1. O caso Dreyfus
Pródromos
HOMERO SENA
O ambiente de Paris em 1894 era torvamente hostil aos judeus. Os favoritos da massa
anônima, que não raciocina e se deixa sempre arrastar pelos mais audazes, eram
Edouard Drumont da Libre Parole, anti-semita enragé, e Henri Rochefort do
Intransigeant, uma espécie de d'Artagnan-Aretino, famoso por uma série de duelos, em
que fazia da sua destreza de espadachim a ultimaratio do ultraje. A este nem o próprio
Clemenceau escapa; noticiara com pormenores que o Tigrese vendera a LordRosebery e
fora a Londres receber em mão própria o preço da traição.
Drumont iniciara uma campanha pela exclusão dos judeus do exército. Todos os dias a
Libre Parole denunciava à inquietação do povo mais sensível do mundo uma nova e
tenebrosa maquinação dos judeus, empenhados em cavar a ruína da França. Graças a
esse trabalho de infrene demolição, ninguém mais raciocinava: "le Juif, voilà l'ennemi!"
A França, desarmada, sentia-se inquieta ante o preparo alemão e a arrogância do Kaiser.
As classes de 1891 e 1892 haviam sido dispensadas, o que desfalcava o seu exército de
sessenta mil homens. Mercier, ministro da Guerra, era arrastado pela rua da amargura.
A imprensa extremista assegurava que a França estava indefesa e que o ouro alemão
corria a rodo em Paris, aliciando cúmplices e espiões. Foi nessa atmosfera de
desconfianças que estourou como um raio o caso Dreyfus.
A Base do Processo
Em 24 de setembro de 1894 Mercier, ministro da Guerra, recebeu das mãos do coronel
Henry, que ocupava uma posição de destaque no Estado-Maior, uma papeleta de serviço
(bordereau) rasgada em quatro pedaços, colados pelas costas, que se dizia encontrada
no lixo da embaixada alemã. A contra-espionagem francesa conseguira meter um agente
no palácio do conde de Munster. Uma velha francesa, de nome Bastian, conseguira
captar as boas graças e a confiança de uma filha do conde, e sob o pretexto de
arrumações e limpeza metia o nariz em todos os aposentos da embaixada. Juntava todos
os papéis rasgados numa espécie de cartucho e depois os entregava a agentes franceses
que, numa seção especial da polícia, os reconstituíam.
Tal a versão dada ao general Mercier, pelo coronel Henry, o primeiro que tomou
conhecimento do célebre documento, e quem o exibiu já colado e recomposto aos
companheiros.
Eis o texto do bordereau:
"Sem notícias indicando que o Sr. desejava ver-me, mando-lhe contudo, algumas
informações interessantes.
"1º Uma nota sobre o freio hidráulico do 120 e sobre o modo por que se conduziu esse
canhão.
2. "2º Uma nota sobre as tropas de cobertura (algumas modificações serão trazidas pelo
novo plano).
"3º Uma nota sobre uma modificação nas formações de artilharia.
"4º Uma nota relativa a Madagascar.
"5º O projeto do Manual de Tiro da Artilharia de Campanha (14 de março de 1894).
"Este último documento é muito difícil de obter e não o posso ter à minha disposição
senão por poucos dias. O ministro da Guerra distribuiu-lhe um número certo pelos
corpos, que são responsáveis pelo exemplar assim recebido, cada oficial que o retenha
devendo entregá-lo logo após as manobras. Se o Sr. quiser tirar o que lhe interessar e
restituir-me depois, eu o tomarei. A menos que queira que o mande copiar por extenso e
lhe remeta a cópia. Vou partir para as manobras." - E nada mais.
A caligrafia dessa papeleta é bem diversa da de Dreyfus. O primeiro perito chamado,
Gobert, reconheceu-o. Foi então chamado Bertillon, que, contra a mais palpável das
evidências, concluiu pela autoria de Dreyfus. O valor dessa missiva como prova de
acusação era nenhum. Um fato bastava para invalidá-la. Dreyfus não tomara parte nas
manobras de 1894. Além disso não dispunha de elementos para dar informações sobre o
freio hidráulico do 120.
Mas era preciso achar um bode expiatório e esse só podia ser um judeu. O major
d'Aboville nunca simpatizara com Dreyfus. Era um notório anti-semita. Indigita-o ao
coronel Fabre como o criminoso.
Du Paty du Clam tem uma idéia genial. Convoca Dreyfus para comparecer ao EstadoMaior, à noite, em traje comum. Aí ditam-lhe uma carta, onde empregam palavras e
expressões da papeleta. Emociona-se Dreyfus? Está se traindo. Fica indiferente? Está
simulando.
Deu-se, não a primeira hipótese, mas cousa parecida. Dreyfus, ante aquele aparato
insólito, ante aquele grupo de oficiais hostis que o obrigavam, pela calada da noite, num
ambiente soturno, a sentar-se a uma mesa e a escrever um papel, cuja finalidade não
conhecia, surpreende-se. Fica atônito e perplexo. Para que todo aquele aparato, toda
aquela encenação? Que lhe querem? Acusam-no de alguma cousa? Não é preciso, mas...
Surpreendeu-se? Estranhou? Conturbou-se? É um réu confesso. Sai do interrogatório
para a prisão, incomunicável. E começa o seu martírio.
"Hurler avec les loups"
A posição do general Mercier na pasta da Guerra era muito precária. A imprensa
extremista tomara-o à sua conta. Não lhe perdoava o licenciamento das classes de 1891
e 1892. Ia agora pô-lo à prova. Se ficasse a seu lado contra o judeu, dar-lhe-iam tréguas.
Se contribuísse, mesmo do modo mais leve possível, para que a presa lhe escapasse, não
teria quartel. Mercier preferiu hurler avec les loups. Consolidou-se na pasta da Guerra.
A Libre Parole e o Intransigeant passaram a endeusá-lo. Mercier tomou a peito o caso.
De juiz transformou-se em acusador. Chegou ao extremo de conceder interviews, onde
declarava que possuía documentos irrefutáveis da culpabilidade de Dreyfus.
3. O processo Dreyfus, por uma aberração de todos os preceitos da razão que permite a
defesa ampla do acusado, correu em segredo de justiça. A imprensa inglesa insurgiu-se
contra essa violação daquilo que para a livre Inglaterra representa a mais elementar das
garantias individuais. Rui por sua vez pergunta: "Onde está o corpo de delito? Onde a
prova que liga este ao acusado? Quem viu os autos do processo?"
Era inútil porém falar à França a voz da razão. Duvidar da culpabilidade de Dreyfus era
um crime. Francês que o fizesse passaria logo por vendido ao ouro alemão. A imprensa
jacobina velava. Seus artigos são modelos de pressão pelo terror. Um dia a Libre Parole
noticiava que tinham querido comprar o voto de um juiz por um milhão. No outro que a
alta fiança judia resolvera fazer uma caixa de recursos ilimitados para salvar o
criminoso. Apresentava o caso como um prélio em que, de um lado estava a honra da
França e do outro o ouro judeu. "Como hesitar entre a palavra dos bravos oficiais do
nosso exército, educados no culto da honra, e a dos miseráveis que tudo vendem?" perguntava um deles.
Era sob uma atmosfera dessas, sob uma pressão moral dessa força que um pugilo de
homens honestos, mas já inclinados à severidade pela pressão da opinião pública, ia
julgar o caso Dreyfus. O resultado não podia ser outro. O inocente foi condenado.
É indubitável que a campanha contra Dreyfus só tomou as proporções gigantescas que
tomou pelo fato dele ser judeu. O exército francês, (como aliás todo grande exército)
não se pudera eximir de contar nas suas fileiras traidores e espiões. Bem pouco antes,
em outubro de 1890, o tenente Jean Bonnet fora condenado a cinco anos de prisão por
entregar quotidianamente a uma potência estrangeira, de quem recebia uma mesada,
documentos relativos à defesa nacional. E os jornais de Paris silenciaram... O que se deu
com o tenente Jean Bonnet deu-se também com o capitão Guillot, que traiu durante
longos anos. Preso e condenado, abafaram-lhe o crime sob o silêncio. Nenhum dos dois
era judeu...
Não é meu intuito acompanhar passo a passo o processo Dreyfus, que se arrastou por
longos anos antes que justiça fosse feita. Quero apenas frisar que o primeiro articulado,
que lhe sumariou as falhas e previu profeticamente a inocência do acusado foi o de Rui
Barbosa. Aos 7 de janeiro de 1895 (data da sua Carta de Inglaterra), talvez que só a voz
de Demange, seu advogado constituído nos autos, se tivesse ouvido em seu favor. Mas
apenas nos incidentes processuais. Rui precedeu pois aos Bernard Lazare, aos ScheurerKestner, aos Zolas, às grandes consciências que, para honra da França e da espécie
humana, arrancaram o condenado da Ilha do Diabo aos seus verdugos.
Não descreverei o processo Dreyfus, as inúmeras vicissitudes por que passou, a energia
sobre-humana de Lucie Dreyfus, a nobreza do exército francês, encarnada no major
Picquart, resistindo a todos os ódios e preconceitos. Descobriu-se finalmente o autor do
bordereau, o verdadeiro traidor - o major Esterhazy. A França não hesitou em desprezar
as últimas veleidades do ódio de raça e reabilitou integralmente a vítima do maior erro
judiciário do século. Restituiu-lhe o uniforme e as insígnias no mesmo local onde fora
celebrada a trágica cerimônia da degradação. Não entrarei em pormenores. Cabe-me
apenas lembrar que o Brasil foi o precursor dessa vitória da Justiça. Haverá quem o
conteste?
O pagamento de Dreyfus
4. Dreyfus era um homem frio, retraído, tímido e taciturno. Esses traços de caráter,
isolando-o de amigos no exército, devem ter contribuído para a situação de abandono
em que se viu entre os seus camaradas, que o tomavam por orgulhoso e egoísta. Rui não
chegou a conhecê-lo pessoalmente. Está porém que os bons atos têm muitas vezes a sua
recompensa na Terra.
Passaram-se anos. O galé da Ilha do Diabo, absolvido e reintegrado no exército francês,
estava em 1907 na Suíça recuperando a saúde perdida no presídio. Conversando com
um diplomata português, representante de seu país na Conferência da Paz em Haia,
disse-lhe que sabia que Rui Barbosa fora "o seu primeiro defensor" e mostrou desejos
de conhecê-lo.
Rui nunca reivindicara esse título. Considerava a sua intervenção, quase ignorada no
cenário da luta, sem vantagem prática para Dreyfus. Habituado a tudo renunciar, se se
deu ao trabalho de cotejar a data da sua Carta com a das outras defesas, nunca lhe
reivindicou a antecedência. Contudo na Inglaterra, aparecia de longe em longe a menção
do fato. A Tribuna de Londres a 6 de junho de 1907, referindo-se ao embaixador do
Brasil em Haia, comentou: "o homem que dizem ter sido o primeiro defensor de
Dreyfus".
Era eu secretário da Conferência de Haia e estava contrariadíssimo com a campanha de
William T. Stead, no seu jornal Le Courrier de la Conférence contra o nosso
embaixador. Tanto mais quanto aquele, a maior força da opinião no seu tempo,
distinguindo-me com uma intimidade notória, deixava-me numa posição constrangida,
atacando ao chefe da minha embaixada. Procurava eu por todos os meios desfazer no
espírito do meu grande amigo as prevenções contra este. Mas sem resultado. Os
elementos que trabalhavam contra o representante do Brasil gozavam na época, junto a
William T. Stead, de um largo prestígio, cimentado por longos anos de convivência. Só
um concurso quase milagroso de evidências poderia desfazer-lhe as alicantinas.
Stead passava quase todas as manhãs pelo meu apartamento em Kettingstraat, 31 para
almoçarmos juntos no restaurante Van der Pijl, que era perto. Certo dia terminávamos o
almoço. Sentados a uma mesa próxima o marquês de Soveral, o conde de Selir, e o
ministro Alberto d'Oliveira, os três representantes de Portugal. Eu lhe mostrara a
referência da Tribune a que ele fez restrições corteses mas convictas. Súbito passou-me
pela cabeça uma idéia salvadora: "E se eu desse a Stead a prova provada de que o
próprio Dreyfus está de acordo com a Tribune?" Dirigi-me a Alberto d'Oliveira, o
diplomata português que conversara com Dreyfus em Lausanne, e invoquei-lhe o
testemunho, que o atual ministro do Exterior de Portugal com a habitual serenidade, deu
com todos os pormenores e deixou consignada para a história no seu livro PombosCorreios. Sim! O próprio Dreyfus considerava Rui o seu primeiro advogado.
Stead era uma alma de escol, em que vibrava todo o idealismo irlandês. Tinha a religião
da lealdade. Não me disse que se dava por convencido. Mas convencido ficou e com
remorsos das suas injustiças. Volveu para seus informantes a prevenção com que olhara
Rui a quem começou a votar a maior simpatia. Procurei e consegui aproximá-los
embora, a princípio, achasse da parte de Rui, melindrado com o homem que pretendera
alcunhá-lo de Dr. Verbosa, uma grande relutância. Daí em diante o diretor da Review of
Reviews começou a encará-lo com isenção e imparcialidade, terminando por declará-lo
o maior vulto da conferência.
5. Foi assim que, sem o conhecer, Dreyfus pagou a sua dívida para com Rui Barbosa.
Fragmento de Uma voz contra a injustiça: Rui Barbosa e o caso Dreyfus. Rio de
Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987, pp. 18-23.
Homero Sena é autor de A república das letras. 3a.ed., Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1996.