2. Escrevi aquela estória sim
Soltei meu grito crioulo sem medo
Pra você saber
Faço questão de ser negra nessa cidade
descolorida
Doa a quem doer
Faço questão de empinar meu cabelo
cheio de poder
Encresparei sempre
Em meio a essa noite embriagada de
trejeitos brancos e fúteis
Escrevi aquele conto negro bem sóbria
Pra você perceber de uma vez por todas
Que entre a minha pele e o papel que
embrulha os seus cadernos
Não há comparação parda cabível
Há um oceano
O mesmo mar cemitério que abriga os
meus antepassados assassinados por
essa mesma escravidão que ainda nos
oprime
Escrevi
Escrevo
Escreverei
Com letras garrafais
Em vermelho vivo
Pra você lembrar
Que jorrou muito sangue
(SOBRAL, 2014, p. 38).
PETARDO
4. [...] na escre(vivência) das mulheres negras, encontramos o desenho
de novos perfis na literatura brasileira, tanto do ponto de vista do
conteúdo, como no da autoria. Uma inovação literária se dá
profundamente marcada pelo lugar sócio-cultural em que essas
escritoras se colocam para produzir suas escritas. Da condição
feminina e negra, nasce a inspiração para esses textos [...].
(EVARISTO, 2005, p. 54).
PELAS LENTES DA AUTORA.
5. Carne de mulher
Nua em frente ao espelho
Me olho
Me observo
Me vejo
E me sinto mulher.
Nas ruas é bem diferente.
Mesmo vestida
Me olham
Me observam
Me vee
Como pedaço de carne
Quanto vale ou é por quilo?
Carne de primeira, de segunda
Carne de mulher?
Carne de vaca?
Seria eu uma vaca?
Cadê a mulher que eu era quando saí de
casa?
Não! Não aceito! Me recuso!
Eu não sou a carne mais barata do
mercado.
A carne mais barata do mercado não é a
mulher negra!
(NASCIMENTO, SN, p. 54).
6. Uma escritora anfíbia .
[...] Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas.
Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com
os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo
que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-
pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a
sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os
olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia,
chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor
dos olhos dela? (EVARISTO, 2016, p. 19).
7. [...]era um ritual de uma escrita composta de múltiplos gestos, em que
todo corpo dela se movimentava e não só os dedos. [...] na composição
daqueles traços, na arquitetura daqueles símbolos, alegoricamente ela
imprimia todo o seu desespero[...]é preciso comprometer a vida com a
escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida? [...] creio que a
gênese de minha escrita está no acumulo de tudo que ouvi desde a
infância. O acumulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa
casa e adjacências (EVARISTO, 2007).
PELAS LENTES DA AUTORA.
8. Salve América!
Ah!
Esta América Ladina
Ainda nos roubam o fígado, os
filhos
Nos roubam a sorte
A morte
O sono
Ah!
Esta América Ladina
As três caravelas pintaram
destinos
Santa Maria, nada teve a ver
comigo
Pinta, roubou-me o colorido
natural
de ser eu mesma
Nina, enfiou-me pela goela
mamadeira de sangue, sal e urina
Até hoje me Nina em seus podres
berços de miséria
(Mirian Alves).
9. [...] investindo contra várias formas de silenciamento, as mulheres
negras continuam buscando se fazerem ouvir na sociedade
brasileira, conservadora de um imaginário contra o negro. Imagens
nascidas de uma sociedade escravocrata perpassam, até hoje,
profundamente, pelos modos das relações sociais brasileiras
(EVARISTO, 2005, p. 205).
PELAS LENTES DA AUTORA.
10. RECORDAR É PRECISO
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas
(EVARISTO, 2009).
11. • EVARISTO, Conceição. “Gênero e Etnia: uma escre(vivência) da dupla face”.In: Mulheres no mundo,
etnia, marginalidade e diáspora. (ed.) Nadilza Martins de barros Moreira and Diane Schneider. João
Pessoa: Idéia, 2005. p. 201-212.
• EVARISTO, Conceição. “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha
escrita”. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.) Representações performáticas brasileiras: teorias,
praticas e suas interferfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007, p.16-21.
• EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. SCRIPTA, Belo
Horizonte, v. 13, n. 25, p. 17-31, 2º sem. 2009.
• EVARISTO, Conceição. “Olhos d’água”. In: Id. Olhos d’água- 1 ed. Rio de Janeiro: Pallas Fundação
Biblioteca Nacional, 2016, p. 15-19.
• SOBRAL, Cristiane. Só por hoje eu vou deixar o meu cabelo em paz. Brasília: ed., 2014. 132 p.
• OHMER, Sarah. Jenyffer Nascimento: a Poesia Épica de Empoderamento da Mulher Negra. Interfaces
Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 18, n. 3, 2018, p. 161-175.
Referências