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ÉTICA E RELIGIÃO
do livro “Consiliência” de Edward O. Wilson
( sem identificação do autor )

SÉCULOS DE DEBATE sobre a origem da ética resumem-se a isto: ou bem os preceitos éticos,
como justiça e direitos humanos, são independentes da experiência humana, ou bem são invenções
humanas. A distinção é mais do que um exercício para filósofos acadêmicos. Da escolha entre as
hipóteses depende toda a diferença no modo de nos vermos como uma espécie. Ela mede a
autoridade da religião e determina a direção do raciocínio moral.
As duas hipóteses em competição são como ilhas em um mar de caos, imóveis, tão diferentes
como vida e morte, matéria e vácuo. Qual está correta não pode ser descoberto por pura lógica; por
enquanto, apenas um salto de fé o levará de uma para outra. Mas a verdadeira resposta acabará
sendo atingida pelo acúmulo de dados objetivos, O raciocínio moral, acredito, é em cada nível
intrinsecamente consiliente com as ciências naturais.
Toda pessoa reflexiva tem uma opinião sobre qual das premissas está correta. Mas a divisão
não é, como se supõe popularmente, entre crentes religiosos e secularistas. E entre
transcendentalistas, aqueles que pensam que as diretrizes morais existem fora da mente humana, e
empiristas, que as consideram criações da mente. A escolha entre convicção religiosa e nãoreligiosa e a escolha entre a convicção eticamente transcendentalista e empirista são decisões
entrecruzadas no pensamento metafísico. Um transcendentalista ético, acreditando que a ética é
independente, pode ser um ateu ou então supor a existência de uma divindade. De forma paralela,
um empirista ético, acreditando que a ética não passa de uma criação humana, pode ser um ateu ou
então acreditar em uma divindade criadora (embora não um Deus concessor de leis no sentido
tradicional judaico-cristão). Nos termos mais simples, a opção da base ética é:
Acredito na independência dos valores morais, venham de Deus ou não, ou
Acredito que os valores morais vêm apenas dos seres humanos; Deus é uma questão
separada.
Teólogos e filósofos quase sempre focalizaram o transcendentalismo como o meio de
validação da ética. Eles buscam o Graal da lei natural, que compreende princípios independentes de
conduta moral imune à dúvida e à contemporizaçáo. Os teólogos cristãos, seguindo o raciocínio de
São Tomás de Aquino na Suma teológica, em geral consideram a lei natural como a expressão da
vontade de Deus. Os seres humanos, nesse aspecto, têm a obrigação de descobrir a lei por
raciocínio diligente e integrá-la à rotina de suas vidas diárias. Filósofos seculares de inclinação
transcendentalista podem parecer radicalmente diferentes dos teólogos, mas na verdade são bem
semelhantes, pelo menos no raciocínio moral. Eles tendem a ver a lei natural como um conjunto de
princípios tão poderosos que são auto-evidentes para qualquer pessoa racional, qualquer que seja a
derradeira origem. Em suma, o transcendentalismo é fundamentalmente o mesmo quer Deus seja ou
não invocado.
Por exemplo, quando Thomas Jefferson, seguindo John Locke, derivou a doutrina dos direitos
naturais da lei natural, estava mais preocupado com o poder dos enunciados transcendentais do que
com sua origem divina ou secular. Na Declaração da Independência norte-americana, mesclou os
pressupostos secular e religioso em uma sentença transcendentalista, cobrindo assim habilmente
todas as apostas: “Consideramos tais Verdades evidentes por si mesmas, que todos os Homens são
criados iguais, são dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, entre os quais estão a
Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade.” Essa asserção tornou-se a premissa cardeal da religião
civil norte-americana, a espada justiceira brandida por Lincoln e Martin Luther King, e perdura como
a ética central que une os diferentes povos dos Estados Unidos.
Tão convincentes são tais frutos da teoria da Lei natural, sobretudo quando a divindade
também é invocada, que parecem colocar a hipótese transcendentalista acima de dúvida. Mas a
seus nobres sucessos devem ser acrescentados fracassos estarrecedores. Ela foi pervertida muitas
vezes no passado, usada por exemplo para defender apaixonadamente a conquista colonial, a
escravidão e o genocídio. Tampouco alguma grande guerra chegou a ser travada sem que cada lado
considerasse sua causa transcendentalmente sagrada de uma ou outra maneira. “Oh! Como
odiamos uns aos outros”, observou o cardeal Newmann, “por amor a Deus.”
Assim, talvez cheguemos a um resultado melhor levando o empirismo mais a sério. A ética, na
visão empirista, é a conduta favorecida de modo suficientemente sistemático através de uma
sociedade para ser expressa como um código de princípios. E impelida por predisposições
hereditárias no desenvolvimento mental - os “sentimentos morais” dos filósofos iluministas -, causando
ampla convergência entre culturas, enquanto atinge a forma precisa em cada cultura de acordo com
circunstâncias históricas. Os códigos, quer os observadores externos os julguem hons ou ruins,
desempenham um importante papel na determinação de que culturas florescem ou declinam.
A importância da visão empirista é sua ênfase no conhecimento objetivo. Como o sucesso de
um código ético depende de quão sabiamente ele interpreta os sentimentos morais, seus forjadores
deveriam saber como funciona o cérebro e como se desenvolve a mente. O sucesso da ética
também depende da previsão exata da conseqüência de ações específicas em oposição a outras,
sobretudo em casos de ambiguidade moral. Isso também exige muito conhecimento consiliente com
as ciências naturais e sociais.
O argumento do empirista, então, é que, explorando as raízes biológicas do comportamento
moral e explicando suas origens e inclinações materiais, deveríamos ser capazes de atingir um
consenso ético mais sábio e duradouro do que anteriormente. A atual expansão da investigação
científica aos processos mais profundos do pensamento humano viabiliza esse empreendimento.
A escolha entre transcendentalismo e empirismo será a versão do século vindouro da luta pelas
almas dos homens, O raciocínio moral permanecerá centrado no linguajar da teologia e filosofia,
onde está agora, ou mudará para a análise material baseada na ciência. Onde se fixará dependerá
de que visão de mundo se mostrará correta ou, pelo menos, qual será mais amplamente percebida
como correta.
CHEGOU A HORA de virar as cartas. Os estudiosos da ética, que se especializam no raciocínio moral,

não costumam se declarar sobre os fundamentos da ética ou a admitir a falibilidade. Raramente se
vê um argumento que comece pela afirmação simples: Este é meu ponto de partida e pode estar
errado. Os estudiosos da ética, em vez disso, favorecem uma passagem impaciente do particular ao
ambíguo, ou o inverso, do impreciso para casos concretos. Suspeito de que quase todos são
transcendentalistas no fundo, mas raramente o admitem em frases declarativas simples. Não se
pode culpá-los muito; é difícil explicar o inefável e eles evidentemente não querem sofrer a
indignidade de ter suas crenças pessoais claramente entendidas. Assim, em geral, eles contornam
totalmente a questão do fundamento.
Dito isto, tentarei ser claro a respeito de minha própria posição: sou um empirista. Em religião,
inclino-me para o deísmo, mas considero sua prova um problema em grande parte da astrofísica. A
existência de um Deus cosmológico que criou o universo (como visualizado pelo deísmo) é possível
e poderá acabar sendo estabelecida, talvez por formas de indícios materiais ainda não imaginadas.
Ou a questão pode estar para sempre além do alcance humano. Em contrapartida, e de muito mais
importância para a humanidade, a existência de um Deus
biológico, que dirige a evolução orgânica e intervém nos assuntos humanos (como visualizado pelo
teísmo) é cada vez mais contestada pela biologia e ciências do cérebro.
Os mesmos indícios, acredito, favorecem uma origem puramente material da ética e satisfazem
os critérios da consiliência: explicações causais da atividade do cérebro e evolução, embora
imperfeitas, já abrangem a maioria dos fatos conhecidos sobre o comportamento moral com o
máximo de precisão e o mínimo de hipóteses independentes. Embora essa concepção seja
relativista, ou seja, dependente do ponto de vista pessoal, não precisa sê-lo de forma irresponsável.
Se desenvolvida com cuidado, poderá levar a códigos morais estáveis de forma mais direta e segura
do que o transcendentalismo, que também é, quando se reflete a respeito, em última análise
relativista.
E sim - caso eu esqueça -, posso estar errado.
Para realçar a distinção entre transcendentalismo e empirismo, criei um debate entre
defensores das duas visões de mundo. Para torná-lo mais veemente e convincente, também fiz do
transcendentalista um teísta e do empirista um cético. E para ser o mais justo possível, extraí seus
argumentos das fontes mais debatidas que conheço em teologia e filosofia.

O TRANSCENDENTALISTA
“Antes de abordar a ética, permita-me afirmar a lógica do teísmo, pois, se a existência de um
Deus concessor de leis for admitida, a origem da ética ficará instantaneamente resolvida. Portanto,
aprecie com cuidado o seguinte argumento a favor do teísmo.
Desafio sua rejeição do teísmo baseado em seu próprio empirismo. Como você pode querer
contestar a existência de um Deus pessoal? Como invalidar os três mil anos de testemunho espiritual
dos seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo? Centenas de milhões de pessoas, inclusive
uma grande porcentagem dos cidadãos instruídos dos países industrializados, sabem que existe um
poder sensível invisível guiando suas vidas. Seu testemunho é esmagador. Segundo pesquisas
recentes, nove entre dez norte-americanos acreditam em um Deus pessoal capaz de responder às
preces e realizar milagres. Um em cinco experimentou Sua presença e orientação pelo menos uma
vez no ano anterior à pesquisa. Como pode a ciência, a disciplina subjacente ao empirismo ético,
rejeitar tal testemunho generalizado?
O núcleo do método científico, somos constantemente lembrados, é a rejeição de certas
proposições a favor de outras em estreita conformidade com a lógica baseada nos fatos. Onde estão
os fatos que exigem a rejeição de um Deus pessoal? Não basta dizer que a idéia é desnecessária
para explicar o mundo físico, pelo menos como os cientistas o entendem. Há coisa demais em jogo
para o teísmo
ser rejeitado sem mais nem menos. O ônus da prova recai sobre vocês, não sobre os que acreditam
em uma presença divina.
A uma perspectiva apropriada, Deus abarca a ciência, a ciência não abarca Deus. Os cientistas
coletam dados sobre certos assuntos e formulam hipóteses para explicá-los. Para estender o
alcance do conhecimento objetivo o mais longe possível, aceitam provisoriamente algumas hipóteses
enquanto descartam outras. Esse conhecimento, porém, só consegue abranger parte da realidade. A
pesquisa científica, em particular, não é capaz de explorar todas as variedades assombrosas da
experiência mental humana. A idéia de Deus, por outro lado, tem a capacidade de explicar tudo, não
apenas fenômenos mensuráveis, mas fenômenos pessoal-mente sentidos e subliminarmente
percebidos, inclusive revelações que só podem ser comunicadas por canais espirituais. Por que toda
experiência mental deve ser visível em tomografias computadorizadas do cérebro? Ao contrário da
ciência, a noção de Deus diz respeito a mais do que o mundo material que nos foi dado explorar. Ela
abre nossas mentes para o que está fora do mundo. Orienta-nos a ir ao encontro dos mistérios
compreensíveis apenas pela fé.
Limite seus pensamentos ao mundo material se quiser. Outras pessoas sabem que Deus
contém as causas derradeiras da Criação. De onde vêm as leis da natureza, que não de um poder
superior às próprias leis? A ciência não oferece resposta a essa questão soberana da teologia. Em
outros termos, por que existe algo em vez de nada? O derradeiro sentido da existência está além do
alcance racional dos seres humanos e, portanto, fora dos domínios da ciencia.
Você também é um pragmatista? Há uma razão persistentemente prática para a crença em
preceitos éticos ordenados por um ser supremo. Negar tal origem, supor que os códigos morais são
criações exclusivamente humanas, é um credo perigoso. Como observou o Grande Inquisidor de
Dostoiévski, tudo épermitido sem a mão governante de Deus, e a liberdade se transforma em aflição.
Em apoio a essa advertência, temos nada menos do que a autoridade dos próprios pensadores
originais do Iluminismo. Praticamente todos acreditavam em um Deus criador do universo e muitos
eram, além disso, cristãos devotos. Quase nenhum estava disposto a abandonar a ética ao
materialismo secular. John Locke disse que os que negam a existência da Divindade não devem ser
de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da
sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade; pois a supressão de Deus,
ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo’. Robert Hooke, um grande físico do século XVII,
ao compor um sumário sobre a recém-criada Royal Society, advertiu sabiamente que o propósito
dessa organização quintessencialmente iluminista deveria ser ‘melhorar o conhecimento das coisas
naturais e de todas as úteis Artes, Manufaturas, práticas Mecânicas, Máquinas e Invenções por
Experiências (sem se imiscuir com a Divindade, Metafísica, Moral, Política, Gramática, Retórica e
Lógica”.
Esses sentimentos são igualmente predominantes entre grandes pensadores da época
moderna, bem como uma boa minoria de cientistas em atividade. São reforçados pelo desconforto
com a idéia de evolução orgânica como defendida por Darwin. Esse princípio do empirismo pretende
reduzir a Criação aos produtos de mutações aleatórias e circunstâncias ambientais. Mesmo George
Bernard Shaw, um ateu confesso, reagiu ao darwinismo com desespero. Condenou seu fatalismo e o
rebaixamento da beleza, inteligência, honra e aspiração a uma noção abstrata de matéria cegamente
formada. Muitos autores têm aventado, não injustamente na minha opinião, que tal visão estéril da
vida, que reduz os seres humanos a pouco mais do que animais inteligentes, deu justificação
intelectual aos horrores genocidas do nazismo e comunismo.
Assim, certamente, há algo de errado com a teoria da evolução predominante. Mesmo que
ocorra alguma forma de mudança genética nas espécies como proclamado pelo novo darwinismo, a
plena e estupenda complexidade dos organismos modernos não poderia ter sido criada pelo acaso
cego apenas. Repetidamente na história da ciência, dados novos derrubaram teorias predominantes.
Por que os cientistas estão tão ansiosos em permanecer com a evolução autônoma e descartar a
possibilidade de um desígnio inteligente em seu lugar? Tudo isso é muito curioso. O desígnio
pareceria uma explicação mais simples do que a auto-organização aleatória de milhões de tipos de
organismos.
Finalmente, o teísmo ganha força esmagadora no caso da mente humana e - não o omitirei - da
alma imortal. Não surpreende que um quarto ou mais dos norte-americanos rejeite totalmente a idéia
de qualquer tipo de evolução humana, mesmo em anatomia e fisiologia. A ciência, quando levada
longe demais, torna-se arrogante. Que se atenha ao seu lugar apropriado, como o dom concedido
por Deus de compreender Seu domínio físico.”

O EMPIRISTA
“Começarei reconhecendo espontaneamente que a religião exerce uma atração irresistível
sobre a mente humana e que a convicção religiosa é, em grande parte, benéfica. A religião brota dos
recônditos mais profundos do espírito humano. Ela nutre o amor, a devoção e, acima de tudo, a
esperança. As pessoas anseiam pela segurança que oferece. Não consigo imaginar nada de mais
emocionalmente irresistível do que a doutrina cristã de que Deus encarnou em testemunho da
sacralidade da vida humana, mesmo do escravo, e morreu e ressuscitou em promessa de vida
eterna para todos.
Mas a crença religiosa tem um outro lado destrutivo que se iguala aos piores excessos do
materialismo. Estima-se que cem mil sistemas de crenças existiram na história e muitos estimularam
guerras étnicas e tribais. Cada uma das três grandes religiões ocidentais em particular expandiu-se,
em uma ou outra época, em
simbiose com a agressão militar. O Islã, que significa ‘submissão’, foi imposto à força das armas a
grandes porções do Oriente Médio, perímetro do Mediterrâneo e sul da Ásia. O cristianismo dominou
o Novo Mundo através da expansão colonial tanto quanto da graça espiritual. Beneficiou-se de um
acaso histórico: a Europa, tendo sido bloqueada a leste pelos árabes muçulmanos, voltou-se a oeste
para ocupar as Américas, com o que a cruz acompanhou a espada em uma campanha após a outra
de escravização e genocídio.
Os dirigentes cristãos tiveram um exemplo instrutivo a seguir na história antiga do judaísmo. A
se acreditar no Antigo Testamento, os israelitas receberam ordens de Deus de extirpar os pagãos da
terra prometida. Lemos no Deuteronômio 20:16-17: ‘Quanto às cidades daqueles povos que o
SENHOR, teu Deus, te dá em herança, não deixarás nelas alma viva. Antes, como te ordenou o
SENHOR, teu Deus, destruirás totalmente os hiteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os
hevetts e os jebuseus.’ Mais de cem cidades foram consumidas pelo fogo e morte, começando com
a campanha de Josué contra Jericó e terminando com o ataque de Davi ao antigo baluarte jebuseu
de Jerusalém.
Trago à tona esses fatos históricos não para difamar as crenças modernas, mas para lançar
uma luz sobre suas origens materiais e as dos sistemas éticos que promovem. Todas as grandes
civilizações foram disseminadas pela conquista e entre seus principais beneficiários estiveram as
religiões que as validavam. Sem dúvida, ser seguidor de religiões patrocinadas pelo Estado sempre
foi profundamente gratificante em muitas dimensões psicológicas, e a sabedoria espiritual evoluiu de
modo a moderar os princípios mais bárbaros seguidos nas épocas de conquista. Mas toda grande
religião atualmente é uma vencedora na luta darwiniana travada entre as culturas e nenhuma jamais
floresceu tolerando suas rivais. O caminho mais rápido para o sucesso sempre foi o patrocínio de um
Estado conquistador.
Para ser justo, deixe-me esclarecer a questão da causa e efeito. A exclusão e o fanatismo
religiosos emergem do tribalisrno, a crença na superioridade inata e status especial do grupo do qual
se faz parte. O tribalismo não pode ser atribuído à religião. A mesma seqüência causal deu origem a
ideologias totalitárias. O corpus mysticum pagão do nazismo e a doutrina da guerra de classes do
marxismo-leninismo, ambos em essência dogmas de religiões sem Deus, foram postos a serviço do
tribalismo, e não o inverso. Nenhum deles teria sido tão ardorosamente abraçado se seus devotos
não se considerassem povos escolhidos, virtuosos em sua missão, cercados de inimigos malévolos,
e conquistadores por direito de sangue e destino. Mary Wollstonecraft observou com razão sobre a
dominação masculina, mas extensível a todo o comportamento humano: ‘Nenhum homem escolhe o
mal pelo mal; ele apenas o confunde com felicidade, que é o bem que busca.’
A conquista por uma tribo requer que seus membros façam sacrifícios pelos interesses do
grupo, em especial durante conflitos com grupos concorrentes. Isso não passa da expressão de uma
regra básica da vida social através do reino animal. Ela surge quando a perda de vantagem pessoal
pela submissão às necessidades do grupo é mais do que compensada pelo ganho de vantagem
pessoal devido ao sucesso resultante do grupo. O corolário humano é que pessoas egoístas e
prósperas pertencentes a religiões e ideologias perdedoras são substituídas por membros
desprendidos e pobres das religiões e ideologias vitoriosas. Uma vida melhor adiante, quer um
paraíso terrestre ou a ressurreição no céu, é a recompensa prometida que as culturas inventam para
justificar o imperativo de subordinação da existência social. Repetida de uma geração para a
próxima, a submissão ao grupo e aos seus códigos morais é solidificada na doutrina oficial e crença
pessoal. Mas não é ordenada por Deus ou colhida do ar como uma verdade manifesta. Evolui como
um dispositivo de sobrevivência necessário em organismos sociais.
A mais perigosa das devoções, na minha opinião, é a endêmica ao cristianismo: não nasci para
ser deste mundo. Com uma segunda vida aguardando, o sofrimento pode ser suportado especialmente em outras pessoas. O ambiente natural pode ser exaurido. Os inimigos da fé podem
ser trucidados e o martírio suicida, elogiado.
Será tudo isso uma ilusão? Bem, hesito em denominá-lo assim ou, pior, uma nobre mentira, a
expressão dura às vezes usada por céticos, mas é preciso admitir que os indícios objetivos a seu
favor não são fortes. Nenhuma prova estatística existe de que a prece reduz a doença e mortandade,
exceto talvez através do fortalecimento psicogênico do sistema imunológico; de outra forma, o
mundo inteiro rezaria sem parar. Quando dois exércitos abençoados por sacerdotes se chocam, um
deles ainda perde. E quando o cérebro virtuoso do mártir é explodido pela bala do carrasco e sua
mente se desintegra, o que acontece? Podemos supor com segurança que todos aqueles milhões de
circuitos neurais serão reconstituídos em um estado imaterial, de modo que a mente consciente
perdure?
Em escatologia, o dinheiro inteligente está na aposta de Blaise Pascal: viva bem mas aceite a
fé. Caso exista uma vida após a morte, raciocinou o filósofo francês do século XVII, o fiel terá um
bilhete para o paraíso e aproveitará o melhor de ambos os mundos. ‘Se eu perdesse’, escreveu
Pascal, ‘teria perdido pouco; se ganhasse, teria ganho a vida eterna.’ Agora pense por um momento
como um empirista. Considere a sabedoria de inverter assim a aposta: se medo, esperança e razão
determinarem que você deve aceitar a fé, faça-o, mas trate este mundo como se não houvesse
outro.
Sei que os verdadeiros fiéis se escandalizarão com essa linha de raciocínio. Sua ira recai sobre
hereges declarados, considerados no mínimo criadores de caso e na pior hipótese traidores da
ordem social. Mas nenhuma prova foi apresentada de que os não-fiéis cumprem menos a lei ou são
cidadãos menos produtivos do que os fiéis da mesma classe socioeconômica ou que enfrentam a
morte com menos destemor. Uma pesquisa de 1996 feita com cientistas norte-americanos (para
tomar um segmento respeitável da sociedade) revelou que 46 por cento são ateus e 14 por cento
céticos ou agnósticos. Apenas 36 por cento expressaram um desejo pela imortalidade, dos quais a
maioria apenas moderadamente; 64 por cento simplesmente não a desejavam.
O verdadeiro caráter brota de uma fonte mais profunda do que a religião. E a interiorização dos
princípios morais de uma sociedade, acrescentados daqueles princípios pessoalmente escolhidos
pelo indivíduo, fortes o suficiente para resistirem às provações da solidão e adversidade. Os
princípios são reunidos no que denominamos integridade, literalmente o eu integrado, cujas decisões
pessoais dão a sensação de boas e verdadeiras. O caráter é, por sua vez, a fonte duradoura da
virtude. Ergue-se por si mesmo e desperta a admiração nos outros. Não consiste em obediência à
autoridade e, embora muitas vezes compatível com a crença religiosa e reforçado por ela, não é
devoção.
Tampouco a ciência é o inimigo. E o acúmulo do conhecimento organizado e objetivo da
humanidade, o primeiro meio concebido capaz de unir as pessoas por toda parte em compreensão
comum. Ela não favorece nenhuma tribo ou religião. E a base de uma cultura global e realmente
democrática.
Você alega que a ciência não consegue explicar os fenômenos espirituais. Por que não? As
ciências do cérebro estão fazendo importantes avanços na análise de operações complexas da
mente. Não há razão aparente para não fornecerem, no devido tempo, uma explicação material das
emoções e raciocínios que compõem o pensamento espiritual.
Você indaga sobre a origem dos preceitos éticos, se não a revelação divina. Considere a
hipótese empirista alternativa, de que os preceitos e a fé religiosa são produtos inteiramente
materiais da mente. Por mais de mil gerações, eles aumentaram a sobrevivência e o sucesso
reprodutivo dos que se conformaram às crenças tribais. O tempo foi mais do que suficiente para o
desenvolvimento de regras epigenéticas — tendências hereditárias do desenvolvimento mental — que
geram sentimentos morais e religiosos. A doutrinabilidade tornou-se um instinto.
Os códigos éticos são preceitos alcançados por consenso sob a orientação das regras inatas
de desenvolvimento mental. A religião é o conjunto de narrativas míticas que explicam a origem de
um povo, seu destino e por que é obrigado a observar certos rituais e códigos morais. As crenças
éticas e religiosas são criadas de baixo para cima, dos povos para sua cultura. Elas não vêm de cima
para baixo, de Deus ou outra fonte imaterial para o povo por meio da cultura.
Que hipótese, transcendentalista ou empirista, adapta-se melhor aos dados objetivos? De
longe, a empirista. Na medida em que essa visão for aceita, o raciocínio moral enfatizará mais a
escolha social e menos a autoridade religiosa e ideológica.
Tal mudança vem de fato ocorrendo nas culturas ocidentais desde o Iluminismo, mas a
velocidade tem sido lenta. Parte da razão é uma terrível insuficiência de conhecimentos necessários
para julgar as plenas conseqüências de nossas decisões morais, sobretudo a longo prazo, digamos,
uma década ou mais. Aprendemos muito sobre nós e o mundo em que vivemos, mas falta muito
para sermos plenamente sábios. Há uma tentação, a cada grande crise, de submissão à autoridade
transcendental, e talvez isso seja melhor por enquanto. Ainda somos doutrináveis, facilmente nos
impressionamos com Deus.
A resistência ao empirismo também se deve a uma falha puramente emocional do modo de
raciocínio que ele apresenta: ele é frio. As pessoas precisam mais do que razão. Elas precisam da
poesia da afirmação, elas anseiam por uma autoridade maior do que elas mesmas em seus ritos de
passagem e em outros momentos de grande dificuldade. A maioria deseja desesperadamente a
imortalidade que os rituais parecem querer garantir.
Grandes cerimônias evocam a história de um povo em solene recordação. Elas ostentam os
símbolos sagrados. Esse é o valor duradouro da cerimônia, que em todas as altas civilizações
assumiu historicamente uma forma predominante-mente religiosa. Símbolos sagrados se infiltram no
próprio cerne da cultura. Eles levarão séculos para ser substituídos, se é que o serão.
Assim, talvez eu o surpreenda ao admitir o seguinte: seria uma pena se abandonássemos
nossas sagradas e veneradas tradições. Seria uma deformação trágica da história expurgar Deus do
juramento de lealdade à bandeira e república norte-americana. Quer sejamos ateus ou verdadeiros
fiéis, que os juramentos sejam realizados com a mão sobre a Bíblia e continuemos a ouvir graças a
Deus. Chamem padres, pastores e rabinos para abençoar a cerimônia civil com preces e sem dúvida
inclinemos as cabeças em respeito coletivo. Reconheçamos que, quando intróitos e invocações nos
tocam estamos em presença da poesia e da alma da tribo, algo que sobreviverá às particularidades
da crença sectária e talvez à própria crença em Deus.
Mas compartilhar reverência não é renunciar ao eu precioso e obscurecer a verdadeira
natureza da raça humana. Não devemos nos esquecer de quem somos. Nossa força está na
verdade, no conhecimento e no caráter, sob qualquer sinal. As Sagradas Escrituras dizem aos
judeus e cristãos que o orgulho antecede a destruição. Discordo; é o inverso: a destruição precede o
orgulho. O empirismo inverteu tudo na fórmula. Destruiu a teoria irrefletida de que somos seres
especiais postos por uma divindade no centro do universo a fim de servir de auge da Criação para a
glória dos deuses. Podemos nos orgulhar como espécie porque, tendo descoberto que estamos sós,
devemos aos deuses muito pouco. E melhor mostrar humildade para com nossos irmãos seres
humanos e o resto da vida no planeta, dos quais depende realmente toda esperança. E se quaisquer
deuses estiverem prestando atenção, decerto conquistamos sua admiração por fazermos essa
descoberta e partirmos sozinhos para realizar o melhor de que somos capazes.”
O ARGUMENTO do empirista, repetindo minha confissão anterior, é o meu próprio. Está longe de
ser novo, suas raízes remontando à Ética de Nicômano de Aristóteles e, no início da era moderna,
ao Tratado sobre a natureza humana (1739-40) de David Hume. Sua primeira elaboração
evolucionista clara foi por Darwin em The descent ofman (1871).
O argumento do transcendentalista religioso, por outro lado, é o que aprendi pela primeira vez
quando criança na fé cristã. Tenho refletido repetidamente a respeito desde então e, por intelecto e
temperamento, sou obrigado a respeitar suas tradições ancestrais.
Além disso, ocorre que o transcendentalismo religioso é sustentado pelo transcendentalismo
secular, com o qual guarda semelhanças fundamentais. Immanuel Kant, julgado pela história o maior
dos filósofos seculares, abordou o raciocínio moral bastante como um teólogo. Os seres humanos,
argumentou, são agentes morais independentes, com total livre-arbítrio, capazes de obedecer ou
desobedecer à lei moral: “Há no homem um poder de autodeterminação, independente de qualquer
coerção através de impulsos sensuais.” Nossas mentes estão sujeitas a um imperativo categórico,
disse ele, do que nossas ações deveriam ser. O imperativo é um bem em si, independente de todas
as outras considerações, e pode ser reconhecido por esta regra: “Aja apenas segundo uma máxima
pela qual você também deseje que se torne uma lei universal.” Mais importante e transcendental, o
deveria não ocorre na natureza. A natureza, disse Kant, é um sistema de causa e efeito, enquanto a
opção moral é uma questão de livre-arbítrio, para o qual não há causa e efeito. Ao fazerem opções
morais, ao se elevarem acima do mero instinto, os seres humanos transcendem o domínio da
natureza e adentram o domínio da liberdade que lhes pertence exclusivamente como criaturas
racionais.
Embora essa formulação soe confortadora, não faz nenhum sentido em termos de entidades
materiais ou imagináveis, razão pela qual Kant, mesmo sem considerar sua prosa tortuosa, é tão
difícil de entender. As vezes, um conceito édesconcertante não por ser profundo, mas por estar
errado. Ela não está de acordo, sabemos agora, com os dados sobre o funcionamento do cérebro.
Em Principia Ethica (1903), G. E. Moore, o fundador da filosofia ética moderna, em essência
concordou com Kant. O raciocínio moral, em sua visão, não pode mergulhar na psicologia e nas
ciências sociais para localizar os princípios éticos, porque elas só fornecem um quadro causal e não
iluminam a base da justificação moral. Passar assim do é factual ao deveria normativo é cometer um
erro de lógica básico, que Moore denominou falácia naturalista. John Rawls, em Uma teoria da
justiça (1971), voltou a percorrer a estrada transcendental. Ele ofereceu a premissa muito plausível
de que a justiça seja definida como eqüidade, que deve ser aceita como um bem intrínseco. E o
imperativo que seguiríamos se não tivéssemos nenhuma informação inicial sobre nossa própria
posição na vida.
Mas, ao fazer tal suposição, Rawls não dedicou nenhum pensamento à origem do cérebro
humano ou a como funciona. Não ofereceu nenhum indício de que a justiça-como-eqüidade é
compatível com a natureza humana, portanto praticável como uma premissa universal. É provável
que seja, mas como saber se não por tentativas e erros cegos?
Custa-me acreditar que se Kant, Moore e Rawls tivessem conhecido a 1 biologia e psicologia
experimental modernas, teriam raciocinado como fizeram. Contudo, quase no final do século, o
transcendentalismo permanece firme nos corações não apenas de fiéis religiosos, mas de inúmeros
estudiosos nas ciências sociais e humanidades que, como Moore e Rawls antes deles, optaram por
isolar seu pensamento das ciências naturais.
Muitos filósofos reagirão com este brado: Alto lá! O que está dizendo? Os estudiosos da ética
dispensam esse tipo de informação. Realmente não se pode passar do é para o deveria. Não é
permitido descrever uma predisposição genética e supor que, por fazer parte da natureza humana,
transforma-se de algum modo em um preceito ético. Temos de situar o raciocínio moral em uma
categoria especial e usar diretrizes transcendentais conforme necessario.
Não, não temos de situar o raciocínio moral em uma categoria especial e usar premissas
transcendentais, porque a colocação da falácia naturalista é em si uma falácia. Pois se deveria não
é, o que é? Traduzir é como deveria faz sentido se atentarmos para o significado objetivo dos
preceitos éticos. E muito improvável que sejam mensagens etéreas fora da humanidade aguardando
revelação, ou verdades independentes vibrando em uma dimensão imaterial da mente. E mais
provável que sejam produtos físicos do cérebro e da cultura. Da perspectiva consiliente das ciências
naturais, não passam de princípios do contrato social solidificados em regras e ditames, os códigos
comportamentais que os membros de uma sociedade desejam ardentemente que os outros sigam e
estão dispostos a aceitar eles próprios pelo bem comum. Os ditames são o extremo em uma escala
de acordos que vão do assentimento casual ao sentimento público, depois à lei e enfim àquela parte
do cânone considerada inalterada e sagrada. A escala aplicada ao adultério poderia ter a seguinte
forma:
Paremos por aqui; não parece correto e causaria problemas. (Provavelmente não deveríamos.)
O adultério, além de provocar sentimento de culpa, costuma ser desaprovado pela sociedade,
havendo portanto outras razões para evitá-lo. (Não deveríamos.)
O adultério não é apenas desaprovado, é contra a lei. (Quase certamente não deveríamos.)
Deus ordena que evitemos esse pecado mortal. (Absolutamente não deveríamos.)
No pensamento transcendental, a cadeia de causação flui para baixo a partir do deveria dado
na religião ou lei natural, através da jurisprudência, à educação e, finalmente, à escolha individual. O
argumento do transcendentalismo assume a seguinte forma geral: Existe um princípio supremo, quer
divino ou intrínseco àordem da natureza, e faríamos bem em tomar conhecimento dele e encontrar o
meio de nos conformarmos a ele. Assim, John Rawls abre A theory of justice com uma proposição
que considera irrevogável: “Em uma sociedade justa, as liberdades da igualdade de cidadania são
consideradas estabelecidas; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à barganha
política ou ao cálculo dos interesses sociais.” Como muitos críticos deixaram claro, essa premissa
pode levar a muitas conseqüências infelizes quando aplicada ao mundo real, inclusive o
endurecimento do controle social e declínio da iniciativa pessoal. Uma premissa bem diferente e,
portanto, sugerida por Robert Nozick em Anarchy, state, and utopia (1974):
“Os indivíduos possuem direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer-lhes (sem
violar seus direitos). Tão fortes e abrangentes são esses direitos que suscitam a questão do papel do
Estado e suas autoridades, se é que têm um.” Rawls nos encaminharia ao igualitarismo regulado
pelo Estado, Nozick ao libertarismo em um Estado minimalista.
A visão empirista, por outro lado, na busca de uma origem do raciocínio ético que possa ser
estudado objetivamente, inverte a cadeia de causação. O indivíduo é visto como biologicamente
predisposto a fazer certas escolhas. Por evolução cultural, algumas dessas escolhas são
solidificadas em preceitos, depois leis, e se a predisposição ou coerção for forte o suficiente, uma
crença no mandamento de Deus ou na ordem natural do universo. O princípio empirista geral
assume esta forma: Um sentimento inato forte e a experiência histórica fazem com que certas ações
sejam preferidas; nós as experimentamos, pesamos suas conseqüências e concordamos em nos
conformarmos com códigos que as expressam. Juremos sobre os códigos, invistamos nossa honra
pessoal neles e sejamos punidos por sua violação. A visão empirista admite que os códigos morais
são concebidos para se conformar a alguns impulsos da natureza humana e a reprimir outros.
Deveria não é a tradução da natureza humana, mas da vontade pública, que podemos tornar cada
vez mais sábia e estável pela compreensão das necessidades e armadilhas da natureza humana.
Ela reconhece que a força do compromisso pode diminuir em conseqüência de novos conhecimentos
e experiências, com o resultado de que certas regras podem ser dessacralizadas, antigas leis,
rescindidas e o conhecimento antes proibido, liberado. Reconhece também que, pela mesma razão,
pode ser necessário conceber novos códigos morais, com o potencial no tempo de serem
sacralizados.
SE A VISÃO DE MUNDO EMPIRISTA estiver correta, deveria não passa de uma forma abreviada de um

tipo de enunciado factual, uma palavra que denota o que a sociedade primeiro optou por (ou foi
coagida a) fazer e, depois, codificou. A falácia naturalista é, desse modo, reduzida ao dilema
naturalista. A solução do
dilema não é difícil. E esta: deveria é o produto de um processo material. A solução aponta para uma
compreensão objetiva da origem da ética.
Alguns investigadores partiram para tal investigação dos fundamentos. A maioria concorda que
os códigos éticos surgiram por evolução através da interação da biologia e cultura. Em certo sentido,
estão revivendo a idéia de sentimentos morais desenvolvida no século XVIII pelos empiristas
britânicos Francis Hutcheson, David Hume e Adam Smith.
Por sentimentos morais entendem-se agora instintos morais como definidos pelas modernas
ciências comportamentais, sujeitos a julgamento de acordo com suas conseqüências. Os
sentimentos derivam, assim, de regras epigenéticas, tendências hereditárias no desenvolvimento
mental, geralmente condicionadas pela emoção, que influencia os conceitos e as decisões tomadas
com base neles. A origem primária dos instintos morais é a relação dinâmica entre cooperação e
deserção. O ingrediente essencial para a moldagem dos instintos durante a evolução genética em
qualquer espécie é uma inteligência suficientemente alta para julgar e manipular a tensão gerada
pelo dinamismo. Esse nível de inteligência permite a formação de cenários mentais complexos futuro
adentro, como descrevi no capítulo anterior relativo à mente. Ele ocorre, pelo que se conhece,
apenas nos seres humanos e talvez em seus parentes mais próximos dentre os macacos superiores.
Uma forma de visualizar os estágios iniciais hipotéticos da evolução moral éproporcionada pela
teoria do jogo, em particular as soluções ao famoso Dilema do Prisioneiro. Consideremos o seguinte
cenário típico do Dilema. Dois membros de uma quadrilha foram presos por homicídio e estão sendo
interrogados separadamente. As provas contra eles são fortes, mas não decisivas. O primeiro
membro da quadrilha acredita que, testemunhando contra o parceiro, receberá imunidade e este
será condenado à prisão perpétua. Mas ele também sabe que o parceiro tem a mesma opção. Esse
é o dilema. Os dois membros da quadrilha desertarão independentemente, de modo que ambos
acabem incriminados? Não, porque concordaram de antemão que ficariam calados se capturados.
Com isso, ambos esperam ser condenados por uma acusação menor ou escapar totalmente da
punição. As quadrilhas de criminosos transformaram esse princípio de maquinação em um preceito
ético: nunca traia outros membros; mantenha-se sempre firme. A honra existe entre os bandidos. Se
virmos a quadrilha como um tipo de sociedade, o código será o mesmo que o do soldado prisioneiro
de guerra obrigado apenas a informar o nome, escalão e número.
De uma ou outra forma, dilemas semelhantes solucionáveis pela cooperação ocorrem
constantemente e por toda parte na vida diária. A resultado é, alternadamente, dinheiro, status,
poder, sexo, acesso, conforto e saúde. A maioria dessas recompensas próximas é convertida no
resultado universal da aptidão genética darwiniana: maior longevidade e uma família segura e
crescente.
E foi assim que provavelmente sempre aconteceu. Imagine um grupo de caçadores paleolíticos
composto, digamos, de cinco homens. Um caçador cogita em separar-se dos outros para procurar
um antílope próprio. Se bem-sucedido, ganhará uma grande quantidade de carne e couro, cinco
vezes mais do que se permanecer no grupo e este for bem-sucedido. Mas ele sabe por experiência
que suas chances de sucesso sozinho são baixíssimas, bem inferiores às chances de um grupo de
cinco agindo em conjunto. Além disso, seja ou não bem-sucedido sozinho, ele sofrerá a animosidade
dos outros por reduzir-lhes as perspectivas. Por costume, os membros do grupo permanecem juntos
e compartilham eqüitativamente os animais que abatem. Assim, o caçador permanece. Com isso,
observa também as boas maneiras, sobretudo se for ele quem mata o animal. O orgulho ostentatório
é condenado, pois rompe a trama delicada da reciprocidade.
Agora suponha que as propensões humanas a cooperar ou desertar sejam hereditárias: alguns
membros são inatamente mais cooperativos, outros menos. Nesse aspecto, a aptidão moral seria
simplesmente como quase todos os outros traços mentais estudados até hoje. Entre os traços com
heritabilidade documentada, os mais próximos da aptidão moral são a empatia para com o
sofrimento dos outros e certos processos de intimidade entre crianças e quem cuida delas. A
heritabilidade da aptidão moral acrescentem-se os fartos indícios da história de que indivíduos
cooperadores costumam sobreviver mais tempo e deixam uma prole maior. E de se esperar que, no
decorrer da história evolutiva, os genes que predispõem as pessoas ao comportamento cooperativo
tenham vindo a predominar na população humana como um todo.
Tal processo repetido por milhares de gerações inevitavelmente deu origem aos sentimentos
morais. Com exceção de psicopatas irrecuperáveis (se realmente existirem), esses instintos são
vivamente experimentados por uma de cada pessoa alternadamente como consciência, amorpróprio, remorso, empatia, vergonha, humildade e indignação moral. Eles condicionam a evolução
cultural para as convenções que expressam os códigos morais universais de honra, patriotismo,
altruísmo, justiça, compaixão, misericórdia e redenção.
O lado negativo da propensão inata ao comportamento moral é a xenofobia. Porque a
familiaridade pessoal e o interesse comum são vitais nas transações sociais, os sentimentos morais
evoluíram até se tornar seletivos. Sempre foi e sempre será assim. As pessoas relutam em confiar
em estranhos e a verdadeira compaixão é uma mercadoria em escassez crônica. As tribos cooperam
entre si apenas através de tratados e outras convenções cuidadosamente definidos. Elas são rápidas
em se imaginar vítimas de conspirações de grupos concorrentes e tendem a desumanizar e trucidar
os rivais em períodos de grave conflito. Elas consolidam suas próprias lealdades grupais mediante
símbolos sagrados e cerimônias. Suas mitologias estão cheias de vitórias épicas sobre inimigos
ameaçadores.
Os instintos complementares da moralidade e tribalismo são facilmente manipulados. A
civilização tornou-os ainda mais manipuláveis. Há apenas dez mil anos, um átimo no tempo
geológico, quando a revolução agrícola começou no Oriente Médio, na China e na América Central,
a densidade populacional decuplicou em relação às sociedades caçadoras-coletoras. Famílias se
fixaram em pequenos lotes de terra, aldeias proliferaram e o trabalho foi refinadamente dividido à
medida que uma minoria crescente da população especializou-se como artesãos, comerciantes e
soldados. As sociedades agrícolas nascentes, igualitárias de início, tornaram-se hierárquicas. À
medida que tribos e, depois, Estados prosperaram com os excedentes agrícolas, dirigentes
hereditários e castas sacerdotais tomaram o poder. Os antigos códigos éticos foram transformados
em regulamentos coercitivos, sempre em benefício das classes dominantes. Por volta dessa época,
surgiu a idéia de deuses concedentes de leis. Seus mandamentos conferiam aos códigos éticos
autoridade absoluta, de novo — o que não surpreende — em benefício dos dirigentes.
Devido à dificuldade técnica de analisar tais fenômenos de forma objetiva e porque as pessoas
resistem em princípio a explicações biológicas de suas funções corticais superiores, pouquíssimo
progresso realizou-se na exploração biológica dos sentimentos morais. Mesmo assim, é uma
circunstância surpreendente que o estudo da ética tenha avançado tão pouco desde o século XIX.
Como resultado, as qualidades mais características e vitais da espécie humana permanecem um
espaço em branco no mapa científico. Considero um erro basear as discussões éticas nas
suposições auto-suficientes de filósofos contemporâneos que evidentemente nunca voltaram o
pensamento à origem da evolução e ao funcionamento material do cérebro humano. Em nenhum
outro domínio das humanidades, uma união com as ciências naturais é mais premente.
Quando a dimensão ética da natureza humana for enfim aberta a tal exploração, é provável
que as regras epigenéticas inatas do raciocínio moral não se mostrem como agregadas em instintos
simples como intimidade, cooperação e altruísmo. Em vez disso, as regras provavelmente se
revelarão como um conjunto de muitos algoritmos cujas atividades entrelaçadas guiam a mente
através de uma paisagem de estados de espírito e escolhas nuançados.
Tal mundo mental pré-estruturado pode, de início, parecer complicado demais para ter sido
criado apenas pela evolução genética autônoma. Mas todos os dados da biologia indicam que esse
processo sozinho foi suficiente para gerar as milhões de espécies de vida que nos cercam. Cada tipo
de animal é, além disso, guiado através de seu ciclo de vida por conjuntos singulares e, muitas
vezes, elaborados de algoritmos instintivos, muitos dos quais estão começando a se submeter a
análises genéticas e neurobilógicas] Com todos esses exemplo à nossa frente, não é absurdo
concluir que o comportamento humano originou-se da mesma forma.
NESSE ÍNTERIM, as miscelâneas de raciocínio moral empregadas pelas sociedades modernas são, em
suma, uma bagunça. São quimeras, compostas da junção de partes desconexas. O igualitarismo
paleolítico e instintos tribais ainda estão firmemente instalados. Como parte da base genética da
natureza humana, não podem ser substituídos. Em alguns casos, como rápida hostilidade a
estranhos e grupos concorrentes, tornaram-se em geral desajustados e persistentemente perigosos.
Acima dos instintos fundamentais erguem-se superestruturas de argumentos e regras que
acomodam as novas instituições criadas pela evolução cultural. Essas acomodações, que refletem a
tentativa de manter a ordem e promover os interesses tribais, têm sido voláteis demais para serem
rastreadas através da evolução genética; elas ainda não estão nos genes.
Não é de estranhar, então, que a ética seja o mais publicamente contestado de todos os
empreendimentos filosóficos. Ou que a ciência política, que é basicamente o estudo da ética
aplicada, seja tão freqüentemente problemática. Nenhuma delas é amoldada por nada reconhecível
como uma teoria autêntica nas ciências naturais. Tanto a ética como a ciência política carecem de
uma base de conhecimentos verificáveis da natureza humana suficiente para gerar previsões de
causas e efeitos e julgamentos seguros nelas baseados. Sem dúvida, será prudente prestar mais
atenção às fontes profundas do comportamento ético. O maior vazio de conhecimentos em tal
empreendimento é a biologia dos sentimentos morais. No devido tempo, esse assunto poderá ser
compreendido, acredito, prestando-se atenção aos seguintes temas.
• A definição dos sentimentos morais: primeiro por descrições precisas da psicologia
experimental, depois pela análise das respostas neurais e endócrinas subjacentes.
• A genética dos sentimentos morais: mais facilmente abordada através de medições da
heritabilidade dos processos psicológicos e fisiológicos do comportamento ético e, finalmente, com
dificuldade, pela identificação dos genes prescritivos.
• O desenvolvimento dos sentimentos morais como produtos das interações de genes e
ambiente. A pesquisa é mais eficaz quando conduzida em dois níveis:
as histórias dos sistemas éticos como parte da emergência de diferentes culturas e o
desenvolvimento cognitivo de indivíduos vivendo em uma variedade de culturas. Tais investigações
já estão bem avançadas na antropologia e psicologia. No futuro, serão enriquecidas por
contribuições da biologia.
• A história profunda dos sentimentos morais: por que existem em primeiro lugar,
supostamente pelas contribuições para a sobrevivência e o sucesso reprodutivo durante os longos
períodos do tempo pré-histórico em que evoluíram geneticamente.
De uma convergência dessas várias abordagens, a verdadeira origem e o significado do
comportamento ético poderão ganhar nitidez. Nesse caso, as forças e flexibilidade das regras
epigenéticas que compõem os diferentes sentimentos morais poderão ser medidas mais
corretamente. Com base nesse conhecimento, deve ser possível adaptar os antigos sentimentos
morais mais sabiamente às condições em rápida mudança da vida moderna em que,
atabalhoadamente e por ignorância, mergulhamos.
Então, novas respostas poderão ser encontradas para as questões realmente importantes do
raciocínio moral. Como podem ser ordenados os instintos morais? Quais são melhor subjugados e
em que grau, e quais são validados pela lei e símbolos? Como deixar preceitos abertos à apelação
sob circunstâncias extraordinárias? Na nova compreensão poderão ser localizados os meios mais
eficazes de alcançar o consenso. Ninguém consegue adivinhar que forma terão os acordos.
O processo, porém, pode ser previsto com segurança. Ele será democrático, enfraquecendo o
choque de religiões e ideologias rivais. A história está avançando decisivamente nessa direção e as
pessoas são por natureza brilhantes e briguentas demais para tolerar qualquer outra coisa. E o ritmo
pode ser previsto com confiança: a mudança virá devagar, através de gerações, porque velhas
crenças são difíceis de morrer mesmo quando demonstradamente falsas.
O MESMO RACIOCÍNIO que alinha a filosofia ética com a ciência também pode conformar o estudo da
religião. As religiões assemelham-se a superorganismos. Elas têm um ciclo de vida. Nascem,
crescem, competem, se reproduzem e, na plenitude do tempo, a maioria morre. Em cada uma
dessas fases, as religiões refletem os organismos humanos que as nutrem. Elas expressam uma
regra primária da existência humana, que o necessário para sustentar a vida também é, em última
análise, biológico.
As religiões de sucesso tipicamente começam como cultos, que depois aumentam de poder e
abrangência até alcançar tolerância fora do círculo de fiéis. No núcleo de cada religião está um mito
da criação, que explica como o mundo começou e como o povo escolhido — aqueles que aceitam o
sistema de crenças — chegou em seu centro. Há muitas vezes um mistério, um conjunto de instruções
e fórmulas secretas disponíveis apenas a hierofantes que alcançaram um estado superior de
iluminação. A cabala judaica medieval, o sistema de três graus da franco-maçonaria e os entalhes
nos bastões de espíritos dos aborígines australianos são exemplos de tais arcanos. O poder irradia
do centro, reunindo convertidos e ligando seguidores ao grupo. São designados locais sagrados
onde os deuses podem ser importunados, ritos, observados e milagres, testemunhados.
Os devotos da religião competem como uma tribo com os de outras religiões. Hostilmente,
resistem à rejeição de suas crenças pelas rivais. Veneram o auto-sacrifício em defesa da religião.
As raízes tribais da religião e as do raciocínio moral são semelhantes e podem ser idênticas.
Os ritos religiosos, como evidenciado por cerimônias de sepultamento, são muito antigos. No período
Paleolítico Posterior da Europa e Oriente Médio, parece que os corpos eram às vezes colocados em
covas rasas polvilhadas de ocre ou flores, e é fácil imaginar cerimônias lá realizadas que invocavam
espíritos e deuses. Mas, como indicam a dedução teórica e os indícios, os elementos primitivos do
comportamento moral são bem mais antigos do que o ritual paleolítico. A religião surgiu sobre uma
base ética e provavelmente sempre foi usada de uma forma ou de outra para justificar códigos
morais.
A formidável influência do impulso religioso baseia-se em muito mais, porém, do que a mera
validação da moral. Grande rio subterrâneo da mente, ganha força de um amplo espectro de
emoções afluentes. Antes de mais nada vem o instinto de sobrevivência. “O medo”, nas palavras do
poeta romano Lucrécio, “foi a primeira coisa na Terra a gerar deuses.” Nossas mentes conscientes
anseiam por uma existência permanente. Se não conseguirmos a vida eterna do corpo, a absorção
em algum todo imortal servirá. Qualquer coisa servirá, contanto que dê sentido ao indivíduo e de
algum modo estenda à eternidade aquela breve passagem da mente e espírito lamentada por Santo
Agostinho como o curto dia do tempo.
A compreensão e o controle da vida são outra fonte do poder religioso. A doutrina bebe nas
mesmas fontes criativas que a ciência e as artes, seu objetivo sendo extrair ordem dos mistérios do
mundo material. Para explicar o sentido da vida, ela tece narrativas míticas da história tribal,
povoando o cosmo de espíritos e deuses protetores. A existência do sobrenatural, se aceita, atesta a
existência daquele outro mundo tão desesperadamente desejado.
A religião também é extremamente fortalecida por seu principal aliado, o tribalismo. Os xamãs
e sacerdotes nos imploram, em sombria cadência: Confiai nos rituais sagrados, fazei parte da força
imortal, vós sois um de nós. No desenrolar de vossa vida, cada etapa possui importáncia mística que
nós, que vos amamos, marcaremos com um solene rito de passagem, o último a se realizar quando
adentrardes aquele segundo mundo livre de dor e medo.
Se o mito religioso não existisse em uma cultura, seria rapidamente inventado, e de fato o foi
por toda parte, milhares de vezes através da história. Tal inevitabilidade é a marca do
comportamento instintivo em qualquer espécie. Ou seja, mesmo quando aprendido, é guiado para
certos estados por regras do desenvolvimento mental baseadas em emoções. Chamar a religião de
instintiva não é supor que qualquer parte específica de seu mito seja falsa, apenas que suas fontes
são mais profundas do que os hábitos comuns e são, de fato, hereditárias, seu nascimento impelido
por predisposições do desenvolvimento mental codificadas nos genes.
Argumentei no capítulo anterior que tais predisposições devem ser esperadas como uma
conseqüência normal da evolução genética do cérebro. A lógica se
aplica ao comportamento religioso, com o detalhe adicional do tribalismo. Há uma vantagem seletiva
hereditária em participar de um grupo poderoso unido pela fé devota e pelo propósito. Mesmo
quando indivíduos se subordinam à causa comum e arriscam a morte por ela, seus genes são mais
passíveis de ser transmitidos à geração seguinte do que os de grupos concorrentes sem a mesma
determinação.
Os modelos matemáticos da genética de populações sugerem a seguinte regra na origem da
evolução de tal altruísmo. Se a redução da sobrevivência e reprodução dos indivíduos devido aos
genes do altruísmo for mais do que compensada pelo aumento da probabilidade de sobrevivência do
grupo devido ao altruísmo, os genes do altruísmo aumentarão de freqüência em toda a população de
grupos concorrentes. Nos termos mais concisos possíveis: o indivíduo paga, seus genes e tribo
ganham, o altruísmo se espalha.
uma importância ainda mais profunda da teoria empirista da origem da ética e
religião. Se o empirismo mostrar-se falso e o transcendentalismo for irresistivelmente sustentado, a
descoberta será simplesmente a mais conseqüente da história humana. Essa é a carga que recai
sobre a biologia à medida que se aproxima das ciências humanas. Se os dados objetivos
acumulados pela biologia confirmarem o empirismo, a consiliência terá sucesso nos domínios mais
problemáticos do comportamento humano e provavelmente se aplicará por toda parte. Mas se os
dados contradisserem o empirismo em qualquer ponto, a consiliência universal falhará e a divisão
entre ciência e ciências humanas continuará permanente até seus fundamentos.
A questão está longe de ter sido resolvida. Mas o empirismo, como argumentei, está bem
respaldado até agora no caso da ética. Os dados objetivos a seu favor ou contra ele na religião são
SUGERIREI AGORA
mais fracos, mas pelo menos ainda coerentes com a biologia. Por exemplo, as emoções que
acompanham o êxtase religioso têm uma clara fonte neurobiológica. Pelo menos uma forma de
distúrbio cerebral está associada à hiper-religiosidade, em que se atribui importância cósmica a
quase tudo, inclusive eventos triviais do dia-a-dia. No todo, é possível imaginar a interpretação
biológica de uma mente com crenças religiosas, embora apenas isso não descarte o
transcendentalismo ou prove que as próprias crenças sejam falsas.
Igualmente importante, grande parte do comportamento religioso, se não todo, poderia ter
surgido da evolução por seleção natural. A teoria se enquadra
deuses.
— grosseiramente. O comportamento inclui pelo menos alguns aspectos de crença em
Expiação e sacrifício, que são quase universais da prática religiosa, são atos de submissão a um ser
dominante. São uma espécie de hierarquia de predominância, que é um traço geral de sociedades
mamíferas organizadas. A semelhança dos seres humanos, os animais usam sinais elaborados para
anunciar e preservar sua posição na hierarquia. Os detalhes variam entre as espécies, mas também
têm semelhanças sistemáticas de um extremo ao outro, como mostram os dois exemplos seguintes.
Em alcatéias de lobos, o animal dominante caminha ereto e “orgulhoso”, com patas firmes,
deliberadamente compassado, com cabeça, cauda e orelhas erguidas, e fita livre e familiarmente os
outros. Na presença de rivais, o animal dominante eriça o pêlo enquanto estica os lábios para
mostrar os dentes, e tem preferência na escolha de alimento e espaço. Um subordinado usa sinais
opostos. Afasta-se do indivíduo dominante enquanto abaixa a cabeça, orelhas e cauda, e mantém o
pêlo baixo e os dentes cobertos. Rasteja e retira-se de maneira submissa, e cede alimento e espaço
quando desafiado.
Em bandos de macacos rhesus, o macho alfa da tropa é notadamente semelhante em
maneirismos a um lobo dominante. Mantém a cabeça e a cauda erguidas, caminha com firmeza,
“majestade”, enquanto fita familiarmente os outros. Trepa em objetos próximos para ficar acima dos
rivais. Quando desafiado, fita duramente o oponente de boca aberta — sinalizando agressão, não
surpresa — e, às vezes, bate no solo com as palmas abertas para sinalizar que está pronto para o
ataque. O macho ou fêmea subordinada demonstra um andar furtivo, mantendo a cabeça e cauda
abaixadas, desviando-se dos alfa e outros indivíduos de posição superior. Mantém a boca fechada,
exceto para um esgar de medo, e quando desafiado bate em temerosa retirada. Cede espaço e
alimento e, no caso dos machos, as fêmeas no cio.
Meu argumento é o seguinte. Cientistas comportamentais de outro planeta notariam de
imediato a semelhança semiótica entre o comportamento submisso dos animais, por um lado, e a
obediência humana à autoridade religiosa e civil, por outro lado. Eles observariam que os mais
elaborados ritos de obediência são dirigidos aos deuses, os membros hiperdominantes, embora
invisíveis, do grupo humano. E concluiriam, corretamente, que no comportamento social básico, não
apenas na anatomia, o Homo sapiens só recentemente divergiu em evolução de uma espécie
primata não-humana.
Inúmeros estudos de espécies animais, sem o comportamento instintivo obscurecido pela
elaboração cultural, mostraram que participar de ordens de predominância recompensa em termos
de sobrevivência e sucesso reprodutivo por toda a vida. Isso se aplica não só aos indivíduos
dominantes, mas também aos subordinados. Ser membro de qualquer uma das classes dá aos
animais melhor proteção contra os inimigos e maior acesso aos alimentos, abrigo e parceiros do que
a existência solitária. Além disso, a subordinação no grupo não é necessariamente permanente.
Indivíduos dominantes enfraquecem e morrem e, como resultado, alguns dos subordinados avançam
de posição e se apropriam de mais recursos.
Seria surpreendente descobrir que os seres humanos modernos conseguiram apagar os
antigos programas genéticos mamíferos e conceber outros meios de distribuir o poder. Todos os
indícios mostram que não o fizeram. Fiéis à herança primata, as pessoas são facilmente seduzidas
por líderes confiantes, carismáticos,
sobretudo homens. Essa predisposição é mais acentuada em organizações religiosas. Cultos são
formados em torno de tais líderes. Seu poder cresce se conseguem persuasivamente alegar um
acesso especial à figura supremamente dominante e tipicamente masculina de Deus. À medida que
os cultos evoluem em religiões, a imagem do ser supremo é reforçada pelo mito e liturgia. No devido
tempo, a autoridade dos fundadores e de seus sucessores é gravada em textos sagrados,
Subordinados rebeldes, conhecidos como “blasfemadores”, são esmagados.
A mente humana formadora de símbolos, porém, não se satisfaz com sentimentos simiescos
brutos em qualquer esfera emocional. Ela procura desenvolver culturas que sejam maximamente
recompensadoras em todas as dimensões. Na religião, existe o ritual e a prece para contatar
diretamente o ser supremo, a consolação dos correligionários para atenuar a dor que de outra forma
seria insuportável, as explicações do inexplicável e o sentimento oceânico de comunhão com o todo
maior que ultrapassa a compreensão.
A comunhão é a chave, e a esperança dela surgida é eterna; da noite escura da alma surge a
perspectiva de uma jornada espiritual à luz. Para uma minoria especial, a jornada pode ser realizada
nesta vida. A mente reflete de certas maneiras para atingir níveis crescentes de iluminação até
finalmente, quando nenhum progresso adicional é possível, entrar em união mística com o todo.
Dentro das grandes religiões, tal iluminação é expressa pelo samadi hindu, satori zen-budista, fana
sufi, wu-wi taoísta e renascimento cristão pentecostal. Algo semelhante étambém experimentado por
xamãs pré-letrados em alucinações. O que todos esses celebrantes evidentemente sentem (como eu
cheguei a sentir até certo ponto como um protestante renascido) é difícil de exprimir com palavras,
mas Willa Cather chegou o mais próximo possível em uma única sentença. “Isso é felicidade”,
declara seu narrador fictício em My Ántonia, “ser dissolvido em algo completo e grande”.
É claro que isso é felicidade, encontrar o Ente Supremo, penetrar no todo da Natureza,
compreender e se agarrar a algo inefável, bonito e eterno. Milhões o procuram. Senão, sentem-se
perdidos, à deriva em uma vida sem um derradeiro significado. Sua aflição é sintetizada por um
anúncio de 1997 de uma seguradora:
O ano é 1999. Você está morto. O que você faz agora? Eles aderem a religiões estabelecidas,
sucumbem a cultos, experimentam panacéias da Nova Era. Elevam A profecia celestina e outras
tentativas espúrias de iluminação às listas de best-sellers.
Talvez, como acredito, tudo acabe sendo explicado como circuitos cerebrais e história genética
profunda. Mas este não é um assunto para ser trivializado mesmo pelo mais empedernido empirista.
A idéia da união mística é uma parte autêntica do espírito humano. Ela tem ocupado a humanidade
por milênios e suscita questões da máxima seriedade para transcendentalistas e cientistas. Que
caminho, perguntamos, foi percorrido, que destino atingido pelos místicos da história?
Ninguém descreveu a verdadeira jornada com maior clareza do que a grande mística
espanhola Santa Teresa de Âvila, que, em suas memórias de 1563-65, descreve os passos dados
para atingir a união divina por meio da prece. No início da narrativa, ela passa das preces comuns de
devoção e súplica para o segundo nível, a prece da quietude. Ali, sua mente concentra as faculdades
para dentro a fim de dar “um simples consentimento em se tornar prisioneira de Deus”. Uma
profunda sensação de consolo e paz desce sobre ela quando o Senhor fornece a “água de grandes
bênçãos e graças”. Sua mente, então, cessa de se importar com coisas terrenas.
No terceiro estágio da prece, o espírito da santa, “embriagado de amor preocupa-se apenas
com pensamentos de Deus, que a controla e anima.
Oh meu Rei, vendo que estou agora, enquanto escrevo isto, ainda sob o poder desse celestial
entusiasmo... concedei, Vos suplico, que todos aqueles com quem eu possa ter de conviver possam se
entusiasmar através de Vosso amor, ou deixai que não conviva com ninguém, ou ordenai que eu não
tenha nenhum afazer no mundo, ou levai-me embora dele.

No quarto estágio da prece, Santa Teresa de Ávila atinge a união mística:
Não há sensação de nada, apenas fruição... os sentidos estão todos ocupados nessa função de tal
modo que nenhum deles está em liberdade... A alma, enquanto busca assim Deus, está consciente, com
uma alegria excessiva e doce, como se estivesse desfalecendo totalmente em um transe; respirando, mas
toda a força corporal abandonando. A alma está dissolvida na de Deus,e com a união chega enfim a
compreensão das graças concedidas por Ele.

a ânsia por acreditar na existência transcendental e imortalidade é esmagadora. O
transcendentalismo, sobretudo quando reforçado pela fé religiosa, é psiquicamente pleno e rico; dá
certa impressão de certo. Em comparação, o empirismo dá a impressão de estéril e inadequado. Na
busca do derradeiro significado, o caminho transcendentalista é muito mais fácil de seguir. Por isso,
mesmo enquanto o empirismo está conquistando as mentes, o transcendentalismo continua
conquistando os corações. A ciência sempre derrotou o dogma religioso irem por item quando ambos
entraram em conflito. Mas em vão. Nos Estados Unidos, há 15 milhões de batistas favoráveis à
interpretação literal da Bíblia Cristã, mas apenas 5 mil membros da Associação Humanista
Americana, a principal organização dedicada ao humanismo secular e deísta.
Mesmo assim, se a história e a ciência nos ensinaram algo, foi que paixão e desejo não são o
mesmo que verdade. A mente humana evoluiu para acreditar nos deuses. Ela não evoluiu para
acreditar na biologia. A aceitação do sobrenatural comunicou uma grande vantagem através da préhistória, quando o cérebro estava
evoluindo. Assim, contrasta frontalmente com a biologia, que se desenvolveu como um produto da
Idade Moderna e não tem algoritmos genéticos subjacentes. A verdade incômoda é que as duas
crenças não são factualmente compatíveis. Como resultado, os que anseiam pela verdade intelectual
e religiosa jamais adquirirão ambas plenamente.
Nesse ínterim, a teologia tenta resolver o dilema evoluindo como a ciência para a abstração.
Os deuses de nossos ancestrais eram seres humanos divinos, Os egípcios, como observou
Heródoto, representavam-nos como egípcios (multas vezes com partes corporais de animais do Nilo)
e os gregos representavam-nos como gregos. A grande contribuição dos hebreus foi combinar todo o
panteão em uma única pessoa, Javé — um patriarca apropriado a tribos do deserto — e intelectualizar
Sua existência. Nenhuma imagem gravada era permitida. No processo, tornaram a presença divina
menos tangível. Assim, nos relatos bíblicos, sucedeu que ninguém, nem mesmo Moisés ao se
aproximar de Javé na sarça ardente, podia contemplar Sua face. Com o tempo, os judeus foram
proibidos até de pronunciar Seu nome completo e verdadeiro. Não obstante, a idéia de um Deus
teísta, onisciente, onipotente e intimamente envolvido nos assuntos humanos persistiu até os dias de
hoje como a imagem religiosa predominante da cultura ocidental.
Durante o Iluminismo, um número crescente de teólogos judaico-cristãos liberais, desejando
acomodar o teísmo a uma visão mais racionalista do mundo material, afastaram-se da noção de
Deus como uma pessoa. Baruch Spinoza, o proeminente filósofo judeu do século XVII, visualizou a
deidade como uma substância transcendente presente em toda parte do universo. Deus sive natura,
Deus ou natureza, declarou ele, são intercambiáveis. Por seu esforço filosófico, foi banido de
Amsterdã sob um anátema abrangente, combinando todas as pragas imagináveis. Apesar do risco
de heresia, a despersonalização de Deus prossegue firme era moderna adentro. Para Paul Tillich,
um dos teólogos protestantes mais influentes do século XX, a afirmação da existência de Deus como
pessoa não é falsa; é apenas sem sentido. Entre muitos dos pensadores contemporâneos mais
liberais, a negação de uma divindade concreta toma a forma da teologia do processo. Tudo nessa
mais extrema das ontologias faz parte de um rede ininterrupta e infinitamente complexa de relações
em desdobramento. Deus está manifesto em tudo.
Os cientistas, os exploradores do movimento empirista, não estão imunes à idéia de Deus. Os
que a favorecem costumam se inclinar para alguma forma de teologia do processo. Eles formulam
esta pergunta: quando o mundo real do espaço, tempo e matéria for suficientemente conhecido, esse
conhecimento revelará a presença do Criador? Suas esperanças estão investidas nos físicos
teóricos que perseguem a meta da teoria final, a Teoria de Tudo, um sistema de equações
entrelaçadas que descreva tudo que possa ser descoberto sobre as forças
do universo físico. A Teoria de Tudo é uma “bonita” teoria, como Steven Weinberg a chamou em seu
importante ensaio Dreams of a final theory. Bonita porque será elegante, expressando a
PARA MUITOS,
possibilidade de complexidade infinita com o mínimo de leis, e simétrica, porque permanecerá
invariante através de todo o espaço e tempo. E inevitável, significando que, uma vez enunciada,
nenhuma parte poderá ser modificada sem invalidar o todo. Todas as subteorias sobreviventes
podem ser nela encaixadas permanentemente, da maneira como Einstein descreveu sua própria
contribuição, a teoria geral da relatividade. “A principal atração da teoria”, disse Einstein, “reside em
sua completude lógica. Se uma única das conclusões dela extraídas mostrar-se falsa, terá que ser
abandonada; modificá-la sem destruir a estrutura toda parece impossível.”
A perspectiva de uma teoria final pelos mais matemáticos dos cientistas pode parecer sinalizar
a aproximação de um novo despertar religioso. Stephen Hawking, cedendo à tentação em Uma
breve história do tempo (1988), declarou que essa realização científica seria o triunfo definitivo da
razão humana, “porque, então, teremos atingido o conhecimento da mente de Deus”.
Bem — talvez, mas duvido. Os físicos já formularam grande parte da teoria final. Conhecemos a
trajetória; podemos ver aproximadamente para onde aponta. Mas não haverá nenhuma epifania
religiosa, pelo menos nenhuma reconhecível aos autores das Sagradas Escrituras. A ciência nos
afastou bastante do Deus pessoal que antes presidia a civilização ocidental. Ela pouco fez para
satisfazer nossa sede instintiva tão pungentemente expressa pelo salmista:
Com efeito, passa o homem como uma sombra; em vão se inquieta:

amontoa tesouros e não sabe quem os levará. E eu, Senhor, que espero? Tu és a minha esperança.
***
A ESSÊNCIA DO dilema espiritual da humanidade é que evoluímos geneticamente para aceitar uma
verdade e descobrimos outra. Há uma forma de apagar o dilema, de resolver a contradição entre as
visões de mundo transcendentalista e empirista?
Não, infelizmente não há. Além disso, uma escolha entre elas não deverá permanecer arbitrária
para sempre. Os pressupostos subjacentes às duas visões de mundo estão sendo testados com
rigor crescente por conhecimentos verificáveis e cumulativos sobre o funcionamento do universo, do
átomo ao cérebro e à galáxia. Além disso, as duras lições da história deixaram claro que diferentes
códigos de ética não são igualmente bons — pelo menos, não igualmente duráveis. O mesmo se dá
com as religiões. Algumas cosmologias são factualmente menos corretas do que outras, e alguns
preceitos éticos são menos praticáveis.
Existe uma natureza humana de base biológica, e ela é relevante à ética e religião. Os dados
mostram que, devido à sua influência, as pessoas só podem assimilar prontamente uma faixa
estreita de preceitos éticos. Elas florescem dentro de certos sistemas de crenças e fenecem sob
outros. Precisamos saber exatamente por quê.
Com esse intuito, terei a presunção de sugerir como o conflito entre as visões de mundo será
provavelmente resolvido. A idéia de uma origem genética e evolutiva das crenças morais e religiosas
será testada pela continuação dos estudos biológicos do comportamento humano complexo. Na
medida em que os sistemas sensorial e nervoso parecem ter evoluído por seleção natural ou, pelo
menos, por algum outro processo puramente material, a interpretação empirista será apoiada. Ela
será ainda mais apoiada pela verificação da co-evolução gene-cultura, o processo de ligação
essencial descrito em capítulos anteriores.
Agora consideremos a alternativa. Na medida em que os fenômenos éticos e religiosos não
parecerem ter evoluído de maneira compatível com a biologia, e especialmente na medida em que
tal comportamento complexo não puder ser associado a eventos físicos nos sistemas sensorial e
nervoso, a posição empirista terá de ser abandonada e a explicação transcendentalista aceita.
Durante séculos, o poder do empirismo tem se espalhado pelo antigo domínio da crença
transcendentalista, lentamente no início, cada vez mais depressa na era científica. Os espíritos que
nossos ancestrais conheciam intimamente primeiro deixaram as rochas e árvores, depois as
montanhas distantes. Agora estão nos astros, onde sua extinção final é possível. Mas não podemos
viver sem eles. As pessoas precisam de uma narrativa sagrada. Elas precisam de uma sensação de
propósito maior, de uma forma ou de outra, ainda que intelectualizada. Recusarão a ceder ao
desespero da mortalidade animal. Continuarão apelando em companhia do salmista: E eu, Senhor,
que espero? Encontrarão um meio de manter os espíritos ancestrais vivos.
Se a narrativa sagrada não puder ser na forma de uma cosmologia religiosa, será retirada da
história material do universo e da espécie humana. Essa tendência não é em nada humilhante. O
verdadeiro épico evolucionista, recontado como poesia, é tão intrinsecamente enobrecedor como
qualquer épico religioso. A realidade material descoberta pela ciência já possui mais conteúdo e
grandeza do que todas as cosmologias religiosas combinadas. A continuidade da linha humana foi
traçada através de um período de história profunda mil vezes mais antiga do que a concebida nas
religiões ocidentais. Seu estudo trouxe novas revelações de grande importância moral. Fez-nos
perceber que o Homo sapiens não passa de um amontoado de tribos e raças. Somos um único
acervo de genes do qual indivíduos são extraídos a cada geração e no qual são dissolvidos na
geração seguinte, para sempre unidos como uma espécie pela herança e futuro comum. Tais são as
concepções, baseadas nos fatos, de que poderão ser extraídas novas insinuações de imortalidade e
desenvolvidos novos mitos.
Que visão de mundo prevalecerá, o transcendentalismo religioso ou o empirismo científico, fará
grande diferença no futuro pretendido pela humanidade. Durante o período em que a questão estiver
sob exame, uma acomodação poderá ser atingida se os seguintes fatos incontestáveis forem
percebidos. Por um lado, a ética e religião ainda são complexas demais para a ciência atual explicar
em profundidade. Por outro lado, são muito mais um produto da evolução autônoma do que a
maioria dos teólogos tem até agora admitido. A ciência enfrenta na ética e religião seu mais
interessante e talvez humilhante desafio, enquanto a religião precisa encontrar alguma forma de
incorporar as descobertas da ciência para preservar a credibilidade. A religião terá força na medida
em que codificar e puder em forma duradoura e poética os valores mais elevados da humanidade
compatíveis com o conhecimento empírico. Esse é o único modo de exercer uma liderança moral
irresistível. A fé cega, por mais apaixonadamente expressa, não bastará. A ciência, por sua vez,
testará implacavelmente cada suposição sobre a condição humana e, no devido tempo, descobrirá a
base dos sentimentos morais e religiosos.
O resultado final da competição entre as duas visões de mundo, acredito, será a secularização
do épico humano e da própria religião. Como quer que o processo se desenrole, exigirá uma
discussão aberta e um decidido rigor intelectual em uma atmosfera de respeito mútuo.

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Etica e religiao

  • 1. ÉTICA E RELIGIÃO do livro “Consiliência” de Edward O. Wilson ( sem identificação do autor ) SÉCULOS DE DEBATE sobre a origem da ética resumem-se a isto: ou bem os preceitos éticos, como justiça e direitos humanos, são independentes da experiência humana, ou bem são invenções humanas. A distinção é mais do que um exercício para filósofos acadêmicos. Da escolha entre as hipóteses depende toda a diferença no modo de nos vermos como uma espécie. Ela mede a autoridade da religião e determina a direção do raciocínio moral. As duas hipóteses em competição são como ilhas em um mar de caos, imóveis, tão diferentes como vida e morte, matéria e vácuo. Qual está correta não pode ser descoberto por pura lógica; por enquanto, apenas um salto de fé o levará de uma para outra. Mas a verdadeira resposta acabará sendo atingida pelo acúmulo de dados objetivos, O raciocínio moral, acredito, é em cada nível intrinsecamente consiliente com as ciências naturais. Toda pessoa reflexiva tem uma opinião sobre qual das premissas está correta. Mas a divisão não é, como se supõe popularmente, entre crentes religiosos e secularistas. E entre transcendentalistas, aqueles que pensam que as diretrizes morais existem fora da mente humana, e empiristas, que as consideram criações da mente. A escolha entre convicção religiosa e nãoreligiosa e a escolha entre a convicção eticamente transcendentalista e empirista são decisões entrecruzadas no pensamento metafísico. Um transcendentalista ético, acreditando que a ética é independente, pode ser um ateu ou então supor a existência de uma divindade. De forma paralela, um empirista ético, acreditando que a ética não passa de uma criação humana, pode ser um ateu ou então acreditar em uma divindade criadora (embora não um Deus concessor de leis no sentido tradicional judaico-cristão). Nos termos mais simples, a opção da base ética é: Acredito na independência dos valores morais, venham de Deus ou não, ou Acredito que os valores morais vêm apenas dos seres humanos; Deus é uma questão separada. Teólogos e filósofos quase sempre focalizaram o transcendentalismo como o meio de validação da ética. Eles buscam o Graal da lei natural, que compreende princípios independentes de conduta moral imune à dúvida e à contemporizaçáo. Os teólogos cristãos, seguindo o raciocínio de São Tomás de Aquino na Suma teológica, em geral consideram a lei natural como a expressão da vontade de Deus. Os seres humanos, nesse aspecto, têm a obrigação de descobrir a lei por raciocínio diligente e integrá-la à rotina de suas vidas diárias. Filósofos seculares de inclinação transcendentalista podem parecer radicalmente diferentes dos teólogos, mas na verdade são bem semelhantes, pelo menos no raciocínio moral. Eles tendem a ver a lei natural como um conjunto de princípios tão poderosos que são auto-evidentes para qualquer pessoa racional, qualquer que seja a derradeira origem. Em suma, o transcendentalismo é fundamentalmente o mesmo quer Deus seja ou não invocado. Por exemplo, quando Thomas Jefferson, seguindo John Locke, derivou a doutrina dos direitos naturais da lei natural, estava mais preocupado com o poder dos enunciados transcendentais do que com sua origem divina ou secular. Na Declaração da Independência norte-americana, mesclou os pressupostos secular e religioso em uma sentença transcendentalista, cobrindo assim habilmente todas as apostas: “Consideramos tais Verdades evidentes por si mesmas, que todos os Homens são criados iguais, são dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade.” Essa asserção tornou-se a premissa cardeal da religião civil norte-americana, a espada justiceira brandida por Lincoln e Martin Luther King, e perdura como a ética central que une os diferentes povos dos Estados Unidos. Tão convincentes são tais frutos da teoria da Lei natural, sobretudo quando a divindade também é invocada, que parecem colocar a hipótese transcendentalista acima de dúvida. Mas a seus nobres sucessos devem ser acrescentados fracassos estarrecedores. Ela foi pervertida muitas vezes no passado, usada por exemplo para defender apaixonadamente a conquista colonial, a
  • 2. escravidão e o genocídio. Tampouco alguma grande guerra chegou a ser travada sem que cada lado considerasse sua causa transcendentalmente sagrada de uma ou outra maneira. “Oh! Como odiamos uns aos outros”, observou o cardeal Newmann, “por amor a Deus.” Assim, talvez cheguemos a um resultado melhor levando o empirismo mais a sério. A ética, na visão empirista, é a conduta favorecida de modo suficientemente sistemático através de uma sociedade para ser expressa como um código de princípios. E impelida por predisposições hereditárias no desenvolvimento mental - os “sentimentos morais” dos filósofos iluministas -, causando ampla convergência entre culturas, enquanto atinge a forma precisa em cada cultura de acordo com circunstâncias históricas. Os códigos, quer os observadores externos os julguem hons ou ruins, desempenham um importante papel na determinação de que culturas florescem ou declinam. A importância da visão empirista é sua ênfase no conhecimento objetivo. Como o sucesso de um código ético depende de quão sabiamente ele interpreta os sentimentos morais, seus forjadores deveriam saber como funciona o cérebro e como se desenvolve a mente. O sucesso da ética também depende da previsão exata da conseqüência de ações específicas em oposição a outras, sobretudo em casos de ambiguidade moral. Isso também exige muito conhecimento consiliente com as ciências naturais e sociais. O argumento do empirista, então, é que, explorando as raízes biológicas do comportamento moral e explicando suas origens e inclinações materiais, deveríamos ser capazes de atingir um consenso ético mais sábio e duradouro do que anteriormente. A atual expansão da investigação científica aos processos mais profundos do pensamento humano viabiliza esse empreendimento. A escolha entre transcendentalismo e empirismo será a versão do século vindouro da luta pelas almas dos homens, O raciocínio moral permanecerá centrado no linguajar da teologia e filosofia, onde está agora, ou mudará para a análise material baseada na ciência. Onde se fixará dependerá de que visão de mundo se mostrará correta ou, pelo menos, qual será mais amplamente percebida como correta. CHEGOU A HORA de virar as cartas. Os estudiosos da ética, que se especializam no raciocínio moral, não costumam se declarar sobre os fundamentos da ética ou a admitir a falibilidade. Raramente se vê um argumento que comece pela afirmação simples: Este é meu ponto de partida e pode estar errado. Os estudiosos da ética, em vez disso, favorecem uma passagem impaciente do particular ao ambíguo, ou o inverso, do impreciso para casos concretos. Suspeito de que quase todos são transcendentalistas no fundo, mas raramente o admitem em frases declarativas simples. Não se pode culpá-los muito; é difícil explicar o inefável e eles evidentemente não querem sofrer a indignidade de ter suas crenças pessoais claramente entendidas. Assim, em geral, eles contornam totalmente a questão do fundamento. Dito isto, tentarei ser claro a respeito de minha própria posição: sou um empirista. Em religião, inclino-me para o deísmo, mas considero sua prova um problema em grande parte da astrofísica. A existência de um Deus cosmológico que criou o universo (como visualizado pelo deísmo) é possível e poderá acabar sendo estabelecida, talvez por formas de indícios materiais ainda não imaginadas. Ou a questão pode estar para sempre além do alcance humano. Em contrapartida, e de muito mais importância para a humanidade, a existência de um Deus biológico, que dirige a evolução orgânica e intervém nos assuntos humanos (como visualizado pelo teísmo) é cada vez mais contestada pela biologia e ciências do cérebro. Os mesmos indícios, acredito, favorecem uma origem puramente material da ética e satisfazem os critérios da consiliência: explicações causais da atividade do cérebro e evolução, embora imperfeitas, já abrangem a maioria dos fatos conhecidos sobre o comportamento moral com o máximo de precisão e o mínimo de hipóteses independentes. Embora essa concepção seja relativista, ou seja, dependente do ponto de vista pessoal, não precisa sê-lo de forma irresponsável. Se desenvolvida com cuidado, poderá levar a códigos morais estáveis de forma mais direta e segura do que o transcendentalismo, que também é, quando se reflete a respeito, em última análise relativista.
  • 3. E sim - caso eu esqueça -, posso estar errado. Para realçar a distinção entre transcendentalismo e empirismo, criei um debate entre defensores das duas visões de mundo. Para torná-lo mais veemente e convincente, também fiz do transcendentalista um teísta e do empirista um cético. E para ser o mais justo possível, extraí seus argumentos das fontes mais debatidas que conheço em teologia e filosofia. O TRANSCENDENTALISTA “Antes de abordar a ética, permita-me afirmar a lógica do teísmo, pois, se a existência de um Deus concessor de leis for admitida, a origem da ética ficará instantaneamente resolvida. Portanto, aprecie com cuidado o seguinte argumento a favor do teísmo. Desafio sua rejeição do teísmo baseado em seu próprio empirismo. Como você pode querer contestar a existência de um Deus pessoal? Como invalidar os três mil anos de testemunho espiritual dos seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo? Centenas de milhões de pessoas, inclusive uma grande porcentagem dos cidadãos instruídos dos países industrializados, sabem que existe um poder sensível invisível guiando suas vidas. Seu testemunho é esmagador. Segundo pesquisas recentes, nove entre dez norte-americanos acreditam em um Deus pessoal capaz de responder às preces e realizar milagres. Um em cinco experimentou Sua presença e orientação pelo menos uma vez no ano anterior à pesquisa. Como pode a ciência, a disciplina subjacente ao empirismo ético, rejeitar tal testemunho generalizado? O núcleo do método científico, somos constantemente lembrados, é a rejeição de certas proposições a favor de outras em estreita conformidade com a lógica baseada nos fatos. Onde estão os fatos que exigem a rejeição de um Deus pessoal? Não basta dizer que a idéia é desnecessária para explicar o mundo físico, pelo menos como os cientistas o entendem. Há coisa demais em jogo para o teísmo ser rejeitado sem mais nem menos. O ônus da prova recai sobre vocês, não sobre os que acreditam em uma presença divina. A uma perspectiva apropriada, Deus abarca a ciência, a ciência não abarca Deus. Os cientistas coletam dados sobre certos assuntos e formulam hipóteses para explicá-los. Para estender o alcance do conhecimento objetivo o mais longe possível, aceitam provisoriamente algumas hipóteses enquanto descartam outras. Esse conhecimento, porém, só consegue abranger parte da realidade. A pesquisa científica, em particular, não é capaz de explorar todas as variedades assombrosas da experiência mental humana. A idéia de Deus, por outro lado, tem a capacidade de explicar tudo, não apenas fenômenos mensuráveis, mas fenômenos pessoal-mente sentidos e subliminarmente percebidos, inclusive revelações que só podem ser comunicadas por canais espirituais. Por que toda experiência mental deve ser visível em tomografias computadorizadas do cérebro? Ao contrário da ciência, a noção de Deus diz respeito a mais do que o mundo material que nos foi dado explorar. Ela abre nossas mentes para o que está fora do mundo. Orienta-nos a ir ao encontro dos mistérios compreensíveis apenas pela fé. Limite seus pensamentos ao mundo material se quiser. Outras pessoas sabem que Deus contém as causas derradeiras da Criação. De onde vêm as leis da natureza, que não de um poder superior às próprias leis? A ciência não oferece resposta a essa questão soberana da teologia. Em outros termos, por que existe algo em vez de nada? O derradeiro sentido da existência está além do alcance racional dos seres humanos e, portanto, fora dos domínios da ciencia. Você também é um pragmatista? Há uma razão persistentemente prática para a crença em preceitos éticos ordenados por um ser supremo. Negar tal origem, supor que os códigos morais são criações exclusivamente humanas, é um credo perigoso. Como observou o Grande Inquisidor de Dostoiévski, tudo épermitido sem a mão governante de Deus, e a liberdade se transforma em aflição. Em apoio a essa advertência, temos nada menos do que a autoridade dos próprios pensadores originais do Iluminismo. Praticamente todos acreditavam em um Deus criador do universo e muitos eram, além disso, cristãos devotos. Quase nenhum estava disposto a abandonar a ética ao
  • 4. materialismo secular. John Locke disse que os que negam a existência da Divindade não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade; pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo’. Robert Hooke, um grande físico do século XVII, ao compor um sumário sobre a recém-criada Royal Society, advertiu sabiamente que o propósito dessa organização quintessencialmente iluminista deveria ser ‘melhorar o conhecimento das coisas naturais e de todas as úteis Artes, Manufaturas, práticas Mecânicas, Máquinas e Invenções por Experiências (sem se imiscuir com a Divindade, Metafísica, Moral, Política, Gramática, Retórica e Lógica”. Esses sentimentos são igualmente predominantes entre grandes pensadores da época moderna, bem como uma boa minoria de cientistas em atividade. São reforçados pelo desconforto com a idéia de evolução orgânica como defendida por Darwin. Esse princípio do empirismo pretende reduzir a Criação aos produtos de mutações aleatórias e circunstâncias ambientais. Mesmo George Bernard Shaw, um ateu confesso, reagiu ao darwinismo com desespero. Condenou seu fatalismo e o rebaixamento da beleza, inteligência, honra e aspiração a uma noção abstrata de matéria cegamente formada. Muitos autores têm aventado, não injustamente na minha opinião, que tal visão estéril da vida, que reduz os seres humanos a pouco mais do que animais inteligentes, deu justificação intelectual aos horrores genocidas do nazismo e comunismo. Assim, certamente, há algo de errado com a teoria da evolução predominante. Mesmo que ocorra alguma forma de mudança genética nas espécies como proclamado pelo novo darwinismo, a plena e estupenda complexidade dos organismos modernos não poderia ter sido criada pelo acaso cego apenas. Repetidamente na história da ciência, dados novos derrubaram teorias predominantes. Por que os cientistas estão tão ansiosos em permanecer com a evolução autônoma e descartar a possibilidade de um desígnio inteligente em seu lugar? Tudo isso é muito curioso. O desígnio pareceria uma explicação mais simples do que a auto-organização aleatória de milhões de tipos de organismos. Finalmente, o teísmo ganha força esmagadora no caso da mente humana e - não o omitirei - da alma imortal. Não surpreende que um quarto ou mais dos norte-americanos rejeite totalmente a idéia de qualquer tipo de evolução humana, mesmo em anatomia e fisiologia. A ciência, quando levada longe demais, torna-se arrogante. Que se atenha ao seu lugar apropriado, como o dom concedido por Deus de compreender Seu domínio físico.” O EMPIRISTA “Começarei reconhecendo espontaneamente que a religião exerce uma atração irresistível sobre a mente humana e que a convicção religiosa é, em grande parte, benéfica. A religião brota dos recônditos mais profundos do espírito humano. Ela nutre o amor, a devoção e, acima de tudo, a esperança. As pessoas anseiam pela segurança que oferece. Não consigo imaginar nada de mais emocionalmente irresistível do que a doutrina cristã de que Deus encarnou em testemunho da sacralidade da vida humana, mesmo do escravo, e morreu e ressuscitou em promessa de vida eterna para todos. Mas a crença religiosa tem um outro lado destrutivo que se iguala aos piores excessos do materialismo. Estima-se que cem mil sistemas de crenças existiram na história e muitos estimularam guerras étnicas e tribais. Cada uma das três grandes religiões ocidentais em particular expandiu-se, em uma ou outra época, em simbiose com a agressão militar. O Islã, que significa ‘submissão’, foi imposto à força das armas a grandes porções do Oriente Médio, perímetro do Mediterrâneo e sul da Ásia. O cristianismo dominou o Novo Mundo através da expansão colonial tanto quanto da graça espiritual. Beneficiou-se de um acaso histórico: a Europa, tendo sido bloqueada a leste pelos árabes muçulmanos, voltou-se a oeste para ocupar as Américas, com o que a cruz acompanhou a espada em uma campanha após a outra de escravização e genocídio.
  • 5. Os dirigentes cristãos tiveram um exemplo instrutivo a seguir na história antiga do judaísmo. A se acreditar no Antigo Testamento, os israelitas receberam ordens de Deus de extirpar os pagãos da terra prometida. Lemos no Deuteronômio 20:16-17: ‘Quanto às cidades daqueles povos que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança, não deixarás nelas alma viva. Antes, como te ordenou o SENHOR, teu Deus, destruirás totalmente os hiteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os hevetts e os jebuseus.’ Mais de cem cidades foram consumidas pelo fogo e morte, começando com a campanha de Josué contra Jericó e terminando com o ataque de Davi ao antigo baluarte jebuseu de Jerusalém. Trago à tona esses fatos históricos não para difamar as crenças modernas, mas para lançar uma luz sobre suas origens materiais e as dos sistemas éticos que promovem. Todas as grandes civilizações foram disseminadas pela conquista e entre seus principais beneficiários estiveram as religiões que as validavam. Sem dúvida, ser seguidor de religiões patrocinadas pelo Estado sempre foi profundamente gratificante em muitas dimensões psicológicas, e a sabedoria espiritual evoluiu de modo a moderar os princípios mais bárbaros seguidos nas épocas de conquista. Mas toda grande religião atualmente é uma vencedora na luta darwiniana travada entre as culturas e nenhuma jamais floresceu tolerando suas rivais. O caminho mais rápido para o sucesso sempre foi o patrocínio de um Estado conquistador. Para ser justo, deixe-me esclarecer a questão da causa e efeito. A exclusão e o fanatismo religiosos emergem do tribalisrno, a crença na superioridade inata e status especial do grupo do qual se faz parte. O tribalismo não pode ser atribuído à religião. A mesma seqüência causal deu origem a ideologias totalitárias. O corpus mysticum pagão do nazismo e a doutrina da guerra de classes do marxismo-leninismo, ambos em essência dogmas de religiões sem Deus, foram postos a serviço do tribalismo, e não o inverso. Nenhum deles teria sido tão ardorosamente abraçado se seus devotos não se considerassem povos escolhidos, virtuosos em sua missão, cercados de inimigos malévolos, e conquistadores por direito de sangue e destino. Mary Wollstonecraft observou com razão sobre a dominação masculina, mas extensível a todo o comportamento humano: ‘Nenhum homem escolhe o mal pelo mal; ele apenas o confunde com felicidade, que é o bem que busca.’ A conquista por uma tribo requer que seus membros façam sacrifícios pelos interesses do grupo, em especial durante conflitos com grupos concorrentes. Isso não passa da expressão de uma regra básica da vida social através do reino animal. Ela surge quando a perda de vantagem pessoal pela submissão às necessidades do grupo é mais do que compensada pelo ganho de vantagem pessoal devido ao sucesso resultante do grupo. O corolário humano é que pessoas egoístas e prósperas pertencentes a religiões e ideologias perdedoras são substituídas por membros desprendidos e pobres das religiões e ideologias vitoriosas. Uma vida melhor adiante, quer um paraíso terrestre ou a ressurreição no céu, é a recompensa prometida que as culturas inventam para justificar o imperativo de subordinação da existência social. Repetida de uma geração para a próxima, a submissão ao grupo e aos seus códigos morais é solidificada na doutrina oficial e crença pessoal. Mas não é ordenada por Deus ou colhida do ar como uma verdade manifesta. Evolui como um dispositivo de sobrevivência necessário em organismos sociais. A mais perigosa das devoções, na minha opinião, é a endêmica ao cristianismo: não nasci para ser deste mundo. Com uma segunda vida aguardando, o sofrimento pode ser suportado especialmente em outras pessoas. O ambiente natural pode ser exaurido. Os inimigos da fé podem ser trucidados e o martírio suicida, elogiado. Será tudo isso uma ilusão? Bem, hesito em denominá-lo assim ou, pior, uma nobre mentira, a expressão dura às vezes usada por céticos, mas é preciso admitir que os indícios objetivos a seu favor não são fortes. Nenhuma prova estatística existe de que a prece reduz a doença e mortandade, exceto talvez através do fortalecimento psicogênico do sistema imunológico; de outra forma, o mundo inteiro rezaria sem parar. Quando dois exércitos abençoados por sacerdotes se chocam, um deles ainda perde. E quando o cérebro virtuoso do mártir é explodido pela bala do carrasco e sua mente se desintegra, o que acontece? Podemos supor com segurança que todos aqueles milhões de circuitos neurais serão reconstituídos em um estado imaterial, de modo que a mente consciente
  • 6. perdure? Em escatologia, o dinheiro inteligente está na aposta de Blaise Pascal: viva bem mas aceite a fé. Caso exista uma vida após a morte, raciocinou o filósofo francês do século XVII, o fiel terá um bilhete para o paraíso e aproveitará o melhor de ambos os mundos. ‘Se eu perdesse’, escreveu Pascal, ‘teria perdido pouco; se ganhasse, teria ganho a vida eterna.’ Agora pense por um momento como um empirista. Considere a sabedoria de inverter assim a aposta: se medo, esperança e razão determinarem que você deve aceitar a fé, faça-o, mas trate este mundo como se não houvesse outro. Sei que os verdadeiros fiéis se escandalizarão com essa linha de raciocínio. Sua ira recai sobre hereges declarados, considerados no mínimo criadores de caso e na pior hipótese traidores da ordem social. Mas nenhuma prova foi apresentada de que os não-fiéis cumprem menos a lei ou são cidadãos menos produtivos do que os fiéis da mesma classe socioeconômica ou que enfrentam a morte com menos destemor. Uma pesquisa de 1996 feita com cientistas norte-americanos (para tomar um segmento respeitável da sociedade) revelou que 46 por cento são ateus e 14 por cento céticos ou agnósticos. Apenas 36 por cento expressaram um desejo pela imortalidade, dos quais a maioria apenas moderadamente; 64 por cento simplesmente não a desejavam. O verdadeiro caráter brota de uma fonte mais profunda do que a religião. E a interiorização dos princípios morais de uma sociedade, acrescentados daqueles princípios pessoalmente escolhidos pelo indivíduo, fortes o suficiente para resistirem às provações da solidão e adversidade. Os princípios são reunidos no que denominamos integridade, literalmente o eu integrado, cujas decisões pessoais dão a sensação de boas e verdadeiras. O caráter é, por sua vez, a fonte duradoura da virtude. Ergue-se por si mesmo e desperta a admiração nos outros. Não consiste em obediência à autoridade e, embora muitas vezes compatível com a crença religiosa e reforçado por ela, não é devoção. Tampouco a ciência é o inimigo. E o acúmulo do conhecimento organizado e objetivo da humanidade, o primeiro meio concebido capaz de unir as pessoas por toda parte em compreensão comum. Ela não favorece nenhuma tribo ou religião. E a base de uma cultura global e realmente democrática. Você alega que a ciência não consegue explicar os fenômenos espirituais. Por que não? As ciências do cérebro estão fazendo importantes avanços na análise de operações complexas da mente. Não há razão aparente para não fornecerem, no devido tempo, uma explicação material das emoções e raciocínios que compõem o pensamento espiritual. Você indaga sobre a origem dos preceitos éticos, se não a revelação divina. Considere a hipótese empirista alternativa, de que os preceitos e a fé religiosa são produtos inteiramente materiais da mente. Por mais de mil gerações, eles aumentaram a sobrevivência e o sucesso reprodutivo dos que se conformaram às crenças tribais. O tempo foi mais do que suficiente para o desenvolvimento de regras epigenéticas — tendências hereditárias do desenvolvimento mental — que geram sentimentos morais e religiosos. A doutrinabilidade tornou-se um instinto. Os códigos éticos são preceitos alcançados por consenso sob a orientação das regras inatas de desenvolvimento mental. A religião é o conjunto de narrativas míticas que explicam a origem de um povo, seu destino e por que é obrigado a observar certos rituais e códigos morais. As crenças éticas e religiosas são criadas de baixo para cima, dos povos para sua cultura. Elas não vêm de cima para baixo, de Deus ou outra fonte imaterial para o povo por meio da cultura. Que hipótese, transcendentalista ou empirista, adapta-se melhor aos dados objetivos? De longe, a empirista. Na medida em que essa visão for aceita, o raciocínio moral enfatizará mais a escolha social e menos a autoridade religiosa e ideológica. Tal mudança vem de fato ocorrendo nas culturas ocidentais desde o Iluminismo, mas a velocidade tem sido lenta. Parte da razão é uma terrível insuficiência de conhecimentos necessários para julgar as plenas conseqüências de nossas decisões morais, sobretudo a longo prazo, digamos, uma década ou mais. Aprendemos muito sobre nós e o mundo em que vivemos, mas falta muito para sermos plenamente sábios. Há uma tentação, a cada grande crise, de submissão à autoridade
  • 7. transcendental, e talvez isso seja melhor por enquanto. Ainda somos doutrináveis, facilmente nos impressionamos com Deus. A resistência ao empirismo também se deve a uma falha puramente emocional do modo de raciocínio que ele apresenta: ele é frio. As pessoas precisam mais do que razão. Elas precisam da poesia da afirmação, elas anseiam por uma autoridade maior do que elas mesmas em seus ritos de passagem e em outros momentos de grande dificuldade. A maioria deseja desesperadamente a imortalidade que os rituais parecem querer garantir. Grandes cerimônias evocam a história de um povo em solene recordação. Elas ostentam os símbolos sagrados. Esse é o valor duradouro da cerimônia, que em todas as altas civilizações assumiu historicamente uma forma predominante-mente religiosa. Símbolos sagrados se infiltram no próprio cerne da cultura. Eles levarão séculos para ser substituídos, se é que o serão. Assim, talvez eu o surpreenda ao admitir o seguinte: seria uma pena se abandonássemos nossas sagradas e veneradas tradições. Seria uma deformação trágica da história expurgar Deus do juramento de lealdade à bandeira e república norte-americana. Quer sejamos ateus ou verdadeiros fiéis, que os juramentos sejam realizados com a mão sobre a Bíblia e continuemos a ouvir graças a Deus. Chamem padres, pastores e rabinos para abençoar a cerimônia civil com preces e sem dúvida inclinemos as cabeças em respeito coletivo. Reconheçamos que, quando intróitos e invocações nos tocam estamos em presença da poesia e da alma da tribo, algo que sobreviverá às particularidades da crença sectária e talvez à própria crença em Deus. Mas compartilhar reverência não é renunciar ao eu precioso e obscurecer a verdadeira natureza da raça humana. Não devemos nos esquecer de quem somos. Nossa força está na verdade, no conhecimento e no caráter, sob qualquer sinal. As Sagradas Escrituras dizem aos judeus e cristãos que o orgulho antecede a destruição. Discordo; é o inverso: a destruição precede o orgulho. O empirismo inverteu tudo na fórmula. Destruiu a teoria irrefletida de que somos seres especiais postos por uma divindade no centro do universo a fim de servir de auge da Criação para a glória dos deuses. Podemos nos orgulhar como espécie porque, tendo descoberto que estamos sós, devemos aos deuses muito pouco. E melhor mostrar humildade para com nossos irmãos seres humanos e o resto da vida no planeta, dos quais depende realmente toda esperança. E se quaisquer deuses estiverem prestando atenção, decerto conquistamos sua admiração por fazermos essa descoberta e partirmos sozinhos para realizar o melhor de que somos capazes.” O ARGUMENTO do empirista, repetindo minha confissão anterior, é o meu próprio. Está longe de ser novo, suas raízes remontando à Ética de Nicômano de Aristóteles e, no início da era moderna, ao Tratado sobre a natureza humana (1739-40) de David Hume. Sua primeira elaboração evolucionista clara foi por Darwin em The descent ofman (1871). O argumento do transcendentalista religioso, por outro lado, é o que aprendi pela primeira vez quando criança na fé cristã. Tenho refletido repetidamente a respeito desde então e, por intelecto e temperamento, sou obrigado a respeitar suas tradições ancestrais. Além disso, ocorre que o transcendentalismo religioso é sustentado pelo transcendentalismo secular, com o qual guarda semelhanças fundamentais. Immanuel Kant, julgado pela história o maior dos filósofos seculares, abordou o raciocínio moral bastante como um teólogo. Os seres humanos, argumentou, são agentes morais independentes, com total livre-arbítrio, capazes de obedecer ou desobedecer à lei moral: “Há no homem um poder de autodeterminação, independente de qualquer coerção através de impulsos sensuais.” Nossas mentes estão sujeitas a um imperativo categórico, disse ele, do que nossas ações deveriam ser. O imperativo é um bem em si, independente de todas as outras considerações, e pode ser reconhecido por esta regra: “Aja apenas segundo uma máxima pela qual você também deseje que se torne uma lei universal.” Mais importante e transcendental, o deveria não ocorre na natureza. A natureza, disse Kant, é um sistema de causa e efeito, enquanto a opção moral é uma questão de livre-arbítrio, para o qual não há causa e efeito. Ao fazerem opções morais, ao se elevarem acima do mero instinto, os seres humanos transcendem o domínio da natureza e adentram o domínio da liberdade que lhes pertence exclusivamente como criaturas racionais.
  • 8. Embora essa formulação soe confortadora, não faz nenhum sentido em termos de entidades materiais ou imagináveis, razão pela qual Kant, mesmo sem considerar sua prosa tortuosa, é tão difícil de entender. As vezes, um conceito édesconcertante não por ser profundo, mas por estar errado. Ela não está de acordo, sabemos agora, com os dados sobre o funcionamento do cérebro. Em Principia Ethica (1903), G. E. Moore, o fundador da filosofia ética moderna, em essência concordou com Kant. O raciocínio moral, em sua visão, não pode mergulhar na psicologia e nas ciências sociais para localizar os princípios éticos, porque elas só fornecem um quadro causal e não iluminam a base da justificação moral. Passar assim do é factual ao deveria normativo é cometer um erro de lógica básico, que Moore denominou falácia naturalista. John Rawls, em Uma teoria da justiça (1971), voltou a percorrer a estrada transcendental. Ele ofereceu a premissa muito plausível de que a justiça seja definida como eqüidade, que deve ser aceita como um bem intrínseco. E o imperativo que seguiríamos se não tivéssemos nenhuma informação inicial sobre nossa própria posição na vida. Mas, ao fazer tal suposição, Rawls não dedicou nenhum pensamento à origem do cérebro humano ou a como funciona. Não ofereceu nenhum indício de que a justiça-como-eqüidade é compatível com a natureza humana, portanto praticável como uma premissa universal. É provável que seja, mas como saber se não por tentativas e erros cegos? Custa-me acreditar que se Kant, Moore e Rawls tivessem conhecido a 1 biologia e psicologia experimental modernas, teriam raciocinado como fizeram. Contudo, quase no final do século, o transcendentalismo permanece firme nos corações não apenas de fiéis religiosos, mas de inúmeros estudiosos nas ciências sociais e humanidades que, como Moore e Rawls antes deles, optaram por isolar seu pensamento das ciências naturais. Muitos filósofos reagirão com este brado: Alto lá! O que está dizendo? Os estudiosos da ética dispensam esse tipo de informação. Realmente não se pode passar do é para o deveria. Não é permitido descrever uma predisposição genética e supor que, por fazer parte da natureza humana, transforma-se de algum modo em um preceito ético. Temos de situar o raciocínio moral em uma categoria especial e usar diretrizes transcendentais conforme necessario. Não, não temos de situar o raciocínio moral em uma categoria especial e usar premissas transcendentais, porque a colocação da falácia naturalista é em si uma falácia. Pois se deveria não é, o que é? Traduzir é como deveria faz sentido se atentarmos para o significado objetivo dos preceitos éticos. E muito improvável que sejam mensagens etéreas fora da humanidade aguardando revelação, ou verdades independentes vibrando em uma dimensão imaterial da mente. E mais provável que sejam produtos físicos do cérebro e da cultura. Da perspectiva consiliente das ciências naturais, não passam de princípios do contrato social solidificados em regras e ditames, os códigos comportamentais que os membros de uma sociedade desejam ardentemente que os outros sigam e estão dispostos a aceitar eles próprios pelo bem comum. Os ditames são o extremo em uma escala de acordos que vão do assentimento casual ao sentimento público, depois à lei e enfim àquela parte do cânone considerada inalterada e sagrada. A escala aplicada ao adultério poderia ter a seguinte forma: Paremos por aqui; não parece correto e causaria problemas. (Provavelmente não deveríamos.) O adultério, além de provocar sentimento de culpa, costuma ser desaprovado pela sociedade, havendo portanto outras razões para evitá-lo. (Não deveríamos.) O adultério não é apenas desaprovado, é contra a lei. (Quase certamente não deveríamos.) Deus ordena que evitemos esse pecado mortal. (Absolutamente não deveríamos.) No pensamento transcendental, a cadeia de causação flui para baixo a partir do deveria dado na religião ou lei natural, através da jurisprudência, à educação e, finalmente, à escolha individual. O argumento do transcendentalismo assume a seguinte forma geral: Existe um princípio supremo, quer divino ou intrínseco àordem da natureza, e faríamos bem em tomar conhecimento dele e encontrar o meio de nos conformarmos a ele. Assim, John Rawls abre A theory of justice com uma proposição que considera irrevogável: “Em uma sociedade justa, as liberdades da igualdade de cidadania são consideradas estabelecidas; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à barganha
  • 9. política ou ao cálculo dos interesses sociais.” Como muitos críticos deixaram claro, essa premissa pode levar a muitas conseqüências infelizes quando aplicada ao mundo real, inclusive o endurecimento do controle social e declínio da iniciativa pessoal. Uma premissa bem diferente e, portanto, sugerida por Robert Nozick em Anarchy, state, and utopia (1974): “Os indivíduos possuem direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer-lhes (sem violar seus direitos). Tão fortes e abrangentes são esses direitos que suscitam a questão do papel do Estado e suas autoridades, se é que têm um.” Rawls nos encaminharia ao igualitarismo regulado pelo Estado, Nozick ao libertarismo em um Estado minimalista. A visão empirista, por outro lado, na busca de uma origem do raciocínio ético que possa ser estudado objetivamente, inverte a cadeia de causação. O indivíduo é visto como biologicamente predisposto a fazer certas escolhas. Por evolução cultural, algumas dessas escolhas são solidificadas em preceitos, depois leis, e se a predisposição ou coerção for forte o suficiente, uma crença no mandamento de Deus ou na ordem natural do universo. O princípio empirista geral assume esta forma: Um sentimento inato forte e a experiência histórica fazem com que certas ações sejam preferidas; nós as experimentamos, pesamos suas conseqüências e concordamos em nos conformarmos com códigos que as expressam. Juremos sobre os códigos, invistamos nossa honra pessoal neles e sejamos punidos por sua violação. A visão empirista admite que os códigos morais são concebidos para se conformar a alguns impulsos da natureza humana e a reprimir outros. Deveria não é a tradução da natureza humana, mas da vontade pública, que podemos tornar cada vez mais sábia e estável pela compreensão das necessidades e armadilhas da natureza humana. Ela reconhece que a força do compromisso pode diminuir em conseqüência de novos conhecimentos e experiências, com o resultado de que certas regras podem ser dessacralizadas, antigas leis, rescindidas e o conhecimento antes proibido, liberado. Reconhece também que, pela mesma razão, pode ser necessário conceber novos códigos morais, com o potencial no tempo de serem sacralizados. SE A VISÃO DE MUNDO EMPIRISTA estiver correta, deveria não passa de uma forma abreviada de um tipo de enunciado factual, uma palavra que denota o que a sociedade primeiro optou por (ou foi coagida a) fazer e, depois, codificou. A falácia naturalista é, desse modo, reduzida ao dilema naturalista. A solução do dilema não é difícil. E esta: deveria é o produto de um processo material. A solução aponta para uma compreensão objetiva da origem da ética. Alguns investigadores partiram para tal investigação dos fundamentos. A maioria concorda que os códigos éticos surgiram por evolução através da interação da biologia e cultura. Em certo sentido, estão revivendo a idéia de sentimentos morais desenvolvida no século XVIII pelos empiristas britânicos Francis Hutcheson, David Hume e Adam Smith. Por sentimentos morais entendem-se agora instintos morais como definidos pelas modernas ciências comportamentais, sujeitos a julgamento de acordo com suas conseqüências. Os sentimentos derivam, assim, de regras epigenéticas, tendências hereditárias no desenvolvimento mental, geralmente condicionadas pela emoção, que influencia os conceitos e as decisões tomadas com base neles. A origem primária dos instintos morais é a relação dinâmica entre cooperação e deserção. O ingrediente essencial para a moldagem dos instintos durante a evolução genética em qualquer espécie é uma inteligência suficientemente alta para julgar e manipular a tensão gerada pelo dinamismo. Esse nível de inteligência permite a formação de cenários mentais complexos futuro adentro, como descrevi no capítulo anterior relativo à mente. Ele ocorre, pelo que se conhece, apenas nos seres humanos e talvez em seus parentes mais próximos dentre os macacos superiores. Uma forma de visualizar os estágios iniciais hipotéticos da evolução moral éproporcionada pela teoria do jogo, em particular as soluções ao famoso Dilema do Prisioneiro. Consideremos o seguinte cenário típico do Dilema. Dois membros de uma quadrilha foram presos por homicídio e estão sendo interrogados separadamente. As provas contra eles são fortes, mas não decisivas. O primeiro membro da quadrilha acredita que, testemunhando contra o parceiro, receberá imunidade e este
  • 10. será condenado à prisão perpétua. Mas ele também sabe que o parceiro tem a mesma opção. Esse é o dilema. Os dois membros da quadrilha desertarão independentemente, de modo que ambos acabem incriminados? Não, porque concordaram de antemão que ficariam calados se capturados. Com isso, ambos esperam ser condenados por uma acusação menor ou escapar totalmente da punição. As quadrilhas de criminosos transformaram esse princípio de maquinação em um preceito ético: nunca traia outros membros; mantenha-se sempre firme. A honra existe entre os bandidos. Se virmos a quadrilha como um tipo de sociedade, o código será o mesmo que o do soldado prisioneiro de guerra obrigado apenas a informar o nome, escalão e número. De uma ou outra forma, dilemas semelhantes solucionáveis pela cooperação ocorrem constantemente e por toda parte na vida diária. A resultado é, alternadamente, dinheiro, status, poder, sexo, acesso, conforto e saúde. A maioria dessas recompensas próximas é convertida no resultado universal da aptidão genética darwiniana: maior longevidade e uma família segura e crescente. E foi assim que provavelmente sempre aconteceu. Imagine um grupo de caçadores paleolíticos composto, digamos, de cinco homens. Um caçador cogita em separar-se dos outros para procurar um antílope próprio. Se bem-sucedido, ganhará uma grande quantidade de carne e couro, cinco vezes mais do que se permanecer no grupo e este for bem-sucedido. Mas ele sabe por experiência que suas chances de sucesso sozinho são baixíssimas, bem inferiores às chances de um grupo de cinco agindo em conjunto. Além disso, seja ou não bem-sucedido sozinho, ele sofrerá a animosidade dos outros por reduzir-lhes as perspectivas. Por costume, os membros do grupo permanecem juntos e compartilham eqüitativamente os animais que abatem. Assim, o caçador permanece. Com isso, observa também as boas maneiras, sobretudo se for ele quem mata o animal. O orgulho ostentatório é condenado, pois rompe a trama delicada da reciprocidade. Agora suponha que as propensões humanas a cooperar ou desertar sejam hereditárias: alguns membros são inatamente mais cooperativos, outros menos. Nesse aspecto, a aptidão moral seria simplesmente como quase todos os outros traços mentais estudados até hoje. Entre os traços com heritabilidade documentada, os mais próximos da aptidão moral são a empatia para com o sofrimento dos outros e certos processos de intimidade entre crianças e quem cuida delas. A heritabilidade da aptidão moral acrescentem-se os fartos indícios da história de que indivíduos cooperadores costumam sobreviver mais tempo e deixam uma prole maior. E de se esperar que, no decorrer da história evolutiva, os genes que predispõem as pessoas ao comportamento cooperativo tenham vindo a predominar na população humana como um todo. Tal processo repetido por milhares de gerações inevitavelmente deu origem aos sentimentos morais. Com exceção de psicopatas irrecuperáveis (se realmente existirem), esses instintos são vivamente experimentados por uma de cada pessoa alternadamente como consciência, amorpróprio, remorso, empatia, vergonha, humildade e indignação moral. Eles condicionam a evolução cultural para as convenções que expressam os códigos morais universais de honra, patriotismo, altruísmo, justiça, compaixão, misericórdia e redenção. O lado negativo da propensão inata ao comportamento moral é a xenofobia. Porque a familiaridade pessoal e o interesse comum são vitais nas transações sociais, os sentimentos morais evoluíram até se tornar seletivos. Sempre foi e sempre será assim. As pessoas relutam em confiar em estranhos e a verdadeira compaixão é uma mercadoria em escassez crônica. As tribos cooperam entre si apenas através de tratados e outras convenções cuidadosamente definidos. Elas são rápidas em se imaginar vítimas de conspirações de grupos concorrentes e tendem a desumanizar e trucidar os rivais em períodos de grave conflito. Elas consolidam suas próprias lealdades grupais mediante símbolos sagrados e cerimônias. Suas mitologias estão cheias de vitórias épicas sobre inimigos ameaçadores. Os instintos complementares da moralidade e tribalismo são facilmente manipulados. A civilização tornou-os ainda mais manipuláveis. Há apenas dez mil anos, um átimo no tempo geológico, quando a revolução agrícola começou no Oriente Médio, na China e na América Central, a densidade populacional decuplicou em relação às sociedades caçadoras-coletoras. Famílias se
  • 11. fixaram em pequenos lotes de terra, aldeias proliferaram e o trabalho foi refinadamente dividido à medida que uma minoria crescente da população especializou-se como artesãos, comerciantes e soldados. As sociedades agrícolas nascentes, igualitárias de início, tornaram-se hierárquicas. À medida que tribos e, depois, Estados prosperaram com os excedentes agrícolas, dirigentes hereditários e castas sacerdotais tomaram o poder. Os antigos códigos éticos foram transformados em regulamentos coercitivos, sempre em benefício das classes dominantes. Por volta dessa época, surgiu a idéia de deuses concedentes de leis. Seus mandamentos conferiam aos códigos éticos autoridade absoluta, de novo — o que não surpreende — em benefício dos dirigentes. Devido à dificuldade técnica de analisar tais fenômenos de forma objetiva e porque as pessoas resistem em princípio a explicações biológicas de suas funções corticais superiores, pouquíssimo progresso realizou-se na exploração biológica dos sentimentos morais. Mesmo assim, é uma circunstância surpreendente que o estudo da ética tenha avançado tão pouco desde o século XIX. Como resultado, as qualidades mais características e vitais da espécie humana permanecem um espaço em branco no mapa científico. Considero um erro basear as discussões éticas nas suposições auto-suficientes de filósofos contemporâneos que evidentemente nunca voltaram o pensamento à origem da evolução e ao funcionamento material do cérebro humano. Em nenhum outro domínio das humanidades, uma união com as ciências naturais é mais premente. Quando a dimensão ética da natureza humana for enfim aberta a tal exploração, é provável que as regras epigenéticas inatas do raciocínio moral não se mostrem como agregadas em instintos simples como intimidade, cooperação e altruísmo. Em vez disso, as regras provavelmente se revelarão como um conjunto de muitos algoritmos cujas atividades entrelaçadas guiam a mente através de uma paisagem de estados de espírito e escolhas nuançados. Tal mundo mental pré-estruturado pode, de início, parecer complicado demais para ter sido criado apenas pela evolução genética autônoma. Mas todos os dados da biologia indicam que esse processo sozinho foi suficiente para gerar as milhões de espécies de vida que nos cercam. Cada tipo de animal é, além disso, guiado através de seu ciclo de vida por conjuntos singulares e, muitas vezes, elaborados de algoritmos instintivos, muitos dos quais estão começando a se submeter a análises genéticas e neurobilógicas] Com todos esses exemplo à nossa frente, não é absurdo concluir que o comportamento humano originou-se da mesma forma. NESSE ÍNTERIM, as miscelâneas de raciocínio moral empregadas pelas sociedades modernas são, em suma, uma bagunça. São quimeras, compostas da junção de partes desconexas. O igualitarismo paleolítico e instintos tribais ainda estão firmemente instalados. Como parte da base genética da natureza humana, não podem ser substituídos. Em alguns casos, como rápida hostilidade a estranhos e grupos concorrentes, tornaram-se em geral desajustados e persistentemente perigosos. Acima dos instintos fundamentais erguem-se superestruturas de argumentos e regras que acomodam as novas instituições criadas pela evolução cultural. Essas acomodações, que refletem a tentativa de manter a ordem e promover os interesses tribais, têm sido voláteis demais para serem rastreadas através da evolução genética; elas ainda não estão nos genes. Não é de estranhar, então, que a ética seja o mais publicamente contestado de todos os empreendimentos filosóficos. Ou que a ciência política, que é basicamente o estudo da ética aplicada, seja tão freqüentemente problemática. Nenhuma delas é amoldada por nada reconhecível como uma teoria autêntica nas ciências naturais. Tanto a ética como a ciência política carecem de uma base de conhecimentos verificáveis da natureza humana suficiente para gerar previsões de causas e efeitos e julgamentos seguros nelas baseados. Sem dúvida, será prudente prestar mais atenção às fontes profundas do comportamento ético. O maior vazio de conhecimentos em tal empreendimento é a biologia dos sentimentos morais. No devido tempo, esse assunto poderá ser compreendido, acredito, prestando-se atenção aos seguintes temas. • A definição dos sentimentos morais: primeiro por descrições precisas da psicologia experimental, depois pela análise das respostas neurais e endócrinas subjacentes. • A genética dos sentimentos morais: mais facilmente abordada através de medições da
  • 12. heritabilidade dos processos psicológicos e fisiológicos do comportamento ético e, finalmente, com dificuldade, pela identificação dos genes prescritivos. • O desenvolvimento dos sentimentos morais como produtos das interações de genes e ambiente. A pesquisa é mais eficaz quando conduzida em dois níveis: as histórias dos sistemas éticos como parte da emergência de diferentes culturas e o desenvolvimento cognitivo de indivíduos vivendo em uma variedade de culturas. Tais investigações já estão bem avançadas na antropologia e psicologia. No futuro, serão enriquecidas por contribuições da biologia. • A história profunda dos sentimentos morais: por que existem em primeiro lugar, supostamente pelas contribuições para a sobrevivência e o sucesso reprodutivo durante os longos períodos do tempo pré-histórico em que evoluíram geneticamente. De uma convergência dessas várias abordagens, a verdadeira origem e o significado do comportamento ético poderão ganhar nitidez. Nesse caso, as forças e flexibilidade das regras epigenéticas que compõem os diferentes sentimentos morais poderão ser medidas mais corretamente. Com base nesse conhecimento, deve ser possível adaptar os antigos sentimentos morais mais sabiamente às condições em rápida mudança da vida moderna em que, atabalhoadamente e por ignorância, mergulhamos. Então, novas respostas poderão ser encontradas para as questões realmente importantes do raciocínio moral. Como podem ser ordenados os instintos morais? Quais são melhor subjugados e em que grau, e quais são validados pela lei e símbolos? Como deixar preceitos abertos à apelação sob circunstâncias extraordinárias? Na nova compreensão poderão ser localizados os meios mais eficazes de alcançar o consenso. Ninguém consegue adivinhar que forma terão os acordos. O processo, porém, pode ser previsto com segurança. Ele será democrático, enfraquecendo o choque de religiões e ideologias rivais. A história está avançando decisivamente nessa direção e as pessoas são por natureza brilhantes e briguentas demais para tolerar qualquer outra coisa. E o ritmo pode ser previsto com confiança: a mudança virá devagar, através de gerações, porque velhas crenças são difíceis de morrer mesmo quando demonstradamente falsas. O MESMO RACIOCÍNIO que alinha a filosofia ética com a ciência também pode conformar o estudo da religião. As religiões assemelham-se a superorganismos. Elas têm um ciclo de vida. Nascem, crescem, competem, se reproduzem e, na plenitude do tempo, a maioria morre. Em cada uma dessas fases, as religiões refletem os organismos humanos que as nutrem. Elas expressam uma regra primária da existência humana, que o necessário para sustentar a vida também é, em última análise, biológico. As religiões de sucesso tipicamente começam como cultos, que depois aumentam de poder e abrangência até alcançar tolerância fora do círculo de fiéis. No núcleo de cada religião está um mito da criação, que explica como o mundo começou e como o povo escolhido — aqueles que aceitam o sistema de crenças — chegou em seu centro. Há muitas vezes um mistério, um conjunto de instruções e fórmulas secretas disponíveis apenas a hierofantes que alcançaram um estado superior de iluminação. A cabala judaica medieval, o sistema de três graus da franco-maçonaria e os entalhes nos bastões de espíritos dos aborígines australianos são exemplos de tais arcanos. O poder irradia do centro, reunindo convertidos e ligando seguidores ao grupo. São designados locais sagrados onde os deuses podem ser importunados, ritos, observados e milagres, testemunhados. Os devotos da religião competem como uma tribo com os de outras religiões. Hostilmente, resistem à rejeição de suas crenças pelas rivais. Veneram o auto-sacrifício em defesa da religião. As raízes tribais da religião e as do raciocínio moral são semelhantes e podem ser idênticas. Os ritos religiosos, como evidenciado por cerimônias de sepultamento, são muito antigos. No período Paleolítico Posterior da Europa e Oriente Médio, parece que os corpos eram às vezes colocados em covas rasas polvilhadas de ocre ou flores, e é fácil imaginar cerimônias lá realizadas que invocavam espíritos e deuses. Mas, como indicam a dedução teórica e os indícios, os elementos primitivos do comportamento moral são bem mais antigos do que o ritual paleolítico. A religião surgiu sobre uma
  • 13. base ética e provavelmente sempre foi usada de uma forma ou de outra para justificar códigos morais. A formidável influência do impulso religioso baseia-se em muito mais, porém, do que a mera validação da moral. Grande rio subterrâneo da mente, ganha força de um amplo espectro de emoções afluentes. Antes de mais nada vem o instinto de sobrevivência. “O medo”, nas palavras do poeta romano Lucrécio, “foi a primeira coisa na Terra a gerar deuses.” Nossas mentes conscientes anseiam por uma existência permanente. Se não conseguirmos a vida eterna do corpo, a absorção em algum todo imortal servirá. Qualquer coisa servirá, contanto que dê sentido ao indivíduo e de algum modo estenda à eternidade aquela breve passagem da mente e espírito lamentada por Santo Agostinho como o curto dia do tempo. A compreensão e o controle da vida são outra fonte do poder religioso. A doutrina bebe nas mesmas fontes criativas que a ciência e as artes, seu objetivo sendo extrair ordem dos mistérios do mundo material. Para explicar o sentido da vida, ela tece narrativas míticas da história tribal, povoando o cosmo de espíritos e deuses protetores. A existência do sobrenatural, se aceita, atesta a existência daquele outro mundo tão desesperadamente desejado. A religião também é extremamente fortalecida por seu principal aliado, o tribalismo. Os xamãs e sacerdotes nos imploram, em sombria cadência: Confiai nos rituais sagrados, fazei parte da força imortal, vós sois um de nós. No desenrolar de vossa vida, cada etapa possui importáncia mística que nós, que vos amamos, marcaremos com um solene rito de passagem, o último a se realizar quando adentrardes aquele segundo mundo livre de dor e medo. Se o mito religioso não existisse em uma cultura, seria rapidamente inventado, e de fato o foi por toda parte, milhares de vezes através da história. Tal inevitabilidade é a marca do comportamento instintivo em qualquer espécie. Ou seja, mesmo quando aprendido, é guiado para certos estados por regras do desenvolvimento mental baseadas em emoções. Chamar a religião de instintiva não é supor que qualquer parte específica de seu mito seja falsa, apenas que suas fontes são mais profundas do que os hábitos comuns e são, de fato, hereditárias, seu nascimento impelido por predisposições do desenvolvimento mental codificadas nos genes. Argumentei no capítulo anterior que tais predisposições devem ser esperadas como uma conseqüência normal da evolução genética do cérebro. A lógica se aplica ao comportamento religioso, com o detalhe adicional do tribalismo. Há uma vantagem seletiva hereditária em participar de um grupo poderoso unido pela fé devota e pelo propósito. Mesmo quando indivíduos se subordinam à causa comum e arriscam a morte por ela, seus genes são mais passíveis de ser transmitidos à geração seguinte do que os de grupos concorrentes sem a mesma determinação. Os modelos matemáticos da genética de populações sugerem a seguinte regra na origem da evolução de tal altruísmo. Se a redução da sobrevivência e reprodução dos indivíduos devido aos genes do altruísmo for mais do que compensada pelo aumento da probabilidade de sobrevivência do grupo devido ao altruísmo, os genes do altruísmo aumentarão de freqüência em toda a população de grupos concorrentes. Nos termos mais concisos possíveis: o indivíduo paga, seus genes e tribo ganham, o altruísmo se espalha. uma importância ainda mais profunda da teoria empirista da origem da ética e religião. Se o empirismo mostrar-se falso e o transcendentalismo for irresistivelmente sustentado, a descoberta será simplesmente a mais conseqüente da história humana. Essa é a carga que recai sobre a biologia à medida que se aproxima das ciências humanas. Se os dados objetivos acumulados pela biologia confirmarem o empirismo, a consiliência terá sucesso nos domínios mais problemáticos do comportamento humano e provavelmente se aplicará por toda parte. Mas se os dados contradisserem o empirismo em qualquer ponto, a consiliência universal falhará e a divisão entre ciência e ciências humanas continuará permanente até seus fundamentos. A questão está longe de ter sido resolvida. Mas o empirismo, como argumentei, está bem respaldado até agora no caso da ética. Os dados objetivos a seu favor ou contra ele na religião são SUGERIREI AGORA
  • 14. mais fracos, mas pelo menos ainda coerentes com a biologia. Por exemplo, as emoções que acompanham o êxtase religioso têm uma clara fonte neurobiológica. Pelo menos uma forma de distúrbio cerebral está associada à hiper-religiosidade, em que se atribui importância cósmica a quase tudo, inclusive eventos triviais do dia-a-dia. No todo, é possível imaginar a interpretação biológica de uma mente com crenças religiosas, embora apenas isso não descarte o transcendentalismo ou prove que as próprias crenças sejam falsas. Igualmente importante, grande parte do comportamento religioso, se não todo, poderia ter surgido da evolução por seleção natural. A teoria se enquadra deuses. — grosseiramente. O comportamento inclui pelo menos alguns aspectos de crença em Expiação e sacrifício, que são quase universais da prática religiosa, são atos de submissão a um ser dominante. São uma espécie de hierarquia de predominância, que é um traço geral de sociedades mamíferas organizadas. A semelhança dos seres humanos, os animais usam sinais elaborados para anunciar e preservar sua posição na hierarquia. Os detalhes variam entre as espécies, mas também têm semelhanças sistemáticas de um extremo ao outro, como mostram os dois exemplos seguintes. Em alcatéias de lobos, o animal dominante caminha ereto e “orgulhoso”, com patas firmes, deliberadamente compassado, com cabeça, cauda e orelhas erguidas, e fita livre e familiarmente os outros. Na presença de rivais, o animal dominante eriça o pêlo enquanto estica os lábios para mostrar os dentes, e tem preferência na escolha de alimento e espaço. Um subordinado usa sinais opostos. Afasta-se do indivíduo dominante enquanto abaixa a cabeça, orelhas e cauda, e mantém o pêlo baixo e os dentes cobertos. Rasteja e retira-se de maneira submissa, e cede alimento e espaço quando desafiado. Em bandos de macacos rhesus, o macho alfa da tropa é notadamente semelhante em maneirismos a um lobo dominante. Mantém a cabeça e a cauda erguidas, caminha com firmeza, “majestade”, enquanto fita familiarmente os outros. Trepa em objetos próximos para ficar acima dos rivais. Quando desafiado, fita duramente o oponente de boca aberta — sinalizando agressão, não surpresa — e, às vezes, bate no solo com as palmas abertas para sinalizar que está pronto para o ataque. O macho ou fêmea subordinada demonstra um andar furtivo, mantendo a cabeça e cauda abaixadas, desviando-se dos alfa e outros indivíduos de posição superior. Mantém a boca fechada, exceto para um esgar de medo, e quando desafiado bate em temerosa retirada. Cede espaço e alimento e, no caso dos machos, as fêmeas no cio. Meu argumento é o seguinte. Cientistas comportamentais de outro planeta notariam de imediato a semelhança semiótica entre o comportamento submisso dos animais, por um lado, e a obediência humana à autoridade religiosa e civil, por outro lado. Eles observariam que os mais elaborados ritos de obediência são dirigidos aos deuses, os membros hiperdominantes, embora invisíveis, do grupo humano. E concluiriam, corretamente, que no comportamento social básico, não apenas na anatomia, o Homo sapiens só recentemente divergiu em evolução de uma espécie primata não-humana. Inúmeros estudos de espécies animais, sem o comportamento instintivo obscurecido pela elaboração cultural, mostraram que participar de ordens de predominância recompensa em termos de sobrevivência e sucesso reprodutivo por toda a vida. Isso se aplica não só aos indivíduos dominantes, mas também aos subordinados. Ser membro de qualquer uma das classes dá aos animais melhor proteção contra os inimigos e maior acesso aos alimentos, abrigo e parceiros do que a existência solitária. Além disso, a subordinação no grupo não é necessariamente permanente. Indivíduos dominantes enfraquecem e morrem e, como resultado, alguns dos subordinados avançam de posição e se apropriam de mais recursos. Seria surpreendente descobrir que os seres humanos modernos conseguiram apagar os antigos programas genéticos mamíferos e conceber outros meios de distribuir o poder. Todos os indícios mostram que não o fizeram. Fiéis à herança primata, as pessoas são facilmente seduzidas por líderes confiantes, carismáticos, sobretudo homens. Essa predisposição é mais acentuada em organizações religiosas. Cultos são formados em torno de tais líderes. Seu poder cresce se conseguem persuasivamente alegar um
  • 15. acesso especial à figura supremamente dominante e tipicamente masculina de Deus. À medida que os cultos evoluem em religiões, a imagem do ser supremo é reforçada pelo mito e liturgia. No devido tempo, a autoridade dos fundadores e de seus sucessores é gravada em textos sagrados, Subordinados rebeldes, conhecidos como “blasfemadores”, são esmagados. A mente humana formadora de símbolos, porém, não se satisfaz com sentimentos simiescos brutos em qualquer esfera emocional. Ela procura desenvolver culturas que sejam maximamente recompensadoras em todas as dimensões. Na religião, existe o ritual e a prece para contatar diretamente o ser supremo, a consolação dos correligionários para atenuar a dor que de outra forma seria insuportável, as explicações do inexplicável e o sentimento oceânico de comunhão com o todo maior que ultrapassa a compreensão. A comunhão é a chave, e a esperança dela surgida é eterna; da noite escura da alma surge a perspectiva de uma jornada espiritual à luz. Para uma minoria especial, a jornada pode ser realizada nesta vida. A mente reflete de certas maneiras para atingir níveis crescentes de iluminação até finalmente, quando nenhum progresso adicional é possível, entrar em união mística com o todo. Dentro das grandes religiões, tal iluminação é expressa pelo samadi hindu, satori zen-budista, fana sufi, wu-wi taoísta e renascimento cristão pentecostal. Algo semelhante étambém experimentado por xamãs pré-letrados em alucinações. O que todos esses celebrantes evidentemente sentem (como eu cheguei a sentir até certo ponto como um protestante renascido) é difícil de exprimir com palavras, mas Willa Cather chegou o mais próximo possível em uma única sentença. “Isso é felicidade”, declara seu narrador fictício em My Ántonia, “ser dissolvido em algo completo e grande”. É claro que isso é felicidade, encontrar o Ente Supremo, penetrar no todo da Natureza, compreender e se agarrar a algo inefável, bonito e eterno. Milhões o procuram. Senão, sentem-se perdidos, à deriva em uma vida sem um derradeiro significado. Sua aflição é sintetizada por um anúncio de 1997 de uma seguradora: O ano é 1999. Você está morto. O que você faz agora? Eles aderem a religiões estabelecidas, sucumbem a cultos, experimentam panacéias da Nova Era. Elevam A profecia celestina e outras tentativas espúrias de iluminação às listas de best-sellers. Talvez, como acredito, tudo acabe sendo explicado como circuitos cerebrais e história genética profunda. Mas este não é um assunto para ser trivializado mesmo pelo mais empedernido empirista. A idéia da união mística é uma parte autêntica do espírito humano. Ela tem ocupado a humanidade por milênios e suscita questões da máxima seriedade para transcendentalistas e cientistas. Que caminho, perguntamos, foi percorrido, que destino atingido pelos místicos da história? Ninguém descreveu a verdadeira jornada com maior clareza do que a grande mística espanhola Santa Teresa de Âvila, que, em suas memórias de 1563-65, descreve os passos dados para atingir a união divina por meio da prece. No início da narrativa, ela passa das preces comuns de devoção e súplica para o segundo nível, a prece da quietude. Ali, sua mente concentra as faculdades para dentro a fim de dar “um simples consentimento em se tornar prisioneira de Deus”. Uma profunda sensação de consolo e paz desce sobre ela quando o Senhor fornece a “água de grandes bênçãos e graças”. Sua mente, então, cessa de se importar com coisas terrenas. No terceiro estágio da prece, o espírito da santa, “embriagado de amor preocupa-se apenas com pensamentos de Deus, que a controla e anima. Oh meu Rei, vendo que estou agora, enquanto escrevo isto, ainda sob o poder desse celestial entusiasmo... concedei, Vos suplico, que todos aqueles com quem eu possa ter de conviver possam se entusiasmar através de Vosso amor, ou deixai que não conviva com ninguém, ou ordenai que eu não tenha nenhum afazer no mundo, ou levai-me embora dele. No quarto estágio da prece, Santa Teresa de Ávila atinge a união mística: Não há sensação de nada, apenas fruição... os sentidos estão todos ocupados nessa função de tal modo que nenhum deles está em liberdade... A alma, enquanto busca assim Deus, está consciente, com uma alegria excessiva e doce, como se estivesse desfalecendo totalmente em um transe; respirando, mas
  • 16. toda a força corporal abandonando. A alma está dissolvida na de Deus,e com a união chega enfim a compreensão das graças concedidas por Ele. a ânsia por acreditar na existência transcendental e imortalidade é esmagadora. O transcendentalismo, sobretudo quando reforçado pela fé religiosa, é psiquicamente pleno e rico; dá certa impressão de certo. Em comparação, o empirismo dá a impressão de estéril e inadequado. Na busca do derradeiro significado, o caminho transcendentalista é muito mais fácil de seguir. Por isso, mesmo enquanto o empirismo está conquistando as mentes, o transcendentalismo continua conquistando os corações. A ciência sempre derrotou o dogma religioso irem por item quando ambos entraram em conflito. Mas em vão. Nos Estados Unidos, há 15 milhões de batistas favoráveis à interpretação literal da Bíblia Cristã, mas apenas 5 mil membros da Associação Humanista Americana, a principal organização dedicada ao humanismo secular e deísta. Mesmo assim, se a história e a ciência nos ensinaram algo, foi que paixão e desejo não são o mesmo que verdade. A mente humana evoluiu para acreditar nos deuses. Ela não evoluiu para acreditar na biologia. A aceitação do sobrenatural comunicou uma grande vantagem através da préhistória, quando o cérebro estava evoluindo. Assim, contrasta frontalmente com a biologia, que se desenvolveu como um produto da Idade Moderna e não tem algoritmos genéticos subjacentes. A verdade incômoda é que as duas crenças não são factualmente compatíveis. Como resultado, os que anseiam pela verdade intelectual e religiosa jamais adquirirão ambas plenamente. Nesse ínterim, a teologia tenta resolver o dilema evoluindo como a ciência para a abstração. Os deuses de nossos ancestrais eram seres humanos divinos, Os egípcios, como observou Heródoto, representavam-nos como egípcios (multas vezes com partes corporais de animais do Nilo) e os gregos representavam-nos como gregos. A grande contribuição dos hebreus foi combinar todo o panteão em uma única pessoa, Javé — um patriarca apropriado a tribos do deserto — e intelectualizar Sua existência. Nenhuma imagem gravada era permitida. No processo, tornaram a presença divina menos tangível. Assim, nos relatos bíblicos, sucedeu que ninguém, nem mesmo Moisés ao se aproximar de Javé na sarça ardente, podia contemplar Sua face. Com o tempo, os judeus foram proibidos até de pronunciar Seu nome completo e verdadeiro. Não obstante, a idéia de um Deus teísta, onisciente, onipotente e intimamente envolvido nos assuntos humanos persistiu até os dias de hoje como a imagem religiosa predominante da cultura ocidental. Durante o Iluminismo, um número crescente de teólogos judaico-cristãos liberais, desejando acomodar o teísmo a uma visão mais racionalista do mundo material, afastaram-se da noção de Deus como uma pessoa. Baruch Spinoza, o proeminente filósofo judeu do século XVII, visualizou a deidade como uma substância transcendente presente em toda parte do universo. Deus sive natura, Deus ou natureza, declarou ele, são intercambiáveis. Por seu esforço filosófico, foi banido de Amsterdã sob um anátema abrangente, combinando todas as pragas imagináveis. Apesar do risco de heresia, a despersonalização de Deus prossegue firme era moderna adentro. Para Paul Tillich, um dos teólogos protestantes mais influentes do século XX, a afirmação da existência de Deus como pessoa não é falsa; é apenas sem sentido. Entre muitos dos pensadores contemporâneos mais liberais, a negação de uma divindade concreta toma a forma da teologia do processo. Tudo nessa mais extrema das ontologias faz parte de um rede ininterrupta e infinitamente complexa de relações em desdobramento. Deus está manifesto em tudo. Os cientistas, os exploradores do movimento empirista, não estão imunes à idéia de Deus. Os que a favorecem costumam se inclinar para alguma forma de teologia do processo. Eles formulam esta pergunta: quando o mundo real do espaço, tempo e matéria for suficientemente conhecido, esse conhecimento revelará a presença do Criador? Suas esperanças estão investidas nos físicos teóricos que perseguem a meta da teoria final, a Teoria de Tudo, um sistema de equações entrelaçadas que descreva tudo que possa ser descoberto sobre as forças do universo físico. A Teoria de Tudo é uma “bonita” teoria, como Steven Weinberg a chamou em seu importante ensaio Dreams of a final theory. Bonita porque será elegante, expressando a PARA MUITOS,
  • 17. possibilidade de complexidade infinita com o mínimo de leis, e simétrica, porque permanecerá invariante através de todo o espaço e tempo. E inevitável, significando que, uma vez enunciada, nenhuma parte poderá ser modificada sem invalidar o todo. Todas as subteorias sobreviventes podem ser nela encaixadas permanentemente, da maneira como Einstein descreveu sua própria contribuição, a teoria geral da relatividade. “A principal atração da teoria”, disse Einstein, “reside em sua completude lógica. Se uma única das conclusões dela extraídas mostrar-se falsa, terá que ser abandonada; modificá-la sem destruir a estrutura toda parece impossível.” A perspectiva de uma teoria final pelos mais matemáticos dos cientistas pode parecer sinalizar a aproximação de um novo despertar religioso. Stephen Hawking, cedendo à tentação em Uma breve história do tempo (1988), declarou que essa realização científica seria o triunfo definitivo da razão humana, “porque, então, teremos atingido o conhecimento da mente de Deus”. Bem — talvez, mas duvido. Os físicos já formularam grande parte da teoria final. Conhecemos a trajetória; podemos ver aproximadamente para onde aponta. Mas não haverá nenhuma epifania religiosa, pelo menos nenhuma reconhecível aos autores das Sagradas Escrituras. A ciência nos afastou bastante do Deus pessoal que antes presidia a civilização ocidental. Ela pouco fez para satisfazer nossa sede instintiva tão pungentemente expressa pelo salmista: Com efeito, passa o homem como uma sombra; em vão se inquieta: amontoa tesouros e não sabe quem os levará. E eu, Senhor, que espero? Tu és a minha esperança. *** A ESSÊNCIA DO dilema espiritual da humanidade é que evoluímos geneticamente para aceitar uma verdade e descobrimos outra. Há uma forma de apagar o dilema, de resolver a contradição entre as visões de mundo transcendentalista e empirista? Não, infelizmente não há. Além disso, uma escolha entre elas não deverá permanecer arbitrária para sempre. Os pressupostos subjacentes às duas visões de mundo estão sendo testados com rigor crescente por conhecimentos verificáveis e cumulativos sobre o funcionamento do universo, do átomo ao cérebro e à galáxia. Além disso, as duras lições da história deixaram claro que diferentes códigos de ética não são igualmente bons — pelo menos, não igualmente duráveis. O mesmo se dá com as religiões. Algumas cosmologias são factualmente menos corretas do que outras, e alguns preceitos éticos são menos praticáveis. Existe uma natureza humana de base biológica, e ela é relevante à ética e religião. Os dados mostram que, devido à sua influência, as pessoas só podem assimilar prontamente uma faixa estreita de preceitos éticos. Elas florescem dentro de certos sistemas de crenças e fenecem sob outros. Precisamos saber exatamente por quê. Com esse intuito, terei a presunção de sugerir como o conflito entre as visões de mundo será provavelmente resolvido. A idéia de uma origem genética e evolutiva das crenças morais e religiosas será testada pela continuação dos estudos biológicos do comportamento humano complexo. Na medida em que os sistemas sensorial e nervoso parecem ter evoluído por seleção natural ou, pelo menos, por algum outro processo puramente material, a interpretação empirista será apoiada. Ela será ainda mais apoiada pela verificação da co-evolução gene-cultura, o processo de ligação essencial descrito em capítulos anteriores. Agora consideremos a alternativa. Na medida em que os fenômenos éticos e religiosos não parecerem ter evoluído de maneira compatível com a biologia, e especialmente na medida em que tal comportamento complexo não puder ser associado a eventos físicos nos sistemas sensorial e nervoso, a posição empirista terá de ser abandonada e a explicação transcendentalista aceita. Durante séculos, o poder do empirismo tem se espalhado pelo antigo domínio da crença transcendentalista, lentamente no início, cada vez mais depressa na era científica. Os espíritos que nossos ancestrais conheciam intimamente primeiro deixaram as rochas e árvores, depois as montanhas distantes. Agora estão nos astros, onde sua extinção final é possível. Mas não podemos viver sem eles. As pessoas precisam de uma narrativa sagrada. Elas precisam de uma sensação de
  • 18. propósito maior, de uma forma ou de outra, ainda que intelectualizada. Recusarão a ceder ao desespero da mortalidade animal. Continuarão apelando em companhia do salmista: E eu, Senhor, que espero? Encontrarão um meio de manter os espíritos ancestrais vivos. Se a narrativa sagrada não puder ser na forma de uma cosmologia religiosa, será retirada da história material do universo e da espécie humana. Essa tendência não é em nada humilhante. O verdadeiro épico evolucionista, recontado como poesia, é tão intrinsecamente enobrecedor como qualquer épico religioso. A realidade material descoberta pela ciência já possui mais conteúdo e grandeza do que todas as cosmologias religiosas combinadas. A continuidade da linha humana foi traçada através de um período de história profunda mil vezes mais antiga do que a concebida nas religiões ocidentais. Seu estudo trouxe novas revelações de grande importância moral. Fez-nos perceber que o Homo sapiens não passa de um amontoado de tribos e raças. Somos um único acervo de genes do qual indivíduos são extraídos a cada geração e no qual são dissolvidos na geração seguinte, para sempre unidos como uma espécie pela herança e futuro comum. Tais são as concepções, baseadas nos fatos, de que poderão ser extraídas novas insinuações de imortalidade e desenvolvidos novos mitos. Que visão de mundo prevalecerá, o transcendentalismo religioso ou o empirismo científico, fará grande diferença no futuro pretendido pela humanidade. Durante o período em que a questão estiver sob exame, uma acomodação poderá ser atingida se os seguintes fatos incontestáveis forem percebidos. Por um lado, a ética e religião ainda são complexas demais para a ciência atual explicar em profundidade. Por outro lado, são muito mais um produto da evolução autônoma do que a maioria dos teólogos tem até agora admitido. A ciência enfrenta na ética e religião seu mais interessante e talvez humilhante desafio, enquanto a religião precisa encontrar alguma forma de incorporar as descobertas da ciência para preservar a credibilidade. A religião terá força na medida em que codificar e puder em forma duradoura e poética os valores mais elevados da humanidade compatíveis com o conhecimento empírico. Esse é o único modo de exercer uma liderança moral irresistível. A fé cega, por mais apaixonadamente expressa, não bastará. A ciência, por sua vez, testará implacavelmente cada suposição sobre a condição humana e, no devido tempo, descobrirá a base dos sentimentos morais e religiosos. O resultado final da competição entre as duas visões de mundo, acredito, será a secularização do épico humano e da própria religião. Como quer que o processo se desenrole, exigirá uma discussão aberta e um decidido rigor intelectual em uma atmosfera de respeito mútuo.