1. O fogo como instrumento de manejo Parte desse conhecimento foi transmitida aos agricultores e
pecuaristas, porém, ao contrário dos indígenas, seu estilo de
Em épocas remotas, antes do surgimento do homem, as vida sedentário não lhes permitia manter o sistema de
queimadas em ambientes savânicos eram causadas queima em mosaico, nem esperar alguns anos para voltar a
basicamente por raios. Com o domínio do uso do fogo e o queimar o mesmo local, pois necessitavam maximizar,
grande crescimento de suas populações, o homem passou a temporal e espacialmente, os benefícios do fogo. Disso
aumentar muito a frequência das queimadas nesses resultou um aumento na frequência e na extensão das áreas
ambientes, além de alterar a época de ocorrência das queimadas, ocasionando, muitas vezes, a degradação do
queimadas naturais. ambiente, em termos de esgotamento das terras, erosão,
exclusão do estrato arbóreo, extermínio de espécies nativas,
As informações disponíveis revelam que o uso do fogo era infestação por espécies ruderais, dentre outros.
muito difundido entre todos os grupos indígenas que
habitavam os cerrados. Por meio do fogo, eles manipulavam Contudo, o mau uso do fogo não anula os benefícios que
o ambiente e se beneficiavam de diversas maneiras: seu bom uso possa trazer. Nas savanas, o fogo é um
estimulavam a floração e a frutificação de plantas que lhes instrumento de manejo precioso, que pode levar a uma
eram úteis, atraíam e caçavam animais que vinham comer a grande gama de resultados ecológicos, em médio prazo.
rebrota do estrato herbáceo, espantavam animais Lidando com os elementos que compõem o regime de uma
indesejáveis – como cobras –, livravam-se de algumas pestes queimada – frequência, intensidade e época da queima – se
(insetos, ácaros), “limpavam” áreas para instalar suas vilas e pode aumentar ou diminuir a produção de folhas e frutos,
seus cultivos, além de se utilizarem do fogo para sinalização estimular ou excluir determinadas espécies de plantas e
e em rituais religiosos. animais, aumentar ou diminuir os nutrientes disponíveis às
plantas no solo, ralear ou adensar a vegetação arbórea.
Os indígenas tinham grande conhecimento dos efeitos que Assim, o uso adequado e planejado do fogo pode ser uma
queimadas em diferentes épocas do ano, ou de diferentes estratégia de manejo boa e barata para a manutenção de
intensidades, ou ainda em diferentes frequências anuais, pastagens naturais e também de parques nacionais e
podiam ter sobre cada grupo de plantas ou de animais. Por reservas biológicas que se destinam à proteção dos
exemplo, sabiam que, se queimassem o Cerrado todos os ecossistemas do Cerrado.
anos, poderiam prejudicar espécies arbóreas, matando os
indivíduos jovens, mas que, ao queimar a cada 2-3 anos, A aversão ao fogo que hoje se vê nos órgãos ambientais e na
estimulavam a frutificação das arbóreas e davam tempo aos mídia provém de informações equivocadas, que confundem
jovens para que desenvolvessem mecanismos de defesa conceitos válidos para as florestas tropicais com o
contra o fogo (como cortiça grossa); geralmente queimavam funcionamento e a dinâmica do Cerrado, coisas
o Cerrado na época seca, logo após o pequizeiro (Caryocar completamente distintas. É uma pena, pois uma boa
brasiliense) lançar seus brotos (agosto/setembro), a fim de compreensão do papel do fogo e de seus efeitos nos
não danificar sua floração e a produção de frutos, que se ecossistemas de Cerrado, adquirida por meio da combinação
iniciam em outubro, após a primeiras chuvas de verão. A de conhecimentos técnico-científicos gerados por
forma de precisar a época mais adequada para queimar era pesquisadores e do conhecimento empírico acumulado pelos
por meio de algumas espécies indicadoras (aquelas de seu habitantes do Cerrado, possibilitaria a aplicação adequada
interesse), como o pequi, cujo fruto era muito utilizado como dessa ferramenta, com bons resultados para a solução de
alimento e recurso medicinal. Numa escala temporal mais diversos problemas que hoje atingem os cerrados naturais e
refinada, também se guiavam pela formação de nuvens, pelo semi-naturais.
nível dos rios, ou pelo comportamento de alguns animais
para saber quando melhor aproveitar os efeitos do fogo. Em Vânia R. Pivello é professora do Departamento de Ecologia,
geral, queimavam pequenas áreas, ou áreas maiores num do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo
sistema de mosaico, intercalando locais queimados com não-
queimados, que serviam de refúgio à fauna e às espécies de
plantas mais sensíveis ao fogo.