1. A ETERNA MALDIÇÃO
O que será verdade e o que será mentira quando se tenta resgatar a trágica e
fugaz existência de Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont? E o que será verdade
ou fruto de uma delirante imaginação quando mergulhamos nas páginas deste
estranho, anfractuoso e sombrio relato biográfico que leva o título de Cantos de
outono, em que o escritor Ruy Câmara busca recompor o que foi o breve e turbulento
périplo terrestre do autor dos Chants de Maldoror? É pouquíssimo o que se sabe
acerca da vida (e mesmo da obra) de Lautréamont. Filho do cônsul francês em
Montevidéu, François Ducasse, Isidore nasceu na capital uruguaia a 4 de abril de
1846 e faleceu em Paris a 4 de novembro de 1870, aos 24 anos de idade. A não ser
pelas poucas cartas que deixou – às quais Ruy Câmara exaustivamente recorreu -,
quase nada se sabe de concreto sobre a sua existência na capital francesa, supondo-se
vagamente que haja participado dos círculos revolucionários que então agitavam
Paris. Em verdade Lautréamont é o Astro Negro de que Baudelaire e Nerval teriam
sido os mais altos representantes na França. Léon Bloy e Rémy de Gourmont o
tinham na conta de alienado mental, tese considerada insustentável pela crítica
moderna. Não resta dúvida de que Lautréamont encarnou como poucos aquela
condição de poeta maldito tão em voga no século XIX, mas seu satanismo tinha óbvia
origem romântica e pouco abriga daquele caráter luciferino de que é pródiga a
literatura gótica. Talvez Gide o tenha compreendido melhor do que os próprios
surrealistas quando denunciou, em 1905, o que Lautréamont, fingindo-se de “froid” e
“sans être ému”, jamais admitira confessar os motivos psicológicos e a causa da sua
revolta contra todas as convenções da existência do mundo.
A biografia, ou o romance, ou seja o que preferirem definir o texto que se lerá,
de Ruy Câmara parte daquele nada documental a que já aludimos, apoiando-se
estritamente nas beneditinas pesquisas pessoais que o autor levou a cabo em
Montevidéu a na França. Se já é espantoso o que conseguiu reunir o romancista no
que toca a uma documentação que jazia esquecida ou ignorada, mais espantoso ainda
2. é como operou o milagre de conferir tamanha veracidade ficcional a todo esse frio e
distante resíduo biográfico. Lautréamont ressurge vivo e mais maldito do que nunca
nessas páginas de insólito e alucinado memorialismo, e há passagens em que somos
remetidos como cúmplices àqueles momentos de um passado que, embora morto,
insiste em não morrer, como é o caso da viagem marítima que fez Isidore Ducasse,
aos 13 anos de idade, entre Montevidéu e Tarbes, cujo liceu freqüentou, ou o
frustrado encontro que teve com um Baudelaire afásico e moribundo ou, ainda, o
fantástico diálogo que travou com o espectro de Voltaire no Panthéon de Paris. E
terrível é a descrição da morte do poeta, vítima de uma overdose de metileno,
anfetamina, mandrágora, dedaleira, quinino e outras plantas alucinógenas misturadas
ao vinho. Caberia dizer que, em certo sentido, Ruy Câmara renova o gênero da
biografia romanceada na medida em que se deixa intencionalmente “contaminar”
pelo drama existencial e a loucura do biografado, aproximando-se assim de instâncias
anímicas e psicopatológicas que lhe seriam inacessíveis caso seu relato mantivesse
aquela distância histórica e emocional que tanto prezam todos os biógrafos desde
James Boswell. E daí resulta um retrato que se diria táctil e quase sangrento deste até
hoje pouco conhecido Isidore Ducasse, tão explorado pelos estudos psicanalíticos e as
teses existencialistas durante o século XX, que será um dia novamente esquecido e
depois, por várias vezes, outra vez redescoberto, como o foi agora, no limiar do
terceiro milênio, pelo romancista Ruy Câmara nestes esplêndidos e perturbadores
Cantos de outono.
Ivan Junqueira
da Academia Brasileira de Letras