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Homem e linguagem
Neste capítulo, realizaremos uma reflexão sobre
os conceitos linguísticos fundamentais para a aprendizagem e o
ensino da língua portuguesa.
Serão abordados os conceitos de linguagem, língua e fala,
as diferentes formas como a linguagem é apresentada e a maneira
como os falantes de uma língua fazem uso dela. Serão apresentadas
ainda as funções da linguagem e suas variações.
–  10  –
Leitura e Escrita na Era Digital
Ao final do capítulo, será possível identificar os elementos da comuni-
cação, além de distinguir as funções da linguagem em relação aos elementos
do processo comunicativo. Também será possível diferenciar os conceitos de
linguagem, língua e fala e reconhecer a variação linguística como uma mani-
festação decorrente das influências recebidas no contato com as diversas cul-
turas existentes em nosso país.
A língua é, sem dúvida, um dos mais importantes produtos da cultura,
porque é o código utilizado em grande parte dos nossos atos de comunicação.
1.1 Linguagem, língua e fala
No dia a dia, costuma-se afirmar – o que cientificamente comprova-se –
que a linguagem diferencia o homem dos demais animais. Dessa forma, no
Dicionário de comunicação (RABAÇA, 1987, p. 367), encontramos a seguinte
definição: “a linguagem é um fato exclusivamente humano, um método de
comunicação racional de ideias, emoções e desejos por meio de símbolos
produzidos de maneira deliberada”
. Isso porque a linguagem humana pode
ser articulada por seu usuário, pode envolver o pensamento e o simbólico,
a representação da sua realidade e suas relações nos atos comunicativos.
Assim, a linguagem, a língua possibilita ao homem criar e agir sobre a rea-
lidade. Segundo Vygotsky, “o momento de maior significado no curso do
desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas
de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prá-
tica, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento,
convergem” (VYGOTSKY, 2010, p. 12).
No texto a seguir, o filósofo Louis Hjelmslev (1975, p. 15) apresenta,
de modo filosófico e literário, a indiscutível importância da linguagem para
o homem:
A linguagem, a fala humana é uma inesgotável riqueza de
múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e
segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento
graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus senti-
mentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos,
o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado,
a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é
tambémorecursoúltimoeindispensáveldohomem,seurefú-
gio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existên-
cia, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na
–  11  –
Homem e linguagem
meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar
de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta,
prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso
pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através
da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana
aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida
de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela
linguagem, força e calor A linguagem não é um simples acom-
panhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do
pensamento; para o indivíduo, ela é o tesouro da memória e a
consciência vigilante transmitida de pais para filhos. Para seu
bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra
natal e da nação, o título de nobreza da humanidade.
Para dominar a linguagem como língua, é preciso que a pessoa desen-
volva várias habilidades necessárias ao processo de comunicação. Ouvir,
falar, ler e escrever são as ações que, gradualmente, vão propiciar o desenvol-
vimento desse domínio.
A partir do nascimento (alguns estudiosos afirmam que até antes),
começa-se a ouvir todos que estão próximos; pelo processo de imitação,
associado com o desenvolvimento físico, inicia-se a repetição do que se ouve.
Nasce a fala, no início restrita, com pouquíssimas palavras que, em geral,
servem para várias situações e objetos, tais como: “mamá” (comida), “mãma”
(mãe); “papá” (comida), “pápa” (pai), e assim por diante. Por volta dos sete
anos, chegamos a 1 mil ou 1,2 mil palavras e, por volta dos 14 anos, a 15 ou 20
mil, dependendo do contexto e das situações relacionadas com a linguagem.
Na sequência, a oralidade irá se transformar em linguagem simbólica,
a partir do momento em que as habilidades de leitura e escrita passam a ser
dominadas. Essas duas habilidades necessitam de aprendizagens diferencia-
das, pois “para escrever é preciso ter um acervo de recursos e ter o que dizer
sobre o assunto. Para ler, é preciso ter um acervo de recursos que permita
compreender o texto” (LIMA, 2002, p. 15). Se, por um lado, é ruim apren-
der as duas habilidades separadamente e não como um conhecimento auto-
mático, por outro, é salutar, porque, em caso de qualquer problema físico,
pode-se ficar com uma ou com outra (se tiver sorte).
Após o processo de domínio das quatro habilidades, adquire-se uma com-
petência muito mais importante do que simplesmente o domínio de uma ­
língua,
–  12  –
Leitura e Escrita na Era Digital
éacompetênciadepensar,quetornaohomem,segundoatradição,efetivamente
humano. Ou seja, se há linguagem, há pensamento ou, como diz o filósofo Des-
cartes: “Cogito, ergo sum”(“Penso, logo existo”). Vygotsky pondera que
a relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa
mas um processo, um movimento contínuo de vaivém entre
a palavra e o pensamento: nesse processo a relação entre o
pensamento e a palavra sofre alterações que, também elas,
podem ser consideradas como um desenvolvimento no sen-
tido funcional. As palavras não se limitam a exprimir o pen-
samento: é por elas que este acede à existência [...]. O pensa-
mento e a palavra não são talhados no mesmo modelo: em
certo sentido há mais diferenças do que semelhanças entre
eles. A estrutura da linguagem não se limita a refletir como
num espelho a estrutura do pensamento; é por isso que não
se pode vestir o pensamento com palavras, como se de um
ornamento se tratasse. O pensamento sofre muitas altera-
ções ao transformar-se em fala. Não se limita a encontrar
expressão na fala; encontra nela a sua realidade e a sua forma
(VYGOTSKY apud IANNI, 1999, p. 40).
No entanto, linguagem e língua aproximam-se e diferem de que modo?
Muitas palavras, utilizadas para explicar o processo de comunicação, pare-
cem sinônimas, mas apresentam conceitos diferentes cuja compreensão é
importante, tanto para o ensino, quanto para a aprendizagem de uma língua,
são elas: linguagem, língua, fala, discurso, sistema, norma, palavra, vocábulo
e léxico. Portanto, o conhecimento da importância da palavra para todo o
processo de interação por meio da linguagem é fundamental. Isso porque
cada palavra tem seu sentido reconhecido plenamente desde que se conheça
o contexto no qual ela está inserida. O contexto é que definirá o real sentido
de cada palavra. A compreensão do sentido da palavra, num determinado
texto e contexto, é que possibilitará, também, a compreensão da mensagem.
Contexto
Texto
Palavra
–  13  –
Homem e linguagem
Tal concepção fica evidente na música Palavras, do grupo Titãs, pois,
a partir dela, é possível inferir que é o falante que dá vida às palavras, pelo
contexto e pela compreensão de mundo do usuário. Vamos observar o trecho
a seguir:
Palavras
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números pra os dias
E os nomes pra as pessoas
[...]
Palavras. Marcelo Fromer e Sérgio Britto, Titãs,
1989 © Warner Chappel Music.
A linguagem é uma característica humana universal, visto que utiliza
todos os códigos, signos, sinais para que sejam expressados pensamentos, per-
cepções e sentimentos e para que a comunicação seja efetivada. Pode-se dizer
que a linguagem vai se desenvolvendo por meio de um sistema de signos (algo
que está no lugar de um objeto ou fenômeno, sob algum aspecto).
Os signos estabelecem relações de sentido com o objeto que represen-
tam, das mais simples às mais complexas. É necessário passar por essas rela-
ções para se chegar ao domínio da linguagem. São elas:
	
2 	
relação de semelhança – o signo é o objeto apresentado; ícone:
exemplo – as imagens em geral;
	
2 relação de causa e efeito – afeta a existência do objeto ou por ele
é afetado; índice: exemplo – pegadas na lama – alguém passou
por aqui;
	
2 relação arbitrária – regida por convenção; símbolo: exemplo – as
representações, continuamente usadas na linguagem e no entendi-
mento pessoal, tornam-se convenções, símbolos.
–  14  –
Leitura e Escrita na Era Digital
Já a língua é uma linguagem de caráter regional, é um sistema organi-
zado de sons e sinais que a caracterizarão como o código de signos linguísticos
de um determinado povo. Desse modo, todas as línguas (para a comunidade
lusófona, a língua portuguesa) têm uma estrutura própria para combinar os
signos linguísticos.
Sendo assim, a língua constitui-se por: um repertório/conjunto de sig-
nos que vão compô-la; as regras de combinação que incluem as de organiza-
ção dos sons e suas combinações; as regras que determinam a organização
interna das palavras e as que especificam a forma como serão ordenadas as
palavras e a diversidade de tipos de frase. Estamos nos referindo à fonologia,
à morfologia, à sintaxe da língua e às regras de uso, as quais englobam as
regras reguladoras do uso da linguagem em contextos sociais – no que diz
respeito às funções e intenções comunicativas e à escolha de códigos a uti-
lizar – e que devem ser aceitas pela sociedade para que haja inteligibilidade
entre os atos de comunicação.
O terceiro conceito a ser compreendido no processo de comunicação é a
fala, o uso individual da língua, o discurso que se realiza a partir da compre-
ensão da língua e do conhecimento de mundo de cada um. Por esses motivos,
falantes de uma mesma língua, de uma mesma região e de uma mesma for-
mação terão falas, discursos diferentes. Por se tratar de oralidade, o falante
pode desrespeitar as regras de combinação; se este desrespeito tornar-se
padrão, poderá alterar e criar uma nova regra, promovida pelo uso.
Podemos afirmar que dominamos uma língua quando conhecemos seu
repertório de signos, as regras de combinação e as regras de uso desses signos.
Segundo Saussure (1977, p. 196), “nada entra na língua sem ter sido expe-
rimentado na fala, e todos os fenômenos evolutivos têm sua raiz na esfera
do indivíduo”
. De acordo com o linguista, o que diferencia a língua da fala é
que a primeira é sistemática, tem certa regularidade, é potencial, coletiva; a
segunda é assistemática, possui certa variedade, é concreta, real, individual.
A língua, então, pode ser escrita e falada. São duas formas de uso que
acabam tendo regras diferenciadas, uma vez que, ao falar, temos maior liber-
dade e despreocupação com a obediência às normas impostas pelo sistema
linguístico. Porém, a escrita deve atender às normas, motivo pelo qual é con-
siderada pelos usuários uma modalidade mais difícil.
–  15  –
Homem e linguagem
As diferenças entre a língua falada e a língua escrita são muitas,
como podemos observar no quadro a seguir, adaptado de Mesquita
(1995, p. 25).
Língua falada Língua escrita
	
2 Palavra sonora. 	
2 Palavra gráfica.
	
2 A mensagem é transmitida de
forma imediata.
	
2 A mensagem é transmitida de forma não
imediata.
	
2 O emissor e o receptor conhecem
bem a situação e as circunstâncias
que os rodeiam.
	
2 Oreceptornãoconhecedeformadiretaasitua­
ção do emissor e o contexto da mensagem.
	
2 A mensagem é breve.
	
2 A mensagem é mais longa do que na língua
falada.
	
2 São permitidos os elementos pro­
sódicos, como entonação, pausa,
ritmo e gestos, que enfatizam o
significado.
	
2 Não é possível a utilização de elementos
prosódicos. O emprego dos sinais de pon­
tuação tenta reconstruir alguns desses ele­
mentos.
	
2 É admitido o emprego de cons­
truções simples, com ênfase para
orações coordenadas e presença de
frases incompletas.
	
2 Exigem-se construções mais complexas,
mais elaboradas, com ênfase para orações
subordinadas, e a ordenação da mensagem
melhor planejada.
	
2 É mais subjetiva e pode ser repro­
cessada a cada momento a partir
das reações do interlocutor.
	
2 É mais objetiva. É possível esquecer o inter­
locutor. O escritor pode processar o texto a
partir das possíveis reações do leitor.
	
2 O contexto extralinguístico tem
grande influência. Criação coletiva.
	
2 O contexto extralinguístico tem menos
influência. Criação individual.
Estas são algumas características que diferenciam a possibilidade de uso
da língua. Saber transitar pelas duas modalidades e ter controle de suas varie-
dades, usando-as no lugar e no momento certo, é fator decisivo na comuni-
cação interpessoal.
A respeito da importância do domínio da variedade oral da língua, em
situação formal, recomendamos o filme O discurso do Rei, que tem esta ques-
tão como tema principal.
–  16  –
Leitura e Escrita na Era Digital
	 Dica de filme
O filme O discurso do Rei apresenta, de forma envol-
vente e com grandes detalhes, o trabalho realizado por
um profissional que tem um método um tanto radical
para os padrões da época, para liberar a fala do Rei
George. O jovem herdeiro da coroa britânica sofria de
gagueira e tinha pânico de falar em público. Para supe-
rar suas dificuldades, contará com o empenho de sua
esposa e do professor nada convencional de oratória.
O tema é atual, uma vez que a maioria dos profissionais
precisa ter o domínio da fala com propriedade para
desempenhar bem suas funções.
O DISCURSO do Rei. Direção de Tom Hooper. Ingla-
terra: Paris Filmes, 2010. 1 filme (118 min), sonoro, legenda,
color., 35 mm.
A língua, além de oral e escrita, pode ser, pelo uso, classificada de dois
modos: a modalidade culta ou língua-padrão e a modalidade popular, ou lín-
gua cotidiana.
A modalidade culta é aquela associada à escrita, à tradição gramatical,
é a registrada nos dicionários e, portanto, é a que traduz a tradição cultural e
a identidade de uma nação.
A modalidade popular é uma variante informal, considerada de pouco
prestígio quando comparada à linguagem padrão. Sua característica é afas-
tar-se da norma na construção sintática, usar um vocabulário comum, repe-
tições constantes, gírias.
Segundo Mattoso Câmara Jr. (1978, p. 177), “norma é um conjunto
de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou na classe social mais pres-
tigiosa no país”
. Logo, com essa classificação, podemos entender que há
várias classes que não adotam a norma e, portanto, há outras modalida-
des em uso.
–  17  –
Homem e linguagem
1.1.1 Variedades linguísticas
As variedades linguísticas são determinadas por vários fatores, entre os
quais se destacam os geográficos, históricos, sociais e estilísticos.
A variação geográfica está relacionada com as diferenças de pronún-
cia, de vocabulário e de sintaxe, que ocorrem de região para região do Brasil.
O texto a seguir ilustra bem esta variedade com ênfase na pronúncia.
Receita cazêra minêra de môi de repôi nu ái i ói
Ingredientes
	
2 5 denti di ái
	
2 3 cuié de ói
	
2 1 cabessa de repôi
	
2 1 cuié di mastomati
	
2 Sár agosto
Modi fazê
	
2 Casca o ái, pica o ái i soca o ái cum sá;
	
2 Quenta o ói na cassarola;
	
2 Foga o ái socado no ói quenti;
	
2 Pica o repôi beeemmm finimm...
	
2 Foga o repôi no ói quenti junto cum ái fogado;
	
2 Põi a mastomati i mexi cum a cuié prá fazê o môi;
	
2 Sirva cum rôis e melete...
Pção: cumpanha filezim de pescadim beemmm fritim.
RECEITA cazêra minera de môi de repôi nu ái i ói. Disponível em:
<http://www.alapinha.com.br/Cardapio%20introducao.htm>.
Acesso em: 22 out. 2012.
–  18  –
Leitura e Escrita na Era Digital
A música Cuitelinho, do folclore nacional, apresenta a questão do uso
dos plurais, tão comum em certas regiões brasileiras.
Cuitelinho
Cheguei na beira do porto
Onde as onda se espaia
As garça dá meia volta
E senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai
Ai quando eu vim
da minha terra
Despedi da parentália
Eu entrei no Mato Grosso
Dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução
Enfrentei fortes batáia, ai, ai
A tua saudade corta
Como aço de naváia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
E os óio se enche d´água
Que até a vista se atrapáia, ai...
Autoria desconhecida.
A variação histórica ocorre pelo processo de evolução do homem que,
com suas novas invenções, ou com o abandono de objetos, hábitos e costu-
mes, acaba interferindo na língua, que também é viva. O léxico que cai em
desuso chama-se arcaísmo e as palavras novas que surgem são classificadas
como neologismos. A seguir, citamos um exemplo de arcaísmo, o trecho
está com a escrita da língua portuguesa do passado, do século XVIII, a qual
transformou-se a ponto de pessoas não identificarem o sentido de algumas
palavras pelas diferenças ortográficas. Leia as duas versões e compare-as.
–  19  –
Homem e linguagem
“Este rrey Leyr nom ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas
e amauaa-as muito. E huum dia sas rrazõoess com ellas e disse-lhess que
lhe dissessem verdade, qual d’ellas o amaua mais. Disse a mayor que nom
auia cousa no mundo que tanto amasse como elle; e disse a outra que o
amaua tanto com a ssy mesma; e disse a terçeira, que era a meor, que o
amaua tanto como deue dámar filha a padre.” (VASCONCELOS apud
FARACO, 1991, p. 11).
“Este Rei Lear não teve filhos, mas teve três filhas muito for-
mosas e amava-as muito. E um dia teve com elas uma discussão e
­
disse-lhes que lhe dissessem a verdade, qual delas o amava mais. Disse
a maior que não havia coisa no mundo que amasse tanto como a ele;
e disse a outra que o amava tanto como a si mesma; e disse a terceira
que o amava tanto como deve uma filha amar um pai.”
FARACO, C. A. Linguística histórica. São Paulo: Ática, 1991.
A variação social, como afirma Mattoso Câmara (1978), decorre não
somente do poder aquisitivo, mas também do grau de educação, da idade
e do sexo dos usuários da língua. Vejamos os usos diversos da conjugação
verbal: nós vamos/nóis vai/nóis imo/nós vamo. A música Chopis centis, do
grupo musical Mamonas Assassinas, brinca com a questão das variedades
linguísticas, colocando o falar popular na linguagem escrita.
Chopis centis
Eu “di”um beijo nela
E chamei pra passear.
A gente fomos no shopping,
Prá “mode” a gente lanchar.
Comi uns bicho estranho, com um tal de gergelim
Até que tava gostoso, mas eu prefiro aipim. [...]
Chopis Centis. Dinho e Julio Rasec, Mamonas Assassinas,
1995 © Edições Musicais Tapajós Ltda.
–  20  –
Leitura e Escrita na Era Digital
A variação estilística é provocada pelo ato da fala e pela escrita.
Dependendo da situação comunicativa, a pessoa pode usar uma modalidade
ou outra. De acordo com os ouvintes, o falante definirá qual o vocabulário a
ser utilizado, o grau de formalidade ou informalidade. Na escrita, o usuário
poderá, pelo seu estilo, tornar-se um modelo ou um padrão.
O potencial estilístico de José Paulo Paes, por exemplo, é evidenciado
no poema a seguir, quando o autor brinca com a possibilidade de trocar
algumas letras, ou a escrita das palavras, e interferir no significado. Além
disso, com um poema curtíssimo, consegue passar uma grande mensa-
gem. Vejamos:
Prolixo?
Pro lixo.
Conciso?
Com siso.
PAES, J. P. Poesia completa. Sao Paulo:
Companhia das Letras, 2008. p. 27.
Todas estas classificações acabaram por criar alguns preconceitos
linguísticos com relação às variedades prestigiadas e às estigmatizadas.
Quanto mais próxima está a variedade utilizada do que se denomina lín-
gua padrão, mais prestígio social o falante terá, quanto mais distante, mais
estigmatizado será. Ao relacionar língua padrão com gramática, estabele-
ceu-se a noção de que, se a regra não for cumprida, ocorre um “erro”, o que
torna o falante um sujeito desprestigiado socialmente. ­
Marcos Bagno, em
sua “novela” sociolinguística intitulada A língua de Eulália (1999), apre-
senta, de forma clara, envolvente e literária, o argumento de que falar
diferente não é falar errado e justifica linguística, histórica, socioló-
gica e psicologicamente o uso das variedades linguísticas. É de sua obra
­
Preconceito linguístico – o que é, como se faz (BAGNO, 2006, ­
p.­
142-145)
o texto a seguir, que apresenta uma síntese sobre como ensinar a língua
sem criar tanto preconceito.
–  21  –
Homem e linguagem
Dez cisões
Para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso
1.	 Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um
usuário competente dessa língua, por isso ele sabe essa língua.
Entre os 3 e 4 anos de idade, uma criança já domina integralmente
a gramática de sua língua.
2.	 Aceitar a ideia de que não existe erro de português. Existem dife-
renças de uso ou alternativa de uso em relação à regra única pro-
posta pela gramática normativa.
3.	 Não confundir erro de português (que, afinal, não existe) com sim-
ples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da lín-
gua,queénatural.Aortografiaéumadecisãopolítica,éimpostapor
decreto, por isso ela pode mudar, e muda de uma época para outra.
Em 1899 as pessoas estudavam psychologia e história do Egypto;
em 1999 elas estudavam psicologia e história do Egito. Línguas que
não têm escrita nem por isso deixam de ter sua gramática.
4.	 Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de
erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação cien-
tífica perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas
inclusive) estão optando por um uso que difere das regras pres-
critas nas gramáticas normativas é porque há alguma nova regra
sobrepondo-se à antiga. Assim, o problema está com a regra tra-
dicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeita-
mente competentes de sua língua. Nada é por acaso.
5.	 Conscientizar-se que toda língua muda e varia. O que hoje é visto
como “certo” já foi “erro” no passado. O que hoje é considerado
“erro” pode vir a ser perfeitamente considerado como “certo” no
futuro da língua. Um exemplo: no português medieval existia um
verbo leixar (que aparece até na carta de Pero Vaz de Caminha ao
rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado
deixar porque [d] e [l] são consoantes aparentadas, o que permitiu
a troca de uma pela outra.
–  22  –
Leitura e Escrita na Era Digital
	 Hoje quem pronunciar leixar vai cometer um “erro” (vai ser acu-
sado de desleixo), muito embora essa forma seja mais próxima da
origem latina, laxare (compare-se, por exemplo, o francês laisser
e o italiano lasciare). Por isso é bom evitar classificar algum fenô-
meno gramatical de “erro”: ele pode ser, na verdade, um indício do
que será a língua no futuro.
6.	 Dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem
mal. Ela simplesmente vai, isto é, segue seu rumo, prossegue em
sua evolução, em sua transformação, que não pode ser detida (a
não ser com a eliminação física de todos os seus falantes).
7.	 Respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois
isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pes-
soa como ser humano.
8.	 A língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres huma-
nos. Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos molda
nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo molda
a língua que falamos. Para os falantes de português, por exemplo,
a diferença entre ser e estar é fundamental: eu estou infeliz é radi-
calmente diferente, para nós, de eu sou infeliz. Ora línguas como o
inglês, o francês e o alemão têm um único verbo para exprimir as
duascoisas.Outras,comoorusso,nãotêmverbonenhum,dizendo
algo assim como: Eu-infeliz (o russo, na escrita, usa mesmo um
travessão onde nós inserimos um verbo de ligação).
9.	 Uma vez que a língua está em tudo e tudo está na língua, o pro-
fessor de português é professor de tudo. (Alguém já me disse que
talvez por isso o professor de português devesse receber um salário
igual à soma dos salários de todos os outros professores!).
10.	Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa res-
peitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe
do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria
identidade como ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e
não suprimir, é elevar e não rebaixar a autoestima do indivíduo.
Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá
comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às jaulas!
BAGNO, M. Preconceito linguistico: o que é, como se faz.
47. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
–  23  –
Homem e linguagem
	 Dica de filme
Para compreender melhor a relação da língua com
as diversas culturas, assista ao filme Língua, vidas em
português. Este documentário premiado de Victor
Lopes apresenta uma viagem pelo mundo com entradas
em todos os países em que há falantes da língua portu-
guesa. Sua estrutura narrativa circular prende o interlo-
cutor. São histórias de vidas de pessoas com suas dife-
renças culturais, mas que têm em comum serem usuários
da língua portuguesa. É importante ressaltar a presença
de pessoas ilustres que participam com depoimentos,
como José Saramago (escritor português), João Ubaldo
Ribeiro (escritor brasileiro), Martinho da Vila (cantor e
compositor), Teresa Salgueiro (do grupo Madredeus) e
Mia Couto (escritor moçambicano contemporâneo que
escreve o roteiro).
LÍNGUA, vidas em português. Direção de Victor Lopes.
Brasil/Portugal: Paris Filmes, 2002. 1 filme (105 min), sonoro,
legenda, color., 35 mm.
Como pode-se perceber, a própria compreensão de língua como um
sistema regido por normas é constantemente questionada pelos efeitos que
produz, uma vez que a comunicação confunde-se com a própria vida e a
língua é viva.
1.1.2 Funções da linguagem
O processo de leitura e escrita constitui-se enquanto um ato comu-
nicativo. Para tal, ele precisa de um emissor, aquele que fala ou escreve,
um receptor, aquele que lê ou escuta, um referente, que é constituído
pelo contexto, situação ou objetos reais ao qual a mensagem remete, um
código, que é o conjunto de signos e regras de combinação a ser usado,
um canal de comunicação, que é a via de circulação da mensagem, e a
–  24  –
Leitura e Escrita na Era Digital
­
mensagem, que é o conteúdo da comunicação. Roman Jakobson (2001),
em seus estudos linguísticos, estabeleceu a cada uma das situações do ato
comunicativo uma função da linguagem. Dependendo da ênfase que se
dá a cada um dos processos comunicativos, a linguagem apresenta uma
função com recursos linguísticos próprios. Temos, assim, a função expres-
siva, a função conativa, a função metalinguística, a função fática, a função
poética e a função referencial. Sabe-se que não há na linguagem uma fun-
ção pura, várias podem aparecer ao mesmo tempo no processo comunica-
tivo, no entanto, conhecê-las ajudará a melhorar a elaboração da fala e da
escrita (JAKOBSON, 2001).
Receptor
Função
conativa
Emissor
Função
expressiva
Referente: função
referencial
Canal de ­
comunicação:
função fática
Mensagem: função
­
poética
Código: função
metalinguística
Fonte: Jakobson (2001, p. 17).
Na sequência, vamos identificar as características de cada função.
1.1.2.1 Função expressiva
É centrada no emissor da mensagem, exprime a sua relação com o
conteúdo transmitido, a sua opinião, emoções, avaliações. Pode-se sentir no
texto a presença do emissor (que pode ser clara ou sutil). É uma ­
comunicação
–  25  –
Homem e linguagem
­
subjetiva, faz uso de frase exclamativa, de interjeições, superlativos, aumen-
tativos, diminutivos, hipérboles, entonação máxima.
Resenha sobre o filme O discurso do rei
[...] Pode-se dizer, porém, que a cena mais impactante do filme é
o momento em que o rei deve realizar seu primeiro discurso. Não vou
além, pois não quero estragar as surpresas que aguardam o público
ao longo da história e, com certeza, no seu final. Ao contrário do que
muitos podem imaginar o roteiro não é baseado no livro de mesmo
título; a versão literária foi escrita pelo neto de Lionel, Mark Logue,
com a ajuda do jornalista Peter Conradi.
Ele decidiu escrever esta obra a partir do momento em que foi
procurado pela produção do filme para revelar detalhes sobre a bio-
grafia do australiano Lionel. Curioso em saber mais a respeito de seu
avô, ele saiu à procura de outras informações, as quais deram origem
ao livro. As passagens mais importantes, porém, estão certamente
concentradas nas telas cinematográficas.
Esta produção, que guarda em si um sabor delicioso de história
à moda antiga, ganhou os Oscars de melhor roteiro original, ator –
super merecido! –, direção e filme.
O DISCURSO do Rei. Direção de Tom Hooper. Inglaterra: Paris filmes,
2010. 1 filme (118 min), sonoro, legenda, color.
Elenco: Colin Firth, Helena Bonham Carter, Geoffrey Rush, Michael
­
Gambon. Drama.
SANTANA, A. L. O discurso do rei. Disponível em: <http://www.
infoescola.com/cinema/o-discurso-do-rei/>. Acesso em: 30 jul. 2012.
Como podemos observar durante a leitura, o autor da resenha afirma:
“Não vou além, pois não quero estragar as surpresas que aguardam o público
ao longo da história”
. Usando a primeira pessoa do singular, ele deixa clara
a sua opinião sobre o filme. Mais adiante continua: “Esta produção, que
guarda em si um sabor delicioso de história à moda antiga, ganhou os Oscars
de melhor roteiro original, ator – super merecido!”
. São evidentes as marcas
linguísticas de expressão pessoal.
–  26  –
Leitura e Escrita na Era Digital
1.1.2.2 Função conativa
É centrada no receptor da mensagem, com a intenção de persuadi-lo,
seduzi-lo. É uma comunicação imperativa, faz uso dos verbos no modo
imperativo afirmativo ou negativo.
Observe a imagem a seguir, de uma propaganda persuasiva para com-
bate ao tabagismo.
HAAP
Media
Ltd/Sebastian
Fissore
E tem gente que diz que isto não é droga!
E tem gente que diz que isto não é droga!
Cigarro: faz mal até na propaganda.
Cigarro: faz mal até na propaganda.
Acetona
Acetona:
removedor
de esmaltes
Formol
Formol:
conservante
de cadáver
Amônia
Amônia:
desinfetantes para pisos,
azulejos e privadas
Naftalina
Naftalina:
mata-baratas
Fósforo
Fósforo P4/P6
P4/P6:
componente de
veneno para ratos
Terebintina
Terebintina:
diluidor de tinta a óleo
Este é um exemplo muito forte da função conativa, uma vez que, após o
autor dirigir-se ao receptor com a expressão “tem gente que diz [...]”
, é apre-
sentada uma série de provas que mostram os perigos do tabaco. Ao terminar,
afirma, imperativamente, “cigarro faz mal”
.
1.1.2.3 Função referencial
É centrada no referente da mensagem, valoriza o objeto da mensa-
gem. É uma comunicação objetiva, impessoal, com preferência pela frase
declarativa.
–  27  –
Homem e linguagem
A palavra “pinchar”
, em castelhano tem os sentidos de “cutucar,
espetar, ferir”(no lunfardo, também “morrer”e “fazer sexo”). Coromi-
nas imagina que “pinchar” do castelhano tenha vindo de uma mistura
de punchar (variante de punzar) com picar e que, pela diferença de
sentido, nada tenha a ver com o “pinchar” português. No castelhano,
a palavra aparece desde o século 15, mas pode remontar ao latim vul-
gar, como vemos no italiano pinzare, [...] no francês pincer e no inglês
to pinch (beliscar).
VIARO, M. E. Palavras jogadas fora. Revista Língua Portuguesa,
n. 77, p. 52-55, mar., 2012. São Paulo.
Observou-se um exemplo de uma comunicacão centrada na mensa-
gem, ou seja, o emissor quer explicar o sentido da palavra.
1.1.2.4 Função fática
É centrada no contato, demonstra o desejo de abertura para a comu-
nicação, que se dá com uso de frases breves, consagradas pelo uso. No texto
escrito, costuma-se usar imagens, tamanho diferenciado das letras, cores
para chamar atenção.
Macabéa e Olímpico
Ele — Pois é!
Ela — Pois é o quê?
Ele — Eu só disse, pois é!
Ela — Mas, pois é o quê?
Ele — Melhor mudarmos de assunto porque você não me entende.
Ela — Entende o quê?
Ele — Santa virgem Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
LISPECTOR, C. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998. p. 45.
–  28  –
Leitura e Escrita na Era Digital
No diálogo do box de exemplo não há preocupação com a men-
sagem, apenas os falantes estão mantendo uma abertura do canal de
­
comunicação.
1.1.2.5 Função metalinguística
É centrada no código, é tudo o que, em uma mensagem, serve para dar
explicações ou tornar preciso o código utilizado pelo emissor no ato comuni-
cativo. É uma comunicação explicativa, faz uso de sinônimos, ­
definições.
Exemplo: poemas que discutem como se faz poesia.
Poética
1
O que é poesia?
Uma ilha
Cercada
De palavras
Por todos
Os lados.
2
O que é poeta?
Um homem
Que trabalha o poema
Com o suor do seu rosto.
Um homem
Que tem fome
Como qualquer outro
Homem.
RICARDO, C. Jeremias sem-chorar. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1968.
–  29  –
Homem e linguagem
A metalinguística ocorre em todas as áreas, por exemplo, quando um
pintor pinta a si mesmo num quadro, o roteirista de um filme cria protago-
nistas que querem produzir roteiros de filmes e assim por diante.
1.1.2.6 Função poética
É centrada na elaboração da mensagem, usa formas inovadoras com
combinações inusitadas, ofertadas pela própria língua. É uma comunicação
artística com predomínio da conotação. Pode ser usada em todos os gêneros
textuais, é a marca textual do gênero literário.
Epitáfio para um banqueiro
n e g ó c i o
e g o
ó c i o
c i o
o
PAES, J. P. Melhores poemas. São Paulo: Global, 2003.
A função poética está presente em qualquer texto no qual o autor
preocupe-se com a elaboração estilística, como no caso do poema anterior.
O poeta desmancha o negócio com a fragmentação da própria palavra que
termina com o “o”
, assemelhando-se, graficamente, a zero. É importante
ressaltar que, na linguagem conativa presente no discurso publicitário, é
intenso o uso da função poética para envolver ainda mais o receptor pela
beleza textual.
Conclusivamente, pode-se afirmar que, ao se reconhecer a estrutura
lexical, argumentativa, discursiva e estilística do texto, juntamente com a
intenção do autor, a recepção do texto será muito maior e melhor.
Da teoria para a prática
Muitos textos que circulam nas esferas sociais podem auxiliar o leitor
na compreensão das variedades linguísticas. Tal questão costuma causar
–  30  –
Leitura e Escrita na Era Digital
muita polêmica entre a sociedade e os meios de comunicação quando dis-
cutida em escolas ou mesmo abordada nos livros didáticos, o que acaba
gerando muitos debates. A professora Ângela Paiva Dionísio escreve a esse
respeito um artigo intitulado “Língua padrão e variedades linguísticas:
calos na vida do professor de português”
, no qual analisa a fala da mídia e
dos textos dos livros didáticos no trato da variedade linguística. O texto
é interessante não apenas para conhecimento e aprimoramento docente,
mas, também, para a sociedade de uma forma geral.
Síntese
No primeiro capítulo, fizemos uma introdução aos conceitos de lin-
guagem, língua e fala. Foram verificadas as diferenças entre língua oral
e escrita, as funções da linguagem e as variedades linguísticas. Estes são
conhecimentos fundamentais para a compreensão dos estudos tex­
tuais,
sua prática e produção. Portanto, as ideias aqui apresentadas, de uma
forma ou de outra, permeiam não apenas o ensino da língua, mas também
o seu uso.
A linguagem classifica-se como um processo universal, considera-se
tudo o que o homem faz para manter a comunicação ao longo de sua exis-
tência. Assim, ele preocupa-se em criar e recriar meios de comunicação
que sirvam de condutores de conhecimento que, ao possibilitar a transmis-
são do pensamento, identifiquem a condição humana.
A língua é um elemento cultural elaborado pelo homem, com um
código específico a ser aprendido pelos membros da comunidade. A fala é a
aplicação que cada sujeito faz com a língua para promover a comunicação.
Daí nasce a marca de cada sujeito no seu meio: somos iguais, falamos a
mesma língua, mas somos diferentes, pelo modo de empregá-la.
As variedades linguísticas auxiliam na compreensão do que é erro e
do que é diferença, possibilitando a aceitação social dessas diferenças cul-
turais. As funções da linguagem orientam o reconhecimento de suas carac-
terísticas, a intenção do emissor sobre o receptor da mensagem. Depen-
dendo do que eu quero do meu interlocutor farei as escolhas sintáticas,
morfológicas, lexicais e estilísticas da minha fala ou do meu texto.

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Capitulo 1

  • 1. 1 Homem e linguagem Neste capítulo, realizaremos uma reflexão sobre os conceitos linguísticos fundamentais para a aprendizagem e o ensino da língua portuguesa. Serão abordados os conceitos de linguagem, língua e fala, as diferentes formas como a linguagem é apresentada e a maneira como os falantes de uma língua fazem uso dela. Serão apresentadas ainda as funções da linguagem e suas variações.
  • 2. –  10  – Leitura e Escrita na Era Digital Ao final do capítulo, será possível identificar os elementos da comuni- cação, além de distinguir as funções da linguagem em relação aos elementos do processo comunicativo. Também será possível diferenciar os conceitos de linguagem, língua e fala e reconhecer a variação linguística como uma mani- festação decorrente das influências recebidas no contato com as diversas cul- turas existentes em nosso país. A língua é, sem dúvida, um dos mais importantes produtos da cultura, porque é o código utilizado em grande parte dos nossos atos de comunicação. 1.1 Linguagem, língua e fala No dia a dia, costuma-se afirmar – o que cientificamente comprova-se – que a linguagem diferencia o homem dos demais animais. Dessa forma, no Dicionário de comunicação (RABAÇA, 1987, p. 367), encontramos a seguinte definição: “a linguagem é um fato exclusivamente humano, um método de comunicação racional de ideias, emoções e desejos por meio de símbolos produzidos de maneira deliberada” . Isso porque a linguagem humana pode ser articulada por seu usuário, pode envolver o pensamento e o simbólico, a representação da sua realidade e suas relações nos atos comunicativos. Assim, a linguagem, a língua possibilita ao homem criar e agir sobre a rea- lidade. Segundo Vygotsky, “o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prá- tica, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem” (VYGOTSKY, 2010, p. 12). No texto a seguir, o filósofo Louis Hjelmslev (1975, p. 15) apresenta, de modo filosófico e literário, a indiscutível importância da linguagem para o homem: A linguagem, a fala humana é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus senti- mentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é tambémorecursoúltimoeindispensáveldohomem,seurefú- gio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existên- cia, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na
  • 3. –  11  – Homem e linguagem meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor A linguagem não é um simples acom- panhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ela é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pais para filhos. Para seu bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. Para dominar a linguagem como língua, é preciso que a pessoa desen- volva várias habilidades necessárias ao processo de comunicação. Ouvir, falar, ler e escrever são as ações que, gradualmente, vão propiciar o desenvol- vimento desse domínio. A partir do nascimento (alguns estudiosos afirmam que até antes), começa-se a ouvir todos que estão próximos; pelo processo de imitação, associado com o desenvolvimento físico, inicia-se a repetição do que se ouve. Nasce a fala, no início restrita, com pouquíssimas palavras que, em geral, servem para várias situações e objetos, tais como: “mamá” (comida), “mãma” (mãe); “papá” (comida), “pápa” (pai), e assim por diante. Por volta dos sete anos, chegamos a 1 mil ou 1,2 mil palavras e, por volta dos 14 anos, a 15 ou 20 mil, dependendo do contexto e das situações relacionadas com a linguagem. Na sequência, a oralidade irá se transformar em linguagem simbólica, a partir do momento em que as habilidades de leitura e escrita passam a ser dominadas. Essas duas habilidades necessitam de aprendizagens diferencia- das, pois “para escrever é preciso ter um acervo de recursos e ter o que dizer sobre o assunto. Para ler, é preciso ter um acervo de recursos que permita compreender o texto” (LIMA, 2002, p. 15). Se, por um lado, é ruim apren- der as duas habilidades separadamente e não como um conhecimento auto- mático, por outro, é salutar, porque, em caso de qualquer problema físico, pode-se ficar com uma ou com outra (se tiver sorte). Após o processo de domínio das quatro habilidades, adquire-se uma com- petência muito mais importante do que simplesmente o domínio de uma ­ língua,
  • 4. –  12  – Leitura e Escrita na Era Digital éacompetênciadepensar,quetornaohomem,segundoatradição,efetivamente humano. Ou seja, se há linguagem, há pensamento ou, como diz o filósofo Des- cartes: “Cogito, ergo sum”(“Penso, logo existo”). Vygotsky pondera que a relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém entre a palavra e o pensamento: nesse processo a relação entre o pensamento e a palavra sofre alterações que, também elas, podem ser consideradas como um desenvolvimento no sen- tido funcional. As palavras não se limitam a exprimir o pen- samento: é por elas que este acede à existência [...]. O pensa- mento e a palavra não são talhados no mesmo modelo: em certo sentido há mais diferenças do que semelhanças entre eles. A estrutura da linguagem não se limita a refletir como num espelho a estrutura do pensamento; é por isso que não se pode vestir o pensamento com palavras, como se de um ornamento se tratasse. O pensamento sofre muitas altera- ções ao transformar-se em fala. Não se limita a encontrar expressão na fala; encontra nela a sua realidade e a sua forma (VYGOTSKY apud IANNI, 1999, p. 40). No entanto, linguagem e língua aproximam-se e diferem de que modo? Muitas palavras, utilizadas para explicar o processo de comunicação, pare- cem sinônimas, mas apresentam conceitos diferentes cuja compreensão é importante, tanto para o ensino, quanto para a aprendizagem de uma língua, são elas: linguagem, língua, fala, discurso, sistema, norma, palavra, vocábulo e léxico. Portanto, o conhecimento da importância da palavra para todo o processo de interação por meio da linguagem é fundamental. Isso porque cada palavra tem seu sentido reconhecido plenamente desde que se conheça o contexto no qual ela está inserida. O contexto é que definirá o real sentido de cada palavra. A compreensão do sentido da palavra, num determinado texto e contexto, é que possibilitará, também, a compreensão da mensagem. Contexto Texto Palavra
  • 5. –  13  – Homem e linguagem Tal concepção fica evidente na música Palavras, do grupo Titãs, pois, a partir dela, é possível inferir que é o falante que dá vida às palavras, pelo contexto e pela compreensão de mundo do usuário. Vamos observar o trecho a seguir: Palavras Palavras são iguais Sendo diferentes Palavras não são frias Palavras não são boas Os números pra os dias E os nomes pra as pessoas [...] Palavras. Marcelo Fromer e Sérgio Britto, Titãs, 1989 © Warner Chappel Music. A linguagem é uma característica humana universal, visto que utiliza todos os códigos, signos, sinais para que sejam expressados pensamentos, per- cepções e sentimentos e para que a comunicação seja efetivada. Pode-se dizer que a linguagem vai se desenvolvendo por meio de um sistema de signos (algo que está no lugar de um objeto ou fenômeno, sob algum aspecto). Os signos estabelecem relações de sentido com o objeto que represen- tam, das mais simples às mais complexas. É necessário passar por essas rela- ções para se chegar ao domínio da linguagem. São elas: 2 relação de semelhança – o signo é o objeto apresentado; ícone: exemplo – as imagens em geral; 2 relação de causa e efeito – afeta a existência do objeto ou por ele é afetado; índice: exemplo – pegadas na lama – alguém passou por aqui; 2 relação arbitrária – regida por convenção; símbolo: exemplo – as representações, continuamente usadas na linguagem e no entendi- mento pessoal, tornam-se convenções, símbolos.
  • 6. –  14  – Leitura e Escrita na Era Digital Já a língua é uma linguagem de caráter regional, é um sistema organi- zado de sons e sinais que a caracterizarão como o código de signos linguísticos de um determinado povo. Desse modo, todas as línguas (para a comunidade lusófona, a língua portuguesa) têm uma estrutura própria para combinar os signos linguísticos. Sendo assim, a língua constitui-se por: um repertório/conjunto de sig- nos que vão compô-la; as regras de combinação que incluem as de organiza- ção dos sons e suas combinações; as regras que determinam a organização interna das palavras e as que especificam a forma como serão ordenadas as palavras e a diversidade de tipos de frase. Estamos nos referindo à fonologia, à morfologia, à sintaxe da língua e às regras de uso, as quais englobam as regras reguladoras do uso da linguagem em contextos sociais – no que diz respeito às funções e intenções comunicativas e à escolha de códigos a uti- lizar – e que devem ser aceitas pela sociedade para que haja inteligibilidade entre os atos de comunicação. O terceiro conceito a ser compreendido no processo de comunicação é a fala, o uso individual da língua, o discurso que se realiza a partir da compre- ensão da língua e do conhecimento de mundo de cada um. Por esses motivos, falantes de uma mesma língua, de uma mesma região e de uma mesma for- mação terão falas, discursos diferentes. Por se tratar de oralidade, o falante pode desrespeitar as regras de combinação; se este desrespeito tornar-se padrão, poderá alterar e criar uma nova regra, promovida pelo uso. Podemos afirmar que dominamos uma língua quando conhecemos seu repertório de signos, as regras de combinação e as regras de uso desses signos. Segundo Saussure (1977, p. 196), “nada entra na língua sem ter sido expe- rimentado na fala, e todos os fenômenos evolutivos têm sua raiz na esfera do indivíduo” . De acordo com o linguista, o que diferencia a língua da fala é que a primeira é sistemática, tem certa regularidade, é potencial, coletiva; a segunda é assistemática, possui certa variedade, é concreta, real, individual. A língua, então, pode ser escrita e falada. São duas formas de uso que acabam tendo regras diferenciadas, uma vez que, ao falar, temos maior liber- dade e despreocupação com a obediência às normas impostas pelo sistema linguístico. Porém, a escrita deve atender às normas, motivo pelo qual é con- siderada pelos usuários uma modalidade mais difícil.
  • 7. –  15  – Homem e linguagem As diferenças entre a língua falada e a língua escrita são muitas, como podemos observar no quadro a seguir, adaptado de Mesquita (1995, p. 25). Língua falada Língua escrita 2 Palavra sonora. 2 Palavra gráfica. 2 A mensagem é transmitida de forma imediata. 2 A mensagem é transmitida de forma não imediata. 2 O emissor e o receptor conhecem bem a situação e as circunstâncias que os rodeiam. 2 Oreceptornãoconhecedeformadiretaasitua­ ção do emissor e o contexto da mensagem. 2 A mensagem é breve. 2 A mensagem é mais longa do que na língua falada. 2 São permitidos os elementos pro­ sódicos, como entonação, pausa, ritmo e gestos, que enfatizam o significado. 2 Não é possível a utilização de elementos prosódicos. O emprego dos sinais de pon­ tuação tenta reconstruir alguns desses ele­ mentos. 2 É admitido o emprego de cons­ truções simples, com ênfase para orações coordenadas e presença de frases incompletas. 2 Exigem-se construções mais complexas, mais elaboradas, com ênfase para orações subordinadas, e a ordenação da mensagem melhor planejada. 2 É mais subjetiva e pode ser repro­ cessada a cada momento a partir das reações do interlocutor. 2 É mais objetiva. É possível esquecer o inter­ locutor. O escritor pode processar o texto a partir das possíveis reações do leitor. 2 O contexto extralinguístico tem grande influência. Criação coletiva. 2 O contexto extralinguístico tem menos influência. Criação individual. Estas são algumas características que diferenciam a possibilidade de uso da língua. Saber transitar pelas duas modalidades e ter controle de suas varie- dades, usando-as no lugar e no momento certo, é fator decisivo na comuni- cação interpessoal. A respeito da importância do domínio da variedade oral da língua, em situação formal, recomendamos o filme O discurso do Rei, que tem esta ques- tão como tema principal.
  • 8. –  16  – Leitura e Escrita na Era Digital Dica de filme O filme O discurso do Rei apresenta, de forma envol- vente e com grandes detalhes, o trabalho realizado por um profissional que tem um método um tanto radical para os padrões da época, para liberar a fala do Rei George. O jovem herdeiro da coroa britânica sofria de gagueira e tinha pânico de falar em público. Para supe- rar suas dificuldades, contará com o empenho de sua esposa e do professor nada convencional de oratória. O tema é atual, uma vez que a maioria dos profissionais precisa ter o domínio da fala com propriedade para desempenhar bem suas funções. O DISCURSO do Rei. Direção de Tom Hooper. Ingla- terra: Paris Filmes, 2010. 1 filme (118 min), sonoro, legenda, color., 35 mm. A língua, além de oral e escrita, pode ser, pelo uso, classificada de dois modos: a modalidade culta ou língua-padrão e a modalidade popular, ou lín- gua cotidiana. A modalidade culta é aquela associada à escrita, à tradição gramatical, é a registrada nos dicionários e, portanto, é a que traduz a tradição cultural e a identidade de uma nação. A modalidade popular é uma variante informal, considerada de pouco prestígio quando comparada à linguagem padrão. Sua característica é afas- tar-se da norma na construção sintática, usar um vocabulário comum, repe- tições constantes, gírias. Segundo Mattoso Câmara Jr. (1978, p. 177), “norma é um conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou na classe social mais pres- tigiosa no país” . Logo, com essa classificação, podemos entender que há várias classes que não adotam a norma e, portanto, há outras modalida- des em uso.
  • 9. –  17  – Homem e linguagem 1.1.1 Variedades linguísticas As variedades linguísticas são determinadas por vários fatores, entre os quais se destacam os geográficos, históricos, sociais e estilísticos. A variação geográfica está relacionada com as diferenças de pronún- cia, de vocabulário e de sintaxe, que ocorrem de região para região do Brasil. O texto a seguir ilustra bem esta variedade com ênfase na pronúncia. Receita cazêra minêra de môi de repôi nu ái i ói Ingredientes 2 5 denti di ái 2 3 cuié de ói 2 1 cabessa de repôi 2 1 cuié di mastomati 2 Sár agosto Modi fazê 2 Casca o ái, pica o ái i soca o ái cum sá; 2 Quenta o ói na cassarola; 2 Foga o ái socado no ói quenti; 2 Pica o repôi beeemmm finimm... 2 Foga o repôi no ói quenti junto cum ái fogado; 2 Põi a mastomati i mexi cum a cuié prá fazê o môi; 2 Sirva cum rôis e melete... Pção: cumpanha filezim de pescadim beemmm fritim. RECEITA cazêra minera de môi de repôi nu ái i ói. Disponível em: <http://www.alapinha.com.br/Cardapio%20introducao.htm>. Acesso em: 22 out. 2012.
  • 10. –  18  – Leitura e Escrita na Era Digital A música Cuitelinho, do folclore nacional, apresenta a questão do uso dos plurais, tão comum em certas regiões brasileiras. Cuitelinho Cheguei na beira do porto Onde as onda se espaia As garça dá meia volta E senta na beira da praia E o cuitelinho não gosta Que o botão de rosa caia, ai, ai Ai quando eu vim da minha terra Despedi da parentália Eu entrei no Mato Grosso Dei em terras paraguaia Lá tinha revolução Enfrentei fortes batáia, ai, ai A tua saudade corta Como aço de naváia O coração fica aflito Bate uma, a outra faia E os óio se enche d´água Que até a vista se atrapáia, ai... Autoria desconhecida. A variação histórica ocorre pelo processo de evolução do homem que, com suas novas invenções, ou com o abandono de objetos, hábitos e costu- mes, acaba interferindo na língua, que também é viva. O léxico que cai em desuso chama-se arcaísmo e as palavras novas que surgem são classificadas como neologismos. A seguir, citamos um exemplo de arcaísmo, o trecho está com a escrita da língua portuguesa do passado, do século XVIII, a qual transformou-se a ponto de pessoas não identificarem o sentido de algumas palavras pelas diferenças ortográficas. Leia as duas versões e compare-as.
  • 11. –  19  – Homem e linguagem “Este rrey Leyr nom ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amauaa-as muito. E huum dia sas rrazõoess com ellas e disse-lhess que lhe dissessem verdade, qual d’ellas o amaua mais. Disse a mayor que nom auia cousa no mundo que tanto amasse como elle; e disse a outra que o amaua tanto com a ssy mesma; e disse a terçeira, que era a meor, que o amaua tanto como deue dámar filha a padre.” (VASCONCELOS apud FARACO, 1991, p. 11). “Este Rei Lear não teve filhos, mas teve três filhas muito for- mosas e amava-as muito. E um dia teve com elas uma discussão e ­ disse-lhes que lhe dissessem a verdade, qual delas o amava mais. Disse a maior que não havia coisa no mundo que amasse tanto como a ele; e disse a outra que o amava tanto como a si mesma; e disse a terceira que o amava tanto como deve uma filha amar um pai.” FARACO, C. A. Linguística histórica. São Paulo: Ática, 1991. A variação social, como afirma Mattoso Câmara (1978), decorre não somente do poder aquisitivo, mas também do grau de educação, da idade e do sexo dos usuários da língua. Vejamos os usos diversos da conjugação verbal: nós vamos/nóis vai/nóis imo/nós vamo. A música Chopis centis, do grupo musical Mamonas Assassinas, brinca com a questão das variedades linguísticas, colocando o falar popular na linguagem escrita. Chopis centis Eu “di”um beijo nela E chamei pra passear. A gente fomos no shopping, Prá “mode” a gente lanchar. Comi uns bicho estranho, com um tal de gergelim Até que tava gostoso, mas eu prefiro aipim. [...] Chopis Centis. Dinho e Julio Rasec, Mamonas Assassinas, 1995 © Edições Musicais Tapajós Ltda.
  • 12. –  20  – Leitura e Escrita na Era Digital A variação estilística é provocada pelo ato da fala e pela escrita. Dependendo da situação comunicativa, a pessoa pode usar uma modalidade ou outra. De acordo com os ouvintes, o falante definirá qual o vocabulário a ser utilizado, o grau de formalidade ou informalidade. Na escrita, o usuário poderá, pelo seu estilo, tornar-se um modelo ou um padrão. O potencial estilístico de José Paulo Paes, por exemplo, é evidenciado no poema a seguir, quando o autor brinca com a possibilidade de trocar algumas letras, ou a escrita das palavras, e interferir no significado. Além disso, com um poema curtíssimo, consegue passar uma grande mensa- gem. Vejamos: Prolixo? Pro lixo. Conciso? Com siso. PAES, J. P. Poesia completa. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 27. Todas estas classificações acabaram por criar alguns preconceitos linguísticos com relação às variedades prestigiadas e às estigmatizadas. Quanto mais próxima está a variedade utilizada do que se denomina lín- gua padrão, mais prestígio social o falante terá, quanto mais distante, mais estigmatizado será. Ao relacionar língua padrão com gramática, estabele- ceu-se a noção de que, se a regra não for cumprida, ocorre um “erro”, o que torna o falante um sujeito desprestigiado socialmente. ­ Marcos Bagno, em sua “novela” sociolinguística intitulada A língua de Eulália (1999), apre- senta, de forma clara, envolvente e literária, o argumento de que falar diferente não é falar errado e justifica linguística, histórica, socioló- gica e psicologicamente o uso das variedades linguísticas. É de sua obra ­ Preconceito linguístico – o que é, como se faz (BAGNO, 2006, ­ p.­ 142-145) o texto a seguir, que apresenta uma síntese sobre como ensinar a língua sem criar tanto preconceito.
  • 13. –  21  – Homem e linguagem Dez cisões Para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso 1. Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele sabe essa língua. Entre os 3 e 4 anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática de sua língua. 2. Aceitar a ideia de que não existe erro de português. Existem dife- renças de uso ou alternativa de uso em relação à regra única pro- posta pela gramática normativa. 3. Não confundir erro de português (que, afinal, não existe) com sim- ples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da lín- gua,queénatural.Aortografiaéumadecisãopolítica,éimpostapor decreto, por isso ela pode mudar, e muda de uma época para outra. Em 1899 as pessoas estudavam psychologia e história do Egypto; em 1999 elas estudavam psicologia e história do Egito. Línguas que não têm escrita nem por isso deixam de ter sua gramática. 4. Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação cien- tífica perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas inclusive) estão optando por um uso que difere das regras pres- critas nas gramáticas normativas é porque há alguma nova regra sobrepondo-se à antiga. Assim, o problema está com a regra tra- dicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeita- mente competentes de sua língua. Nada é por acaso. 5. Conscientizar-se que toda língua muda e varia. O que hoje é visto como “certo” já foi “erro” no passado. O que hoje é considerado “erro” pode vir a ser perfeitamente considerado como “certo” no futuro da língua. Um exemplo: no português medieval existia um verbo leixar (que aparece até na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado deixar porque [d] e [l] são consoantes aparentadas, o que permitiu a troca de uma pela outra.
  • 14. –  22  – Leitura e Escrita na Era Digital Hoje quem pronunciar leixar vai cometer um “erro” (vai ser acu- sado de desleixo), muito embora essa forma seja mais próxima da origem latina, laxare (compare-se, por exemplo, o francês laisser e o italiano lasciare). Por isso é bom evitar classificar algum fenô- meno gramatical de “erro”: ele pode ser, na verdade, um indício do que será a língua no futuro. 6. Dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem mal. Ela simplesmente vai, isto é, segue seu rumo, prossegue em sua evolução, em sua transformação, que não pode ser detida (a não ser com a eliminação física de todos os seus falantes). 7. Respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pes- soa como ser humano. 8. A língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres huma- nos. Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos. Para os falantes de português, por exemplo, a diferença entre ser e estar é fundamental: eu estou infeliz é radi- calmente diferente, para nós, de eu sou infeliz. Ora línguas como o inglês, o francês e o alemão têm um único verbo para exprimir as duascoisas.Outras,comoorusso,nãotêmverbonenhum,dizendo algo assim como: Eu-infeliz (o russo, na escrita, usa mesmo um travessão onde nós inserimos um verbo de ligação). 9. Uma vez que a língua está em tudo e tudo está na língua, o pro- fessor de português é professor de tudo. (Alguém já me disse que talvez por isso o professor de português devesse receber um salário igual à soma dos salários de todos os outros professores!). 10. Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa res- peitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e não suprimir, é elevar e não rebaixar a autoestima do indivíduo. Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às jaulas! BAGNO, M. Preconceito linguistico: o que é, como se faz. 47. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
  • 15. –  23  – Homem e linguagem Dica de filme Para compreender melhor a relação da língua com as diversas culturas, assista ao filme Língua, vidas em português. Este documentário premiado de Victor Lopes apresenta uma viagem pelo mundo com entradas em todos os países em que há falantes da língua portu- guesa. Sua estrutura narrativa circular prende o interlo- cutor. São histórias de vidas de pessoas com suas dife- renças culturais, mas que têm em comum serem usuários da língua portuguesa. É importante ressaltar a presença de pessoas ilustres que participam com depoimentos, como José Saramago (escritor português), João Ubaldo Ribeiro (escritor brasileiro), Martinho da Vila (cantor e compositor), Teresa Salgueiro (do grupo Madredeus) e Mia Couto (escritor moçambicano contemporâneo que escreve o roteiro). LÍNGUA, vidas em português. Direção de Victor Lopes. Brasil/Portugal: Paris Filmes, 2002. 1 filme (105 min), sonoro, legenda, color., 35 mm. Como pode-se perceber, a própria compreensão de língua como um sistema regido por normas é constantemente questionada pelos efeitos que produz, uma vez que a comunicação confunde-se com a própria vida e a língua é viva. 1.1.2 Funções da linguagem O processo de leitura e escrita constitui-se enquanto um ato comu- nicativo. Para tal, ele precisa de um emissor, aquele que fala ou escreve, um receptor, aquele que lê ou escuta, um referente, que é constituído pelo contexto, situação ou objetos reais ao qual a mensagem remete, um código, que é o conjunto de signos e regras de combinação a ser usado, um canal de comunicação, que é a via de circulação da mensagem, e a
  • 16. –  24  – Leitura e Escrita na Era Digital ­ mensagem, que é o conteúdo da comunicação. Roman Jakobson (2001), em seus estudos linguísticos, estabeleceu a cada uma das situações do ato comunicativo uma função da linguagem. Dependendo da ênfase que se dá a cada um dos processos comunicativos, a linguagem apresenta uma função com recursos linguísticos próprios. Temos, assim, a função expres- siva, a função conativa, a função metalinguística, a função fática, a função poética e a função referencial. Sabe-se que não há na linguagem uma fun- ção pura, várias podem aparecer ao mesmo tempo no processo comunica- tivo, no entanto, conhecê-las ajudará a melhorar a elaboração da fala e da escrita (JAKOBSON, 2001). Receptor Função conativa Emissor Função expressiva Referente: função referencial Canal de ­ comunicação: função fática Mensagem: função ­ poética Código: função metalinguística Fonte: Jakobson (2001, p. 17). Na sequência, vamos identificar as características de cada função. 1.1.2.1 Função expressiva É centrada no emissor da mensagem, exprime a sua relação com o conteúdo transmitido, a sua opinião, emoções, avaliações. Pode-se sentir no texto a presença do emissor (que pode ser clara ou sutil). É uma ­ comunicação
  • 17. –  25  – Homem e linguagem ­ subjetiva, faz uso de frase exclamativa, de interjeições, superlativos, aumen- tativos, diminutivos, hipérboles, entonação máxima. Resenha sobre o filme O discurso do rei [...] Pode-se dizer, porém, que a cena mais impactante do filme é o momento em que o rei deve realizar seu primeiro discurso. Não vou além, pois não quero estragar as surpresas que aguardam o público ao longo da história e, com certeza, no seu final. Ao contrário do que muitos podem imaginar o roteiro não é baseado no livro de mesmo título; a versão literária foi escrita pelo neto de Lionel, Mark Logue, com a ajuda do jornalista Peter Conradi. Ele decidiu escrever esta obra a partir do momento em que foi procurado pela produção do filme para revelar detalhes sobre a bio- grafia do australiano Lionel. Curioso em saber mais a respeito de seu avô, ele saiu à procura de outras informações, as quais deram origem ao livro. As passagens mais importantes, porém, estão certamente concentradas nas telas cinematográficas. Esta produção, que guarda em si um sabor delicioso de história à moda antiga, ganhou os Oscars de melhor roteiro original, ator – super merecido! –, direção e filme. O DISCURSO do Rei. Direção de Tom Hooper. Inglaterra: Paris filmes, 2010. 1 filme (118 min), sonoro, legenda, color. Elenco: Colin Firth, Helena Bonham Carter, Geoffrey Rush, Michael ­ Gambon. Drama. SANTANA, A. L. O discurso do rei. Disponível em: <http://www. infoescola.com/cinema/o-discurso-do-rei/>. Acesso em: 30 jul. 2012. Como podemos observar durante a leitura, o autor da resenha afirma: “Não vou além, pois não quero estragar as surpresas que aguardam o público ao longo da história” . Usando a primeira pessoa do singular, ele deixa clara a sua opinião sobre o filme. Mais adiante continua: “Esta produção, que guarda em si um sabor delicioso de história à moda antiga, ganhou os Oscars de melhor roteiro original, ator – super merecido!” . São evidentes as marcas linguísticas de expressão pessoal.
  • 18. –  26  – Leitura e Escrita na Era Digital 1.1.2.2 Função conativa É centrada no receptor da mensagem, com a intenção de persuadi-lo, seduzi-lo. É uma comunicação imperativa, faz uso dos verbos no modo imperativo afirmativo ou negativo. Observe a imagem a seguir, de uma propaganda persuasiva para com- bate ao tabagismo. HAAP Media Ltd/Sebastian Fissore E tem gente que diz que isto não é droga! E tem gente que diz que isto não é droga! Cigarro: faz mal até na propaganda. Cigarro: faz mal até na propaganda. Acetona Acetona: removedor de esmaltes Formol Formol: conservante de cadáver Amônia Amônia: desinfetantes para pisos, azulejos e privadas Naftalina Naftalina: mata-baratas Fósforo Fósforo P4/P6 P4/P6: componente de veneno para ratos Terebintina Terebintina: diluidor de tinta a óleo Este é um exemplo muito forte da função conativa, uma vez que, após o autor dirigir-se ao receptor com a expressão “tem gente que diz [...]” , é apre- sentada uma série de provas que mostram os perigos do tabaco. Ao terminar, afirma, imperativamente, “cigarro faz mal” . 1.1.2.3 Função referencial É centrada no referente da mensagem, valoriza o objeto da mensa- gem. É uma comunicação objetiva, impessoal, com preferência pela frase declarativa.
  • 19. –  27  – Homem e linguagem A palavra “pinchar” , em castelhano tem os sentidos de “cutucar, espetar, ferir”(no lunfardo, também “morrer”e “fazer sexo”). Coromi- nas imagina que “pinchar” do castelhano tenha vindo de uma mistura de punchar (variante de punzar) com picar e que, pela diferença de sentido, nada tenha a ver com o “pinchar” português. No castelhano, a palavra aparece desde o século 15, mas pode remontar ao latim vul- gar, como vemos no italiano pinzare, [...] no francês pincer e no inglês to pinch (beliscar). VIARO, M. E. Palavras jogadas fora. Revista Língua Portuguesa, n. 77, p. 52-55, mar., 2012. São Paulo. Observou-se um exemplo de uma comunicacão centrada na mensa- gem, ou seja, o emissor quer explicar o sentido da palavra. 1.1.2.4 Função fática É centrada no contato, demonstra o desejo de abertura para a comu- nicação, que se dá com uso de frases breves, consagradas pelo uso. No texto escrito, costuma-se usar imagens, tamanho diferenciado das letras, cores para chamar atenção. Macabéa e Olímpico Ele — Pois é! Ela — Pois é o quê? Ele — Eu só disse, pois é! Ela — Mas, pois é o quê? Ele — Melhor mudarmos de assunto porque você não me entende. Ela — Entende o quê? Ele — Santa virgem Macabéa, vamos mudar de assunto e já! LISPECTOR, C. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998. p. 45.
  • 20. –  28  – Leitura e Escrita na Era Digital No diálogo do box de exemplo não há preocupação com a men- sagem, apenas os falantes estão mantendo uma abertura do canal de ­ comunicação. 1.1.2.5 Função metalinguística É centrada no código, é tudo o que, em uma mensagem, serve para dar explicações ou tornar preciso o código utilizado pelo emissor no ato comuni- cativo. É uma comunicação explicativa, faz uso de sinônimos, ­ definições. Exemplo: poemas que discutem como se faz poesia. Poética 1 O que é poesia? Uma ilha Cercada De palavras Por todos Os lados. 2 O que é poeta? Um homem Que trabalha o poema Com o suor do seu rosto. Um homem Que tem fome Como qualquer outro Homem. RICARDO, C. Jeremias sem-chorar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
  • 21. –  29  – Homem e linguagem A metalinguística ocorre em todas as áreas, por exemplo, quando um pintor pinta a si mesmo num quadro, o roteirista de um filme cria protago- nistas que querem produzir roteiros de filmes e assim por diante. 1.1.2.6 Função poética É centrada na elaboração da mensagem, usa formas inovadoras com combinações inusitadas, ofertadas pela própria língua. É uma comunicação artística com predomínio da conotação. Pode ser usada em todos os gêneros textuais, é a marca textual do gênero literário. Epitáfio para um banqueiro n e g ó c i o e g o ó c i o c i o o PAES, J. P. Melhores poemas. São Paulo: Global, 2003. A função poética está presente em qualquer texto no qual o autor preocupe-se com a elaboração estilística, como no caso do poema anterior. O poeta desmancha o negócio com a fragmentação da própria palavra que termina com o “o” , assemelhando-se, graficamente, a zero. É importante ressaltar que, na linguagem conativa presente no discurso publicitário, é intenso o uso da função poética para envolver ainda mais o receptor pela beleza textual. Conclusivamente, pode-se afirmar que, ao se reconhecer a estrutura lexical, argumentativa, discursiva e estilística do texto, juntamente com a intenção do autor, a recepção do texto será muito maior e melhor. Da teoria para a prática Muitos textos que circulam nas esferas sociais podem auxiliar o leitor na compreensão das variedades linguísticas. Tal questão costuma causar
  • 22. –  30  – Leitura e Escrita na Era Digital muita polêmica entre a sociedade e os meios de comunicação quando dis- cutida em escolas ou mesmo abordada nos livros didáticos, o que acaba gerando muitos debates. A professora Ângela Paiva Dionísio escreve a esse respeito um artigo intitulado “Língua padrão e variedades linguísticas: calos na vida do professor de português” , no qual analisa a fala da mídia e dos textos dos livros didáticos no trato da variedade linguística. O texto é interessante não apenas para conhecimento e aprimoramento docente, mas, também, para a sociedade de uma forma geral. Síntese No primeiro capítulo, fizemos uma introdução aos conceitos de lin- guagem, língua e fala. Foram verificadas as diferenças entre língua oral e escrita, as funções da linguagem e as variedades linguísticas. Estes são conhecimentos fundamentais para a compreensão dos estudos tex­ tuais, sua prática e produção. Portanto, as ideias aqui apresentadas, de uma forma ou de outra, permeiam não apenas o ensino da língua, mas também o seu uso. A linguagem classifica-se como um processo universal, considera-se tudo o que o homem faz para manter a comunicação ao longo de sua exis- tência. Assim, ele preocupa-se em criar e recriar meios de comunicação que sirvam de condutores de conhecimento que, ao possibilitar a transmis- são do pensamento, identifiquem a condição humana. A língua é um elemento cultural elaborado pelo homem, com um código específico a ser aprendido pelos membros da comunidade. A fala é a aplicação que cada sujeito faz com a língua para promover a comunicação. Daí nasce a marca de cada sujeito no seu meio: somos iguais, falamos a mesma língua, mas somos diferentes, pelo modo de empregá-la. As variedades linguísticas auxiliam na compreensão do que é erro e do que é diferença, possibilitando a aceitação social dessas diferenças cul- turais. As funções da linguagem orientam o reconhecimento de suas carac- terísticas, a intenção do emissor sobre o receptor da mensagem. Depen- dendo do que eu quero do meu interlocutor farei as escolhas sintáticas, morfológicas, lexicais e estilísticas da minha fala ou do meu texto.