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A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO
Paulo Luccas
paulo.luccas@consultoriafocus.com.br
Resumo
O trabalho visto sob a ótica da atividade, pode ser considerado um legítimo fio
condutor ao longo da história para explicar a controvertida e fascinante saga
do homem na busca de si mesmo. Esta busca de si mesmo e a satisfação de
suas necessidades, exigiram do homem uma sucessão de fases e revoluções
que lhe permitem hoje conhecer a sua história e o seu presente.
Ao longo de sua história, o homem tem travado uma constante luta para
conquistar sua sobrevivência, entender e dominar seu ambiente, e superar aquele que
seja talvez de todos o seu maior desafio: conhecer suas capacidades para poder
realizar-se enquanto ser. Diversas ciências e escolas de pensamento deram suas
contribuições para vencer este desafio. A Ciência Econômica pelo viés da escassez e
racional utilização de recursos tem um bom posicionamento para esta luta. Para
Chacon e Franco Júnior (1989, p. 21), “Em certo sentido, a História Econômica é a
história do domínio do homem sobre a natureza e de sua capacidade de utiliza-la em
proveito próprio.” É um conceito que deixa claro que a verdadeira luta do homem sobre
a terra não é contra a natureza, mas contra sua ignorância em não tirar o melhor
proveito dos recursos disponíveis. É uma luta que tanto o fará mirar as estrelas na
esperança de entender o universo, como o remeterá ao seu interior na esperança de
sondar ali o sentido de sua vida.
Os gregos clássicos perceberam que este conhecimento de si mesmo não podia
limitar-se à sondagem e contemplação, era algo tão vital para a realização do homem
que deveria ser atualizado em sua vida corrente e mediante a sua atividade. No livro I
da Ética a Nicômacos, Aristóteles imortaliza este princípio de racionalidade (1996, p.
125): “Se há um fim visado em tudo o que fazemos, este fim é o bem atingível pela
atividade.” O trabalho visto sob a ótica da atividade, pode portanto, ser considerado
um legítimo fio condutor ao longo da história para explicar a controvertida e fascinante
saga do homem na busca de si mesmo. É a saga imortalizada por Sócrates ao
defrontar-se com o dintel do oráculo de Delfos: “Homem conhece-te a ti mesmo”, que
2. gerou-lhe uma inquietação profunda na alma e o fez um dos mais sábios homens ao
concluir com excepcional bom senso e humildade: “Só sei que nada sei.”
O domínio do homem sobre a natureza e o conhecimento de si mesmo são
temas conexos que têm no trabalho a atividade que melhor os integra. É uma atividade
tipicamente humana, já que nenhum outro ser é capaz de trabalho no sentido de criar,
prover, e relacionar-se em sociedade. O homem ao trabalhar não só provê o seu
sustento, como atualiza sua capacidade natural de desenvolver-se e relacionar-se,
transmitindo cultura e abrindo horizontes de realização.
Nas palavras de Stork e Echevarría (2001, p. 267), “O trabalho é a mais
importante fonte de riqueza do homem, em sua origem é o brotar inédito da
inteligência.” Inteligência que não lhe foi dada em plenitude, mas em forma de potência
para que livremente a desenvolvesse segundo seus interesses e escolhas.
A busca de si mesmo e a satisfação de suas necessidades, permitiram ao longo
da história uma sucessão de fases e revoluções que marcariam a evolução de toda a
história humana. A primeira fase a situar esta evolução é a dos povos coletores.
A partir do momento em que surge, o homem passa a produzir,
isto é, passa a extrair da natureza, pelo trabalho, os bens de que
necessita para satisfazer suas necessidades. É fácil compreender
que na longa fase inicial de sua evolução, estas se resumiam ao
mínimo necessário para sobreviver como indivíduo e como espécie.
É a fase da coleta. (MAGALHAES FILHO, 1977, p.12, grifo nosso).
As atividades consistiam basicamente na coleta de frutos suplementados pela
caça e pesca. Sua organização social consistia na formação de bandos nômades em
busca de melhores campos de coleta e abrigo. Esta fase dá-se desde o surgimento do
homem na terra até aproximadamente oito mil anos, quando há um salto qualitativo
importante no desenvolvimento social e econômico.
Com o domínio do fogo, de algumas técnicas agrícolas, de alguns instrumentos
de trabalho, e da domesticação de alguns animais, o homem tem a possibilidade de
fixar-se num território para produzir seu próprio alimento libertando-se da necessidade
de viver em constante movimento. De nômade passa a sedentário. “A permanência de
um mesmo povo no mesmo lugar, século após século, permitirá ao homem investir seu
excedente de trabalho e de produção em obras de caráter permanente, que lhe
aumentarão ainda mais a capacidade produtiva. “ (MAGALHÃES FILHO, 1977, p. 23).
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3. Este salto qualitativo ficou conhecido como Revolução Agrícola, marcando o
surgimento da instituição da propriedade, da divisão do trabalho e lançando as bases
para a divisão social em classes. Segundo Magalhães Filho (1977, p. 24):
A agricultura trouxe para o homem as bases da civilização,
erguendo-o muito acima, na escala evolutiva, dos outros animais
com os quais ainda há poucos séculos compartilhava a vida errante
de caçador. Permitiu-lhe satisfazer ao máximo suas necessidades,
surgidas em função da própria evolução social, e para cuja
satisfação milhões de homens teriam de dedicar vidas inteiras a
trabalhos penosos e rotineiros.
A criação de excedentes, o surgimento de classes sociais, a especialização do
trabalho, a instituição da propriedade, constituem um salto qualitativo importante na
evolução social e econômica, mas representam também o fim do trabalho que visava
apenas a sobrevivência e manutenção da espécie. O homem começa a diferenciar-se
entre os seus iguais não só pelas suas aptidões físicas, mas também pelas suas
escolhas e disposição de crescimento e aproveitamento de oportunidades segundo
estas escolhas. Deixa de meramente integrar a natureza e servir-se dela para
transformá-la, criando o espaço segundo as suas aspirações racionais. O homem passa
a transformar seu espaço e ser por ele transformado numa espiral crescente de cultura
social e econômica.
A pessoa humana está instalada no espaço. O âmbito dentro do
qual os seres se lhe mostram formam seu mundo circundante, em
cujo interior se encontra já existindo. (...) O mundo exterior no
qual o homem vive é físico, material, e considerado em seu
conjunto recebe o nome de natureza. A pessoa humana não é
concebível fora dessa instalação material: sua vida se desenvolve
nesse meio e através dele. (...) O estar situado do homem dentro
da natureza é algo radical e determinante para seu existir e seu
modo de ser, pois surge daí o como faz, atua, vive e se projeta.
(STORK e ECHEVARRIA, 2001, p. 83-84).
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4. O meio externo é um agente importante de influência sobre o homem, mas seria
uma simplificação muito grande imaginar que este meio determine o seu agir. A sua
capacidade de adaptação ao meio é muito mais a atualização de uma potência interior
que o move na busca da satisfação almejada. Por isso o homem aceita o caráter penoso
e rotineiro do trabalho como preço da identidade que se revela e que se constrói,
satisfazendo aspirações atuais e gerando outras novas e mais elevadas. Quando hoje, o
homem limita o trabalho à sua subsistência, está renunciando a esta evolução
retroagindo a uma condição primitiva superada historicamente há pelo menos oito mil
anos.
Pelo trabalho o homem toma consciência de suas capacidades e potências, e ao
atualizá-las faz-se mais pleno de si. Esta atualização e apropriação do seu
desenvolvimento o diferenciam das demais criaturas e o faz perceber-se capaz de mais.
Esta percepção é vital não só ao homem primitivo para submeter a natureza de que
dispõe, mas ao de todas as épocas para submeter-se à própria natureza de que
provém. Romper esta ordem é submeter-se às próprias criaturas, aos seus artifícios,
tornando-se débil e sujeito às conseqüências desta desordem.
A consciência do que é ou pode vir a ser não nasce completa, e diferencia-se
dentro da própria espécie, fazendo com que alguns percebam a sua própria natureza e
a natureza que o cerca de forma diferente dos outros. O processo de separação e
submissão do homem às condições naturais é crescente impondo-lhe cada vez maiores
desafios. Ele percebe que o bem não está disponível e que precisa ser conquistado
mediante esforço e determinação. Para extrair o que deseja precisa conhecer, para
então dominar e progredir. Cada vez que esse processo ocorre, o conhecimento se
amplia, e a sua própria consciência se desenvolve.
Este processo não se desenvolve de forma isolada, individualizada. Pela sua
condição de ser social busca ao semelhante para ver-se a si mesmo, para comunicar-lhe
suas aspirações e conquistas. Conforme Mondin (1980, p. 159): “A sociabilidade é
a propensão do homem para viver junto com os outros e comunicar-se com eles, torná-los
participantes das próprias experiências e dos próprios desejos, conviver com eles as
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mesmas emoções e os mesmos bens.”
Esta necessidade de ver-se no outro, de sociabilizar-se, de conquistar
reconhecimento exige do homem uma obra bem feita, algo digno e de que possa
orgulhar-se. É algo intrínseco à sua própria natureza fazer o bem e comunicar o bem,
sendo por este bem reconhecido.
Historicamente, este viver em sociedade e a conseqüente transmissão de usos,
costumes, técnicas e aspirações, não só permitiu um impulso extraordinário ao seu
5. desenvolvimento pessoal como permitiu uma ainda mais radical transformação
econômica e social.
A evolução das formas de propriedade e das formas de organização social,
sobretudo, da família; o crescimento demográfico e dos meios de comunicação e
transporte; a evolução das técnicas de produção e o domínio da escrita, fizeram surgir
o comércio de longa distancia, facilitado em muito pelo surgimento da moeda. Os bens
puderam ser trocados por um divisor único, e com a acumulação de excedentes o
comércio floresceu, fazendo florescer também as cidades e os Estados. Com a
expansão do comércio o homem avançou ainda mais na descoberta de si mesmo,
passou a ser tratado como indivíduo, fenômeno que se verificou especialmente em duas
sociedades tipicamente comerciais: a judaica e a grega.
As atividades comerciais lançaram as condições necessárias para
que o homem pudesse amadurecer, descobrisse sua
individualidade, e se libertasse de sua submissão à natureza, para
ver-se tal qual era na realidade: ao mesmo tempo parte e senhor,
arriscado a ser por ela destruído, mas podendo também dominá-la
pelo seu trabalho. (MAGALHÃES FILHO, 1977, p. 91).
Com o debilitamento do império romano e o seu sistema de autoridade, as
atividades comerciais contraíram-se e cada comunidade voltou-se para si mesma,
ganhando importância os grandes latifúndios que passaram a produzir para sua própria
subsistência. O sistema de autoridade geopolítica se alterou e surgiu o feudalismo,
onde o senhor do latifúndio passou a controlar a condição social e econômica daqueles
que a ele se subordinavam.
Se a escravidão predominou na economia agrícola e comercial, no feudalismo a
servidão foi a principal forma de trabalho. A exploração de certos senhores feudais
chegou a ser ainda maior que a de algumas civilizações agrícolas. Surgiu nesta época
de forma marginal, mas com crescente importância a figura do artesão, que fora da
propriedade feudal e dentro das cidades, desenvolveu um trabalho artesanal que
contou, sobretudo, com a sua habilidade manual e um mínimo de técnica para
desenvolver-se. Com o passar do tempo estes artífices agruparam-se, formando mais
tarde as corporações e junto com os comerciantes locais os futuros burgueses que
iriam se opor à organização feudal e aos seus senhores.
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6. A partir do século XV houve uma grande expansão do comércio a partir da
Europa, dando origem à formação do mundo moderno. Com os avanços científicos nos
equipamentos de navegação, viagens mais longas são empreendidas e novas
civilizações são contatadas, havendo um florescimento econômico e social. A tendência
pela unidade nacional favorecida pela aspiração e ascensão da classe burguesa
comercial transformou mais uma vez a organização das formas de trabalho. Tanto a
escravidão como o colonialismo passaram a ser combatidos pelos interesses capitalistas
emergentes na busca de mercados de consumo.
A inadequação do sistema das corporações para o atendimento da
crescente demanda de manufaturas levou ao crescente predomínio
de um novo sistema, o da produção doméstica, em que um
comerciante comprava as matérias-primas e as entregava nas
casas dos artesãos para que esses as elaborassem. Terminada a
elaboração, os artesãos eram pagos pelo serviço e os produtos
ficavam com o comerciante, que os vendia ao melhor preço,
embolsando o lucro. Consolidava-se assim a figura do capitalista.
(...) O sistema doméstico era, porém, apenas uma fase transitória.
(MAGALHÃES FILHO, 1977, p. 256).
Com a expulsão do homem do campo, formaram-se aglomerados ao redor das
grandes cidades disponibilizando mão-de-obra abundante e barata. A crescente
demanda por produtos manufaturados elevou seus preços estimulando novas inversões
e uma produção em escala maior. Surgiram as fábricas, e como a produtividade era
baixa procurou-se substituir esta mão-de-obra por máquinas, estimulando o
desenvolvimento tecnológico, em especial na época, as máquinas movidas a vapor.
Mais máquinas, mais produção, menores preços, mais demanda, menos camponeses,
mais operários, surgia o capitalismo. Todo um sistema baseado na lógica da produção
de excedentes e formação de lucros remunerando o capital. Surgiu em conseqüência a
divisão de classes entre os proprietários de meios de produção e operários que vendiam
o único bem de que dispunham: a sua força de trabalho.
A máquina transformou o mundo e o homem. A Revolução Industrial trouxe
grandes benefícios materiais à sociedade, ao seu desenvolvimento, mas pouco
contribuiu para o bem-estar do trabalhador.
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7. Esta apreciação histórica do trabalho mesmo que rápida, permite constatar a
coexistência de um sistema interno de escolha com um externo de pressão em que
cada homem independente da época ou ambiente em que viva deve posicionar-se. É da
habilidade em posicionar-se entre as exigências de sua natureza interior e as do meio
externo que o cerca, que irá depender sua satisfação enquanto ser digno de escolhas.
Este dilema, este questionar-se quanto ao sentido do que faz, por que faz e para
quem faz, é algo específico do ser humano, e mais do que uma fraqueza é algo que o
caracteriza enquanto ser: “O sentido da vida não pode ser, nunca, de per si, expressão
do que porventura o homem tenha de doentio; é antes e sem mais, para falarmos com
propriedade, expressão do ser humano, expressão precisamente do que de mais
humano há no homem.” (FRANKL, 1989, p. 56).
Esta busca de sentido como algo próprio do homem, irá provocar uma nova e
igualmente profunda revolução na história humana, onde mais uma vez tanto o social
como o econômico irão se sujeitar ao específico humano na busca da sua dignidade
enquanto ser.
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REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
CHACON, P. P.; JUNIOR, H. F. História econômica geral. 1. ed. São Paulo: Atlas,
1989.
MAGALHÃES FILHO, F. B. B. História econômica. 4. ed. São Paulo: Sugestões
Literárias, 1977.
FRANKL, V. E. Psicoterapia e sentido da vida. 3. ed. São Paulo: Quadrante, 1989.
MONDIN, B. O homem, quem é ele? 10. ed. São Paulo: Paulus, 1980.
STORK, R. Y.; ECHEVARRIA, J. A. Fundamentos de antropologia. 5. ed. Pamplona:
Eunsa, 2001.