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CARTILHA DA CURA


As mulheres e as crianças são as primeiras que
desistem de afundar navios.




*




Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos
vazios.




*



CONVERSA DE SENHORAS


Não preciso nem casar
Tiro dele tudo o que preciso
Não saio mais daqui
3



Duvido muito
Esse assunto de mulher já terminou
O gato comeu e regalou-se
Ele dança que nem um realejo
Escritor não existe mais
Mas também não precisa virar deus
Tem alguém na casa
Você acha que ele agüenta?
Sr. ternura está batendo
Eu não estava nem aí
Conchavando: eu faço a tréplica
Armadilha: louca pra saber
Ela é esquisita
Também você mente demais
Ele está me patrulhando
Para quem você vendeu seu tempo?
Não sei dizer: fiquei com o gauche
Não tem a menor lógica
Mas e o trampo?
Ele está bonzinho
Acho que é mentira
Não começa




*



SUMÁRIO
4




Polly Kellog e o motorista Osmar.
Dramas rápidos mas intensos.
Fotogramas do meu coração conceitual.
De tomara-que-cáia azul-marinho.
Engulo desaforos mas com sinceridade.
Sonsa com bom-senso.
Antena da praça.
Artista da poupança.
Absolutely blind.
Tesãy do talvez.
Salta-pocinhas.
Água na boca.
Anjo que registra.




*



A história está completa: wide sargasso sea, azul
azul que não me espanta, e canta como uma sereia
de papel.




*
5




Sem você bem que sou lago, montanha.
Penso num homem chamado Herberto.
Me deito a fumar debaixo da janela.
Respiro com vertigem. Rolo no colchão.
E sem bravata, coração, aumento o preço.


*



ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS


Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário
nobre do adultério. Separatista protestante.
Melindrosa basca com fissura da verdade. Me
entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o
primeiro side-car anfíbio nos classificados de
aluguel. No flanco do motor vinha um anjo
encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para
o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo
para fora (mas meu salto engancha no pedaço de
pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem
rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás.
Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê
novela de verdade e meu manto azul dourado mais
pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da
6



frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e
pernalta.



*



ENCONTRO DE ASSOMBRAR NA CATEDRAL


Frente a frente, derramando enfim todas as palavras,
dizemos, com os olhos, do silêncio. que não é mudez.
E não toma medo desta alta compadecida passional,
desta crueldade intensa de santa que te toma as duas
mãos.




*



ESTE LIVRO


Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur
7



volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.




*



DUAS ANTIGAS


I


Vamos fazer uma coisa:
escreva cartas doces e azedas
Abre a boca, deusa
Aquela solenidade destransando leve
Linhas cruzando: as mulheres gostam
de provocação
Saboreando o privilégio
seu livro solta as folhas
Aí então ela percebeu que seu olho corria
veloz pelo museu e só parava em três,
desprezando como uma ignorante os outros
grandes. E ficou feliz e muito certa com a
volúpia da sua ignorância. Só e sempre procura
essas frases soltas no seu livro que conta história
8



que não pode ser contada.
Só tem caprichos
É mais e mais diária
– e não se perde no meio de tanta e tamanha
Companhia
*
Voando com o pássaro

Ana Cristina Cesar




•

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor
                          [ (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os
                          [ cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.
9



*
SONETO

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?


*

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
*
FLORES DO MAIS
10




devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
*
O HOMEM PÚBLICO N. 1

Tarde aprendi
11



bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.


•

Tenho uma folha branca
     e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
12



     e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
      e limpa à minha espera:
*
Fagulhas


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que
os ares me beijavam.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.

Eu queria até mesmo
sabe ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
13



Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
*
Samba-canção

Tantos poemas que perdi
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone — taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
14



 arranhando na garganta,
 malandra, bicha,
 bem viada, vândala,
 talvez maquiavélica,
 e um dia emburrei-me,
 vali-me de mesuras
 (era uma estratégia),
 fiz comércio, avara,
 embora um pouco burra,
 porque inteligente me punha
 logo rubra, ou ao contrário, cara
 pálida me desconhece
 o próprio cor-de-rosa,
 e tantas fiz, talvez
 querendo a glória, a outra
 cena à luz de spots,
 talvez apenas teu carinho,
 mas tantas, tantas fiz...
 *
 Protuberância



  Este sorriso que muitos chamam de boca
  É antes um chafariz, uma coisa louca
  Sou amativa antes de tudo
  Embora o mundo me condene
  Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)
  Se nos determos amanhã
  Pelo menos não haverá necessidades frugais nos
espreitando
15



  Quem me emprestar seu peito na madrugada
  E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
  Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
  E repitamos a amadora sou
  Armadora decerto atrás das portas
  Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me
detém
  É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
  O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
  Fecham sobre si mesmas
  No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma
rainha
  Rainha de quem, quê, não importa
  E se eu morrer antes disso
  Não verei a lua mais de perto
  Talvez me irrite pisar no impisável
  E a morte deve ser muito mais gostosa
  Recheada com marchemélou
  Uma lâmpada queimada me contempla
  Eu dentro do templo chuto o tempo
  Um palavra me delineia
  VORAZ
  E em breve a sombra se dilui,
  Se perde o anjo.
  *
  Protuberância



 Este sorriso que muitos chamam de boca
 É antes um chafariz, uma coisa louca
16



  Sou amativa antes de tudo
  Embora o mundo me condene
  Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)
  Se nos determos amanhã
  Pelo menos não haverá necessidades frugais nos
espreitando
  Quem me emprestar seu peito na madrugada
  E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
  Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
  E repitamos a amadora sou
  Armadora decerto atrás das portas
  Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me
detém
  É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
  O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
  Fecham sobre si mesmas
  No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma
rainha
  Rainha de quem, quê, não importa
  E se eu morrer antes disso
  Não verei a lua mais de perto
  Talvez me irrite pisar no impisável
  E a morte deve ser muito mais gostosa
  Recheada com marchemélou
  Uma lâmpada queimada me contempla
  Eu dentro do templo chuto o tempo
  Um palavra me delineia
  VORAZ
  E em breve a sombra se dilui,
  Se perde o anjo.
  *
17



 Casablanca


 Te acalma, minha loucura!
 Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
 Este som de serra de afiar facas
 não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...


  Estas molas a gemer no quarto ao lado
  Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
  O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no
cinema...


  As chaminés espumam pros meus olhos
  As hélices do adeus despertam pros meus olhos
  Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
  madrugada feita de binóculos de gávea
  e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de
pano
  *
  Que deslize


 Onde seus olhos estão
 as lupas desistem.
 O túnel corre, interminável
 pouco negro sem quebra
 de estações.
 Os passageiros nada adivinham.
18



 Deixam correr
 Não ficam negros
 Deslizam na borracha
 carinho discreto
 pelo cansaço
 que apenas se recosta
 contra a transparente
 escuridão.
 *
 Mocidade Independente

  Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima
sem medir as conseqüências. Por que recusamos ser
proféticas ? E que dialeto é esse para a pequena audiência de
serão ? Voei pra cima : é agora, coração, no carro em fogo
pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São
Paulo, de madrugada, por você e furiosa : é agora, nesta
contramão.
  *
  Sem título

 Sem você bem que sou lago, montanha.
 Penso num homem chamado Herberto.
 Me deito a fumar debaixo da janela.
 Respiro com vertigem. Rolo no chão.
 E sem bravata, coração, aumento o preço.
 *
 O tempo fecha.
 Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
 Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos
 que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
19



 por cigarras! O que faço aqui no campo
 declamando aos metros versos longos e sentidos?
 Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
 sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
 agora sou profissional.
 *
 A Ponto de Partir

  A ponto de
  partir, já sei
  que nossos olhos
  sorriam para sempre
  na distância.
  Parece pouco?
  Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
  A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na
distância.
  Lentes escuríssimas sob os pilotis.
  *
  Um Beijo

 que tivesse um blue.
 Isto é
 imitasse feliz a delicadeza, a sua,
 assim como um tropeço
 que mergulha surdamente
 no reino expresso
 do prazer.
 Espio sem um ai
 as evoluções do teu confronto
 à minha sombra
20



desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
*
Fama e Fortuna

Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de néon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
21



teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
*
Ulysses

E ele e os outros me vêem.
Quem escolheu este rosto para mim?

Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.

Segredos cansados de sua tirania
tiranos que desejam ser destronados

Segredos, silenciosos, de pedra,
sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania:
tiranos que desejam ser destronados.

o mesmo quarto e a mesma hora

toca um tango
uma formiga na pele
da barriga,
rápida e ruiva,

Uma sentinela: ilha de terrível sede.
Conchas humanas.
22



*
Toda Mulher

a coisa que mais o preocupava
naquele momento
era estudo de mulher

toda mulher
dos quinze aos dezoito

Não sou mais mulher.
Ela quer o sujeito
Coleciona histórias de amor.
*
Sete Chaves

Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo
fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio silencioso e origem que não confesso –
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas
*
23



Psicografia

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
*
Poesia

jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência freqüentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta
*
Os Gatos

Localizaste o tempo e o espaço no discurso
que não se gatografa impunemente.
É ilusório pensar que restam dúvidas
e repetir o pedido imediato.
24



O nome morto vira lápide,
falsa impressão de eternidade.
Nem mesmo o cio exterior escapa
à presa discursiva que não sabe.
Nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo
se localiza solto na grafia.
Por mais que se gastem sete vidas
a pressa do discurso recomeça a recontá-las
fixamente, sem denúncia
gatográfica que a salte e cale.

O nome de gato assegura minha vigília
e morde meu pulso distraído
finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos
e patas emergentes. Mas onde repousa

o nome, ataque e fingimento,
estou ameaçada e repetida
e antecipada pela espreita meio adormecida
do gato que riscaste por te preceder e

perder em traços a visão contígua
de coisa que surge aos saltos
no tempo, ameaçando de morte
a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era
marca do meu rosto, garra no meu seio.
*
Deus na Antecâmara
25



Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)


Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sangüinária


(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)


Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero partir ao repartir


filho
pai
e
fogo
DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando
26




HOMEM: ACORDA!

*
Travelling



Tarde da noite recoloco a casa toda em seu

                                     Lugar.

Guardo os papéis todos que sobraram.

Confirmo para mim a solidez dos cadeados.

Nunca mais te disse uma palavra.

Do alto da serra de Petrópolis,

com um chapéu de ponta e um regador,

Elizabeth reconfirma, “Perder

É mais fácil que se pensa”.

Rasgo os papéis todos que sobraram.

“Os seus olhos pecam, mas seu corpo

não”, dizia o tradutor preciso, simultâneo,
27




e suas mãos é que tremiam. “É perigoso”,

ria a Carolina perita no papel kodak.

A câmera em rasante viajava.

A voz em off nas montanhas, inextinguível

fogo domado da paixão, a voz

do espelho dos meus olhos,

negando-se a todas as viagens,

e a voz rascante da velocidade,

de todas as três bebi um pouco

sem notar

como quem procura um fio.

Nunca mais te disse

uma palavra, repito, preciso alto,

tarde da noite,

enquanto desalinho
28



 sem luxo

 sede

 agulhadas

 os pareceres que ouvi num dia interminável:

 sem parecer mais com a luz ofuscante desse

                   mesmo dia interminável
 *
 19 de abril

  Era noite e uma luva de angústia me afagava o pescoço.
Composições escolares rodopiavam, todas as que eu lera e
escrevera e ainda uma multidão herdada de mamãe. Era noite
e uma luva de angústia... Era inverno e a mulher sozinha...
Escureciam as esquinas e o vento uivando... Saí com júbilo
escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia
pura, meninas de saiote que zumbiam nas escadas íngremes.
Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons
eróticos povoando a sala esfumaçada.
  *
  Anônimo

 Sou linda; quando no cinema você roça
 o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais
 quem desejo, que me assa viva, comendo
 coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura
 inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no
29



 cinema é escuro e a tela não importa, só o lado,
 o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste
 sabe onde me encontro até de olhos fechados;
 falo pouco; encontre; esquina de Concentração com
Difusão,
 lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.

 *
 Nada, Esta Espuma

 Por afrontamento do desejo
 insisto na maldade de escrever
 mas não sei se a deusa sobe à superfície
 ou apenas me castiga com seus uivos.
 Da amurada deste barco
 quero tanto os seios da sereia
 *
 Quando entre nós só havia
 uma carta certa
 a correspondência
 completa
 o trem os trilhos
 a janela aberta
 uma certa paisagem
 sem pedras ou
 sobressaltos
 meu salto alto
 em equilíbrio
 o copo d’água
 a espera do café
 *
30




Ana Cristina Cesar
Nasceu em 1952, no Rio de Janeiro. Criou-se
entre Niterói, Copacabana e os jardins
do velho Bennet. Depois de 68, um ano em
Londres, primeiras viagens pelo mundo, e
na volta deu aulas, traduziu, fez letras,
escreveu para revistas e jornais
alternativos, saiu na antologia 26 Poetas
Hoje, de Heloísa Buarque, publicou, pela
Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema,
fez mestrado em comunicação, lançou seus
primeiros livros em edições independentes:
Cenas de Abril e Correspondência
Completa. Dez anos depois, outra vez a
Inglaterra, onde, às voltas com um M.A. em
tradução literária, escreveu muitas cartas e
editou Luvas de Pelica. Ao retornar,
descobriu São Paulo e fixou residência no
Rio. Trabalhou em jornalismo, televisão e
31



escreveu A Teus Pés. Suicidou-se no dia
29 de outubro de 1983.

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  • 1. 1
  • 2. 2 CARTILHA DA CURA As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios. * Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios. * CONVERSA DE SENHORAS Não preciso nem casar Tiro dele tudo o que preciso Não saio mais daqui
  • 3. 3 Duvido muito Esse assunto de mulher já terminou O gato comeu e regalou-se Ele dança que nem um realejo Escritor não existe mais Mas também não precisa virar deus Tem alguém na casa Você acha que ele agüenta? Sr. ternura está batendo Eu não estava nem aí Conchavando: eu faço a tréplica Armadilha: louca pra saber Ela é esquisita Também você mente demais Ele está me patrulhando Para quem você vendeu seu tempo? Não sei dizer: fiquei com o gauche Não tem a menor lógica Mas e o trampo? Ele está bonzinho Acho que é mentira Não começa * SUMÁRIO
  • 4. 4 Polly Kellog e o motorista Osmar. Dramas rápidos mas intensos. Fotogramas do meu coração conceitual. De tomara-que-cáia azul-marinho. Engulo desaforos mas com sinceridade. Sonsa com bom-senso. Antena da praça. Artista da poupança. Absolutely blind. Tesãy do talvez. Salta-pocinhas. Água na boca. Anjo que registra. * A história está completa: wide sargasso sea, azul azul que não me espanta, e canta como uma sereia de papel. *
  • 5. 5 Sem você bem que sou lago, montanha. Penso num homem chamado Herberto. Me deito a fumar debaixo da janela. Respiro com vertigem. Rolo no colchão. E sem bravata, coração, aumento o preço. * ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário nobre do adultério. Separatista protestante. Melindrosa basca com fissura da verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o primeiro side-car anfíbio nos classificados de aluguel. No flanco do motor vinha um anjo encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo para fora (mas meu salto engancha no pedaço de pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás. Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê novela de verdade e meu manto azul dourado mais pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da
  • 6. 6 frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e pernalta. * ENCONTRO DE ASSOMBRAR NA CATEDRAL Frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio. que não é mudez. E não toma medo desta alta compadecida passional, desta crueldade intensa de santa que te toma as duas mãos. * ESTE LIVRO Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur
  • 7. 7 volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça. E cante. Puro açúcar branco e blue. * DUAS ANTIGAS I Vamos fazer uma coisa: escreva cartas doces e azedas Abre a boca, deusa Aquela solenidade destransando leve Linhas cruzando: as mulheres gostam de provocação Saboreando o privilégio seu livro solta as folhas Aí então ela percebeu que seu olho corria veloz pelo museu e só parava em três, desprezando como uma ignorante os outros grandes. E ficou feliz e muito certa com a volúpia da sua ignorância. Só e sempre procura essas frases soltas no seu livro que conta história
  • 8. 8 que não pode ser contada. Só tem caprichos É mais e mais diária – e não se perde no meio de tanta e tamanha Companhia * Voando com o pássaro Ana Cristina Cesar • Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e dos restos do dia, tira da tua boca o punhal e o trânsito, sombras de teus gritos, e roupas, choros, cordas e também as faces que assomam sobre a tua sonora forma de dar, e os outros corpos que se deitam e se pisam, e as moscas que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor [ (não ouças) que se prepara para carpir tua vigília, e os [ cantos que esqueceram teus braços e tantos movimentos que perdem teus silêncios, o os ventos altos que não dormem, que te olham da janela e em tua porta penetram como loucos pois nada te abandona nem tu ao sono.
  • 9. 9 * SONETO Pergunto aqui se sou louca Quem quer saberá dizer Pergunto mais, se sou sã E ainda mais, se sou eu Que uso o viés pra amar E finjo fingir que finjo Adorar o fingimento Fingindo que sou fingida Pergunto aqui meus senhores quem é a loura donzela que se chama Ana Cristina E que se diz ser alguém É um fenômeno mor Ou é um lapso sutil? * olho muito tempo o corpo de um poema até perder de vista o que não seja corpo e sentir separado dentre os dentes um filete de sangue nas gengivas * FLORES DO MAIS
  • 10. 10 devagar escreva uma primeira letra escreva na imediações construídas pelos furacões; devagar meça a primeira pássara bisonha que riscar o pano de boca aberto sobre os vendavais; devagar imponha o pulso que melhor souber sangrar sobre a faca das marés; devagar imprima o primeiro olhar sobre o galope molhado dos animais; devagar peça mais e mais e mais * O HOMEM PÚBLICO N. 1 Tarde aprendi
  • 11. 11 bom mesmo é dar a alma como lavada. Não há razão para conservar este fiapo de noite velha. Que significa isso? Há uma fita que vai sendo cortada deixando uma sombra no papel. Discursos detonam. Não sou eu que estou ali de roupa escura sorrindo ou fingindo ouvir. No entanto também escrevi coisas assim, para pessoas que nem sei mais quem são, de uma doçura venenosa de tão funda. • Tenho uma folha branca e limpa à minha espera: mudo convite tenho uma cama branca
  • 12. 12 e limpa à minha espera: mudo convite tenho uma vida branca e limpa à minha espera: * Fagulhas Abri curiosa o céu. Assim, afastando de leve as cortinas. Eu queria rir, chorar, ou pelo menos sorrir com a mesma leveza com que os ares me beijavam. Eu queria entrar, coração ante coração, inteiriça, ou pelo menos mover-me um pouco, com aquela parcimônia que caracterizava as agitações me chamando. Eu queria até mesmo sabe ver, e num movimento redondo como as ondas que me circundavam, invisíveis, abraçar com as retinas cada pedacinho de matéria viva.
  • 13. 13 Eu queria (só) perceber o invislumbrável no levíssimo que sobrevoava. Eu queria apanhar uma braçada do infinito em luz que a mim se misturava. Eu queria captar o impercebido nos momentos mínimos do espaço nu e cheio. Eu queria ao menos manter descerradas as cortinas na impossibilidade de tangê-las. Eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal. * Samba-canção Tantos poemas que perdi Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone — taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista
  • 14. 14 arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras (era uma estratégia), fiz comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida me desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz... * Protuberância Este sorriso que muitos chamam de boca É antes um chafariz, uma coisa louca Sou amativa antes de tudo Embora o mundo me condene Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro) Se nos determos amanhã Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
  • 15. 15 Quem me emprestar seu peito na madrugada E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio Não sei se me querem, escondo-me sem impasses E repitamos a amadora sou Armadora decerto atrás das portas Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos O círculo se abre em circunferências concêntricas que se Fecham sobre si mesmas No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha Rainha de quem, quê, não importa E se eu morrer antes disso Não verei a lua mais de perto Talvez me irrite pisar no impisável E a morte deve ser muito mais gostosa Recheada com marchemélou Uma lâmpada queimada me contempla Eu dentro do templo chuto o tempo Um palavra me delineia VORAZ E em breve a sombra se dilui, Se perde o anjo. * Protuberância Este sorriso que muitos chamam de boca É antes um chafariz, uma coisa louca
  • 16. 16 Sou amativa antes de tudo Embora o mundo me condene Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro) Se nos determos amanhã Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando Quem me emprestar seu peito na madrugada E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio Não sei se me querem, escondo-me sem impasses E repitamos a amadora sou Armadora decerto atrás das portas Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos O círculo se abre em circunferências concêntricas que se Fecham sobre si mesmas No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha Rainha de quem, quê, não importa E se eu morrer antes disso Não verei a lua mais de perto Talvez me irrite pisar no impisável E a morte deve ser muito mais gostosa Recheada com marchemélou Uma lâmpada queimada me contempla Eu dentro do templo chuto o tempo Um palavra me delineia VORAZ E em breve a sombra se dilui, Se perde o anjo. *
  • 17. 17 Casablanca Te acalma, minha loucura! Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados! Este som de serra de afiar facas não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias... Estas molas a gemer no quarto ao lado Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema... As chaminés espumam pros meus olhos As hélices do adeus despertam pros meus olhos Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada feita de binóculos de gávea e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano * Que deslize Onde seus olhos estão as lupas desistem. O túnel corre, interminável pouco negro sem quebra de estações. Os passageiros nada adivinham.
  • 18. 18 Deixam correr Não ficam negros Deslizam na borracha carinho discreto pelo cansaço que apenas se recosta contra a transparente escuridão. * Mocidade Independente Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as conseqüências. Por que recusamos ser proféticas ? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão ? Voei pra cima : é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você e furiosa : é agora, nesta contramão. * Sem título Sem você bem que sou lago, montanha. Penso num homem chamado Herberto. Me deito a fumar debaixo da janela. Respiro com vertigem. Rolo no chão. E sem bravata, coração, aumento o preço. * O tempo fecha. Sou fiel aos acontecimentos biográficos. Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
  • 19. 19 por cigarras! O que faço aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos? Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional. * A Ponto de Partir A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriam para sempre na distância. Parece pouco? Chão de sal grosso, e ouro que se racha. A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância. Lentes escuríssimas sob os pilotis. * Um Beijo que tivesse um blue. Isto é imitasse feliz a delicadeza, a sua, assim como um tropeço que mergulha surdamente no reino expresso do prazer. Espio sem um ai as evoluções do teu confronto à minha sombra
  • 20. 20 desde a escolha debruçada no menu; um peixe grelhado um namorado uma água sem gás de decolagem: leitor embevecido talvez ensurdecido "ao sucesso" diria meu censor "à escuta" diria meu amor * Fama e Fortuna Assinei meu nome tantas vezes e agora viro manchete de jornal. Corpo dói - linha nevrálgica via coração. Os vizinhos abaixo imploram minha expulsão imediata. Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva nem a primeira história mesmo de terror: no Madame Tussaud o assassino esculpia as vítimas em cera. Virou manchete. Eu guio um carro. Olho a baía ao longe, na bruma de néon, e penso em Haia, Hamburgo, Dover, âncoras levantadas em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo. Nada é nacional. Desço no meu salto, dói a culpa intrusa: ter roubado
  • 21. 21 teu direito de sofrer. Roubei tua surdina, me joguei ao mar, estou fazendo água. Dá o bote. * Ulysses E ele e os outros me vêem. Quem escolheu este rosto para mim? Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo estilete da minha arte tanto quanto eu temo o dele. Segredos cansados de sua tirania tiranos que desejam ser destronados Segredos, silenciosos, de pedra, sentados nos palácios escuros de nossos dois corações: segredos cansados de sua tirania: tiranos que desejam ser destronados. o mesmo quarto e a mesma hora toca um tango uma formiga na pele da barriga, rápida e ruiva, Uma sentinela: ilha de terrível sede. Conchas humanas.
  • 22. 22 * Toda Mulher a coisa que mais o preocupava naquele momento era estudo de mulher toda mulher dos quinze aos dezoito Não sou mais mulher. Ela quer o sujeito Coleciona histórias de amor. * Sete Chaves Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me aconselhas como um marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna. Nem te conheço. Então: É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio silencioso e origem que não confesso – como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas *
  • 23. 23 Psicografia Também eu saio à revelia e procuro uma síntese nas demoras cato obsessões com fria têmpera e digo do coração: não soube e digo da palavra: não digo (não posso ainda acreditar na vida) e demito o verso como quem acena e vivo como quem despede a raiva de ter visto * Poesia jardins inabitados pensamentos pretensas palavras em pedaços jardins ausenta-se a lua figura de uma falta contemplada jardins extremos dessa ausência de jardins anteriores que recuam ausência freqüentada sem mistério céu que recua sem pergunta * Os Gatos Localizaste o tempo e o espaço no discurso que não se gatografa impunemente. É ilusório pensar que restam dúvidas e repetir o pedido imediato.
  • 24. 24 O nome morto vira lápide, falsa impressão de eternidade. Nem mesmo o cio exterior escapa à presa discursiva que não sabe. Nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo se localiza solto na grafia. Por mais que se gastem sete vidas a pressa do discurso recomeça a recontá-las fixamente, sem denúncia gatográfica que a salte e cale. O nome de gato assegura minha vigília e morde meu pulso distraído finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos e patas emergentes. Mas onde repousa o nome, ataque e fingimento, estou ameaçada e repetida e antecipada pela espreita meio adormecida do gato que riscaste por te preceder e perder em traços a visão contígua de coisa que surge aos saltos no tempo, ameaçando de morte a própria forma ameaçada do desenho e o gato transcrito que antes era marca do meu rosto, garra no meu seio. * Deus na Antecâmara
  • 25. 25 Mereço (merecemos, meretrizes) perdão (perdoai-nos, patres conscripti) socorro (correi, valei-nos, santos perdidos) Eu quero me livrar desta poesia infecta beijar mãos sem elos sem tinturas consciências soltas pelos ventos desatando o culto das antecedências sem medo de dedos de dados de dúvidas em prontidão sangüinária (sangue e amor se aconchegando hora atrás de hora) Eu quero pensar ao apalpar eu quero dizer ao conviver eu quero partir ao repartir filho pai e fogo DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE abertos ao tudo inteiro maiores que o todo nosso em nós (com a gente) se dando
  • 26. 26 HOMEM: ACORDA! * Travelling Tarde da noite recoloco a casa toda em seu Lugar. Guardo os papéis todos que sobraram. Confirmo para mim a solidez dos cadeados. Nunca mais te disse uma palavra. Do alto da serra de Petrópolis, com um chapéu de ponta e um regador, Elizabeth reconfirma, “Perder É mais fácil que se pensa”. Rasgo os papéis todos que sobraram. “Os seus olhos pecam, mas seu corpo não”, dizia o tradutor preciso, simultâneo,
  • 27. 27 e suas mãos é que tremiam. “É perigoso”, ria a Carolina perita no papel kodak. A câmera em rasante viajava. A voz em off nas montanhas, inextinguível fogo domado da paixão, a voz do espelho dos meus olhos, negando-se a todas as viagens, e a voz rascante da velocidade, de todas as três bebi um pouco sem notar como quem procura um fio. Nunca mais te disse uma palavra, repito, preciso alto, tarde da noite, enquanto desalinho
  • 28. 28 sem luxo sede agulhadas os pareceres que ouvi num dia interminável: sem parecer mais com a luz ofuscante desse mesmo dia interminável * 19 de abril Era noite e uma luva de angústia me afagava o pescoço. Composições escolares rodopiavam, todas as que eu lera e escrevera e ainda uma multidão herdada de mamãe. Era noite e uma luva de angústia... Era inverno e a mulher sozinha... Escureciam as esquinas e o vento uivando... Saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura, meninas de saiote que zumbiam nas escadas íngremes. Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons eróticos povoando a sala esfumaçada. * Anônimo Sou linda; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no
  • 29. 29 cinema é escuro e a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina de Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta. * Nada, Esta Espuma Por afrontamento do desejo insisto na maldade de escrever mas não sei se a deusa sobe à superfície ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco quero tanto os seios da sereia * Quando entre nós só havia uma carta certa a correspondência completa o trem os trilhos a janela aberta uma certa paisagem sem pedras ou sobressaltos meu salto alto em equilíbrio o copo d’água a espera do café *
  • 30. 30 Ana Cristina Cesar Nasceu em 1952, no Rio de Janeiro. Criou-se entre Niterói, Copacabana e os jardins do velho Bennet. Depois de 68, um ano em Londres, primeiras viagens pelo mundo, e na volta deu aulas, traduziu, fez letras, escreveu para revistas e jornais alternativos, saiu na antologia 26 Poetas Hoje, de Heloísa Buarque, publicou, pela Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema, fez mestrado em comunicação, lançou seus primeiros livros em edições independentes: Cenas de Abril e Correspondência Completa. Dez anos depois, outra vez a Inglaterra, onde, às voltas com um M.A. em tradução literária, escreveu muitas cartas e editou Luvas de Pelica. Ao retornar, descobriu São Paulo e fixou residência no Rio. Trabalhou em jornalismo, televisão e
  • 31. 31 escreveu A Teus Pés. Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.