1) O documento discute a tradução intersemiótica, que envolve a tradução entre diferentes sistemas de signos, incluindo signos não verbais.
2) O autor Julio Plaza é destacado como um importante teórico e artista que contribuiu para a tradução intersemiótica, utilizando novas tecnologias para transpor obras entre a linguagem verbal e visual.
3) A tradução intersemiótica envolve encontrar elementos equivalentes em diferentes sistemas semióticos dentro de uma cultura e permite novas interpretações ao criar
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A transposição intersemiótica
Helena Coimbra Meneghello
Doutoranda – Universidade Federal de Santa Catarina
helenacm@terra.com.br
Recebido em: 01/03/2014
Aceito em: 31/05/2014
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de discutir, numa breve aproximação, as possibilidades da
tradução entre signos diferentes, inclusive não verbais –a tradução intersemiótica. A interface da
tradução com os diferentes sistemas de signos é examinada, realçando os aspectos culturais que
intervém na sua realização. Observa-se a capacidade de uma obra de arte, literária ou não, de
expressar uma mesma intenção e provocar efeitos análogos, utilizando os diferentes meios
expressivos colocados à disposição, especialmente pelas novas tecnologias.
Palavras-chave: Tradução intersemiótica. Obra de arte. Novas tecnologias.
The intersemiotic transposition
Abstract: The aim of this paper is, in one brief approach, to discuss the possibilities of translation
between different signs, including non-verbal ones, i.e. intersemiotic translation. The translation
interface between different systems of signs is examined, highlighting the cultural aspects involved in
its realization. The ability of a work of art, literary or not, was observed to express the same intention
and cause similar effects using different expressive means, especially new technologies.
Keywords: Intersemiotic translation. Work of art. New technologies.
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A linguística é naturalmente a primeira disciplina a ser associada à tradução, mas
notamos também que os Estudos Culturais constituem um outro aspecto comum às
ligações atualmente estabelecidas com os Estudos da Tradução, indicando que os
aspectos culturais se tornaram tão importantes quanto a linguística para a tradução.
As discussões desenvolvidas por diferentes teóricos exploram as possibilidades de
reflexão teórica sobre a interface da tradução com os diversos sistemas de signos,
destacando os aspectos semióticos e culturais envolvidos na sua realização.
O processo de transferir um texto escrito na cultura de partida para a cultura
de chegada, conduzido por um tradutor, é um fenômeno que coloca a tarefa do
tradutor num dado contexto sociocultural, estabelecendo relações com um vasto
campo do conhecimento, mostrando que a pesquisa em tradução é possível sob o
ponto de vista dos mais diferentes ângulos. A interface dos estudos da tradução com
a semiótica, colocando o foco nas artes plásticas, na música, na dança, no cinema,
faz notar claramente o caráter interdisciplinar dos Estudos da Tradução.
Os problemas colocados pela tradução intersemiótica ultrapassam as
especificidades das diferentes expressões artísticas. Na ampliada relação com as
outras disciplinas são levados em conta, por exemplo, os avanços tecnológicos e as
novas teorias e procedimentos próprios de cada área de conhecimento envolvidos
em todo o processo.
A tradução criativa de uma linguagem estética para outra, no âmbito da
poesia, é conhecida tanto pela qualidade e pelo número de trabalhos produzidos ao
longo da história, quanto pela reflexão teórica relativa a este tipo de operação
artística. Teorias produzidas por vários teóricos e artistas-pensadores abriram
caminho para investigações sobre a tradução e foram além das características
meramente linguísticas. Nesta área destacam-se Walter Benjamin, Roman
Jakobson, Paul Valéry, Octavio Paz, Jorge Luís Borges e no Brasil, Haroldo de
Campos e Julio Plaza.
O estudo das relações entre a literatura e as artes visuais se difundiu
significativamente nos últimos anos, revelando como as interações
transcodificadoras se dão no campo das artes e comunicações contemporâneas e,
sobretudo, como as linguagens analógicas se reproduzem nos mais diferentes
meios.
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O linguista Roman Jakobson foi o primeiro a descrever, em 1959, o
fenômeno da tradução semiótica como transposição de signos de um sistema
semiótico verbal para um outro sistema de natureza diferente. A tradução
intersemiótica foi definida por Jakobson como sendo aquele tipo de tradução que
consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não
verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a
música, a dança, o cinema ou a pintura.
Na visão de Jakobson a função poética de um texto deve ser considerada
sempre que se trate de poesia ou, por extensão, de informação estética, pois em
poesia as equações verbais tornam-se o princípio constitutivo do texto, onde todos
os elementos que constituem o código verbal transmitem uma significação própria.
Segundo suas afirmações, o trocadilho ou a paronomásia, “reina sobre a arte
poética: quer esta dominação seja absoluta ou limitada, a poesia por definição é
intraduzível. Só é possível a transposição criativa de uma forma poética a outra”
(Jakobson, 1971, p. 72).
Um dos nomes de destaque nesta área foi o artista multimídia, escritor,
gravador e professor Julio Plaza. Ele começa a desenvolver seu encantamento
pelas palavras, pelos jogos anagramáticos e de paronomásia no final dos anos
1960, quando inicia um processo de colaboração com os poetas concretistas, Décio
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos.
A ideia mais presente em todo o seu trabalho é a de tradução intersemiótica,
que desenvolveu a partir do conceito de Jakobson: “[...] A transmutação comporta
pensamento analógico, inter-relação dos sentidos e transplante de formas.” (Plaza,
1985, p. 10). A introdução de variáveis associadas ao espaço tridimensional afeta o
sistema linguístico, produzindo um processo de criação híbrido entre a palavra e a
imagem, transpondo os limites tradicionais que fixavam a poesia ao verso e ao livro.
Estudioso da teoria da arte e das novas mídias, o espanhol Julio Plaza foi um dos
teóricos e artistas que mais contribuíram para a difusão da intersecção entre arte e
novas tecnologias no Brasil.
A partir da década de 1980, seu interesse em questionar as linguagens em
contextos híbridos, como tradutor intersignos, o leva da poesia visual para a
pesquisa das novas mídias e a publicar livros e artigos teóricos sobre o tema. O uso
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da metalinguagem comparece em seus trabalhos artísticos –a arte na arte– e em
seus textos teóricos: do videotexto às poéticas digitais. Entre suas publicações mais
conhecidas, estão: Videografia em Videotexto (1986), Tradução Intersemiótica
(1987), e Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais (1998), em
colaboração com Monica Tavares.
A partir da ideia de que traduzir significa conseguir “efeitos análogos com
meios diferentes” (Valéry), para obter a “equivalência nas diferenças” (Jakobson),
Plaza desenvolveu seu trabalho, cuja ideia central é transpor uma poesia para uma
expressão diferente, as artes visuais, mantendo a mesma potência original.
Se na tradução entre formas verbais (poemas principalmente) o
processo tradutor se processa no mesmo meio (escrita), em língua
diferenciada, porém, a tendência é despertar os sentidos latentes de
forma metafórica. Na "Transmutação" tornam-se relevantes as
relações entre sentidos, meios e linguagens, acentuando-se aí um
estranhamento entre esses aspectos. Os meios, como instrumentos
da tradução, emprestam as qualidades necessárias aos caracteres
dos signos, as suas aparências. Os meios artesanais, industriais e
eletrônicos e os procedimentos poéticos nos mostram como
traduções entre diferentes sistemas de signos absorvem as
qualidades materiais desses mesmos meios e interferem nas
aparências, qualificando-as. (PLAZA, 1987, p. 9)
O autor explorou essa proposta de tradução entre signos diferentes,
inclusive não verbais, num grande número de experimentos, abrangendo
praticamente todos os novos meios. Em São Paulo com o editor Julio Pacello
realizou o “Livro-Objeto”, em serigrafia com recortes, um exemplo típico de obra
aberta, no final década de 1960. Publicou com Augusto de Campos os livros
Poemóbiles (1968) e Caixa Preta (1974-75). Traduziu os poemas “Nascemorre”, de
Haroldo de Campos, e “Organismo”, de Décio Pignatari, para um sistema gráfico
sem palavras; os haicais “Lua na Água”, de Paulo Leminski, e “O Velho Tanque”, de
Bashô, para videotexto; o poemóbile “Luz Mente Muda Cor”, de Augusto de
Campos, para holografia e depois para computação gráfica; “Quadrado Negro sobre
Fundo Branco”, de Malévitch, para instalação multimídia; “Noosfera”, de Décio
Pignatari para cartaz/pôster; “Vai e Vem”, de José Lino Grunewald, para ambiente
sonoro; e “O Livro das Mutações (I Ching)”, para filme.
Os livros realizados por Julio Plaza com poemas de Augusto de Campos são
dois volumes que permitem transformar os textos impressos em objetos poéticos
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tridimensionais quando o leitor os abre. Na sua dimensão intersemiótica, o poema-
escultura necessita do movimento para se realizar. Quando o leitor abre a página as
palavras são projetadas para a frente em diversos planos, sugerindo significados
múltiplos. As composições, ao mesmo tempo verbais e visuais, indicam que se trata
de um grupo de textos não discursivos, mas de verdadeiros poemas concretos,
estruturados por meio da justaposição direta das palavras, não pela organização
sintática e sintagmática dos termos. O poema, que já era espacial na poesia
concreta, mas ainda bidimensional por força do suporte impresso, torna-se
tridimensional. A tridimensionalidade interfere fundamentalmente na linearidade do
texto escrito. O texto tridimensional não tem ordem nem hierarquia: pode começar a
ser lido de qualquer ponto. Ocupando um espaço tridimensional, o texto solicita
outra sintaxe e outro modo de formar sentido.
Figura 1 - "Poemóbiles" – poemas tridimensionais de Augusto de Campos e Julio Plaza
Ao comentar a obra que realizou em conjunto com Julio Plaza, em entrevista
que concedeu a João Queiroz, publicada nos Cadernos de Tradução, Augusto de
Campos deixa claras as intenções de integração entre as diferentes expressões
artísticas com as quais trabalhavam, cujo resultado foi um processo criativo híbrido
que englobava a palavra e a imagem:
Buscávamos um verdadeiro diálogo interdisciplinar, integrado e
funcional, entre duas linguagens, o verbal e o não verbal, capaz de
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suscitar, num único movimento harmônico, o curto circuito da
imaginação entre o sensível e o inteligível, o lúdico e o lúcido.
POEMÓBILES foi a primeira de uma série de iniciativas de que
participamos juntos, nas quais o conceito de interdisciplinaridade foi
posto em prática. (CAMPOS, 2008, p. 292)
Julio Plaza utilizou os recursos das novas tecnologias como instrumento
para a experimentação com a palavra e a imagem, promovendo transcodificações
nos códigos da poesia, das artes visuais e da literatura. Partilhou suas experiências
artísticas com outros artistas e poetas através de diversos meios: videotexto,
holografia, instalação ambiental, filme S-8, heliografia, fotografia, cartazes e objetos,
slow-scan TV, fax e computação digital.
Este tipo de tradução, utilizando as novas tecnologias, enfatiza o caráter
intersemiótico das diferentes linguagens, operando em níveis de “transposição
criativa”, que dão lugar a interferências cada vez mais diversificadas, mas não
excluem a tradução poética interlingual, que tem seu suporte em meios gráficos
como o livro e a revista.
O termo “transcodificação” é usado para indicar o processo de procura de
elementos num determinado sistema semiótico que exerça função
semelhante/equivalente em outro sistema de signos, dentro de uma dada cultura. Os
diferentes sistemas de signos integram os aspectos intersemióticos da tradução que
interagem reforçando-se mutuamente e criando novos sentidos.
Em 1982, assim que se instalou em São Paulo uma rede de videotexto, Julio
Plaza começou a estudar o novo meio e a experimentar suas possibilidades como
sistema de expressão artística e chegou a escrever sobre o assunto: Videografia em
Videotexto (1986). No mesmo ano, convidou um grupo de conhecidos artistas e
poetas para produzir trabalhos especificamente pensados para o videotexto. Disso
resultaram as duas exposições pioneiras de videotexto no Brasil – “Arte pelo
Telefone: Videotexto”, no MIS, São Paulo, 1982; e “Arte e Videotexto”, na 17ª Bienal
Internacional de São Paulo, 1983, que foram a base para as ideias relacionadas com
arte-comunicação e também para a web arte que viria depois.
Associando-se a Moysés Baumstein, que realizava hologramas desde 1983,
Plaza se torna também um elemento-chave no engajamento de artistas para a
experimentação com essa nova tecnologia. Dentro da mostra "Arte e Tecnologia", no
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MAC/USP em 1985, ele organizou uma exposição coletiva onde aparece a
holopoesia, poesia construída com recursos holográficos, com obras suas e também
de Augusto de Campos, Décio Pignatari, Moysés Baumstein e Wagner Garcia. Nos
anos 1990, Plaza dedica-se inteiramente às imagens digitais, tema a respeito do
qual ele realiza a sua pesquisa de pós-doutorado na Espanha. Trabalhando
primeiramente com uma equipe da USP e depois da Unicamp, em colaboração com
Luciana Chagas, ele revisita uma série de temas e ideias que já havia explorado na
década anterior com o videotexto e a holografia, mas adaptados então ao novo
contexto digital.
Inversamente, num processo análogo à tradução intralinguística que Roman
Jakobson denominou “tradução intersemiótica” ou “transmutação” no termo cunhado
por Haroldo de Campos, há casos de recriação em palavras de textos compostos
em outras mídias como, por exemplo, a pintura.
As pesquisas que relacionam textos e telas procuram prática e teoricamente
revelar possibilidades de leitura de um texto literário como uma pintura ou da
decodificação de uma pintura como um texto literário. Examinando casos específicos
de uma determinada relação texto-pintura ou teoricamente alguns estudiosos entre
os quais Claus Clüver e Leo Hoek desenvolveram importantes pesquisas sobre o
uso desta técnica na composição da criação literária: a antiga técnica retórica de
representação verbal de uma representação visual –a ecfrase– da qual a descrição
do escudo de Aquiles na Ilíada de Homero seria um exemplo clássico.
A técnica retórica da ecfrase, utilizada como recurso de tradução ou de
transposição intersemiótica por escritores, é explorada pelos estudiosos,
especialmente por Claus Clüver em On intersemiotic transposition (1989) e por Leo
Hoek em La trasposition intersémiotique (1995), ensaios reunidos e traduzidos por
Marcia Arbex no livro Poéticas do visível (2006).
Claus Clüver usa o antigo conceito de ekphrasis introduzido no discurso
crítico para estabelecer uma maneira mais clara e objetiva de examinar as relações
intertextuais entre a literatura e as outras artes. O termo, segundo sua definição, é “a
verbalização de textos reais ou fictícios compostos em sistemas não verbais” (1997,
p. 18). Segundo este conceito, vemos que em determinados textos literários as
palavras são responsáveis pela criação de imagens pictóricas isto é, o texto
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promove um diálogo entre as artes, remete a signos não verbais e usa
procedimentos semelhantes aos pictóricos para construir o texto literário.
Uma representação sistemática da relação entre palavra e imagem –entre
transposição intermidiática e formas de combinação intermidiática− é abordada por
Leo Hoek em 1995. O esquema de Hoek se refere às relações entre um texto
individual e uma imagem individual, onde mais de uma mídia toma parte de ambos
os lados e onde todas as possibilidades de interação entre escrita e imagem podem
ser investigadas.
No estudo de textos baseados em obras de artes que têm a pintura como
referência, Hoek estabelece uma classificação da relação imagem/texto que leva em
consideração a situação de comunicação –de produção ou recepção, de primazia da
imagem ou do texto, simultaneidade ou co-referência e na tipologia da obra–
multimedial, transmedial, discurso misto, discurso sincrético.
No caso em que a tela é transposta para a narrativa, segundo as categorias
de Hoek, se apresenta uma relação transmedial, pois aí ocorre a transposição de um
texto para um outro texto autossuficiente num sistema de signos diferentes. É o caso
do romance Ensaio sobre a cegueira onde Saramago faz referência direta às telas
de Rubens e Tintoretto.
No discurso misto, “o texto e a imagem podem ser combinados para formar
um discurso verbal e visual composto, cada um mantendo sua própria identidade”.
(Hoek apud Arbex, 2006, p. 179).
Na pintura do belga Magritte, nos anos 1970, havia uma prática de
experimentação com a palavra e a imagem. A abordagem múltipla: poética,
linguística, filosófica, plástica, implica na consideração de que a palavra e a imagem
têm a mesma origem, as mesmas funções, estando unidas por afinidades que as
fazem buscar o efeito poético, pois para Magritte a distinção entre o poeta e o pintor
já não existe: “o poeta, que escreve, pensa com palavras familiares, e o poeta, que
pinta, pensa com figuras familiares do visível. A escrita é uma descrição invisível do
pensamento e a pintura é sua descrição visível.” (1979, p. 686).
Além dos casos das relações literatura/pintura, onde os escritores poetas
compuseram poemas ou romances sobre elas, lendo verbalmente o que estava
escrito nas imagens, há os casos de tradução intersemiótica que incluem as
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relações literatura/cinema, literatura/teatro. Nestes casos, os textos baseados em
palavra e imagem indicam a simultaneidade das duas linguagens: verbal e visual,
procurando equivalentes visuais para imagens verbais.
Para qualificar este fenômeno, Haroldo de Campos desenvolveu o conceito
de “isomorfismo”, onde original e tradução, autônomos como informação estética,
estão ligados numa “relação de isomorfia: são diferentes como linguagem, mas
como corpos isomorfos integram um mesmo sistema.” (1992, p. 34).
A linguagem da poesia concreta incentivou inovações linguísticas nas letras
de músicas, concretizando-se na área das traduções criativas, tendo sido
incorporadas na música popular a partir do Tropicalismo. Como é o caso de “Pulsar”,
o poema de Augusto de Campos musicado por Caetano Veloso que emprega
apenas três notas, produzindo um estranhamento de leitura que combina com a
estrutura do texto. Um outro desdobramento da prática da materialização da
linguagem foi, por exemplo, a tradução de Augusto de Campos para a “Elegia” de
John Donne, musicada por Péricles Cavalcanti que se tornou conhecida na
interpretação de Caetano.
Augusto de Campos compartilhou sua arte com músicos, artistas visuais e
cientistas da computação em diversas elaboradas criações artísticas. Como disse na
entrevista concedida a João Queiroz, na sua visão “a tradução intersemiótica amplia
o horizonte da fruição artística e pode constituir uma modalidade de crítica”. (2008,
p. 283).
Na música erudita, muito antes do conceito ter sido emitido, encontramos
casos em que os compositores procuram encontrar “isomorfismos” estruturais,
transpondo textos verbais para a linguagem musical de suas próprias composições.
Os signos sonoros são criados a partir de associações com as sensações
provocadas por signos verbais que dão significado a uma obra literária e poderiam
ser classificados como traduções intersemióticas, articulando o discurso musical com
o discurso verbal.
Neste caso, um exemplo que pode ser citado é o da Oitava Sinfonia de
Mahler, que representa uma experiência espiritual. O objetivo da sinfonia é o de
afirmar a fé cristã no poder do Espírito Santo de acordo com o que foi expresso no
antigo hino latino “Veni, Creator Spiritus”, ligando isso à visão simbólica de Goethe
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da redenção da humanidade através do amor do “eterno feminino”, na cena final de
Fausto, Parte II.
Ao contrário, encontramos no romance Doutor Fausto de Thomas Mann uma
página inteira dedicada à última sonata para piano composta por Beethoven, a
Sonata em dó menor, op. 111.
O que se vê é uma hibridação de estratégias compositivas entre as poéticas
experimentais. No momento em que uma obra literária e uma composição musical
se apresentam como signos uma da outra, na passagem de um sistema verbal para
um não verbal e vice-versa, podem ser vistas como tradução. Mas como adverte
Clüver:
Verbalizações de textos compostos em outras mídias são muito
comuns: é difícil discutir sobre tais textos sem recorrer à linguagem
verbal. Não há regras gerais para determinar quais delas devemos
ler como transposições intersemióticas. Existem textos visuais ou
musicais (instrumentais) que convidam a tal leitura, mas a decisão é
do leitor. (2011, p. 20)
A tradução quando realizada entre sistemas de signos diferentes deve levar
em conta, além dos diferentes códigos utilizados na relação intersemiótica, os
aspectos culturais que são decisivos para a interpretação das diversas formas de
arte responsáveis pela tradução. Deve ser considerada a capacidade de relacionar o
signo com o seu significado.
Classificada de diferentes maneiras por vários autores, a transposição
intersemiótica é uma forma de tradução que pode até prescindir da palavra escrita,
mas, no entanto, reforça o caráter dos aspectos cognitivo, linguístico, visual, cultural
e até ideológico que intervêm na sua realização.
Em vista da riqueza e da diversidade de contextos em que se desenvolve a
pesquisa em tradução e levando em conta também a dinâmica da evolução destes
contextos, o mapeamento das interfaces com as diferentes áreas disciplinares não
poderá nunca estar conclusivamente definido, haverá sempre alguma outra que lhe
possa ser acrescentada.
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