Avó, sei que tens tomado conta de mim e o avô também. Sinto que neste momento estás aqui a meu lado. Não nos abandonas e eu tenho-te sempre comigo. Sabes que quando me refiro a ti, também incluo o avõ. Sempre o amei muito e ele amava-me também. Era a neta preferida. Agora são um só. Duas almas que se uniram na Luz da eternidade. 6 A minha neta às vezes não me compreende. Talvez quando eu partir perceba realmente o que me vai na alma. Sempre tive uma vida preenchida. Casei-me, mas nunca me afastei da minha família. Apesar de ter podido ir para uma boa casa com o meu marido Fernando e a Zulina, a nossa filha, sempre quis ficar perto da família. Tios, primos, irmãos, vizinhos que eram como se fossem família. Tinha a chave da casa de todos eles. E habituei-me, desde, nova a ajudar os que me rodeavam. A minha melhor amiga morreu tuberculosa. Também vivia perto da minha casa. Eu já tinha a Zulina, mas nunca abandonei a minha amiga que já cuspia sangue. Uma vez disse-me «deves ter nojo de mim. De certeza que já não és capaz de me dar um beijo». Dei-lhe logo um beijo, para ela perceber que a minha amizade por ela, era superior à doença. Nunca me passou pela cabeça que ela me podia contagiar. Eu era forte, dava a volta a tudo e até à vida. As dificuldades económicas naquele tempo era muitas, mas eu sempre fui uma mulher de trabalho. Tive várias ocupações: trabalhei nas azeitonas, no mercado; fiz sacos. Sei bordar e costurar. Faço renda e tricô. Cozinho bem e sempre ajudei quem me pedia ajuda. A minha irmã mais velha era uma desorganizada com o dinheiro. O meu cunhado era bombeiro. Mas também era jogador. Eu tinha de estar sempre por perto, para compor 9
  • 10. as coisas. Depois do João falecer tive de a apoiar e organizá-la economicamente. A minha irmã mais velha nunca passou da segunda classe, na escola. Estudámos na Escola da Promotora que é particular e é uma excelente escola. Tinhamos apoio escolar e alguns benefícios, por sermos muitos irmãos. A minha filha também lá estudou e a Isabel, a minha neta mais velha (com quem vivo agora), andou lá até à segunda classe. Depois a minha filha e o meu genro foram morar para os Olivais e as miúdas foram para lá estudar. Mas o que estava a dizer é que era eu quem tomava conta de todos. Sempre gostei de organizar as coisas. Sou metódica. Apesar de só ter tirado a quarta classe antiga, aprendi muita coisa. E fartei-me de ler. Devorava livros e interessava-mme por tudo. Agora é que estou para aqui. Tive um derrame num dos olhos e quase não vejo nada .Foi de tanto fazer tricô, com lâ escura, à noite. Nós quando somos novos não pensamos nas consequências dos nossos atos, nem nas doenças. Acho que, apesar de estar sempre toda a vida rodeada pela presença da morte, sempre me julguei invencível. A minha neta Isabel sempre me disse que eu chegava aos cem anoos. Pelo menos que passava dos noventa. Eu dizia-lhe que não, porque à medida que foram partindo aqueles que me enchiam os dias, comecei a sentir-me inútil. Tenho remorsos de ter posto o meu marido num lar. Sei que quando nos encontrarmos, novamente, ele me vai recriminar. Mas enfim.. É a vida. Nem sempre tomamos as atitudes mais acertadas. Fiquei cheia de remorsos. E quando chegou a minha vez de ir para um lar, só porque me esqueci de tomar os comprimidos, naquele dia, é que vi o horror que é. Sair da minha rica casa, apesar do prédio precisar de obras e andar ao mandado dos outros. Agora estou paraa aqui, agarrada auma garrafa de oxigénio. Já não tenho forças para nada. O que eu fui e o que sou, agora. Por isso é que apesar de gostar da vida, já não sinto prazer em nada. Tudo me aborrece. Ainda há algumas séries na televisão e alguns programas de música que me entretêm. Mas tenho de ter os fones nos ouvidos, porque ouço mal e a televisão tem de estar muito alta. 7 Foi hoje, parti. Parecia só uma simples constipação, mas era mais complicado. 8 Sei que as minhas netas mais velhas sentem muito a minha falta. O Zé também gostava muito de mim. A minha filha e o meu genro também já estão com idade. Tenho de olhar por todos. 10
  • 11. A Isabel acende-me velas, para mim e para o avô. Também se lembra dos pais do Zé e do sr. Gomes. Lembra-se também de todos os que partiram e estão connosco. Ela pede para eu esar na luz. Eu só não. Nós todos. Junto dos anjos, de Jesus e Maria. O céu é um local tranquilo. Mas, as preocupações continuam. Aqueles que lá estão em baixo têm tantos problemas que, afinal, sinto-me outra vez útil. Posso zelar por todos. Não tenho a chave da casa deles, porque já não preciso. Tenho a chave dos seus corações. 9 Avó, um dia vamos reencontrar-nos. Por agora olha por nós. Todos continuamos a precisar muito de ti. Ajuda-nos a viver um dia de cada vez e a ultrapassarmos os obstáculos do dia a dia. Fica bem avó, com o avô e, com todos aqueles que nós amámos, e nos amaram. FIM 11