A história dos doces brasileiros começa com a chegada dos portugueses, que trouxeram a cana-de-açúcar e influenciaram a culinária local. As quituteiras negras contribuíram com receitas usando frutas brasileiras. Ao longo dos séculos, diferentes culturas imigrantes enriqueceram a confeitaria nacional.
3. Do cultivo da cana, do engenho e da senza-
la, a trajetória dos doces brasileiros praticamente Dizem os historiadores
começa quando nasce o País. que o açúcar, obtido
Assim como os personagens João e Maria,
que deixavam pequenos pedaços de pão pelo ca- após a evaporação
minho, com o objetivo de não se perderem por do caldo da cana, foi
entre os caminhos da floresta, se salpicarmos
nossa História com nacos de quindins, geleias, descoberto na Índia, lá
compotas ou frutas cristalizadas, certamente pelo século III.
trilharemos um fiel e cronológico panorama da
formação de nosso povo às mais recentes mani-
festações da mais refinada confeitaria nacional: Muito mais do que simplesmente descre-
o imperador D. Pedro II trocava os afazeres da ver receitas consagradas, relembrar sabores que
Corte por um doce de figo tirado do tacho; já inundam nossas lembranças, ou supor essa ou
Rui Barbosa se derretia por colheradas fartas de aquela origem de uma determinada alquimia à
doce de batata. E o que dizer de João Goulart e beira do tacho, decidi revirar páginas carame-
Jorge Amado, verdadeiros adoradores do doce lizadas pelo tempo. E me surpreendi com a co-
de coco? Sem falar no ex-presidente Juscelino munhão antropológico-gastronômica de sabores.
Kubitschek, que nunca recusava uma baba-de- Antes mesmo de termos imperador, já havíamos
moça, e nos compositores Roberto Carlos e Chi- nos rendido a compotas, bolos e quitutes que ga-
co Buarque, que talvez tenham se inspirado após nharam formas e adequações locais assim que os
porções generosas de doce de abóbora. portugueses desembarcaram em nosso litoral.
Mas de onde surgiu esta que é uma das Comprovadamente, muitos dos doces hoje
mais fortes facetas de nossa miscigenação no considerados brasileiros têm origem portuguesa.
quesito gastronomia? Dizem os historiadores É saborosa, por exemplo, a história de que, nos
que o açúcar, obtido após a evaporação do caldo conventos d’além mar, era comum o uso de claras
da cana, foi descoberto na Índia, lá pelo século III. de ovos para o trabalho de engoma dos hábitos
Mas teriam sido os árabes seus introdutores em das freiras. O que fazer com a gigantesca sobra
grande escala na alimentação, criando amêndoas de gemas? Criativas, as religiosas começaram a
e nozes açucaradas, além dos doces de figo e de fazer quindim, bom-bocado, pudim, papo-de-
laranja. Já no século XV, ao conquistar a Penínsu- anjo e manjar com essa abençoada abundância
la Ibérica, os mesmos árabes incluíram a cana-de- de ingredientes. Passadas as gerações, cá esta-
açúcar nas mudas que passariam a produzir as mos nos fartando dessas mesmas iguarias – mui-
frutas utilizadas nos doces futuros. A partir daí, tos se achando brasileiros pioneiros na doce arte
de Portugal e Espanha, a cana-de-açúcar desem- da confeitaria.
barca na América pelas mão de nossos desbra- Ainda sem abordarmos invasões euro-
vadores. Pronto: estava sacramentada a invasão péias outras, que viriam a contribuir com o en-
mais doce da história brasileira, uma cultura que riquecimento de nossa confeitaria, recuperamos
se perpetuaria pelo séculos seguintes. a comunhão da tradição lusitana com as frutas
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5. Nos engenhos do interior de
Pernambuco, Paraíba, Alagoas
e Maranhão, assim como nos
sobrados de Recife, São Luiz e
Maceió, as cozinheiras negras
foram verdadeiras alquimistas na
formação de uma cozinha regional.
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6. Vendedoras de pão-de-ló. J. B. Debret (1826).
Fonte: Museus Castro Maya – IPHAN/Minc – MEA 0203
Sabores do Brasil 57
7. brasileiras. Um elo fundamental surge nessa li- de chá patriarcais: sozinha ou na companhia da
nha de produção: as quituteiras negras, que das pamonha, do beiju, do cuscuz e da cocada. Situa-
senzalas emergiram para as cozinhas das sinhás, se também o nascimento do pé-de-moleque (com
trazendo consigo a farinha de mandioca, o fubá, castanhas de caju), além da canjica e de bolas à
a abóbora e o cará para a composição das igua- base de milho.
rias. Estamos falando de uma região geográfica Mas se a maioria das origens são identifi-
situada, principalmente, em Pernambuco, Alago- cadas, sobre o bolo Souza Leão – que até hoje rei-
as e interior de São Paulo. na em terras pernambucanas – têm-se notícias de
Sabemos que as frutas são base de sobre- inúmeras receitas que se arvoram em autênticas.
mesas há séculos – dos rincões da Babilônia às Ainda sobre bolos: são também de Portu-
cortes francesa e italiana. Daí, imagina-se o quan- gal os primórdios dos bolos de noivas e aquelas
to os portugueses, que misturavam mel às frutas pirâmides de açúcar encravadas no centro das
antes do uso comum do açúcar, se deslumbraram mesas mais nobres. Assim como a arte dos enfei-
com as possibilidades de nossas polpas, genero- tes, surge a criação de letras e de desenhos, à base
sas em todo canto de um país recém-descoberto. de canela, bordados nas toalhas e nos guardana-
São ambrosias, doces de abóbora, banana com la- pos, como também opções de formatos de caixas,
ranja, cocada, merengue, tapioca e tantas outras ornamentos e papéis recortados. Cabe lembrar a
preciosidades. tradição de um Brasil Colonial: era comum, em
Ainda nos tempos coloniais, a cajuada e a procissões, fiéis conduzirem tabuleiros de doces,
goiabada ganharam ares de nobreza, já conside- oferecidos de forma gratuita a indivíduos que
rados os dois grandes expoentes da casa-grande. representavam figuras bíblicas. Teria partido daí
Mas foram tempos também em que os aromas de uma das primeiras denúncias de um suspeito ju-
bananas assadas ou fritas, envoltas em canela, in- daísmo ao Santo Ofício: o homem teria oferecido,
vadiam as propriedades, assim como o chamado durante uma procissão, confeitos que represen-
mel de engenho era fundido com nossa farinha tavam figuras de judeus.
de mandioca ou macaxeira. Passado o tempo, surge um dos mais en-
Nos engenhos do interior de Pernambuco, cantadores aliados da culinária e, por que não di-
Paraíba, Alagoas e Maranhão, assim como nos zer, dos hábitos da civilização moderna: o gelo.
sobrados de Recife, São Luiz e Maceió, as cozi- A partir daí, as frutas brasileiras, presentes em
nheiras negras foram verdadeiras alquimistas na doces, geléias e pudins, servidos ainda quentes,
formação de uma cozinha regional. Sem falarmos incorporaram novos contornos de sabor e de
na Bahia, estado no qual a tradição branca mal se comportamento, e se transformaram em sorve-
percebe hoje nos guisados salgados, vencida que tes. Tratados como cremes para os dias de calor,
foi pelo calor arrebatador dos condimentos afri- agradavam tanto à visão quanto ao paladar.
canos que lhe dera as cozinheiras negras. Rompendo as fronteiras das fazendas e
Comprovado o prestígio do mel de enge- dos engenhos, surgiram como mote para as pri-
nho em meio a aliados como farinha, cará ou fru- meiras confeitarias das grandes cidade do Brasil.
ta-pão, o tradicional arroz-doce ganha contornos A iguaria tornou-se quase marco do desapare-
nacionais no arroz com leite-de-coco. Ao mesmo cimento das clássicas e fumegantes sobremesas
tempo, a tapioca surgia soberana por entre mesas patriarcais e do descrédito dos saraus em torno
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8. Queijo e goiabada. João Prudente / Pulsar Imagens
de chás ferventes, com queijo do sertão e pão Guardamos lembranças, imagens e aromas.
torrado. Segundo os historiadores, os jornais da Quem não se perde em devaneios ao lambuzar
primeira metade do século XIX trazem o sorvete os dedos após um naco de goiabada caseira, se vê
como aura de pecado: nas notícias, as confeita- o mais feliz dos reis ao morder sem timidez um
rias, até então restritas aos homens, passam a re- sonho recheado com o melhor dos cremes, ou se
ceber as primeiras moçoilas. enche de orgulho ufanista após uma saraivada de
Os anos se sucedem e a chegada de imi- doces à base de frutas brasileiras? Seja por qual
grantes de toda a Europa espalha como pólen os motivo for, a origem da confeitaria nacional é,
gens das tradições confeiteiras inglesa, francesa antes de tudo, antropológica, histórica, elucidati-
e alemã, para citar algumas, incrementando, al- va. Vencidas estas páginas, não se furte: cerre os
terando, adequando as novas feições abrasilei- olhos, evoque sua reminiscência mais significati-
radas de seus dotes adocicados. Hoje, o açúcar va e tenha, certeza, um doce virá à mente como
mais consumido é o branco-refinado. Mas para a imagem marcante para tal sentimento.
preparação de doces e compotas se usa em gran-
de escala o tipo cristal, sem refino. Além desses,
algumas receitas tradicionais pedem o mascavo Alexandre Menegale
ou a rapadura. A dicotomia entre prazer e cul- Jornalista
pa é um dos dogmas que nos cerca. Balas, tortas,
biscoitos, geleias, compotas, musses, sorvetes e
Artigo originariamente publicado na revista
Sabor do Brasil, MRE, 2004.
gelatinas povoam nosso imaginário degustativo.
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