1. Resumo sobre o livro de Marcos
Evangelho de Marcos é o segundo dos quatro evangelhos do Novo
Testamento e um dos três chamados de sinópticos, junto com o
Evangelho de São Mateus e o Evangelho de São Lucas, sendo dividido
em 16 capítulos.
Como é em geral reconhecido, o Evangelho segundo Marcos foi o
primeiro entre os evangelhos canônicos a ser escrito, por volta do
ano de 70 d.C., ano da destruição do Templo pelos Romanos.
Dos sinópticos, é o mais simples e o menor, sendo igualmente aquele
que será provavelmente o mais antigo, servindo de uma possível
fonte para os demais evangelistas, embora contenha 31 versículos a
mais relativos a outros milagres não relatados nos outros evangelhos.
Índice
1 Autoria
o 1.1 A tradição dos pais da Igreja
o 1.2 Evidências textuais internas
o 1.3 Quem foi Marcos?
• 2 Data da composição
o 2.1 Principais teses sobre a data de composição do
Evangelho de Marcos
• 3 Local, destinatários e propósito
• 4 Peculiaridades de estilo e linguagem
• 5 Referências gerais
• 6 Ligações externas
Autoria
Como em nenhum lugar deste evangelho se menciona o nome do seu
autor, trata-se, tecnicamente, de uma obra anônima. Entretanto,
existem elementos extra-bíblicos, além de evidências internas,
suficientes para apontar como seu autor Marcos, ou João Marcos
como era conhecido.
João Marcos (o primeiro nome é hebraico e o segundo grego) teria
sido primo de Barnabé (Cl 4,10), de família levita (At 4,36).
Marcos acompanhou Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária
do apóstolo (At 12,25; 13,5) e depois separou-se deles durante o
2. percurso (At 13,13). Tal fato parece ter irritado Paulo que a princípio
teria se decepcionado com o evangelista.
Na segunda viagem missionária, Paulo rompe com Barnabé porque
este pretendia levar Marcos novamente com o grupo. Devido a isso,
Marcos e Barnabé foram para Chipre sem a companhia do apóstolo
(At 15,36-39).
Porém, na prisão de Paulo, Marcos está com ele novamente (Cl 4,10),
que o cita entre os "seus colaboradores" (Fm 24) e o apóstolo pede
sua ajuda antes de morrer (2Tm 4,11).
Marcos foi também companheiro de Pedro, que o chamava de "meu
filho" (1Pd 5,13) e alguns afirmam que o Evangelho de Marcos teria
sido o resumo dos ensinamentos de Pedro.
Há dúvidas se Marcos conheceu Jesus pessoalmente. Alguns pensam
que seria Marcos o jovem que "fugiu nu" de Mc 14,52 (pois só Marcos
narra este episódio). Existe também a hipótese que tenha sido na
casa da mãe de João Marcos, em Jerusalém, que Jesus celebrou a
última Ceia (14,12-31), já que era um local de oração e acolhida,
pois foi para esta casa que Pedro se dirigiu ao ser libertado da prisão
(At 12,12).
A tradição dos pais da Igreja
A maioria dos estudiosos concorda que tradição eclesiástica mais
antiga, no tocante à origem ou autoria do evangelho de Marcos é
aquela fornecida por Papias, bispo de Hierápolis, cerca do ano 140.
As palavras de Papias sobre a autoria do evangelho de Marcos foram
registradas na obra de Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica,
conforme segue:
"E João, o presbítero, também disse isto: Marcos, sendo o intérprete
de Pedro, tudo o que registrou, escreveu-o com grande exatidão,
não, entretanto, na ordem em que foi falado ou feito por nosso
Senhor, pois não ouviu nem seguiu nosso Senhor, mas, conforme se
disse, esteve em companhia de Pedro, que lhe deu tanta instrução
quanto necessária, mas não para dar uma história dos discursos do
nosso Senhor. Assim Marcos não errou em nada ao escrever algumas
coisas como ele as recordava; pois teve o cuidado de atentar para
uma coisa: não deixar de lado nada que tivesse ouvido nem afirmar
nada falsamente nesses relatos."
Além de Papias e de Eusébio, podemos citar outros importantes
nomes da patrística como defensores da autoria de Marcos, entre
eles:
3. • Irineu, bispo de Lyon:
"Após o falecimento [de Pedro e Paulo], Marcos, o discípulo e
intérprete de Pedro, pessoalmente deixou-nos em forma escrita
aquilo que Pedro proclamara."
• Clemente de Alexandria:
"Assim, quando a palavra divina estabeleceu-se entre os
romanos, o poder de Simão foi extinto e pereceu de imediato,
juntamente com ele próprio. Mas uma grande luz de piedade
iluminou a mente dos ouvintes de Pedro, de modo que não lhes
era suficiente ouvir uma vez nem receber o ensino não escrito
da proclamação divina, mas com todo tipo de exortação
suplicaram a Marcos, cujo Evangelho temos, que, como
companheiro de Pedro, lhes deixasse um registro escrito do
ensino que lhes fora dado verbalmente. Também não
interromperam os apelos até o convencer, tornando-se assim a
causa da história chamada Evangelho segundo Marcos. E eles
dizem que o apóstolo (Pedro), sabendo por revelação do
Espírito o que fora feito, agradou-se com o zelo fervoroso
expresso por eles e ratificou a escritura para que fosse lida nas
igrejas."
• Orígenes:
"Segundo aprendi com a tradição a respeito dos quatro
evangelhos, que são os únicos inquestionáveis em toda a Igreja
de Deus em todo o mundo. (…) O segundo é de acordo com
Marcos, que compôs conforme Pedro explicou a ele, a quem
também reconhece como seu filho em sua Epístola Geral,
dizendo: ‘A igreja eleita na Babilônia vos saúda, como também
Marcos, meu filho’."
Existe ainda o relato de Jerônimo, Justino Mártir e Tertuliano que
defendem a autoria de Marcos. Há ainda um outro documento
intitulado Prólogo Anti Marcionita que também cita Marcos como o
autor deste evangelho.
Evidências textuais internas
As evidências do próprio texto estão de acordo com o testemunho
histórico da igreja primitiva. O autor demonstra grande conhecimento
da região da Palestina e, em particular, a cidade de Jerusalém (11:1 -
"Betfagé", "Betânia" e "Monte das Oliveiras"). Também conhece o
aramaico, a língua da Palestina, como indica o uso que faz dela (5:41
- "talitá cumi"; 7:34 - "efatá"; etc) bem como pela evidência da
influência do aramaico no seu grego. Pela familiaridade com que se
4. refere a costumes dos judeus, o autor revela conhecer muito bem o
povo e as instituições judaicas (1:21 - "sábado" e "sinagoga"; 2:14 -
"coletoria"; 2:16 - "escribas", "fariseus" e "publicanos"; 7:2 a 4 -
"tradição dos anciãos"). Todas estas características apontam um
judeu da Palestina como o autor e, de acordo com Atos 12:12,
Marcos se encaixava bem nesta descrição pois morava em Jerusalém.
Portanto, muito embora os críticos modernos levantem suspeitas
acerca da autoria de Marcos, não há porque duvidar da veracidade
das tradições antigas e dos testemunhos feitos pelos pais da Igreja.
É improvável que Marcos era apenas um secretário ou um
amanuense de Pedro. Muito embora não fosse um dos 12 discípulos
de Jesus, é patente que Marcos possuía conhecimento dos fatos
narrados. Concluí-se, portanto, que Marcos não escreveu seu
evangelho apenas como um trabalho fruto do ditado de Pedro, antes,
empresta seu estilo e sua própria narrativa ao texto sagrado. Por
outro lado, existem várias evidências internas ao texto deste
evangelho que apontam uma forte influência de Pedro sobre os
escritos de Marcos:
• O evangelho começa, logo após uma pequena preparação, com
a chamada de Pedro, sem referência à natividade de Jesus;
• Este evangelho focaliza o ministério de Jesus na Galiléia, e mais
especialmente nos arredores de Cafarnaum, cidade de Pedro;
• A vividez da narrativa indica que são experiências pessoais de
uma testemunha ocular;
• São omitidos alguns pormenores que destacam a pessoa de
Pedro, como sua confissão em Cesaréia de Filipe e sua
experiência de andar sobre o mar;
• As derrotas de Pedro, especialmente a sua negação a Jesus, é
relatada minuciosamente.
Papias deixou claro que o Evangelho de Marcos não apresenta a
narrativa dos fatos em ordem cronológica e, segundo o Novo
Comentário da Bíblia, "aparentemente, o evangelho segue um ordem
homilética, em vez de cronológica".
Quem foi Marcos?
Alguns estudiosos acreditam que João Marcos, ou simplesmente
Marcos, como ficou conhecido, tivesse aproximadamente 20 anos de
idade, ou fosse cerca de 10 a 15 anos mais jovem que os discípulos
na época da prisão e crucificação de Jesus.
O seu nome João vem do grego Ioannes (IwannhV), derivado do
hebraico Yohanan, que significa "Yahweh tem sido gracioso". Seu
segundo nome, Marcos, tem origem no latim e significa "martelo
grande".
5. Seu primo era Barnabé (Cl 4:10a), que aparentava possuir bens, pois
vendeu um campo e depositou o dinheiro aos pés dos discípulos (At
4:36,37) logo no início da igreja em Jerusalém.
"Saúda-vos Aristarco, prisioneiro comigo, e Marcos, primo de
Barnabé (…)" – Colossenses 4:10(a)
"José, a quem os apóstolos deram o sobrenome de Barnabé,
que quer dizer filho da exortação, levita, natural de Chipre,
como que tivesse um campo, vendendo-o, trouxe o preço e o
depositou aos pés dos apóstolos" – Atos 4:36,37
Marcos era filho de Maria (At 12:12), uma mulher de posses, visto
que era dona de casa e tinha escravos. Como o nome do marido de
Maria não é mencionado, supõe-se que ela era viúva. Sua família
teve, possivelmente, uma grande importância no princípio da Igreja
Cristã em Jerusalém. Merrill Tenney fala da possibilidade de a casa de
Marcos ser o mesmo lugar do Cenáculo, lugar onde os discípulos se
reuniram para a última ceia pascal com Jesus (Mc 14:15).
"Considerando ele a sua situação, resolveu ir à casa de Maria,
mãe de João, cognominado Marcos, onde muitas pessoas
estavam congregadas e oravam" - Atos 12:12
"E ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobiliado e pronto;
ali fazei os preparativos." – Marcos 14:15
Ele foi levado ao ministério por Barnabé, juntamente com Paulo, de
Jerusalém a Antioquia (At 12:25). Da Antioquia, viaja como auxiliar
de Barnabé e Paulo até o Chipre (At 13:5), no início da 1ª viagem
missionária. Mas, quando saíram de Chipre com destino a Perge, na
Ásia, João Marcos abandona a comitiva e retorna a Jerusalém (At
13:13).
"Barnabé e Saulo, cumprida a sua missão, voltaram de
Jerusalém, levando consigo a João, apelidado Marcos." - Atos
12:25
"Chegados a Salamina, anunciavam a palavra de Deus nas
sinagogas judaicas; tinham também Marcos como auxiliar." -
Atos 13:5
"E, navegando de Pafos, Paulo e seus companheiros dirigiram-
se a Perge da Panfília. João, porém, apartando-se deles, voltou
para Jerusalém." - Atos 13:13
A atitude de Marcos deixa Paulo muito desgostoso e, mais tarde,
depois do Concílio de Jerusalém (At 15), por ocasião dos preparativos
para a 2ª viagem missionária, Barnabé propõe novamente a
companhia de Marcos, o que foi prontamente recusado por Paulo,
causando uma grande desavença entre os dois. Barnabé e Paulo se
6. separam. Marcos vai com Barnabé para o Chipre, enquanto que Paulo
escolhe a Silas e parte para a Ásia (At 15:37-40).
"E Barnabé queria levar também a João, chamado Marcos. Mas
Paulo não achava justo levarem aquele que se afastara desde a
Panfília, não os acompanhando no trabalho. Houve entre eles
tal desavença, que vieram a separar-se. Então, Barnabé,
levando consigo a Marcos, navegou para o Chipre. Mas Paulo,
tendo escolhido a Silas, partiu encomendado pelos irmãos à
graça do Senhor." - Atos 15:37-40
Anos mais tarde, Marcos e o apóstolo Paulo encontram-se
reconciliados (Cl. 4:10). Na carta a Filemom, o apóstolo Paulo o
reconhece como um dos seus colaboradores (Fl 23,24) e, na segunda
epístola a Timóteo, Paulo, na sua segunda prisão em Roma, exorta o
jovem pastor a trazer-lhe Marcos, pela sua utilidade no ministério (2
Tm 4:11).
"Saúda-vos Aristarco, prisioneiro comigo, e Marcos, primo de
Barnabé (sobre quem recebestes instruções; se ele for ter
convosco, acolhei-o)." – Colossenses 4:10
"Saúdam-te Epafras, prisioneiro comigo, em Cristo Jesus,
Marcos, Aristarco, Demas e Lucas, meus colaboradores." -
Filemom 23,24
"Somente Lucas está comigo. Toma contigo Marcos e traze-o,
pois me é útil ao ministério" - 2 Timóteo 4:11
Em Babilônia (seria uma alusão a Roma?) já se encontra junto ao
apóstolo Pedro, por intermédio de quem reúne todos as anotações e
demais subsídios necessários para a elaboração do primeiro dos
evangelhos.
"Aquela que se encontra em Babilônia, também eleita, vos
saúda, como igualmente meu filho Marcos." - 1 Pedro 5:13
Uma tradição preservada por Eusébio diz que Marcos fundou as
Igrejas de Alexandria:
"Dizem que este Marcos, sendo o primeiro a ser enviado ao
Egito, ali proclamou o evangelho que também pusera por
escrito e foi o primeiro a estabelecer Igrejas na cidade de
Alexandria. O número de homens e mulheres convertidos desde
o início foi tão grande, e tão extraordinária a disciplina e a
austeridade filosófica deles que Filo achou por bem descrever a
conduta, as assembléias, as refeições e todo o modo de viver
deles."
7. Existem algumas relatos interessantes no texto deste evangelho que
podem nos auxiliar a conhecer melhor o seu autor:
• Seria Marcos o jovem que testemunhou a prisão de Jesus (Mc
14:51,52)? Este é um dos relatos que são encontrados somente
neste evangelho. Se admitirmos este hipótese como
verdadeira, Marcos seria aproximadamente 10 a 15 anos mais
jovem que os discípulos, testemunha ocular ou conhecedor de
fatos por ele narrados.
• Somente no evangelho de Marcos é que encontramos a
informação de que os filhos de Simão Cireneu (aquele que foi
forçado a carregar a cruz de Jesus) chamavam-se,
respectivamente, Alexandre e Rufo (Mc 15:21). Isto poderia
indicar uma relação de conhecimento ou amizade entre Marcos
e os filhos de Simão, reforçando a hipótese de que Marcos seria
um jovem judeu habitante de Jerusalém por ocasião da prisão e
crucificação de Jesus.
Data da composição
Qual teria sido a data exata em que Marcos escreveu e publicou seu
evangelho? Infelizmente não podemos ter certeza.
Os principais estudiosos contemporâneos divergem entre si nas
conclusões a respeito da data em que este evangelho foi escrito, mas
todas as teses sobre a época de sua elaboração não apresentam uma
variação superior a um período de 25 anos, isto é, todas as teses
sobre a data mais adequada deste texto estão concentradas entre os
anos 45 a 70 d.C, entretanto, a data mais provável deve ficar entre
48 a 68 d.C. aproximadamente.
Por causa da profecia sobre a destruição da cidade de Jerusalém, sua
data é anterior ao ano 70 d.C., ano em que esta profecia se cumpriu
literalmente com a destruição da Cidade Santa pelo general romano
Tito.
O Pastor Eneas Tognini, em sua obra Janelas para o Novo Testamento
cita os estudiosos A.T. Robertson e Harnack. Este último aponta a
data do evangelho de Marcos entre 50 e 55 d.C., "época em que já
circulavam as logia de Mateus e as epístolas aos Gálatas, 1ª e 2ª aos
Tessalonissences". Thomas Nelson, em sua obra "Nelson’s Complete
Book of Bible Maps and Charts" menciona como data aproximada o
intervalo entre os anos 55 a 68 d.C.
Estes mesmos estudiosos contemporâneos, entretanto, concordam
que o evangelho de Marcos é o mais antigo dos 4 evangelhos.
Antigamente as opiniões a este respeito eram outras, visto que o fato
8. do evangelho de Marcos aparecer como o 2º livro do Novo
Testamento, isto é, vir depois do evangelho de Mateus, deve-se à
crença dos primeiros estudiosos do Novo Testamento (especialmente
Jerônimo) de que Marcos era um resumo do Evangelho de Mateus,
por não incluir muito da narrativa presente neste último.
Principais teses sobre a data de composição do
Evangelho de Marcos
Como já foi dito, há correntes que defendem datas diferentes sobre a
publicação de Marcos, onde duas delas se destacam das demais. A
questão principal que divide as opiniões dos estudiosos e
especialistas é a seguinte: Marcos teria escrito seu evangelho antes
ou depois da morte de Pedro? Como também não podemos
determinar precisamente a data de sua morte, que deve ter ocorrido
aproximadamente entre os anos 64 a 67 da era comum, durante a
época das perseguições de Nero. a datação do Evangelho de Marcos
fica um pouco mais complicada. Esta discordância vem desde a época
apostólica.
Em sua obra Contra as Heresias - Cap.3, Verso 1:1, Irineu defende a
tradição antiga dizendo que Marcos escreveu seu evangelho "depois
da morte de Pedro e Paulo" (vide citação na p. 5). Segundo esta tese,
o Evangelho de Marcos teria sido escrito entre 65 a 68 da era
comum.
Clemente de Alexandria afirma que o evangelho de Marcos foi escrito
ainda em vida de Pedro, e autorizado pelo próprio apóstolo para a
leitura nas igrejas (vide citação na p. 5), conforme o relato de
Eusébio – História Eclesiástica (Livro 2 – Cap. 15). Ainda segundo
Eusébio, este relato de Clemente é confirmado por Papias, bispo de
Hierápolis. Orígines (225 d.C.), anos mais tarde, também afirma que
o evangelho de Marcos escreveu seu livro como Pedro lho ai
explicando. Os que apoiam suas teses nos relatos de Clemente e
Orígines defendem que este evangelho teria sido escrito entre 55 a
60 d.C.
Local, destinatários e propósito
O local de origem mais aceito pelos estudiosos para a elaboração do
Evangelho de Marcos é a cidade de Roma. Os destinatários, portanto,
seriam os cristãos daquela cidade - os gentios romanos.
De fato, Marcos omite muitas informações, presentes em outros
evangelhos, que não tinham muito significado para os gentios: a
genealogia de Jesus, o cumprimento das profecias sobre Sua missão
messiânica, referências da Lei Mosaica e a descrição de costumes
9. judaicos, exceção feita em 7:1-23 [3,4], onde a explicação sobre a
purificação dos judeus auxilia o leitor na compreensão dos fatos.
O texto de Marcos é repleto de palavras e expressões que
demonstram que seu público alvo não era da Palestina. Utiliza várias
palavras em latim (latinismos), preocupa-se em explicar e não
apenas citar, como já foi dito acima, determinados costumes e
instituições judaicas (judaísmos), além de traduzir palavras do
aramaico (aramaísmos), que era língua utilizada na região da
Palestina:
Latinismos
• "modius" → "alqueire" (4:21)
• "speculator" → "executor" (6:27)
• "census" → "tributo" (12:14)
• "quadrantis" → "quadrante" (12:42)
• "pretorium" → "pretório" (15:16)
• "centurio" → "centurião" (15:39, 44,45)
Judaísmos
• "sábado" e "sinagoga" (1:21)
• "coletoria" (2:14)
• "escribas", "fariseus" e "publicanos" (2:16)
• "tradição dos anciãos" (7:2-4)
Aramaísmos
• "Boanerges" → "Filhos do trovão" (3:17)
• "talita cumi" → "Menina, eu te mando, levanta-te" (5:41)
• "efatá" → "Abre-te" (7:34)
• "Gólgota" → "Lugar da Caveira" (15:22)
Seu texto utiliza um estilo mais voltado à mentalidade romana, que
não gostava de abstrações nem fantasia literária. Marcos não
apresenta a genealogia de Jesus, pois segundo Russell Shedd, "os
romanos interessavam-se mais em poder do que em descendência"
Por que este evangelho foi escrito? Qual teria sido o propósito de
Marcos ao escrevê-lo? Clemente de Alexandria nos dá o relato a
respeito dos ouvintes de Pedro, romanos que "não interromperam os
apelos até o convencer" [Marcos] para lhes deixar "um registro
escrito do ensino que lhes fora dado verbalmente" (de Pedro).
Segundo o Pastor Enéas Tognini, uma tradição antiga revela que
Pedro pregava aos catecúmenos de Roma ou do oriente, e que
Marcos conservou de forma escrita o que Pedro pregava – "a mão era
10. de Marcos, mas a voz era de Pedro", conclui. Ainda segundo E.
Tognini, o propósito central do evangelho de Marcos era firmar a fé
dos cristãos gentios de Roma, pois o início das perseguições contras
os crentes já haviam começado sob a mão do insano, tirano e cruel
Nero, que foi o imperador romano durante 14 anos (de 54 d.C., após
a morte por envenenamento de Cláudio, até o seu suicídio, em 9 de
junho de 68 d.C.).
Marcos queria encorajar os crentes sofredores e, para tanto, revela a
pessoa de Jesus como o Servo Sofredor (Isaías 53), que veio para
servir, morrer e ressuscitar com a finalidade de salvar o mundo,
incluindo romanos e judeus. Enéas Tognini, em obra citada, declara
que Marcos "pretendia consolar os soldados da cruz: assim como
Jesus sofreu por nós, também precisamos dar testemunho corajoso
acerca Dele, mesmo que tenhamos que pagar isto com a própria
vida".
Peculiaridades de estilo e linguagem
Entre aqueles que avaliam a qualidade e estrutura do texto em
grego, é quase unânime a opinião de que Marcos apresenta o grego
koinê mais inferior do Novo Testamento. A falta de polimento do
grego de Marcos só não é percebida aos leitores de língua portuguesa
devido ao trabalho dos tradutores, que não deixam transparecer os
erros gramaticais encontrados, mesmo que ainda continuem fiéis ao
texto original. Um exemplo disso é o uso abundante da conjunção
grega "kai", traduzida para o português como a conjunção "e". Por
exemplo, dos 45 versículos do original grego do capítulo 1, 35 versos
começam por "kai" (apenas os versos 1, 2, 3, 4, 8, 14, 24, 30, 32 e
45 não começam por esta conjunção no original grego). Dos 16
capítulos deste evangelho, 12 capítulos começam com a conjunção
"kai" e das 88 seções e subseções que compões este livro, 80
começam por "kai". Russell Champlin aponta que Marcos "utiliza-se
de um vocabulário de cerca de 1270 vocábulos, dos quais penas 80
lhe são peculiares. Isto demostra que ele empregou um vocabulário
extremamente comum". entretanto, o que falta a Marcos em estilo,
sobra em riqueza literária. Marcos é uma obra inovadora, vibrante e
cheia de emoções e ação.
Inovadora porque foi Marcos quem criou este novo estilo literário:
Evangelho, que no grego mais recente quer dizer "boas novas", ao
passo que no grego mais antigo, queria dizer "um galardão oferecido
para se levar as boas novas". Conforme declara o Pr. Enéas Tognini,
"trata-se de um testemunho cristão e não exatamente de uma
biografia. E isso serviu de padrão para a Igreja. É como se ele
estivesse expondo material básico para sermões".
11. Vibrante porque o estilo da narração de Marcos é vívido, cheio de
ação, direto e dinâmico. A palavra grega "euthus" (ou "eutheos")
aparece 42 duas vezes neste evangelho, mais do que em todo o
restante do Novo Testamento, e é traduzida no texto como
"diretamente", "imediatamente", "in contineti", "logo", "então",
empregando uma grande velocidade na narração dos fatos. No grego,
o tempo verbal presente aparece 151 vezes, e o tempo imperfeito,
também aparece muitas vezes, e retratam a ação em
desenvolvimento e não simplesmente como um acontecimento.
Cheia de emoções porque ninguém registrou mais as reações
pessoais do que Marcos. Estas reações estão espalhadas ao longo de
todo o evangelho, revelando o sentimento e a emoção dos ouvintes
de Jesus:
• "admirados" (1:27)
• "criticavam" (2:7)
• "medrosos" (4:41)
• "aterrorizada e tremendo" (5:33)
• "perplexos" (6:14)
• "espantados" (7:37)
• "amargamente hostis" (14:1) e mais 22 referências deste tipo
No evangelho de Marcos também estão registrados as ações e
sentimentos de Jesus:
• "olhando em redor (…) com indignação" (3:5)
• "tomando a mão da menina" (5:41)
• "admirou-se da incredulidade deles" (6:6)
• "meteu-lhe os dedos nos ouvidos (…) tocou-lhe na língua"
(7:33)
• "Jesus (…) arrancou do íntimo do seu espírito um gemido"
(8:12)
• "tomou o cego pela mão (…) cuspindo-lhe nos olhos" (8:23)
• "tomando-o pela mão, o ergueu" (9:27)
• "tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as
abençoava" (10:16)
• "fitando-o, o amou e disse" (10:21)
Marcos dá ênfase total à ação, colocando os ensinamentos de Jesus
em segundo plano. Das 70 parábolas ou alocuções parabólicas
registrados em todos os evangelhos, Marcos apresenta apenas 18 e,
em alguns casos, algumas delas compreendem apenas uma frase. Em
contrapartida, concede mais espaço aos milagres do que qualquer
outro evangelho (20 dos 40 milagres registrados nos sinópticos):
• Milagres sobre curas de enfermidades
o Cura da sogra de Pedro (1:31)
12. o Diversas curas em Cafarnaum (1:32-34)
o Cura de um leproso (1:40-45)
o Cura de um paralítico (2:3-12)
o Cura do homem da mão ressequida (3:1-5)
o Cura de uma mulher enferma (5:25-34)
o Cura de um surdo e gago (7:32-35)
o Cura de um cego em Betsaida (8:22-25)
o Cura de Bartimeu, cego de Jericó (10:46-52)
• Milagres sobre a natureza
o Jesus acalma uma tempestade (4:35-41)
o Jesus multiplica os pães e peixes (6:30-44)
o Jesus anda por sobre o mar (6:45-52)
o Jesus multiplica pães e peixes pela segunda vez (8:1:9)
o Jesus amaldiçoa a figueira sem fruto (11:13-14, 20-21)
• Milagres sobre demônios
o Libertação de um endemoninhado em Cafarnaum (1:21)
o Libertação do endemoninhado geraseno (5:1-14)
o Libertação da filha endemoninhada da mulher siro-fenícia
(7:24-29)
o Libertação de um jovem possesso (9:17-27)
• Milagres sobre a morte
o Ressurreição da filha de Jairo (5:35-42)
o Sua própria ressurreição (16:9-11)
Enquanto Marcos narra estes 20 milagres utilizando-se de 53 páginas
do texto grego, Lucas narra a mesma quantidade de milagres
utilizando 93 páginas do texto grego. É o dinamismo da ação do
relato de Marcos.
A palavra lei não é encontrada neste evangelho, ao passo que em
Mateus ocorre 8 vezes, em Lucas 9 vezes e em João ocorre 15 vezes.
Mais de 40% do conteúdo total de Marcos (capítulo 11 em diante) é
dedicado a contar detalhadamente os últimos 8 dias da vida de Jesus.
Dos 661 versículos de Marcos, 600 foram copiados por Mateus. Ao
todo, Lucas e Mateus aproveitam 610 versículos de Marcos. Lucas
usou 60% dos versículos de Marcos, portanto, menos do que Mateus,
mas procurou preservar a mesma ordem de palavras utilizada por
Marcos.
Mesmo sendo a base textual utilizada pelos outros dois evangelhos
sinópticos (Mateus e Lucas), o evangelho de Marcos ainda assim
apresenta conteúdos exclusivos, como a parábola da semente em
13. desenvolvimento (4:26-29) e os milagres do surdo-mudo (7:31) e do
cego (8:22).
Referências gerais
• CESARÉIA, Eusébio de; História Eclesiástica, Editora CPAD, 1ª
Edição, 1999
• CHAMPLIM, Russell Norman; O Novo Testamento Interpretado
Versículo a Versículo, Editora Candeia, 1995
• CORNELL, Tim e MATTHEWS, John; Roma – Legado de um
Império, Edições del Prado, 1996
• DAVIDSON, F.; O Novo Comentário da Bíblia, Edições Vida
Nova, 1985
• HARRISON, Everett F.; Comentário Bíblico Moody, Imprensa
Batista Regular, 1984
• IRINEU; Contra as Heresias,
• MCNAIR, S. E.; A Bíblia Explicada, Editora CPAD, 9ª Edição,
1987
• NELSON, Thomas; Nelson’s Complete Book of Bible Maps and
Charts, Thomas Nelson Publishers, 1993
• TENNEY, Merrill C.; O Novo Testamento – Sua Origem e
Análise, Editora Vida Nova, 3ª edição, 1995
• THOMPSON, Frank Charles; Bíblia de referência Thompson,
Editora Vida, 1992
• TOGNINI, ENÉAS; Janelas para o Novo Testamento, Edições
Louvores do Coração, 1992
Marcos, o segundo dos relatos do Evangelho, é talvez o menos lido e
menos apreciado dos quatro. Todavia, ele faz uma apresentação
poderosa da vida de Cristo.
INTRODUÇÃO AO LIVRO DE MARCOS
O Autor do Livro
O autor não é citado no Livro de Marcos, mas a tradição antiga (não
inspirada) atribuiu o livro a João Marcos. O historiador da igreja
Eusébio (ca. 260–340 d.C.) citou Papias (ca. 60–150 d.C.), que se
referiu a Marcos como o escritor do livro. Eusébio também indicou
que Clemente de Alexandria e Orígenes (ca. 185–254 d.C.)
14. acreditavam que Marcos tivesse escri¬to o relato1. Irineu (ca. 140–
195 d.C.) confirmou essa tradição em seus escritos2.
O nome hebraico de João Marcos era João (“o Senhor tem sido
gracioso”), mas o conhecemos me¬lhor por seu nome romano,
Marcos (“guerreiro”). É provável que ele vivesse em Jerusalém na
casa de Maria, sua mãe (Atos 12:12). É possível que ele tenha sido
uma testemunha ocular de alguns dos acontecimentos da vida de
Cristo que ocorreram
1 Eusébio, História Eclesiástica 3.39; 2.15; 6.25. Papias foi um dos
“Pais Apostólicos”. Seus escritos continham infor¬mações
importantes para as tradições e lendas orais dos tempos apostólicos,
mas eles só sobrevivem nos fragmentos preservados pelos
historiadores posteriores Eusébio e Irineu. Eusébio, um escritor de
grande erudição e produtividade, foi o primeiro historiador a
descrever o desenvolvimento da igreja. Clemente de Alexandria, um
teólogo grego, é conside¬rado um dos “Pais da Igreja”. Orígenes,
chamado de “pai da pregação expositiva” é visto como o pregador
mais impor¬tante do terceiro século.
2 Irineu, Contra Heresias 3.1.1. Irineu, pupilo de Policar¬po, “bispo”
de Esmirna, é considerado o teólogo mais impor¬tante do segundo
século.
em Jerusalém. Muitos escritores acreditam que em Marcos 14:51 e
52 João Marcos estava se referindo a si próprio. Marcos foi
evidentemente convertido pela pregação de Pedro (1 Pedro 5:13).
Mais tarde, a casa de sua mãe passou a ser um local de reunião para
os cristãos (Atos 12:12)3.
Colossenses 4:10 identifica Marcos como pri¬mo de Barnabé. Embora
ainda jovem, ele começou a viagem com Paulo e Barnabé na segunda
viagem missionária de Paulo, mas logo desistiu de continu¬ar (Atos
12:25; 13:5, 13), deixando Paulo muitíssimo descontente (Atos
15:37–39). Barnabé ainda acredi¬tava no potencial de Marcos e o
levou numa viagem de pregação a Chipre (Atos 15:39). Mais tarde,
Mar¬cos trabalhou com Pedro na divulgação do evange¬lho (1 Pedro
5:13). Por fim, Marcos trabalhou com Paulo, e o apóstolo contou com
a ajuda dele (Colos¬senses 4:10, 11; Filemom 24; 2 Timóteo 4:11).
Geralmente considerado mais jovem do que Je¬sus e a maioria dos
apóstolos4, alguns estimam que Marcos fosse uns dez anos mais
moço. Juntamente com Timóteo e Tito, ele poderia ser descrito como
um “pregador júnior” da era apostólica. A tradição não inspirada diz
que ele fundou a igreja em Ale¬xandria, no Egito.
15. Marcos teve oportunidades de aprender com muitos homens
inspirados, incluindo Paulo. To¬davia, a tradição antiga (não
inspirada) enfatiza especialmente seu relacionamento com Pedro. As
mesmas fontes que atribuem o Livro de Marcos a
3 É possível que essa casa fosse a locação da última ceia (Marcos
14:12–17) e/ou o lugar onde os apóstolos aguarda¬ram pelo Espírito
Santo que Jesus prometera (Atos 1:4–8, 12).
4 Se Marcos 14:51 e 52 refere-se a João Marcos, isto indica que ele
era mais jovem que os apóstolos.
João Marcos insistem que seu relato adveio de Pe¬dro. Por exemplo,
Papias referiu-se a Marcos como “o intérprete de Pedro”. Disse ele:
…o que ele registrou ele escreveu com grande precisão, todavia, não
na ordem em que foi dito ou feito por nosso Senhor, pois ele não
ouviu nem seguiu nosso Senhor, mas… ele estava na companhia de
Pedro, que lhe deu a instrução necessária, mas não a ponto de
compor uma história dos discursos do nosso Senhor: razão por que
Marcos não errou em nada, escrevendo algumas coisas assim como
as registrou; pois ele foi cuidadosamente atento a uma coisa, não
ignorar nada do que ouvira, nem afirmar nada
falsamente nesses relatos.5
Clemente de Alexandria disse que os ouvintes de Pedro instaram
Marcos a deixar um registro da dou¬trina que Pedro comunicara
oralmente, e que Pedro autorizara a leitura do relato nas igrejas6.
Irineu escre¬veu que “após a morte de Pedro e Paulo, Marcos
en¬tregou-nos por escrito coisas pregadas por Pedro”7.
Uma série de fatos parece confirmar esta antiga tradição: o sermão
de Pedro em Atos 10:36–42 teria servido de esboço para o Livro de
Marcos. Marcos foi
o único escritor do evangelho que registrou as pala¬vras de Marcos
16:7, que mencionam Pedro. O estilo do livro é do depoimento oral
de uma testemunha ocular. (Alguns escritores referem-se a Marcos
como [o relato] contendo “o grego inculto de um falante”.)
O Propósito do Livro
Amaioria acredita que Marcos tenha escrito para um público
romano8. Ele eliminou questões que não interessariam esse público,
16. incluindo genealogias. Ele disse pouco sobre as profecias do Antigo
Testa¬mento. Não deu ênfase ao contexto judaico da vida de Cristo.
Ao introduzir palavras ou costumes ju¬daicos, geralmente as
explicou. Usou expressões latinas onde outros escritores do
evangelho usaram o grego (modius para “alqueire” [Marcos 4:21; ou
“ces¬to” na ERC], census para “tributo” [12:14], speculatorpara
“executor” [6:27] e centurio para “centurião” [15:39, 44, 45], por
exemplo). Ele foi o único escritor do evangelho a mencionar Rufo
(15:21), que era co¬nhecido pelos cristãos de Roma (Romanos
16:13). Aconclusão de Merrill C. Tenney foi que “[o Livro de] Marcos
era apropriado para o leigo de mentalidade romana prática que
estava ainda por evangelizar”9.
5 Eusébio, História Eclesiástica 2.16.
6 Ibid., 3.39.
7 Irineu, Contra Heresias 3.1.1.
8 Veja a lição “Os Quatro Relatos do Evangelho”, nesta edição.
9 Merrill C. Tenney, O Novo Testamento, Sua Origem e Análise. São
Paulo: Edições Vida Nova, 1972, p. 168.
Para agradar esse público, Marcos apresentou Jesus como um homem
de ação. O livro é breve e conciso, o mais curto dos quatro
Evangelhos. Pouco ensino é registrado: há somente quatro parábolas
detalhadas e nenhum discurso extenso. Marcos en¬fatizou os
milagres de Jesus, que saciaram necessida¬des humanas:
considerando seu tamanho, o relato dá mais espaço a milagres do
que qualquer outro relato do evangelho.
O Livro de Marcos tem movimento. Treze dos de¬zesseis capítulos
começam com a palavra “e”. Uma das palavras gregas favoritas do
autor era euthus (ou eutheos), que é traduzida por “logo a seguir”,
“imediatamente” ou “a seguir”. Marcos usou essa palavra quarenta e
duas vezes. Jesus é descrito se movimentando a uma velocidade
sempre crescente rumo ao cumprimento de Sua missão.
Marcos 10:45 é um versículo chave do livro: “Pois o próprio Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida
em resgate por muitos”. Prestemos atenção especial às palavras
“servido” e “servir”. No Livro de Mateus; Jesus é descrito como Rei;
mas no Livro de Marcos, Ele é revelado como um servo. Marcos não
usou nenhum dos títulos divinos para Jesus, e Sua autoridade não foi
enfatizada10. Jesus ministrou11.
17. Marcos Um evangelho de…
• ação
• emoção
• preocupação
• serviço
• cruz
• vivacidade
Obviamente, o propósito principal desse relato inspirado é o mesmo
dos demais Evangelhos: revelar Jesus como o Filho de Deus e nosso
Salvador. O livro começa com as palavras: “Princípio do evangelho de
Jesus Cristo, Filho de Deus” (Marcos 1:1). A palavra “evangelho”
encontra-se doze vezes nos quatro relatos; oito delas estão no Livro
de Marcos. Marcos diferenciou-se dos outros escritores somente
10 Compare o relato de Mateus da grande comissão (Mateus 28:18–
20) com o relato de Marcos (Marcos 16:15, 16).
11 Aqui está um aspecto secundário interessante: Marcos, que
inicialmente falhou como servo, apresentou Jesus como
O Servo perfeito.
quanto à perspectiva: Ele pintou um quadro conciso de Jesus e
deixou o quadro falar por si mesmo.
As Características do Livro
As características do livro estão amplamente relacionadas com sua
provável fonte (Pedro) e seu propósito (apresentar Jesus como
servo).
Como já observamos, Marcos é um evangelho de ação.
Além disso, Marcos é um evangelho de emoção. O livro registra as
emoções e respostas dos públicos de Jesus: eles “se admiraram”
(1:27); criticaram (2:7); ficaram com “grande temor” (4:41); ficaram
confusos (6:14); “maravilharam-se” (7:37); foram hostis (14:1).
Estão registradas vinte e três reações desse tipo. O livro também
registra as emoções de Jesus: Ele fi¬cou “compadecido” (1:41; 6:34;
18. 8:2), condoído (3:5), indignado (10:14), profundamente comovido
(7:34; 8:12), “tomado de pavor e de angústia” (14:33, 34).
Marcos também é um evangelho de preocupação. Jesus preocupou-
Se com a felicidade, a fome, as difi¬culdades, a saúde e a hipocrisia
das pessoas.
Além disso, Marcos é um evangelho de serviço. Jesus socorreu os
estranhos, libertou os mudos, alimentou os famintos e censurou os
radicais.
Assim como os demais relatos, Marcos é um Evangelho da cruz. O
maior serviço de Cristo foi Sua morte na cruz. Quarenta por cento do
Livro de Marcos trata da última viagem a Jerusalém e dos
acontecimentos consecutivos. Marcos só perde para João na
quantida¬de de espaço dedicado a esses acontecimentos.
Finalmente, Marcos é um evangelho de vivaci¬dade. O livro até
relata os gestos pessoais de Jesus. O estilo é vigoroso e comovente.
Alguns o classificaram como “o estilo de um pregador de rua”.
A Data do Livro
O Livro de Marcos evidentemente foi escrito no começo da segunda
metade do primeiro sécu¬lo. Marcos mencionou Alexandre e Rufo
(15:21), aparentemente porque eles eram conhecidos aos seus
leitores. Isto coloca o livro dentro da geração da cruz. Observamos
anteriormente a tradição que vincula o livro a Pedro. Muitos
escritores antigos sugeriram que Pedro verificou o relato de Marcos
antes que este entrasse em circulação. Estima-se que a morte de
Pedro tenha ocorrido entre 65 e 68 d.C.12
12 Alguns escritores primitivos atribuíram à composição do Livro de
Marcos uma data após a morte de Pedro, mas isto pode se referir à
“publicação” do livro (fazendo-se có pias e colocando-as em
circulação).
Hoje, muitos acreditam que Mateus e Lucas copiaram de Marcos, mas
as tradições mais antigas (não inspiradas) colocam Mateus em
primeiro lugar. O comentário de Tenney é relevante:
Se… estes Evangelhos são três diferentes apresentações escritas da
mensagem apostólica acerca do Senhor Jesus Cristo inspiradas pelo
Espírito Santo [e de fato são], tiradas do material comum que os
apóstolos e os seus cooperadores pregavam, há uma boa
possibilidade de que te¬nham sido produzidos simultaneamente.
19. 13 Entre os palpites dados para a data da composi¬ção de Marcos
estão estes: 50–60, 58–65 e 60–70 d.C. Podemos afirmar
seguramente que o livro foi escrito não depois do ano 70 d.C.
As Divisões do Livro
O Livro de Marcos não é fácil de ser esboçado. Marcos não seguiu a
linha teológica de pensamento. Seu relato é um todo, elaborado para
causar um impacto total.
Perspectivas diferentes têm sido sugeridas para
o esboço do livro: John Phillips usou os pensamentos chaves de
Marcos 10:45 para fazer suas divisões:
1) O Servo Dá Sua Vida em Serviço (capítulos 1—10);
2) O Servo Dá Sua Vida em Sacrifício (capítulos 11—16)
14. Henrietta Mears ampliou essa idéia e sugeriu uma divisão em sete
partes usando a palavra “servo”:
1) A Vinda e a Prova Servo (capítulo 1);
2) O Servo Trabalhando (capítulos 2 e 3), e assim por diante
15. Alguns dividem o livro pelas duas principais regiões em que Jesus
trabalhou: Galiléia e Judéia. A divisão em sete partes feita por
Tenney fez uma decomposição mais detalhada das regiões por onde
Jesus viajou16.
Usaremos uma combinação dessas idéias e outras no esboço
seguinte. Tenhamos em mente, porém, que o Livro de Marcos deve
ser considerado como um todo.
13 Tenney, p. 157. 14John Phillips, Exploring the Scriptures
(“Explorando as Escrituras”). Londres: Victory Press, 1965, p.
200.15Henrietta C. Mears, Estudo Panorâmico da Bíblia. São Paulo:
Editora Vida, 1982, p. 341–42.16Tenney, pp. 159–60.
ESBOÇO DO LIVRO DE MARCOS
I. O SERVO PREPARADO PARA SERVIR (1:1–13).
A. Título e propósito (1:1).
B. O caminho preparado por João (1:2–8).
20. C. Jesus preparado por Seu batismo (1:9–11).
D. Jesus preparado por Sua tentação (1:12, 13).
E. Em tudo isto, Jesus recebeu Suas credenciais. Ele foi…
1 Endossado por João.
2 Ungido pelo Espírito Santo.
3 Provado pelo diabo.
II. O SERVO COMPROMETIDO COM O SERVIÇO (1:14—8:30).
A. O começo do serviço (1:14—2:12).
1 Este período foi basicamente na Galiléia, para onde Jesus foi
após João ser morto (1:14, 15).
2 Jesus chama quatro pescadores (1:16–20).
3 Um grande dia em Cafarnaum (1:21–34) (o começo de uma
lista de curas).
4 Um passeio geral pela Galiléia, incluindo a cura de um leproso
(1:35–45).
5 Outro grande dia em Cafarnaum, incluindo a cura do homem
que desceu pelo telhado (2:1–12). A lista de curas culminada pelo
poder de Jesus para perdoar pecados.
B. Começam as críticas (2:13—3:35).
1 Ensinando à beira-mar (2:13).
2 O chamado de Levi e comendo com pecadores (e críticas)
(2:14–17).
3 Críticas referentes ao jejum (2:18–22).
4 Críticas referentes ao sábado (2:23—3:5).
5 Uma conspiração pelos fariseus e herodianos (3:6).
21. 6 O ministério de Jesus é alterado: escolhe os doze e se ocupa a
ponto de até Seus parentes pensarem que Ele está “fora de Si” (3:7–
21).
7 A acusação de que Jesus fez Seus milagres pelo poder de
Belzebu; ensino sobre o pecado contra o Espírito Santo (3:22–30).
8 A mãe e os irmãos de Jesus identificados
como os que fazem a vontade de Deus (3:31–35).
C. O desafio do serviço. (Conflitos ininterruptos, retiradas
ocasionais—do outro lado do
1 Ensinando de um barco por parábolas: as parábolas do
semeador, da candeia, da semente germinando e do grão de
mostarda (4:1–34).
2 Atravessando o mar da Galiléia (e acalmando uma tempestade)
— até Decápolis (4:35–41).
3 Curando o endemoninhado geraseno (e a história dos dois mil
porcos mortos) (5:1–20).
4 Atravessando o mar de novo e a cura da filha de Jairo (mais “o
milagre parentético”) (5:21–43).
5 Indo para Nazaré e sendo rejeitado (Jesus chamado de
carpinteiro) (6:1–6).
6 Enviando os doze numa comissão limitada (chamando a
atenção de Herodes—um passo perigoso considerando
o que esse rei fizera a João) (6:7–32).
7. Indo com Seus discípulos para um lugar deserto e seguido por
multidões; cinco mil homens alimentados (um acontecimento
significativo) (6:33–44).
8. Usando o mar como calçada (6:45–52)—mais o ensino geral e
cura na região de Genesaré (6:53–56).
22. 9. Crítica por comer sem lavar as mãos—e um discurso sobre
tradicionalismo (7:1–23).
10. Retirada para Tiro e Sidom—e a história da cura da filha de uma
siro-fenícia
(7:24–30).
11. Retirada para Decápolis:
Ensino geral e cura (7:31–37)
Quatro mil homens alimentados (8:1–9).
12. De volta à Galiléia (Dalmanuta na costa ocidental do mar da
Galiléia)—um sinal esperado, e advertência contra “o fermento dos
fariseus” (8:10–21).
13. Retirada para Betsaida—e um cego curado (8:22–26).
14. Retirada para Cesaréia de Filipe—e a grande confissão (8:27–
30) (um clímax do ministério de Jesus).
III. O SERVO EM DIREÇÃO AO MAIOR ATO DE SERVIDÃO: MORRER
NA CRUZ (8:31—15:47).
A. O encerramento do Seu ministério (8:31— 10:52).
1. Tentando preparar os discípulos para Sua morte.
mar até Decápolis, Fenícia, Cesaréia de Fi ipe, e outros lugares.) -a.
Dizendo aos discípulos que Ele morreria, e incentivando-os a
tomarem suas cruzes (8:31—9:1). (Veja 9:1.)
A verdadeira glória de Jesus mostrada na transfiguração;
predita a ressurreição (9:2–13).
23. Cura de um menino que Seus discípulos não conseguiram curar
(9:14–29).
Ensino adicional sobre Sua morte (9:30–32).
A total incompreensão dos discípulos; uma discussão sobre
quem sentaria ao lado do Senhor (9:33–50).
2. Partindo para Jerusalém.
a. Na Judéia e além do Jordão (Peréia) (10:1).1) O desafio de Jesus
sobre casamento e divórcio (10:2–12).
2) Abençoando as crianças (10:13–16).
3) A história do jovem rico que guardava a lei—e as recompensas
para quem abandona tudo (10:17–31).
b. A caminho de Jerusalém.
1) Explicando aos discípulos o que estava prestes a acontecer
(10:32–34). Tão confusos que dois desejam estar à Sua direita e
esquerda (10:35–45). (Um versículo chave: 10:45.)
2) Passando por Jericó; o cego Bartimeu curado (10:46–52).
B. Uma hora crucial: a última semana de Seu ministério (11:1—
14:42).
1. Domingo: o dia da entrada triunfal (11:1–11).
2. Segunda: o dia da maldição da figueira e da purificação do
templo (11:12–19).
3. Terça-feira: um dia ocupado.
Uma figueira seca (11:20–26).
24. Um dia de perguntas.1) A pergunta “com que autoridade?”
(11:27–33). 2) A inserção da parábola dos administradores infiéis
(12:1–12).
3) Uma pergunta sobre o tributo a César (12:13–17).
4) Uma pergunta sobre a ressurreição (12:18–27).
5) Uma pergunta sobre o primeiro mandamento, e uma não muito
distante do reino (12:28–34).
6) Silenciados os inimigos de Jesus; uma pergunta de Jesus
(12:35–37).
c. Uma advertência para acautelar-se dos escribas (12:38–40).
A oferta da viúva (12:41–44).
Saindo do templo, uma mensagem apocalíptica de Jesus (13:1–
37).
4. Quarta-feira: um dia tranqüilo para Jesus.
Um dia ocupado para Seus inimigos (14:1, 2), mas calmo para
Jesus.
A refeição em Betânia e a unção de Jesus (14:3–9).
A parte de Judas na conspiração para matar Jesus (14:10, 11).
5. Quinta-feira: um dia de preparação.
Preparação para a Páscoa (14:12–16).
A festa da Páscoa e a instituição da ceia do Senhor (14:17–26).
A predição de que todos abandonariam Jesus e que Pedro O
negaria (14:27–31).
No jardim do Getsêmani (14:32–42).
25. C. Sua crucificação e sepultamento (na sexta-feira) (14:43—
15:47).
1 A traição de Jesus, e a fuga dos discípulos (14:43–52).
2 Julgamento perante Caifás; Pedro se aquece no fogo (14:53–
65).
3 Negação de Pedro (14:66–72).
4 Confirmação pelo sinédrio e a audiência
perante Pilatos; a soltura de Barrabás e
o escárnio de Jesus (15:1–20).
5. Morte de Jesus por meus pecados (15:21–41).
6. Sepultamento de Jesus (15:42–47).
IV. O SERVO EXALTADO PELA RESSURREIÇÃO (16:1–20).
A. A ida das mulheres ao túmulo e o anúncio do anjo (16:1–8)17.
B. Algumas aparições após a ressurreição:
1 A Maria Madalena (16:9–11).
2 A dois discípulos (16:12, 13).
3 Aos onze (16:14–18). (A necessidade dos discípulos terem fé e
a grande comissão: 16:15, 16.)
C. A ascensão de Jesus, mais a obra posterior dos discípulos e a
confirmação de Jesus (16:19, 20).
17A autenticidade dos doze versículos seguintes ao versículo 8 tem
sido questionada, pois esses versículos não constam de vários dos
manuscritos mais importantes. A maioria dos escritores
conservadores acredita que eles pertençam a esse lugar como parte
do texto original, como uma nota posterior acrescentada por Marcos,
ou como uma nota de rodapé inspirada acrescentada por outro
escritor inspirado. (Veja um exemplo disso em Deuteronômio 34,
26. onde um outro escritor, talvez Josué, acrescentou as informações
sobre a morte de Moisés ao livro que este escrevera.)
Durante os primeiros séculos da História de Roma, a construção do direito esteve
nas mãos dos sacerdotes, ou seja, dos pontífices. Eles foram os responsáveis por definir o
comportamento social dos patres, isto é, dos chefes das gentes, das famílias extensas que
formaram os primordiais núcleos sociais da Roma Antiga. Deste modo, a pronúncia do ius,
do direito, foi atribuída inicialmente a um círculo de sacerdotes, o chamado colégio dos
pontífices, componente essencial da religião romana arcaica (Schiavone, 1991:76). Estes
sacerdotes eram os responsáveis por guardar e interpretar as mais importantes reservas de
conhecimentos da coletividade, controlando socialmente o tempo (pela definição dos dias
fastos e nefastos para a realização dos negócios públicos e privados), das orações e das
invocações aos deuses (para garantir a sua proteção às ações empreendidas pelos romanos),
da escrita nascente e dos costumes dos ancestrais, os chamados mores maiorum. Como as
decisões deveriam estar plenamente de acordo com os costumes dos ancestrais, para serem
vistas como corretas e eficazes, os sacerdotes, por conhecerem estes costumes e serem
responsáveis pela sua divulgação e manutenção, ficaram também encarregados de ditarem
as leis para a comunidade e de julgarem os litígios de acordo com as tradições dos
antepassados.
As leis e as sentenças ditadas por estes sacerdotes regulavam as relações sociais
travadas entre os homens e as relações rituais desenvolvidas entre os homens e os deuses,
visando a conquista de uma estabilidade duradoura e de uma segurança infinita. Pela
criação de regras de conduta e de preceitos fixos, baseados em normas morais e
éticas, buscava-se uma organização social garantida pela lei e pela ordem. Nas
palavras dos pontífices e no seu talento interpretativo estava depositado o segredo da
adesão da cidade e de seus moradores ao mundo do sagrado e do mágico, que se imaginava
empenhado em proteger e tornar invencível quem sabia entender a sua linguagem e
conformar-se com a vontade dos deuses que o habitavam (Schiavone, 1991:77). Para os
antigos romanos, os deuses não eram potências distantes, mas, ao contrário, eram entidades
presentes, que se manifestavam a todo momento sua aprovação ou desaprovação com
relação aos atos humanos, mediante sinais manifestados na natureza e através dos sonhos
(Cramer, 1954:52). Era fundamental para os romanos entender e agir de acordo com as
27. vontades das divindades, por isso os sacerdotes que tinham acesso a esse conhecimento
eram os responsáveis por regulamentar a vida social.
Deste modo, os litígios resolvidos por estes primeiros legisladores-sacerdotes tinham a
intenção de resolver a querela não apenas no mundo humano, mas também no mundo
divino. Para o romano, qualquer crime ou desavença ocorrida no meio dos homens afetava
diretamente sua relação com o cosmos, a habitação das divindades. Devido a esse
pensamento, o direito apresentou origens tão religiosas. O castigo ou punição dados a um
crime eram responsáveis por restabelecerem não somente a paz entre os homens, mas
principalmente a pax deorum. Assim, era fundamental que se garantisse a cada um os seus
direitos e que cada membro da comunidade garantisse o que é seu, e no caso de desavenças
sobre propriedades, as reparações deveriam ser definidas rapidamente. Foram estas noções
que iniciaram o próprio princípio da justiça na Antigüidade Romana. A não reparação de
uma injustiça ou a não punição de um crime abalavam toda a sociedade e se transformavam
em verdadeiros sacrilégios. Por isso, todos os julgamentos deveriam ser feitos em recintos
abertos, para a admiração de todos, e na presença da estátua de uma divindade, que, de
certa forma, presidia e verificava o julgamento realizado pelos homens (Grimal, 1988:91-
95).
A caveira do boi
Joaquim Ribeiro
Em todas as regiões canavieiras de nosso país, persiste ainda uma velha superstição
agrícola.
É muito comum nas plantações de cana encontrar-se, fincada numa estaca, uma caveira
de boi.
Os lavradores de todas as partes, do Norte e do Sul, acreditam que a caveira de boi
defede o canavial contra as pragas, as intempéries, o mau-olhado, enfim, afugenta todas
as ameaças contra a lavoura.
A crença está generalizada, e até mesmo na zona rural do Rio de Janeiro pode ser
observada.
Quando realizei, nesta cidade, com os meus colegas da Comissão de Folclore da extinta
Sociedade dos Amigos do Rio de Janeiro, a primeira Exposição de Folclore Carioca,
recolhi, em Jacarepaguá, uma caveira de boi que figurou no referido certame.
Os lavradores brasileiros usam-na não só nas plantações de cana como, em geral, em
qualquer outra lavoura. É uma espécie de amuleto agrícola, tido como de grande
eficácia.
Donde recebemos essa arraigada tradição?
Como podemos explicá-la nas suas origens?
28. Pereira da Costa admite, dubitativamente, duas fontes: uma oriental (onde se observa
um culto de adoração ao boi) e outra greco-romana (culto de Príapo).
Tais são as suas palavras:
"Esta supersticiosa usança, se não indica reflexos do culto voltado ao boi pela sua
deificação entre certos povos da antigüidade, em cujo culto, particularmente, se notam o
boi Ápis, no Egito, o touro Mitríaco entre os persas, o boi de Cadmo e o touro de
Maraton, sem falar mesmo na vaca Atir, adorada como deusa suprema entre os egípcios,
cultos esses que espalharam-se [sic] depois por todo o Oriente; vem, talvez, de Príapo,
que apesar de pertencer à classe dos deuses da impureza, segundo a consagração
mitológica, era venerado entre os romanos como uma divindade suprema que tinha os
poderes de prodigalizar a abundância e de afastar a esterilidade.
É assim que se via aquele ídolo tutelar dos romanos figurar nos seus vinhedos e vergéis,
e particularmente nos seus jardins, encostado a uma vara que subia-lhe [sic] acima da
cabeça sustentando a divindade no seu braço direito uma grande cornucópia, o corno da
abundância, em cuja ampla boca se viam como que, despejando-se, flores e frutos
variados, produções e atributos dos jardins e campos de plantação, aos quais, entre
vários povos e, sobre todos, os romanos especialmente, essa divindade presidia.
Implantada essa supersticiosa crença dos romanos nas suas colônias, chegou às que
fundaram na Península Ibérica, e daí aos portugueses de quem imediatamente nos vem o
tradicional costume". (Folclore pernambucano, 1908, p.56-57)
Não me parece convincente essa exegese de Pereira da Costa.
Creio mesmo que ele desprezou o elemento essencial da superstição, isto é, a caveira do
boi.
A explicação da origem deve, antes de tudo, justificar a razão pela qual persistiu o
costume de conservar-se a caveira do animal. Partindo daí é que chegaremos a um
esclarecimento satisfatório.
Qual o significado dessa relíquia fúnebre?
A caveira (outra não pode ser a resposta) indica o testemunho do sacrifício do animal,
do boi.
Esta usança parece-nos, portanto, uma sobrevivência do vetusto rito de sacrifício de
touros, rito popularíssimo entre gregos e romanos.
De fato, a documentação clássica evidencia a sua larga projeção no mundo greco-
romano.
Em Homero e Virgílio colhemos comprovantes.
Lá está na Odisséia, logo no princípio do canto III:
29. "(...) Na praia oferenda de touros faziam
negros sem mácula ao deus de cabelos escuros, Possidon"
(Homero, sd, p.33)
E na Eneida:
"(...) À sorte eleito
O antiste Lacoon com sacra pompa
a Netuno imolava um touro ingente"
(Virgílio, 1854, p.45-46)
"(...) e um touro
Nédio imolo na praia ao deus superno"
(Virgílio, 1854, p.77)
Em Roma, o chamado Jupiter Dolichenus era representado sobre um touro, conforme se
atesta numa tábua de bronze existente no Museu de Wiesbaden.
Hans Lamer, analisando este documento arqueológico, diz que o culto do touro é
antiquíssimo e já era observado na civilização micenaica:
"El culto del toro y la doble hacha, como simbolo religioso se encuentram también en
lá religión de la civilización cretense (2 milenários a.d. J.C.)."
Tal é o inlorme que se encontra no seu livro La civilización romana (tradução espanhola
de D. Miral, p.25).
Desse culto primitivo é que surgiram os sacrifícios de touros, tão populares entre os
romanos.
O culto do touro chegou à Península Ibérica e, naturalmente, sofreu, mais tarde, a
influência cristã. Assim é que, no século passado, na procissão de Corpus Christi
observava-se a sobrevivência do vetusto culto. Diz um documento registrado por
Teófilo Braga (1885, v.2, p.294):
"Desfilam depois algumas corporações, e após, um boi, a que chamam boi bento, com
as pontas douradas e o corpo coberto com um manto de damasco guarnecido de ouro".
O rito do sacrifício, pela sua crueldade, foi abolido, mas havia de deixar vestígios.
Não se podendo matar boi, surgiu a prática de venerar-se as caveiras dos mesmos.
***
Surge, agora, um outro problema: como e em virtude de que se fixou, em nosso mundo
rural, essa usança?
Aqui temos de admitir um influxo negro-africano, o que não é de estranhar-se, uma vez
que, durante séculos, o nosso trabalho agrícola obedeceu ao regime servil.
30. O negro escravo teve também cooperação nessa tradição popular.
O hábito de fincar caveira de boi em estacas ou troncos podados revela essa influência
africana.
De origem européia, micenaica, é a noção de sacrifício do animal, consubstanciada na
caveira de boi — como oferenda para benefícios.
De origem negro-africana, banto, é o costume rural de fincar bichos em troncos.
Entre os bantos existe este curioso costume, que o major português Henrique Augusto
Dias de Carvalho, no valioso livro Etnografia e história tradicional dos povos da Lunda
assim menciona:
"Um chifre grande, espetado no tronco de uma grande árvore, tendo em volta o terreno
limpo e pisado, uma trepadeira a enlear essa árvore, e uma cabaça e uma panela
suspensas de outro tronco, constitui isso também um monumento dedicado a um outro
ídolo denominado Muata Calombo.
Servem eles de indicação aos caçadores peritos, pois pela sua construção, disposição,
orientação e ainda por outros sinais, dão a conhecer o cognome de caça de quem o fez, o
lugar onde encontrou caça, sua qualidade, enfim se viu muita ou pouca, se há água ou
não perto etc." (1890, p.245)
O explorador lusitano refere-se ainda ao muhanhe, tronco, assim chamado, onde os
caçadores depositam as caveiras, chifres e ossadas como troféus de suas atividades
rurais.
O fincamento do muhanhe obedece a certos rituais. Assim diz o mencionado
africanólogo:
"Observam-se umas certas cerimônias, no lugar emque se determina colocar um tronco
de árvore grande com muitas ramificações, despido de folhagem para servir de cabide às
caveiras, chifres e ossadas maiores dos animais mortos pelo caçador da povoação,
quando esses animais são de grande porte.
Essas ossadas são enfeitadas com tiras de baeta, preferindo-se para isso a vermelha.
À cerimônia da muhanhe (muhane), assim se chama aquele tronco, preside o chefe da
povoação e assistem todos os seus caçadores". (1890, p.245-246)
Verificamos que do negro é que recebemos a usança de fincar caveira em tronco. Essa
usança confundiu-se com o vetusto culto do touro, de origem micenaica, que passou
para Roma (Jupiter Dolichenus) e deixou sobrevivência em Portugal (o boi bento da
procissão de Corpus Christi).
Trazida essa sobrevivência para o Brasil, em contato com os negros de nossas lavouras,
fácil foi fundir-se com o muhanhe dos bantos.
31. Mais uma vez atestamos a fusão de tradições derivadas de troncos distanciados e
remotos.
Europa: Culto do touro (Creta); Sacrifício de touros (Grécia e Roma); Jupiter
Dolichenus (Roma e império); Boi bento — Corpus Christi (Portugal)
África: ídolo Muata Calombo; Rito do muhanhe (área banto)
Brasil: caveira de boi (zona agrícola)
O foclore brasileiro, na verdade, resulta de numerosas convergências étnicas.
Quase sempre as nossas tradições populares, analisadas à luz de um exame mais
profundo, baseado na filiação histórica e na comparação, revelam essas múltiplas
origens, aparentemente indevassáveis.
A superstição agrícola, que ora estudamos, tãopopular nas zonas canavieiras do Brasil,
está nesse caso.
A convicção mística de nosso lavrador quando pendura uma caveira de boi num tronco
ou numa estaca para afastar os malefícios dos canaviais, por certo, pouco difere da
crença que, há milênios, inspirava cretenses a cultuar o touro ou os negros de Lunda a
reverenciar o Muata Calombo nas selvas da África.
O dom de acreditar parece ter algo de eterno, pois desafia os séculos e a própria
civilização.