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29
LINGUAGEM E INTERDISCIPLINARIDADE
José Luiz Fiorin
Kiakudikila, kiazanga...
(O que se mistura separa)*
Luandino Vieira
... Le cose tutte quante
Hann’ordine tra loro; e questo è forma
Che l’universo a Dio fa simigliante.
Dante, Paraíso, I, 103-105
A multiformidade e a heterogeneidade da linguagem
A linguagem é onipresente na vida de todos os homens. Cer-
ca-nos desde o despertar da consciência, ainda no berço; segue-nos
durante toda a nossa vida, em todos os nossos atos, e acompanha-
nos até na hora da morte. Sem ela, não se pode organizar o mun-
do do trabalho, pois é ela que permite a cooperação entre os seres
humanos e a troca de informações e experiências. Sem ela, o ho-
mem não pode conhecer-se nem conhecer o mundo. Sem ela não
se exerce a cidadania, porque ela possibilita influenciar e ser in-
fluenciado. Sem ela não se pode aprender. Sem ela não se podem
expressar sentimentos. Sem ela, não se podem imaginar outras rea-
lidades, construir utopias e sonhos. Sem ela não se pode falar do
que é nem do que poderia ser.
A linguagem é objeto de estudo de várias disciplinas. A lin-
güística, por exemplo, tem por finalidade a explicação dos meca-
nismos da linguagem por meio da descrição das diferentes línguas
faladas no mundo.
Todas as línguas têm em comum certas propriedades e carac-
terísticas universais, que definem o que é inerente à natureza mes-
ma da linguagem. Através da extraordinária diversidade das línguas
do mundo, hoje se busca a unidade da linguagem humana, aqui-
lo que faz sua especificidade em relação aos códigos não humanos.
A busca de uma origem única das línguas, o mito da torre de Ba-
bel, que seria responsável pela diversidade lingüística, a nostalgia
do paraíso perdido onde se falava uma só língua, é isso que está na
base, no plano mítico, da pesquisa contemporânea dos universais
*
(VIEIRA, José Luandino.
Lourentinho, Dona Antónia
de Sousa Neto & eu.Estórias.
Luanda: Edições Maianga,
2004: 60.)
ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 p. 29-53
30 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
da linguagem, das operações mentais que presidem ao funciona-
mento de todas as línguas. Podemos estudar esses universais e es-
sas operações, bem como a perda da capacidade de linguagem por
lesões no cérebro. Nesse caso, a lingüística confina com a biologia
e as ciências cognitivas.
Podemos debruçar-nos sobre as diferenças entre as línguas e
então a lingüística faz fronteira com a antropologia e a etnologia.
Podemos ocupar-nos da variação no espaço, como fazem a diale-
tologia e a geolingüística, e aí a lingüística acerca-se da geografia.
Podemos examinar a variação de grupo social para grupo social e,
nesse caso, a lingüística limita-se com as teorias sociológicas. Po-
demos observar a variação de uma situação de comunicação para
outra e então a lingüística faz limites com a teoria da comunicação.
Podemos pesquisar a mudança lingüística e a evolução de uma lín-
gua ou de uma família de línguas e aí a lingüística avizinha-se da
história. Podemos analisar a aquisição da linguagem e aí, depen-
dendo da posição teórica com que se faz a análise, a lingüística con-
fina com a biologia ou a antropologia. Podemos ver a linguagem
como um sistema formal e então a lingüística se aproxima da ma-
temática e da computação. Podemos investigar as unidades maio-
res do que a frase, isto é, o discurso e o texto. Nesse caso, quando
se põe acento na dimensão lingüística, os estudos do discurso têm
vizinhança com a retórica, com a dialética, com a teoria da litera-
tura. Quando se enfatiza a dimensão histórica do discurso, a aná-
lise do discurso é limítrofe da história.
Poderíamos continuar a dar exemplos de formas de aborda-
gem do fenômeno da linguagem, mas cremos que os elementos ex-
postos acima são suficientes para mostrar que a linguagem é, como
dizia Saussure, “multiforme e heteróclita”; está “a cavaleiro de dife-
rentes domínios”; é, “ao mesmo tempo, física, fisiológica e psíqui-
ca”; “pertence (...) ao domínio individual e ao domínio social”.*
Por
isso, confina com diferentes campos do saber, não só das ciências
humanas, mas também das ciências exatas e biológicas.
A lingüística pelo próprio objeto parece ter uma função in-
terdisciplinar. Antes de avançar é preciso pensar outra questão. Nas
Letras, o campo dos estudos da linguagem tradicionalmente divi-
de-se em, de um lado, os estudos de língua e, de outro, as investi-
gações sobre a literatura. Cada um desses domínios é presidido por
uma disciplina teórica: a lingüística para o primeiro e a teoria da
*
(SAUSSURE, Ferdinand de.
Curso de lingüística geral.
São Paulo: EDUSP/Cultrix,
1969: 17.)
31
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
literatura para o segundo. O primeiro, como já se disse acima,
tem por objeto o estudo dos mecanismos da linguagem humana
por meio do exame das diferentes línguas faladas pelo homem.
O segundo tem por finalidade a compreensão de um fato lingüís-
tico singular, que é a literatura. Embora claramente distintos, esses
dois módulos dos estudos da linguagem deveriam manter relações
muito estreitas. De um lado, um literato não pode voltar as costas
para os estudos lingüísticos, porque a literatura é um fato de lin-
guagem; de outro, não pode o lingüista ignorar a literatura, porque
ela é o campo da linguagem em que se trabalha a língua em todas
as suas possibilidades e em que se condensam as maneiras de ver,
de pensar e de sentir de uma dada formação social numa determi-
nada época. A literatura é a súmula de toda a produção do espí-
rito humano ao longo da História. Já lembrava o grande lingüis-
ta Roman Jakobson em texto antológico:
Esta minha tentativa de reivindicar para a Lingüística o direito e o
dever de empreender a investigação da arte verbal em toda a sua am-
plitude e em todos os seus aspectos conclui com a mesma máxima
que resumia meu informe à conferência que se realizou em 1953
aqui na Universidade de Indiana: Linguista sum; linguistici nihil me
alienum puto. Se o poeta Ranson estiver certo (e o está) em dizer
que “a poesia é uma espécie de linguagem”, o lingüista, cujo campo
abrange qualquer espécie de linguagem, pode e deve incluir a poesia
no âmbito de seus estudos. A presente conferência demonstrou que
o tempo em que os lingüistas, tanto quanto os historiadores literá-
rios, eludiam as questões referentes à estrutura poética ficou, feliz-
mente, para trás. Em verdade, conforme escreveu Hollander, “pare-
ce não haver razão para a tentativa de apartar os problemas literários
da Lingüística geral”. Se existem alguns críticos que ainda duvidam
da competência da Lingüística para abarcar o campo da Poética,
tenho para mim que a incompetência poética de alguns lingüistas
intolerantes tenha sido tomada por uma incapacidade da própria
ciência lingüística. Todos nós que aqui estamos, todavia, compre-
endemos definitivamente que um lingüista surdo à função poética
da linguagem e um especialista de literatura indiferente aos proble-
mas lingüísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos.*
Este trabalho pretende pensar o problema da interdisciplina-
ridade, depois discutir, de maneira mais aprofundada, a questão
da interdisciplinaridade em lingüística, para terminar debatendo a
problemática das relações entre lingüística e literatura.
*
(JAKOBSON, Roman. Lin-
güística e comunicação. São
Paulo: Cultrix, 1969: 162.)
32 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
Interdisciplinaridade
Parece haver duas formas básicas de fazer ciência: uma é re-
gida por um princípio de exclusão e a outra, por um princípio da
participação.1*
Esses dois princípios criam dois grandes regimes de
funcionamento das atividades de pesquisa. O primeiro é o da ex-
clusão, cujo operador é a triagem. Nele, quando o processo de re-
lação entre objetos atinge seu termo leva à confrontação do exclu-
sivo e do excluído. As atividades reguladas por esse regime colo-
cam em comparação o puro e o impuro.*
O segundo regime é o
da participação, cujo operador é a mistura, o que leva ao cotejo do
igual e do desigual. A igualdade pressupõe grandezas intercambi-
áveis; a desigualdade implica grandezas que se opõem como supe-
rior e inferior.*
Assim, há dois tipos fundamentais de fazer científico: o da
exclusão e o da participação, ou, em outras palavras, o da triagem
e o da mistura.
O fazer governado pelo princípio da triagem tem um aspecto
descontínuo e tende a restringir a circulação de objetos, que será
pequena ou mesmo nula e, de qualquer maneira, desacelerada pe-
la presença do exclusivo e do excluído. É um fazer do interdito. Já
a atividade gerida pelo princípio da mistura apresenta um aspecto
contínuo, favorecendo o “comércio” entre objetos, métodos, con-
ceitos. Nela, o andamento é rápido. É a atividade do permitido.*
A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade: átona
e tônica. Há triagens mais ou menos drásticas e misturas mais ou
menos homogêneas, o que daria o seguinte esquema:*
Triagem Mistura
Tônica unidade/nulidade universalidade
Átona totalidade diversidade
Cada um desses fazeres opera com um tipo de valor diferente:
os da triagem criam valores de absoluto, que são valores da intensi-
dade; os da mistura, valores de universo, que são valores da exten-
sidade. Os primeiros são mais fechados, tendendo a concentrar os
1
Zilberberg e Fontanille desenvolvem os conceitos de regimes de mistura e de
triagem, para mostrar como os valores tomam forma e circulam no discurso e não
para analisar os modos de fazer ciência.Tomamos as noções dos dois semioticistas
para estudar os valores relativos à disciplinarização e a sua superação.
*
(FONTANILLE, Jacques;
ZILBERBERG, Claude. Ten-
são e significação. São Pau-
lo: Discurso Editorial, Hu-
manitas, 2001: 27.)
*
(Idem: 29.)
*
(Idem: 29.)
*
(Idem: 20-30.)
(Idem: 33.)
33
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
valores desejáveis e a excluir os indesejáveis; os segundos são mais
abertos, procurando a expansão e a participação.*
Até meados do século XVII, embora houvesse uma disciplina-
rização do conhecimento, que remontava aos gregos, predominava
o fazer científico regido pelo princípio da mistura. Num certo tem-
po, por exemplo, não há diferença nítida entre alquimia e química
ou entre astronomia e astrologia. A ciência busca menos o modo
de funcionamento do mundo do que seus grandes fins, menos o
como dos fenômenos do que seu porquê. Assim, Kepler, ao estabe-
lecer as leis da mecânica celeste, queria menos saber como se estru-
tura o universo e muito mais demonstrar que um mundo matema-
ticamente perfeito só poderia ressoar a perfeição divina.
A partir do século XVIII, começa um movimento de especiali-
zação nas atividades científicas, ou seja, uma atividade de investiga-
ção gerida pelo princípio da triagem. Estabelecem-se objetos muito
precisos, que não se misturam. O ecletismo constitui um grave erro.
Os objetos são puros, são autônomos. Assim, por exemplo, Saus-
sure estabelece que o objeto da lingüística é a langue. Esse objeto
não se contamina da física, da fisiologia, da psicologia, etc. A lín-
gua será estudada em si mesma e por si mesma.*
O gesto científi-
co fundamental é dividir o objeto, para examinar seus elementos
constituintes e, a partir daí, recompor o todo. Assim, a lingüística
começa por dividir os períodos em orações; estas, em palavras; es-
tas, em morfemas; estes, em sílabas; estas, em fonemas. Estudam-
se, exaustivamente, esses componentes para chegar à compreen-
são do objeto, a língua. Esse movimento de triagem chegou a seu
apogeu no século XIX e atingiu dimensões alarmantes no século
XX, com especializações cada vez mais restritas, mais particulares.
Não é preciso dizer que a especialização e a conseqüente discipli-
narização2*
produziram resultados notáveis. São elas que explicam
o extraordinário desenvolvimento científico a que se assistiu nes-
se período. O método da divisão e recomposição produz análises
muito finas e possibilita a ampliação do conhecimento. Mas prin-
cipalmente é preciso dizer que opera uma mudança radical do que
se compreende como ciência: é a atividade que pretende descobrir
o funcionamento das coisas.
2
Comte, na 60ª lição do Curso de filosofia positiva (t. 6: 723-774.), mostra que a
ciência é especulação ou ação: no primeiro caso, ela desvenda as leis dos fenôme-
nos e a possibilidade de prevê-los; no segundo, descobre sua utilidade e sua apli-
cação; foi essa formulação que distinguiu a ciência pura da aplicada.
(Idem: 53-54.)
*
(Op. cit.: 15-25)
*
(COMTE,Auguste. Cours de
philosophie positive. Paris: J.
B. Baillière et Fils, 1869, t.1
e 6. Cf. t. 1: 47-88.)
34 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
A especialização não produziu só maravilhas. De um lado, é
preciso considerar que o próprio desenvolvimento da ciência pro-
põe novos problemas que não cabem nesse programa científico.
De outro, ela deu lugar a uma institucionalização danosa do fazer
científico, regulada também pelo princípio da triagem. Os grupos
de pesquisa atuam cindidos num regime de concorrência selvagem,
cada um competindo com outros. A pesquisa torna-se secreta, o que
é avesso ao ideal científico da construção do conhecimento num
processo de comunicação universal. Com a especialização, a triagem
continua a operar e aí surgem os dogmas, as igrejas, as purezas, as
heresias, as excomunhões, os sumos sacerdotes, os cães de guarda...
No entanto, não são esses os aspectos mais ruinosos da especializa-
ção. O mais grave é o que ela produz sobre a formação e a cultura
dos homens de ciência. Nos anos 20 do século passado, Ortega y
Gasset, de modo premonitório, pois estávamos longe do auge do
processo, já denunciava a “barbárie da especialização”:
Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sá-
bios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos igno-
rantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma des-
sas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o
que não entra na sua especialidade, mas tampouco é um ignorante,
porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem sua porci-
úncula do universo. Devemos dizer que é um sábio-ignorante, coisa
sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará
em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com
toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.*
No domínio do conhecimento da linguagem, separam-se niti-
damente os estudos lingüísticos e os literários. Ficam de costas um
para o outro. Embora, como se mostrou acima, Jakobson conside-
re essa atitude um verdadeiro anacronismo, lingüistas e especia-
listas em literatura ignoram-se. Isso produziu uma conseqüência
devastadora: de um lado, é constrangedor verificar a ignorância
literária dos lingüistas e, mais ainda, constatar que eles não dão à
literatura nenhuma importância; de outro, é ainda mais embara-
çoso ouvir especialistas em literatura enunciando, com a petulân-
cia dos sábios-ignorantes, banalidades do senso comum, eivadas de
preconceito e de falsidade, sobre a língua.
Num texto famoso, Snow mostrava o distanciamento pro-
gressivo das ciências naturais das humanidades, com prejuízo para
uma e outra.*
É curioso que, no domínio dos estudos da linguagem,
parece reproduzirem-se essas duas culturas. Com efeito, algumas
*
(GASSET, José Ortega y. A
rebelião das massas. Rio de
Janeiro: Livro Ibero-Ameri-
cano, 1962: 174.)
*
(SNOW, Charles Percy. As
duas culturas e uma segunda
leitura:uma versão ampliada
das duas culturas e a revolu-
ção científica. 2 ed. São Pau-
lo: EDUSP, 1995.)
35
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
especialidades da lingüística aproximaram-se das ciências biológi-
cas ou das ciências exatas, enquanto a literatura permanece solida-
mente ancorada entre as humanidades. Um jovem professor de li-
teratura, com a arrogância dos que têm um solene desprezo pelos
outros, assim resumiu essa dupla cultura no campo das Letras: os
lingüistas marcham e os especialistas em literatura sambam. Qual-
quer brasileiro sabe o que é eufórico e o que é disfórico na perspec-
tiva desse jovem ignorante.
Mas não são apenas filósofos, humanistas e cientistas sociais
que se preocupam com as conseqüências da especialização selva-
gem. Norbert Wiener, o criador da cibernética, diz:
Atualmente, podem contar-se nos dedos de uma mão os cientistas
que não sejam exclusivamente matemáticos, físicos ou biólogos.
Pode haver topólogos, especialistas em acústica ou coleopteristas,
que dominam o jargão de sua especialidade e conhecem toda a li-
teratura de sua área e suas ramificações, porém na maioria das ve-
zes considerarão qualquer outra disciplina como algo que pertence
a um colega, que trabalha no mesmo corredor, três portas adiante,
e crerão que qualquer interesse de sua parte pelo tema é uma injus-
tificável violação de privacidade.*
Na lingüística, essa especialização faz-se sentir fortemente.
Já não se encontram mais lingüistas, mas foneticistas, sintaticistas,
fonólogos, semanticistas, analistas do discurso e assim por diante.
Num processo de cissiparidade, talvez já não se encontrem mais se-
manticistas, mas semanticistas formais, semanticistas lexicais, etc.
Torna-se cada vez mais difícil encontrar alguém com uma forma-
ção lingüística abrangente.
A preocupação, mesmo dos cientistas, com a especialização
crescente, deriva do fato de que os especialistas trabalham apenas
no domínio restrito, fazem progredir a ciência somente no interior
de um dado paradigma. No entanto, as grandes criações científi-
cas não foram feitas por especialistas, mas pelos sábios, que tinham
uma formação abrangente, multidisciplinar, aberta a todos os cam-
pos do saber. Gilbert Durand mostra que, se olharmos, na histó-
ria da ciência, para cada um dos grandes criadores, vamos verificar
que eles não eram especialistas, mas cultivavam a mistura, com sua
abertura, sua amplitude, sua largueza e sua profundidade:
Os sábios criadores do fim do século XIX e dos dez primeiros anos
do século XX, esse período áureo da criação científica em que se per-
filam nomes como os de Gauss, Lobohevsky, Riman, Poincaré, Bec-
querel, Curie, Pasteur, Max Planck, Niels Bohr, Einstein, etc., tive-
*
(WIENER, Norbert. Ciber-
netica o el control y comu-
nicación en animales y má-
quinas. Barcelona: Tusquets
Editores, 1985: 24.)
36 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
ram todos uma larga formação pluridisciplinar, herdeira do velho tri-
vium(as“humanidades”)equadrivium(osconhecimentoscientíficos
e também a matemática) medievais, prudente e parcimoniosamente
organizados pelos colégios dos jesuítas e dos frades oratorianos e pelas
pequenas escolas jansenistas do novo humanismo de Lakanal.*
Atualmente, estamos num momento de mudança da forma
de fazer ciência. Estamos passando de um fazer científico regido
pela triagem para um fazer investigativo governado pela mistura.
Fala-se em interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidis-
ciplinaridade, transdisciplinaridade e mesmo indisciplinaridade.
Hoje, esses termos são universais positivos do discurso, enquanto
a especialização é vista como algo fora de moda, relacionada a um
pensamento autoritário. Afinal, a destruição das fronteiras é um
fenômeno contemporâneo: as grandes entidades transnacionais,
como a União Européia e o MERCOSUL, derrubaram as frontei-
ras econômicas, permitindo a livre circulação de bens e de capi-
tais; a queda do muro de Berlim deitou abaixo uma linha semân-
tica divisória entre duas visões de mundo, a famosa cortina de fer-
ro; o espaço Shengen demoliu alfândegas e controles entre os esta-
dos nacionais. Por outro lado, estamos num tempo do elogio das
margens, do descentramento, da alteridade, da heterogeneidade,
do dialogismo, vivemos num tempo de mestiçagens e de imigra-
ções, de recusa da pureza. Esse ar do tempo leva a pôr em questão
as divisões disciplinares, as fronteiras rígidas entre os campos do
saber. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da ciência, impulsio-
nado por essa epistemé do que foi chamado a pós-modernidade,
leva os pesquisadores a começar a pensar problemas que estão si-
tuados na fronteira das disciplinas e que, durante muito tempo,
foram deixados de lado.
No entanto, que é realmente interdisciplinaridade? E mul-
tidisciplinaridade? E pluridisciplinaridade? Transdisciplinaridade,
então? E essa tal de indisciplinaridade? Ninguém sabe direito. Va-
mos tentar uma definição a partir da etimologia das palavras.3
Es-
se conjunto de termos tem um radical comum, -disciplina, um su-
fixo comum, -dade, e prefixos distintos in-, multi-, pluri-, inter-,
trans-. Não se criam diferentes palavras para expressar o mesmo
sentido. A distinção do sentido está na parte diversificada e não
3
Essas definições elaboradas a partir da etimologia não diferem do que avança
Piaget em seu lúcido ensaio sobre a interdisciplinaridade. (PIAGET, Jean. “Pro-
blèmes géneraux de la recherche interdisciplinaire et mécanismes communs”. Em:
Épistémologie des sciences de l’homme. Paris: Gallimard, 1970: 253-377.)
*
(DURAND, Gilbert. “Mul-
tidisciplinarités et heuristi-
que”. Em: PORTELLA, Edu-
ardo. (org.). Entre savoirs.
L’interdisciplinarité en acte:
enjeux, obstacles, perspec-
tives. Toulouse: Ères/UNES-
CO, 1991: 36.)
37
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
na parte idêntica dos vocábulos. Disciplina provém do latim disci-
plina, formada do radical indo-europeu dek-, que significa “rece-
ber” e está na base de discere, “aprender”, discipulus, “o que apren-
de”; disciplina, “o que se aprende”. Modernamente, a palavra tem
dois grandes sentidos: a) ramo do conhecimento, principalmente
entendido como componente de um currículo; b) normas de con-
duta. O sufixo -dade é formador de substantivos abstratos a partir
de adjetivos. Para definir os termos, a questão é pensar os prefixos,
todos de origem latina, sempre a partir das raízes indo-européias:
in < ne (indica negação e aparece em palavras como nulo, neutro,
negar, ninguém, inútil); inter < en (denota “dentro de”, “entre” e
ocorre, por exemplo, em interior, íntimo, interno, entrar, intestino);
pluri < pel 4
(remete ao sentido de “encher”, “abundância”, “grande
número” e está presente em vocábulos como plural, plenitude, ple-
nipotenciário, cheio, pleno, suprir); multi < mel (traduz a noção de
“abundância quantitativa ou qualitativa” e aparece em muito, mul-
tidão, múltiplo, multiplicação, melhor, etc.); trans < ter (quer dizer,
“atravessar, chegar ao fim” e ocorre em termo, término, determinar,
traduzir, transportar, trás-os-montes e assim por diante). Observan-
do a etimologia das palavras em que aparecem os prefixos pluri e
multi, pode-se dizer que há um matiz diferenciador entre eles: o
primeiro indica abundância de elementos homogêneos, enquan-
to o segundo não traz essa idéia de homogeneidade. No entanto,
essa nuança de sentido perdeu-se na história. Podemos, pois, di-
zer que multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade querem dizer
a mesma coisa. Além disso, se deixarmos de lado o termo indisci-
plinaridade, porque, apesar do charme dado pela conotação liber-
tária, indica apenas uma negação, sem qualquer valor positivo, te-
mos três termos a definir: pluri e multidisciplinaridade, interdisci-
plinaridade e transdisciplinaridade. Pode-se pensá-los como o con-
tinuum de um processo.
Na multidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade), várias dis-
ciplinas analisam um dado objeto, sem que haja ligação necessária
entre essas abordagens disciplinares. O que se faz é pôr em parale-
lo diferentes maneiras de enfocar um tema, que são coordenadas
com vistas ao conhecimento global de uma determinada matéria.
Tomemos, por exemplo, o caso da energia. Esse assunto deve ne-
4
A forma primeira da raiz é -pel, o que explica o inglês full (cheio), fill (encher),
o alemão Fülle (abundância), füllen (encher), voll (cheio), o grego pólys (muito)
e pólis (cidade). Essa forma transforma-se em –ple.
38 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
cessariamente ser enfocado multidisciplinarmente: a física estuda
as formas e transformações da energia; a biologia investiga os pro-
cessos para obtenção da biomassa; a geologia examina as formas de
descobrir jazidas de recursos não renováveis de produção de ener-
gia, como o carvão mineral, o xisto, o petróleo e o gás natural; as
engenharias pesquisam como aproveitar a energia, como extraí-la,
como distribuí-la; a economia analisa a oferta e a procura de ener-
gia, as vantagens e desvantagens econômicas do uso de uma dada
forma de energia; a ecologia avalia os efeitos do uso de certo tipo
de energia no meio ambiente; a sociologia e a antropologia obser-
vam os efeitos do uso da energia em determinada comunidade hu-
mana e assim por diante.
A interdisciplinaridade pressupõe uma convergência, uma
complementaridade, o que significa, de um lado, a transferência
de conceitos teóricos e de metodologias e, de outro, a combinação
de áreas. Assim, por exemplo, a sociologia pode utilizar conceitos
da economia, como faz Pierre Bourdieu quando se serve dos con-
ceitos de capital, mercado e bens para todas as atividades sociais e
não somente as econômicas, ou quando faz largo uso da noção de
troca. Com muita freqüência, a interdisciplinaridade dá origem a
novos campos do saber, que tendem a disciplinarizar-se.*
A bioquí-
mica, unindo biologia e química, estuda os processos químicos que
ocorrem nos organismos vivos. A sociobiologia é a tentativa de ex-
plicar biologicamente os comportamentos sociais.
Quando as fronteiras das disciplinas se tornam móveis e flui-
das num permeável processo de fusão, temos a transdisciplinari-
dade. É transdisciplinar uma poética da ciência. Na poesia, perce-
bem-se analogias, observam-se correspondências, não se respeita a
autoridade dos códigos, das estruturas, da tradição, dos significa-
dos, do discurso. Da mesma forma, a transdisciplinaridade é do-
mínio da audácia, que leva a examinar todo o conhecimento, não
somente a partir dos três axiomas da lógica clássica (o do tercei-
ro excluído, o da identidade e o da não contradição) nem apenas
com base nos princípios que fundam a ciência moderna (o da or-
dem, que engloba o da determinação; o da separação e o da redu-
ção), mas a partir de fundamentos analógicos, de conceitos como
caos, irreversibilidade, degradação. As interciências, como as Ciên-
cias Cognitivas e a Ecologia, são transdisciplinares. A ecologia é o
campo transdisciplinar emblemático, pois contém um saber cien-
tífico diversificado, utilizado numa concepção generosa, universa-
lizante e redentora da vida do homem no planeta.
*
(cf. PIAGET, op. cit.: 369.)
39
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
Examinemos mais detidamente a interdisciplinaridade, que
é uma das formas mais interessantes e produtivas de trabalho cien-
tífico de nossa época. Poderíamos dizer que temos, basicamente,
duas práticas interdisciplinares: a) transferência, que é a passagem
de conceitos, metodologias e técnicas desenvolvidos numa ciência
para outra; b) intersecção, em que duas ou mais disciplinas se cru-
zam para tratar de determinados problemas. Como se vê, a inter-
disciplinaridade não pressupõe a diluição das fronteiras discipli-
nares num ecletismo frouxo. Assim, a interdisciplinaridade da lin-
güística com outras ciências não é o apagamento dos contornos da
ciência da linguagem e sua transformação em outros campos do
conhecimento. Não é a biologização, a matematização, a sociolo-
gização, a antropologização, etc. da lingüística. Como dizia Sírio
Possenti, em recente conferência, o papel dos lingüistas não é fa-
zer uma história ou uma sociologia de segunda, mas uma lingüís-
tica de primeira. A interdisciplinaridade supõe disciplinas que se
interseccionam, que se sobrepõem, que se reorganizam, que bus-
cam elementos noutras ciências.
Relação da lingüística com outras ciências
Como se disse, a interdisciplinaridade pressupõe, de um lado,
a transferência de conceitos teóricos e de metodologia e, de outro,
a intersecção de áreas. Mostremos, com alguns exemplos, como is-
so se deu na lingüística.
Transferência de conceitos da lingüística para outras ciências
A antropologia estrutural importa da lingüística, antes de
tudo, um modelo de cientificidade. Toma métodos e noções da
lingüística, considerada então ciência piloto das ciências humanas.
Antes de Lévi-Strauss, a antropologia estava ligada às ciências da
natureza e comprometida com toda sorte de racismos e com a noção
de determinismo biológico. O antropólogo francês, para estudar as
estruturas elementares de parentesco, toma da fonologia a idéia da
busca de constantes presentes sob a imensa variabilidade da realida-
de. Sob as múltiplas práticas matrimoniais, aparecem as invarian-
tes, as estruturas elementares, que determinam, basicamente, com
quem se pode e com quem não se pode casar. Lévi-Strauss coloca a
proibição do incesto como um universal, entendido não como um
interdito moral, mas como uma regra de positividade social, desti-
40 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
nada a proteger a espécie contra os efeitos funestos dos casamentos
consangüíneos. Assim, ele desbiologiza o fenômeno do parentesco,
deslocando a questão das relações consangüíneas para o caráter de
transação, de comunicação, que se instaura com a aliança matri-
monial. Diz ele que a “proibição do incesto exprime a passagem
do fato natural da consangüinidade ao fato cultural da aliança”.*
A antropologia deixa a natureza e é colocada no terreno exclusi-
vo da cultura. A lingüística, em particular a fonologia, permite,
com seus métodos, suas teorias, suas noções, ultrapassar o estágio
dos fenômenos conscientes para atingir aquilo que é inconscien-
te; possibilita não ver os termos em sua positividade, mas apreen-
dê-los em suas relações internas, ou seja, tomar por base da análi-
se as relações entre os termos e não os próprios termos; propicia
descobrir os sistemas e pôr em evidência suas estruturas; proporcio-
na desvendar leis gerais. Lévi-Strauss mostra que se podem anali-
sar certos fenômenos sociais, como, por exemplo, o parentesco, de
maneira análoga à da fonologia, porque eles são elementos dotados
de significação, integram-se em sistemas inconscientes, resultam de
leis gerais, dado que se encontram fenômenos similares em regiões
bastante afastadas umas das outras.5
Diz o antropólogo francês que,
como os fonemas, os termos de parentesco só adquirem significa-
ção quando se integram em sistemas.*
Na busca das invariantes para
além da multiplicidade das variedades percebidas, ele põe de lado
todo recurso à consciência do sujeito.6
Dá prevalência à sincronia.
Da mesma forma, os mitos formam estruturas: as variantes de um
mesmo mito integram-se num sistema no qual cada elemento se
opõe a todos os outros.
Lacan teve, para a psicanálise, o mesmo papel que Lévi-Strauss
para a antropologia. A lingüística oferece para a psicanálise lacania-
na um modelo de cientificidade. Por volta dos anos 50 do século
passado, na França, reinava uma biologização das conquistas freu-
dianas e a psicanálise dissolvia-se na psiquiatria. Lacan denuncia
também o behaviorismo, dominante nos Estados Unidos, como
5
Diz Lévi-Strauss que “o sistema de parentesco é uma linguagem” (LÉVI-
STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1975: 65.); afirma ainda: “postulamos que existe uma correspondência formal
entre a estrutura da língua e a do sistema de parentesco” (Idem: 79).
6
Esse é o modo de proceder de um fonólogo. Observe-se, por exemplo, a argu-
mentação de Mattoso Camara, para explicar por que o português não tem vo-
gais nasais (CAMARA Jr., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Pe-
trópolis: Vozes, 1970: 48-50).
*
(LÉVI-STRAUSS, Claude.
As estruturas elementares
de parentesco. Petrópolis:
Vozes, 1976: 70.)
*
(Idem: 48)
41
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
uma adaptação do indivíduo às normas sociais, como uma teoria
que tem uma função de ordem, de normalização. Deseja a desme-
dicalização e a desbiologização do discurso freudiano e a retirada
do inconsciente do seio das estruturas psicologizantes behavioristas.
Propõe uma ruptura enraizada na obra de Freud, uma volta a Freud.*
Esse retorno dar-se-ia, levando em conta o modelo da lingüística.*
Para Lacan, há uma prevalência da dimensão sincrônica na orga-
nização do inconsciente. Portanto, ele não considera essencial em
Freud a teoria dos estágios sucessivos, mas a existência de uma es-
trutura edipiana de base, caracterizada por sua universalidade, in-
diferente às contingências de tempo e de espaço. Para ele, o homem
só existe enquanto tal pela função simbólica. Ele é, pois, produto da
linguagem, efeito dela. Isso permite ao psicanalista francês criar sua
famosa fórmula: “O inconsciente é estruturado como uma lingua-
gem.” A existência simbólica do ser humano deixa clara a impor-
tância dada à linguagem, à relação com o outro. Dessa forma, ele
desmedicaliza a abordagem do inconsciente, objeto da psicanálise,
considerando-o como um discurso. A psicanálise deixa de ser uma
disciplina médica e passa a ser uma disciplina analítica.
Lacan fundamenta-se na teoria saussuriana do signo, apor-
tando-lhe uma série de modificações e mesmo de torções.*
Saussu-
re mostrara que o signo não une um nome a uma coisa, mas um
conceito a uma imagem acústica. Ele separou, portanto, o signo de
qualquer relação com o referente.*
O signo, sem qualquer vínculo
com o referente, é, para Lacan, o fundamento da condição hu-
mana. No entanto, diferentemente de Saussure, ele relega o sig-
nificado a um lugar acessório. A fala, cortada de qualquer acesso
ao real, veicula apenas significantes que remetem uns aos outros.
O inconsciente, objeto que funda a identidade científica da psica-
nálise, é uma cadeia de significantes.
O inconsciente é um efeito da linguagem, de suas regras, de
seu código. Lacan recorre aos conceitos de metáfora e de metonímia
desenvolvidos por Jakobson e assimila-os aos dois processos de fun-
cionamento do inconsciente: a condensação e o deslocamento.
Além desses modelos gerais, Lacan toma conceitos particulares
da lingüística: por exemplo, de Damourette e Pichon vem a divisão
entre o je e o moi e o conceito de forclusão.7
O primeiro serve para
7
Pichon era, além de gramático, psicanalista. A forclusão é um fenômeno gra-
matical que diz respeito à negação. O francês faz uma negação com um morfema
descontínuo. O primeiro elemento da negação é considerado por Damourette e
*
(LACAN, Jacques. Écrits I.
Paris: Seuil, 1966: 145.)
*
(Idem: 165.)
*
(Idem: 250-289.)
*
(SAUSSURE, Op. cit.: 79-
81.)
42 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
pensar a divisão entre o sujeito do inconsciente e o da consciência
com seu imaginário; o segundo, para mostrar que há um processo
de fracasso do recalcamento originário, em que não se conserva o
que se recalcou, porque o recalcado é excluído ou barrado pura e
simplesmente, o que produz a psicose.*
O recurso da psicanálise a conceitos lingüísticos não era novi-
dade. Freud baseara-se em Sperber e Carl Abel, para justificar suas
teses de que o simbolismo é sempre sexual, mesmo quando parece
que falamos de outra coisa, e de que os símbolos são ambivalentes,
porque são aptos a significar dois conteúdos opostos.*
De Sperber
tomou o longo ensaio “Da influência dos fatores sexuais na forma-
ção e na evolução da linguagem” e utilizou-o como base para de-
monstrar que, se a linguagem se funda na sexualidade, então não
existe contradição entre o funcionamento da linguagem e o simbo-
lismo. A Carl Abel dedica um estudo, intitulado “Sobre o sentido
antitético das palavras primitivas”.*
O que interessava a Freud era a
tese de Abel de que as línguas primitivas tinham uma só palavra para
denotar sentidos opostos. Isso comprovava sua tese sobre a ambiva-
lência dos símbolos, que podem representar qualquer coisa pelo seu
contrário. No caso de um sonho, não se pode, em princípio, saber
se um elemento traduz um conteúdo positivo ou negativo.
Transferência de conceitos de outras ciências para a lingüística
A lingüística histórica toma das ciências históricas, ao longo de
seudesenvolvimento,trêsconceitosdehistória:a)ahistóriacomode-
cadência; b) a história como progresso; c) a história como mudança.
O primeiro vem da Antigüidade e é expresso na doutrina das
idades do gênero humano: por exemplo, em Hesíodo, a humani-
dade vai da idade de ouro, em que os homens viviam como deuses,
até a idade do ferro, em que os homens estão sujeitos a toda espécie
Pichon da ordem da discordância. O segundo elemento da negação é denomina-
do “forclusivo”. Seu semantismo originário é o de uma ocorrência mínima (pas,
goutte, miette, aucun, nul, personne, rien). Essa ocorrência remete a um paradig-
ma: personne, por exemplo, é a ocorrência mínima que remete ao paradigma dos
animados humanos; rien, ao paradigma dos não animados; pás, assim como nul-
lement, ao paradigma das quantificações. O que é dado por forclos (ou excluído,
isto é, localizado num exterior nocional) é então a representação de um pa-
radigma, evocado em intensão, qualitativamente; em outras palavras, defini-
do por uma propriedade e não construído em extensão (DAMOURETTE,
Jacques; PICHON, Edouard. Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la lan-
gue française. Paris: Éditions d’Artrey, 1970, t. 6: 113-143).
*
(LACAN, Jacques. Le sémi-
naire. Livre III: les psycho-
ses, 1955-1956. Paris: Seuil,
1981: 229 e 361.)
*
(cf. ARRIVÉ, Michel. Lin-
güística e psicanálise:
Freud, Saussure, Hjelmslev,
Lacan e os outros. São Pau-
lo: EDUSP, 2001: 79-91.)
*
(FREUD, Sigmund. “Sobre
el sentido antitético de las
palabras primitivas”. Em:
Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu Editores,
2001, v. 11: 143-154.)
43
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
de males, passando pelas idades da prata, do bronze e dos heróis.*
Muitos comparatistas, por exemplo, Schleicher,*
defendiam que as
línguas antigas estavam num estágio superior de desenvolvimen-
to em comparação com as línguas modernas, que representariam
uma fase de decadência, de degeneração. Isso se devia à organiza-
ção morfológica mais densa (declinações e conjugações), que, se-
gundo eles, implicava uma maior capacidade de expressão, por rea-
lizar um número maior de distinções gramaticais. A História seria,
então, um processo degenerador, porque degradava as estruturas
da língua. Daí a relevância da reconstituição de seu passado, para
buscar atingir o que seria o período áureo das línguas.
O conceito da história como progresso é uma idéia iluminis-
ta, que aparece, por exemplo, em Voltaire.*
Herbert Spencer conce-
be a história humana como um processo contínuo e linear de evo-
lução.*
Em Comte, aparece um determinismo sociológico. Sua lei
dos três estados – o teológico, o metafísico e o positivo – opera na
ontogênese e na filogênese. Ela indica que, assim como os indiví-
duos, todas as sociedades caminham para atingir o mais alto estágio
de desenvolvimento.*
Otto Jespersen*
sustenta que, na história das
línguas, há progresso, há uma marcha na direção de formas mais
aperfeiçoadas. Como as formas se abreviaram, estruturas analíti-
cas tomaram lugar das formas sintéticas, as formas irregulares re-
gularizaram-se, a ordem das palavras tornou-se fixa, a língua ficou
cada vez mais apta para a expressão, porque adquire maior clare-
za e precisão e exige do usuário menor esforço de memória e, até
mesmo, menor esforço muscular na fala. O modelo de Jespersen
era o inglês, língua da qual escreveu uma monumental gramática.*
Vendryès termina sua obra, Le langage, expondo a idéia de que a
história das línguas é um aperfeiçoamento constante desse instru-
mento criado pelo homem.*
A idéia da história como mudança, não governada por ne-
nhuma teleologia, rege as concepções atuais em lingüística históri-
ca. Já Lucrécio negava o finalismo,*
aduzindo que ele põe antes o
que vem depois. A lingüística atual não trabalha mais com as idéias
de decadência e de progresso. Mattoso Câmara diz que: “a palavra
evolução, em lingüística, pressupõe apenas um processo de mudan-
ças graduais e coerentes.”*
Schleicher, que, além de lingüista, era botânico, preconizava
que a ciência da linguagem deveria estar entre as ciências da natu-
reza. Importa uma série de princípios da biologia. Seu objetivo era
estabelecer leis gerais e rigorosas do desenvolvimento das línguas.
*
(HESÍODO. Os trabalhos e
os dias. 4 ed. São Paulo: Ilu-
minuras, 2002: v. 106-201.)
*
(cf. CAMARA Jr., Joaquim
Mattoso. História da lingüís-
tica. 4 ed. Petrópolis:Vozes,
1986: 54-55.)
*
(VOLTAIRE, François-Ma-
rie. Oeuvres historiques. Pa-
ris: Gallimard, 2000.)
*
(SPENCER, Herbert. Do
progresso, sua lei e sua cau-
sa. Lisboa: Editorial Inqué-
rito, 1939.)
*
(COMTE, Auguste. Cours
de philosophie positive. Pa-
ris: Schleicher Frères, 1908,
t. 4: 328-387.)
*
(JESPERSEN, Otto. Progress
in Language. Amsterdam: E.
John Benjamins, 1993.) (JES-
PERSEN, Otto. Efficiency in
Linguistic Change. Copenha-
guen: E. Munksgaard, 194.)
*
(JESPERSEN, Otto. Modern
English Grammar on Histo-
rical Principles. Londres: G.
Allen Unwin; Copenhaguen:
E. Munksgaard, 1961, 7 v.)
*
(VENDRYÈS, J. Le langage.
Paris: Albin Michel, 1950:
402-420.)
*
(LUCRÉCIO. De la natu-
re. Paris: Les Belles Lèttres,
1948, t. II: IV, 822-842.)
*
(CAMARA Jr., Joaquim Mat-
toso. Princípios de lingüística
geral. Rio de Janeiro: Livraria
Acadêmica, 1970a: 192.)
44 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
Schleicher contrapunha a lingüística à filologia. Esta é um ramo da
história, enquanto aquela, não. As três idéias que traz das ciências
da natureza são: a) a língua é um organismo natural e, portanto,
ela desenvolve-se até um certo ponto e, depois, entra em decadên-
cia; b) a mudança lingüística deve ser entendida como uma evolu-
ção natural no sentido darwiniano; c) a língua depende de traços
físicos do cérebro e do aparelho fonador e varia segundo as raças
do mundo, sendo, portanto, um critério adequado para elaborar
uma classificação racial.*
Mesmo que hoje essas idéias nos pareçam
completamente erradas, Schleicher teve uma importante influên-
cia em temas como a classificação das línguas indo-européias, a re-
construção do indo-europeu, os estudos de fonética, a classificação
tipológica das línguas baseada na estrutura da palavra.*
Para Sch-
leicher, o ápice da evolução lingüística era o indo-europeu; depois
dele, começava a degeneração.
A chamada lingüística matemática trouxe desta ciência diver-
sos instrumentos para a realização da análise lingüística: teoria dos
conjuntos, álgebra de Boole, topologia, estatística, cálculo de pro-
babilidades, teoria dos jogos. Zellig Harris, por exemplo, publica
um estudo da gramática em termos de teoria dos conjuntos.*
De-
vem-se lembrar ainda os usos da estatística nos estudos de lexico-
logia e lexicografia. Da computação a lingüística toma programas
e técnicas para aplicá-los a aspectos da linguagem humana, fazendo
um tratamento automático das línguas: tradução automática, cor-
reção ortográfica, recuperação de informações e busca nos textos,
resumos automáticos, reconhecimento de voz, síntese vocal para o
estabelecimento da interface homem-máquina, etc.
Intersecção de áreas
Asociolingüísticaestudaalínguacomoinstrumentodeintegra-
ção social. Em primeiro lugar, interessa-se pela questão da variação
lingüística, examinando a covariância sistemática entre a estrutura
lingüística e a estrutura social. Estuda, assim, a variação por grupos
sociais. Analisa também a língua como classificador social e como fa-
tor de coesão social para as etnias, as classes ou outros grupos sociais.
Estuda as relações entre as línguas em função de fatores sociais, bem
como toda a problemática do contato das línguas e do bilingüismo.
Como se vê, da sociologia vem a questão dos fatores sociais e da lin-
güística, a análise da língua. O que a sociolingüística faz é estabele-
cer a correlação entre fatores sociais e fatos de linguagem.
*
(Camara Jr., 1986: 50-51.)
*
(Idem: 52-55.)
*
(HARRIS, Zellig S. Mathe-
matical Structures of Langua-
ge. NovaYork: Wiley-Inters-
cience, 1968.)
45
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
A antropolingüística estabelece uma correlação entre língua e
cultura. Não estão mais em pauta grupos sociais como na sociolin-
güística, mas fatores culturais. Estuda-se a língua no contexto cul-
tural. Interessa à antropolingüística a questão da língua em relação
ao sagrado (por exemplo, línguas cultuais), as teorias populares e os
mitos a respeito da linguagem, os tabus e as fórmulas mágicas e en-
cantatórias, a visão das relações entre a palavra e a coisa, as taxiono-
mias, os sistemas de percepção e de categorização do mundo.
A psicolingüística estuda o conjunto de operações mentais li-
gadas à linguagem. Assim, ocupa-se da retenção e do esquecimen-
to de informações verbais, da aquisição da linguagem, do proces-
samento da informação pelo cérebro, etc.
A geolingüística é um campo interdisciplinar, em que se unem
a linguística e a geografia. A geolingüística ocupa-se de estudar as
línguas no seu contexto geográfico. Preocupa-se com a identifica-
ção e a descrição de áreas lingüísticas (domínios lingüísticos, áreas
dialectais, etc.), com a análise das dinâmicas geográficas das varia-
ções internas do idioma, com o estudo da importância territorial
das línguas e das suas variedades em diferentes escalas (local, regio-
nal, nacional, continental, mundial), com a análise das dinâmicas
territoriais das línguas e das suas variedades (evolução demolingü-
ística, territórios onde são faladas, dinâmicas de expansão e retro-
cesso territorial), com o estudo de situações de conflito territorial
causado pelas diferenças lingüísticas, com o conhecimento das re-
presentações que as pessoas têm dos espaços lingüísticos, das suas
falas e da sua dinâmica territorial.
A neurolingüística, compartilhamento da neurologia e da lin-
güística, durante muito tempo, estudou (e continua ainda a fazê-
lo) as lesões no córtex cerebral e as deficiências afásicas daí resul-
tantes. No entanto, ela não se restringe a isso, pois estuda a elabo-
ração cerebral da linguagem. Ocupa-se com o estudo dos mecanis-
mos do cérebro humano envolvidos na compreensão e na produ-
ção lingüística e no conhecimento da língua. Ocupa-se tanto da
elaboração da linguagem normal como das alterações lingüísticas
causadas por distúrbios. A neurolingüística leva a uma compreen-
são das bases biológicas da linguagem.
Como se mostrou acima que a linguagem é multiforme e hete-
róclita e, portanto, a interdisciplinaridade é da sua natureza, pode-
ríamos continuaramostrarainterdisciplinaridadedalingüísticacom
outras ciências, em suas diferentes formas, ao longo da história. No
46 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
entanto, é preciso chegar ao ponto final: a discussão da relação entre
lingüística e literatura, os dois ramos em que se dividem as Letras.
Relação da lingüística com a literatura
Até por volta dos anos 60, a relação entre a lingüística e a lite-
ratura era bastante simples: de um lado, na medida em que a aná-
lise do texto literário era o estudo da substância do plano do con-
teúdo em sua relação com uma realidade extralingüística, não era
preciso recorrer a qualquer categoria lingüística e, portanto, não
havia qualquer ligação entre esses dois campos do conhecimento,
em que, tradicionalmente, se dividem os estudos da linguagem; de
outro, no estabelecimento de textos e na estilística, havia certa vin-
culação, mas bastante rudimentar, entre esses dois domínios. Ex-
pliquemos melhor essas afirmações.
Quando, por exemplo, a crítica machadiana mostra as tradi-
ções de que se valeu o autor para compor sua obra; quando o acu-
sa de “macaqueação de Sterne”, como faz Sílvio Romero;*
quando
detecta temas comuns a seus romances, vinculados a sua biografia,
como mostra Lúcia Miguel Pereira;*
quando demonstra, como As-
trojildo Pereira,*
que Machado é o “romancista do segundo reinado”;
quando desvela que as formas dos grandes romances machadianos
imitam processos histórico-sociais, como faz Roberto Schwarz*
e
assim por diante, não há necessidade de recorrer à linguagem para
estudar uma obra literária, já que ela não é vista como linguagem,
mas como representação de uma realidade exterior a ela.
Por outro lado, havia uma relação entre lingüística e literatu-
ra, quando se estabeleciam textos antigos. A literatura, nesse traba-
lho filológico, valia-se das categorias e das descobertas da lingüística
histórico-comparada do século XIX, considerada como algo pron-
to e acabado. A relação entre língua e literatura ocorria também no
domínio da estilística. Inicialmente, a estilística era o estudo dos
meios de expressão dos conteúdos afetivos da língua, pois um fato
de estilo era entendido como uma ocorrência lingüística que provo-
cava um dado efeito no leitor. Nessa estilística, estudavam-se, frag-
mentariamente, os fatos de estilo e, numa análise de textos, o que
se procurava observar era a soma de efeitos que os fatos estilísticos
nele presentes produziam. Essa estilística, tal como foi praticada
por Bally*
e, entre nós, por Rodrigues Lapa*
e Mattoso Camara,*
valia-se de uma retórica reduzida, porque restrita à dimensão tro-
pológica, e de uma análise lingüística elementar, que se encontra na
*
(ROMERO, Silvio. Macha-
do de Assis: estudo compa-
rativo de literatura brasileira.
Campinas: Editora da UNI-
CAMP, 1992: 164.)
*
(PEREIRA, Lúcia Miguel.
Machado de Assis: ensaio
crítico e biográfico. 6 ed.
Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/EDUSP, 1988.)
*
(PEREIRA, Astrojildo. In-
terpretações. Rio de Janei-
ro: CEB, 1944.)
*
(SCHWARZ, Roberto. Ao
vencedor as batatas: forma
literária e processo social
nos inícios do romance bra-
sileiro. São Paulo: Duas Ci-
dades, 1977.) (SCHWARZ,
Roberto. Um mestre na pe-
riferia do capitalismo: Ma-
chado de Assis. São Paulo:
Duas Cidades, 1990.)
*
(BALLY, Charles. Le lan-
gage et la vie. Paris: Payot,
1926.) (BALLY, Charles. Trai-
té de stylistique française.
3 ed. Genebra: Georg &
Cie., 1951.)
*
(LAPA, Manuel Rodrigues.
Estilística da língua portu-
guesa. 5 ed. Rio de Janeiro:
Livraria Acadêmica, 1968.)
*
(CAMARA Jr., Joaquim Mat-
toso. Contribuição à estilís-
tica portuguesa. 3 ed. Rio
de Janeiro: Ao Livro Técni-
co, 1977.)
47
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
gramática tradicional. Nada, além disso. Por isso, também se con-
siderava que não havia progresso a fazer no domínio dos estudos
lingüísticos.Tudo estava feito e acabado. Lembra-me que, uma vez,
uma professora de grego me consultou sobre o que eu achava do
desejo de um orientando seu de estudar o sistema temporal do gre-
go clássico. Antes que eu respondesse que achava interessante fazer
um estudo desse sistema do ponto de vista das teorias da enuncia-
ção, ela asseverou, com muita certeza, que nada mais havia a estu-
dar na gramática grega, porque os alemães do século XIX haviam
feito tudo nessa matéria. Que concepção de ciência!
Mais tarde, a estilística, com Leo Spitzer*
e Damaso Alonso,*
torna-se mais orgânica, porque, para eles, o estilo reflete o mun-
do interior de um dado autor, seu “conteúdo espiritual”, sua intui-
ção, suas vivências. Apesar de ampliar seu escopo, a estilística con-
tinua valendo-se das descrições lingüísticas elementares de qual-
quer gramática escolar.
A lingüística era algo que se aplicava no estudo do texto lite-
rário, de maneira errática, segundo o arbítrio do analista, para jus-
tificar uma interpretação que não tinha sido dada pela descrição
lingüística. O ensino seguia as orientações de pesquisa. Nos cursos
de línguas estrangeiras dava-se ênfase ao estudo da literatura em
detrimento dos estudos de língua. Essa orientação nitidamente li-
terária levava a um estudo de textos com abordagens estilísticas e
filológicas.*
Pierre Hourcade, no Anuário da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP, de 1934-1935, traça as diretrizes gerais
do ensino de Língua e Literatura Francesa na Faculdade. O aluno
precisa ter uma visão geral da Literatura Francesa. Os exercícios por
excelência eram a explicação de textos e a dissertação, que era cha-
mada, nos relatórios da cadeira, dissertação francesa.*
Portanto, o
conhecimento lingüístico era simplesmente instrumental, destina-
va-se a permitir que os alunos lessem os textos no original.*
Pierre
Hourcade previa a criação de um curso de Literatura Medieval e
História da Língua.*
O fato de o curso de História da Língua estar
atrelado ao de Literatura Medieval fazia com que ele fosse subsidi-
ário para o acesso aos textos medievais.
Nos anos 60, o panorama muda. Com o apogeu do estru-
turalismo, a literatura apóia-se nas aquisições da lingüística para a
elaboração de uma teoria do texto literário. Desloca-se o foco do
autor (sua biografia, sua subjetividade, o contexto social em que
criou) para o texto. Isso se fez, apesar das críticas acerbas e dos la-
mentos amargurados de muitos estudiosos da literatura. Alguns
*
(SPITZER, Leo. Lingüística
e história literária. 2 ed. Ma-
drid: Gredos, 1982.)
*
(ALONSO, Damaso. Poesia
espanhola: ensaio de méto-
dos e limites estilísticos. Rio
de Janeiro: Instituto Nacio-
nal do Livro, 1960.)
*
(Anuário da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras
1952. São Paulo: Faculdade
de Filosofia, Ciências e Le-
tras, 1954: 275.)
*
(Anuário da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras
1934-1935. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 1937,
p. 204).
*
(Anuário, 1937: 198-206.)
(Anuário da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras
1951. São Paulo: Faculdade
de Filosofia, Ciências e Le-
tras, 1952: 245.) (Anuário da
Faculdade de Filosofia,Ciên-
cias e Letras 1939-1949. São
Paulo: Faculdade de Filoso-
fia, Ciências e Letras, 1953,
v. I e II: 481.)
*
(Anuário, 1937: 203.)
48 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
chegavam, com base numa visão conspiratória da História, a dizer
que o estruturalismo lingüístico era um programa de estudos fi-
nanciado pela CIA, para naturalizar a linguagem e, assim, afastar
a História, com vistas a aumentar a alienação. Deixando de lado
esses pontos de vista que hoje nos parecem no mínimo estranhos,
deve-se notar que, nesse período, a literatura não mais buscava, na
lingüística, descrições de fatos próprios das línguas naturais nem
explicações de tropos, mas conceitos gerais, como conotação/de-
notação, significado/significante, sintagma/paradigma etc. Na ver-
dade, o que a literatura transfere da lingüística são os conceitos
que explicam como se estruturam os sistemas significantes, quais-
quer que eles sejam. Mais do que a lingüística, o que mantém re-
lações com a literatura é uma semiologia, tal como fora proposta
por Saussure.*
Nesse período, duas vertentes dos estudos literários
desenvolvem-se: a poética e a teoria da narrativa. A primeira, uma
teoria da poeticidade, deriva do programa dos formalistas russos e
encontra em Jakobson seu grande formulador, que assim enuncia
o princípio da função poética: “projeta o princípio de equivalên-
cia do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.”8*
A segunda
vertente busca, com base na idéia de sistema, as invariantes para-
digmáticas e sintagmáticas, que ocorrem sob a diversidade quase
infinita das narrativas realizadas. Esses dois ramos dos estudos li-
terários tiveram um desenvolvimento notável, apesar da acusação
de muitos, fundados ainda numa ideologia romântica, que, como
diz Régine Robin, é anterior a Marx e a Freud,*
de que esses mo-
delos eram redutores.9
Para esses estudiosos, os produtos humanos
não podem ser examinados do ponto de vista de suas invariantes,
porque os seres humanos, em sua infinita criatividade, não estão
submetidos a quaisquer coerções sociais e psíquicas. Afinal, para
eles, o sujeito é neutro, mestre de si mesmo, sem qualquer deter-
minação sócio-ideológica.
8
Um belo exemplo de análise poética, com base nos conceitos da lingüística, é o
estudo feito pelo próprio Jakobson, com a colaboração de Luciana Stegagno Pic-
chio, sobre os oxímoros em Fernando Pessoa (JAKOBSON, Roman. Lingüística,
poética, cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970: 93-118). Um livro teórico, edita-
do no Brasil, sobre poética foi Teoria da literatura. Formalistas russos, organizado
por Dionísio de Oliveira Toledo (TOLEDO, Dionísio de Oliveira. Teoria da li-
teratura. Formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971).
9
Um exemplo brasileiro de análise estrutural da narrativa, realizada com compe-
tência, é o livro de Affonso Romano de Sant’Anna, intitulado Análise estrutural
de romances brasileiros (SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de
romances brasileiros. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1973).
*
(Op. cit.: 23-25.)
*
(Idem: 130.)
*
(ROBIN, Régine. História e
lingüística. São Paulo: Cul-
trix, 1977: 25.)
49
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
No entanto, o mais importante não foi o fato de que a lite-
ratura passou a utilizar-se de conceitos da lingüística, mas sim de
que ela começou a fundar sua concepção de literatura na noção de
arbitrariedade do signo, princípio basilar da ciência da linguagem.
A obra é construção e não representação direta e imediata da reali-
dade, seja ela a consciência do autor ou a consciência de uma classe
social ou de uma fração de classe. Se a literatura é construção, ela é
linguagem, regida, portanto, por códigos, que é preciso descobrir no
estudo da obra literária. Não se buscam mais as fontes extralingüísti-
cas do texto literário e afasta-se a ideologia de que a linguagem repre-
senta o real, de que a linguagem é reflexo da realidade. Isso não de-
veria causar, como provocou, espanto ou fortes reações, pois, afinal,
Antonio Candido, considerado o expoente da análise sociológica, já
dissera que a “mimese é sempre uma forma de poiese”.*
Mais que o
contexto da criação, interessa o estudo da obra em si mesma.
Entre o final dos anos 70 e o início dos 80, há um novo rom-
pimento entre a lingüística e a literatura. De um lado, os estudiosos
de literatura consideram que a lingüística nada tem de interessan-
te a dizer sobre a literatura e voltam a utilizar a velha e elementar
gramática tradicional para justificar algum fato de língua que sir-
va de apoio a suas conclusões. Muito da produção lingüística, por
sua vez, abandona a perspectiva mais ampla da semiologia, que se
ocupava de explicar os sistemas de signo em geral, a fim de voltar-
se para os fatos de língua. É o período do apogeu das idéias forma-
listas, como as da gramática gerativa. Mesmo a pragmática, que se
consagra ao estudo do uso da linguagem, dedica-se à análise da lin-
guagem verbal – cf., por exemplo, os trabalhos de Austin,*
Searle,*
Grice,*
Ducrot.*
Mas o campo da lingüística vai ampliando-se. A
partir dos trabalhos de Benveniste sobre a enunciação, a ciência da
linguagem cria um novo objeto teórico, o discurso.*
Diversas teo-
rias do discurso são criadas. Uma delas, a semiótica francesa, bus-
ca construir o projeto saussuriano de uma semiologia, agora ten-
do como objeto não mais os sistemas de signo, mas a significação.
Debruça-se sobre os textos, manifestação do discurso. A obra de
Bakhtin e a análise do discurso de linha francesa procuram, com os
conceitos de dialogismo e de interdiscursividade, mostrar o modo
de funcionamento real do discurso, sua inscrição na História. Pa-
ralelamente às teorias do discurso, aparece uma lingüística do tex-
to, que se debruça sobre os fatores de textualidade, como a coesão,
a coerência, a intertextualidade.
*
(CANDIDO, Antonio. Lite-
ratura e sociedade: estudos
de teoria e história literária.
4 ed. São Paulo: Editora Na-
cional, 1975: 12.)
*
(AUSTIN, John Langshaw.
Quando dizer é fazer. Pala-
vras e ação.PortoAlegre:Ar-
tes Médicas, 1990;)
*
(SEARLE, John R. Os actos
de fala: um ensaio de filoso-
fia da linguagem. Coimbra:
Almedina, 1991.)
*
(GRICE, H. Paul. “Logique
et conversation”. Commu-
nications. Paris, 30, 1979:
57-72.)
*
(DUCROT, Oswald. Princí-
pios de semântica lingüística:
dizer e não dizer. São Paulo:
Cultrix, 1977.)
*
(BENVENISTE, Emile. Pro-
blemas de lingüística geral.
São Paulo: Nacional/ EDUSP,
1976, t. 1: 284-296.)
50 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
Uma relação entre lingüística e literatura, atualmente, não
se fundará no uso pela literatura de rudimentos de uma gramática
elementar nem em princípios de organização gerais sobre os quais
assentar os estudos literários, mas em conceitos que explicam a or-
ganização do discurso literário e seu modo de funcionamento. Is-
so quer dizer que os conceitos lingüísticos devem ser um instru-
mento de investigação do texto literário, que será estudado como
processo enunciativo e totalidade textual. É preciso que o recurso
aos conceitos desenvolvidos pela lingüística do discurso sirva para
desvelar novas camadas de sentido. Não pode ser nunca um meio
de validar conclusões oriundas da intuição do analista. Por isso,
não serão suficientes as descrições morfológicas e sintáticas. É pre-
ciso recorrer a todos os estudos de fenômenos enunciativos (figu-
rativização, isotopia, modalização, temporalização, actorialização,
espacialização, modulação tensiva, meta-enunciação, aspectualiza-
ção, contrato enunciativo;*
atos de fala, gêneros do discurso, pres-
supostos e subentendidos, leis do discurso, conectores argumen-
tativos, cenografia,*
interdiscursividade, heterogeneidade, espaços
discursivos, campos discursivos, dialogismo,*
éthos,*
estilo*
e assim
sucessivamente), bem como àqueles a respeito dos mecanismos de
textualização (categorias plásticas, semi-simbolismo, etc.*
). Mas as
teorias do discurso permitem ainda ver o próprio processo de cria-
ção literária como um ato enunciativo, como uma atividade, como
uma práxis discursiva, o que possibilita analisar a adoção ou rejei-
ção de usos inovadores ou cristalizados e a criação dos cânones e
dos best-sellers, o desgaste e a cristalização das formas, a resseman-
tização de fórmulas desgastadas ou cristalizadas, etc.
Pensemos agora a questão do lado contrário: o que a lingüís-
tica importa da literatura. É necessário colocar o texto literário e
os estudos literários no coração da lingüística para pensar a natu-
reza da linguagem humana como um mecanismo que contém as
regras de sua própria subversão, bem como para ampliar a com-
preensão da linguagem e dos mecanismos lingüísticos. É a leitura
de João e Maria, de Chico Buarque, com seu uso do pretérito im-
perfeito pelo presente (“Agora eu era herói/ E o meu cavalo só fa-
lava inglês”), ou do poema Profundamente, de Manuel Bandeira,*
com sua presentificação do passado, que nos leva a ver a tempora-
lização não como um decalque do tempo do mundo, mas como a
construção lingüística de uma vertigem temporal, em que presen-
te se torna passado, em que passado se presentifica, em que futuro
*
(GREIMAS, Algirdas Julien;
COURTES, Joseph. Sémioti-
que. Dictionnaire raisonné
de la théorie du langage. Pa-
ris: Hachette, 1979.) (FIO-
RIN, José Luiz. As astúcias da
enunciação. São Paulo: Áti-
ca, 1996; Bertrand, 2003.)
*
(cf. MAINGUENEAU, Do-
minique. Pragmatique pour
le discours littéraire. Pa-
ris: Bordas, 1990; e MAIN-
GUENEAU, Dominique. O
contexto da obra literária.
São Paulo: Martins Fontes,
1995.)
*
(cf.MAINGUENEAU,Domi-
nique. Sémantique de la po-
lémique. Discours religieux
et ruptures idéologiques au
XVIIe siècle. Lausanne: L’Age
d’Homme,1983;MAINGUE-
NEAU, Dominique. Genèses
du discours. Bruxelas: Pierre
Mardaga,1984;eMAINGUE-
NEAU, Dominique. Nouvel-
les tendances en analyse
du discours. Paris: Hachet-
te, 1987.)
*
(cf. BAKHTIN, Mikhail. La
poétique de Dostoïewski.Pa-
ris:Seuil,1970a;eBAKHTIN,
Mikhail. L’oeuvre de Fran-
çois Rabelais et la culture
populaire au Moyen Âge et
sous la Renaissance. Paris:
Gallimard, 1970b.)
*
(MAINGUENEAU, Domini-
que. Cenas da enunciação.
Curitiba: Criar, 2006.) (FIO-
RIN, José Luiz. “O éthos do
enunciador” Em: CORTINA,
Arnaldo; MARCHEZAN, Re-
nata Coelho. Razões e sensi-
bilidades.Araraquara: Cultu-
raAcadêmica Editora, 2004:
117-138.)
*
(DISCINI, Norma. O estilo
nos textos. São Paulo: Con-
texto, 2003.)
*
(cf. TEIXEIRA, Lucia. Leitu-
ra de textos visuais na esco-
la. Comunicação apresen-
tada no III Encontro Fran-
co-Brasileiro de Análise do
Discurso. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1999.
*
(Fontanille e Zilberberg,
Op. cit.)
*
(BANDEIRA, Manuel. Poe-
sia completa e prosa. Rio de
Janeiro: NovaAguilar, 1983:
217-218.)
51
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
é passado e assim por diante. A leitura da Profissão de fé, de Bilac,*
um poeta que hoje não goza de qualquer favor da crítica universitá-
ria, permite apreender o modo de funcionamento real do discurso
com suas recusas, aceitações, deslizamentos, ressignificações, reto-
madas. É a leitura de um poema de Manoel de Barros, como o que
se inicia com o verso “A menina apareceu grávida de um gavião”,*
que possibilita pensar os deslimites da referenciação e as possibili-
dades, com o processo de figurativização, de criação de realidades
na linguagem. O capítulo XV, intitulado “Marcela”, de Memórias
póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, mostra para nós os
processos de tematização e figurativização.*
A forma como Riobal-
do revela à pessoa com quem conversa seus sentimentos por Dia-
dorim e seu verdadeiro sexo obriga a postular uma distinção entre
o narrador e o observador.*
Manuel de Barros, no poema O apa-
nhador de desperdícios,*
leva a recusar o caráter utilitário da lingua-
gem, mostrando que ela é uma fonte de prazer:
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Poderíamos continuar a desfiar exemplos para mostrar que a li-
teratura tem que estar no coração da reflexão lingüística, tem que ser
nutrida por ela, pois não é possível construir uma teoria lingüística
*
(BILAC, Olavo. Poesias. 19
ed. Rio de Janeiro: Francis-
co Alves, 1942: 5-7.)
*
(BARROS, Manoel de. Re-
trato do artista quando coi-
sa. Rio de Janeiro: Record,
1998: 77.)
*
(ASSIS, Machado de. Obra
completa.RiodeJaneiro:No-
va Aguilar, 1979, v. I: 534.)
*
(ver, por exemplo, ROSA,
João Guimarães. Grande
sertão: veredas. 22 ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira,
1986: 469, 471, 560.)
*
(BARROS, Manuel de.
Memórias inventadas: a in-
fância. São Paulo: Plane-
ta, 2003.)
52 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008
com frases como Maria compra arroz e João passeia pelo Rio de Janeiro.
No entanto, resta uma última pergunta: é possível renovar o diálogo
entre a lingüística e a literatura, ele tem chance de acontecer?
A resposta é pessimista: nenhuma. Para que houvesse uma in-
terdisciplinaridade entre as duas áreas, seria preciso disposição pa-
ra mudar hábitos intelectuais, respeito pela diferença, abertura pa-
ra a alteridade, vontade de abandonar a comodidade de trilhar os
sendeiros já batidos. Seria necessário olhar para nossos vizinhos de
sala sem desprezo; admitir que, em ciência, não há feudo, não há
exclusividade; reconhecer a legitimidade do outro para tratar do
assunto em que se é especialista. Entretanto, a ciência desertou de
nossas escolas, pois, quando um ponto de vista teórico ou um cam-
po do saber são vistos como a totalidade do conhecimento, como a
verdade, estamos longe do discurso científico e muito perto do dis-
curso religioso. Aí a aventura da interdisciplinaridade some, porque
aparecem sumos sacerdotes, dogmas, interdições, excomunhões...
A triagem sobreleva a mistura. É isso que vivemos em nossas “igre-
jas”, que estão fazendo estiolar qualquer projeto científico.
José Luiz Fiorin
José Luiz Fiorin é mestre e doutor em Letras (Lingüística) pela Uni-
versidade de São Paulo. Fez pós-doutorado na École des Hautes
Études en Sciences Sociales (Paris) (1983-1984) e na Universidade
de Bucareste (1991-1992). Atualmente é Professor Associado do
Departamento de Lingüística da FFLCH da Universidade de São
Paulo. Foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2000-
2004) e Representante da Área de Letras e Ligüística na CAPES
(1995-1999). Publicou muitos artigos em revistas especializadas e
diversos livros. Entres estes, citam-se As astúcias da enunciação, Li-
ções de texto, Para entender o texto, Elementos de análise do discurso,
Discurso e ideologia, Introdução ao pensamento de Bakhtin.
Resumo
Depois de mostrar que a interdisciplinaridade é da natureza dos es-
tudos lingüísticos, porque a linguagem é multiforme e heterogênea,
este trabalho expõe os dois modos básicos de fazer ciência, um regi-
do pelo princípio da exclusão e outro governado pelo princípio da
participação, que produzem, respectivamente, a especialização e a
sua ultrapassagem. A partir daí, discute as vantagens e os problemas
da disciplinaridade, apresenta as razões pelas quais hoje a interdis-
Palavras-chave: lingüística;
estudos literários; interdis-
ciplinaridade; multidisci-
plinaridade; transdiscipli-
naridade.
53
JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade
ciplinaridade é um universal positivo do discurso e conceitua, com
base na etimologia, os termos interdisciplinaridade, multidiscipli-
naridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade. Examina os
vínculos da lingüística com outras ciências, para terminar traçando
um histórico das relações entre lingüística e literatura no Brasil.
Abstract
Since language is multifaceted
and heterogeneous, interdisci-
plinarity is natural to linguis-
tic studies. In this article, after
demonstrating that, I present
two basic ways of doing science.
One is ruled by the principle of
exclusion, whereas the other is
ruled by the principle of par-
ticipation. The former leads to
specialization, whereas the latter
leads to the surpassing of spe-
cialization. From that, I discuss
the advantages and problems of
disciplinarity, and present the
reasons why nowadays interdis-
ciplinarity is a positive univer-
sal in scientific and pedagogical
discourses. Also, based on ety-
mology, I discuss the concepts
of interdisciplinarity, multidis-
ciplinarity, pluridisciplinarity
and transdisciplinarity. Finally,
I examine the bonds between
linguistics and other sciences,
by drawing a brief history of
the relations between linguistics
and literature in Brazil.
Résumé
Après avoir montré que l’inter-
disciplinarité est de l’ordre des
études linguistiques, car le lan-
gage est multiforme et hétérogè-
ne, cet essai expose les deux fa-
çons de faire de la science, l’une
régie par le principe de l’exclu-
sion et l’autre gouvernée par le
principe de la participation. Ces
deux principes produisent, res-
pectivement, la spécialisation
et son dépassement. A partir
de là, on discute les avantages
et les inconvénients de la disci-
plinarité, on avance les raisons
selon lesquelles l’interdiscipli-
narité est aujourd’hui un uni-
versel positif du discours et on
définit, en s’appuyant sur l’éty-
mologie, les termes d’interdis-
ciplinarité, multidisciplinarité,
pluridisciplinarité et transdis-
ciplinarité. On analyse les rap-
ports de la linguisitique avec
d’autres sciences et on finit par
tracer l’historique des relations
entre la linguistique et la litté-
rature au Brésil.
Key words: linguistics; litera-
ry studies; interdisciplinari-
ty; multidisciplinarity; trans-
disciplinarity.
Mots-clés: Linguistique; étu-
des littéraires; interdiscipli-
narité; multidisciplinarité;
transdisciplinarité.
Recebido em
15/03/2008
Aprovado em
15/04/2008

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  • 1. 29 LINGUAGEM E INTERDISCIPLINARIDADE José Luiz Fiorin Kiakudikila, kiazanga... (O que se mistura separa)* Luandino Vieira ... Le cose tutte quante Hann’ordine tra loro; e questo è forma Che l’universo a Dio fa simigliante. Dante, Paraíso, I, 103-105 A multiformidade e a heterogeneidade da linguagem A linguagem é onipresente na vida de todos os homens. Cer- ca-nos desde o despertar da consciência, ainda no berço; segue-nos durante toda a nossa vida, em todos os nossos atos, e acompanha- nos até na hora da morte. Sem ela, não se pode organizar o mun- do do trabalho, pois é ela que permite a cooperação entre os seres humanos e a troca de informações e experiências. Sem ela, o ho- mem não pode conhecer-se nem conhecer o mundo. Sem ela não se exerce a cidadania, porque ela possibilita influenciar e ser in- fluenciado. Sem ela não se pode aprender. Sem ela não se podem expressar sentimentos. Sem ela, não se podem imaginar outras rea- lidades, construir utopias e sonhos. Sem ela não se pode falar do que é nem do que poderia ser. A linguagem é objeto de estudo de várias disciplinas. A lin- güística, por exemplo, tem por finalidade a explicação dos meca- nismos da linguagem por meio da descrição das diferentes línguas faladas no mundo. Todas as línguas têm em comum certas propriedades e carac- terísticas universais, que definem o que é inerente à natureza mes- ma da linguagem. Através da extraordinária diversidade das línguas do mundo, hoje se busca a unidade da linguagem humana, aqui- lo que faz sua especificidade em relação aos códigos não humanos. A busca de uma origem única das línguas, o mito da torre de Ba- bel, que seria responsável pela diversidade lingüística, a nostalgia do paraíso perdido onde se falava uma só língua, é isso que está na base, no plano mítico, da pesquisa contemporânea dos universais * (VIEIRA, José Luandino. Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & eu.Estórias. Luanda: Edições Maianga, 2004: 60.) ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 p. 29-53
  • 2. 30 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 da linguagem, das operações mentais que presidem ao funciona- mento de todas as línguas. Podemos estudar esses universais e es- sas operações, bem como a perda da capacidade de linguagem por lesões no cérebro. Nesse caso, a lingüística confina com a biologia e as ciências cognitivas. Podemos debruçar-nos sobre as diferenças entre as línguas e então a lingüística faz fronteira com a antropologia e a etnologia. Podemos ocupar-nos da variação no espaço, como fazem a diale- tologia e a geolingüística, e aí a lingüística acerca-se da geografia. Podemos examinar a variação de grupo social para grupo social e, nesse caso, a lingüística limita-se com as teorias sociológicas. Po- demos observar a variação de uma situação de comunicação para outra e então a lingüística faz limites com a teoria da comunicação. Podemos pesquisar a mudança lingüística e a evolução de uma lín- gua ou de uma família de línguas e aí a lingüística avizinha-se da história. Podemos analisar a aquisição da linguagem e aí, depen- dendo da posição teórica com que se faz a análise, a lingüística con- fina com a biologia ou a antropologia. Podemos ver a linguagem como um sistema formal e então a lingüística se aproxima da ma- temática e da computação. Podemos investigar as unidades maio- res do que a frase, isto é, o discurso e o texto. Nesse caso, quando se põe acento na dimensão lingüística, os estudos do discurso têm vizinhança com a retórica, com a dialética, com a teoria da litera- tura. Quando se enfatiza a dimensão histórica do discurso, a aná- lise do discurso é limítrofe da história. Poderíamos continuar a dar exemplos de formas de aborda- gem do fenômeno da linguagem, mas cremos que os elementos ex- postos acima são suficientes para mostrar que a linguagem é, como dizia Saussure, “multiforme e heteróclita”; está “a cavaleiro de dife- rentes domínios”; é, “ao mesmo tempo, física, fisiológica e psíqui- ca”; “pertence (...) ao domínio individual e ao domínio social”.* Por isso, confina com diferentes campos do saber, não só das ciências humanas, mas também das ciências exatas e biológicas. A lingüística pelo próprio objeto parece ter uma função in- terdisciplinar. Antes de avançar é preciso pensar outra questão. Nas Letras, o campo dos estudos da linguagem tradicionalmente divi- de-se em, de um lado, os estudos de língua e, de outro, as investi- gações sobre a literatura. Cada um desses domínios é presidido por uma disciplina teórica: a lingüística para o primeiro e a teoria da * (SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1969: 17.)
  • 3. 31 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade literatura para o segundo. O primeiro, como já se disse acima, tem por objeto o estudo dos mecanismos da linguagem humana por meio do exame das diferentes línguas faladas pelo homem. O segundo tem por finalidade a compreensão de um fato lingüís- tico singular, que é a literatura. Embora claramente distintos, esses dois módulos dos estudos da linguagem deveriam manter relações muito estreitas. De um lado, um literato não pode voltar as costas para os estudos lingüísticos, porque a literatura é um fato de lin- guagem; de outro, não pode o lingüista ignorar a literatura, porque ela é o campo da linguagem em que se trabalha a língua em todas as suas possibilidades e em que se condensam as maneiras de ver, de pensar e de sentir de uma dada formação social numa determi- nada época. A literatura é a súmula de toda a produção do espí- rito humano ao longo da História. Já lembrava o grande lingüis- ta Roman Jakobson em texto antológico: Esta minha tentativa de reivindicar para a Lingüística o direito e o dever de empreender a investigação da arte verbal em toda a sua am- plitude e em todos os seus aspectos conclui com a mesma máxima que resumia meu informe à conferência que se realizou em 1953 aqui na Universidade de Indiana: Linguista sum; linguistici nihil me alienum puto. Se o poeta Ranson estiver certo (e o está) em dizer que “a poesia é uma espécie de linguagem”, o lingüista, cujo campo abrange qualquer espécie de linguagem, pode e deve incluir a poesia no âmbito de seus estudos. A presente conferência demonstrou que o tempo em que os lingüistas, tanto quanto os historiadores literá- rios, eludiam as questões referentes à estrutura poética ficou, feliz- mente, para trás. Em verdade, conforme escreveu Hollander, “pare- ce não haver razão para a tentativa de apartar os problemas literários da Lingüística geral”. Se existem alguns críticos que ainda duvidam da competência da Lingüística para abarcar o campo da Poética, tenho para mim que a incompetência poética de alguns lingüistas intolerantes tenha sido tomada por uma incapacidade da própria ciência lingüística. Todos nós que aqui estamos, todavia, compre- endemos definitivamente que um lingüista surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura indiferente aos proble- mas lingüísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos.* Este trabalho pretende pensar o problema da interdisciplina- ridade, depois discutir, de maneira mais aprofundada, a questão da interdisciplinaridade em lingüística, para terminar debatendo a problemática das relações entre lingüística e literatura. * (JAKOBSON, Roman. Lin- güística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969: 162.)
  • 4. 32 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 Interdisciplinaridade Parece haver duas formas básicas de fazer ciência: uma é re- gida por um princípio de exclusão e a outra, por um princípio da participação.1* Esses dois princípios criam dois grandes regimes de funcionamento das atividades de pesquisa. O primeiro é o da ex- clusão, cujo operador é a triagem. Nele, quando o processo de re- lação entre objetos atinge seu termo leva à confrontação do exclu- sivo e do excluído. As atividades reguladas por esse regime colo- cam em comparação o puro e o impuro.* O segundo regime é o da participação, cujo operador é a mistura, o que leva ao cotejo do igual e do desigual. A igualdade pressupõe grandezas intercambi- áveis; a desigualdade implica grandezas que se opõem como supe- rior e inferior.* Assim, há dois tipos fundamentais de fazer científico: o da exclusão e o da participação, ou, em outras palavras, o da triagem e o da mistura. O fazer governado pelo princípio da triagem tem um aspecto descontínuo e tende a restringir a circulação de objetos, que será pequena ou mesmo nula e, de qualquer maneira, desacelerada pe- la presença do exclusivo e do excluído. É um fazer do interdito. Já a atividade gerida pelo princípio da mistura apresenta um aspecto contínuo, favorecendo o “comércio” entre objetos, métodos, con- ceitos. Nela, o andamento é rápido. É a atividade do permitido.* A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade: átona e tônica. Há triagens mais ou menos drásticas e misturas mais ou menos homogêneas, o que daria o seguinte esquema:* Triagem Mistura Tônica unidade/nulidade universalidade Átona totalidade diversidade Cada um desses fazeres opera com um tipo de valor diferente: os da triagem criam valores de absoluto, que são valores da intensi- dade; os da mistura, valores de universo, que são valores da exten- sidade. Os primeiros são mais fechados, tendendo a concentrar os 1 Zilberberg e Fontanille desenvolvem os conceitos de regimes de mistura e de triagem, para mostrar como os valores tomam forma e circulam no discurso e não para analisar os modos de fazer ciência.Tomamos as noções dos dois semioticistas para estudar os valores relativos à disciplinarização e a sua superação. * (FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Ten- são e significação. São Pau- lo: Discurso Editorial, Hu- manitas, 2001: 27.) * (Idem: 29.) * (Idem: 29.) * (Idem: 20-30.) (Idem: 33.)
  • 5. 33 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade valores desejáveis e a excluir os indesejáveis; os segundos são mais abertos, procurando a expansão e a participação.* Até meados do século XVII, embora houvesse uma disciplina- rização do conhecimento, que remontava aos gregos, predominava o fazer científico regido pelo princípio da mistura. Num certo tem- po, por exemplo, não há diferença nítida entre alquimia e química ou entre astronomia e astrologia. A ciência busca menos o modo de funcionamento do mundo do que seus grandes fins, menos o como dos fenômenos do que seu porquê. Assim, Kepler, ao estabe- lecer as leis da mecânica celeste, queria menos saber como se estru- tura o universo e muito mais demonstrar que um mundo matema- ticamente perfeito só poderia ressoar a perfeição divina. A partir do século XVIII, começa um movimento de especiali- zação nas atividades científicas, ou seja, uma atividade de investiga- ção gerida pelo princípio da triagem. Estabelecem-se objetos muito precisos, que não se misturam. O ecletismo constitui um grave erro. Os objetos são puros, são autônomos. Assim, por exemplo, Saus- sure estabelece que o objeto da lingüística é a langue. Esse objeto não se contamina da física, da fisiologia, da psicologia, etc. A lín- gua será estudada em si mesma e por si mesma.* O gesto científi- co fundamental é dividir o objeto, para examinar seus elementos constituintes e, a partir daí, recompor o todo. Assim, a lingüística começa por dividir os períodos em orações; estas, em palavras; es- tas, em morfemas; estes, em sílabas; estas, em fonemas. Estudam- se, exaustivamente, esses componentes para chegar à compreen- são do objeto, a língua. Esse movimento de triagem chegou a seu apogeu no século XIX e atingiu dimensões alarmantes no século XX, com especializações cada vez mais restritas, mais particulares. Não é preciso dizer que a especialização e a conseqüente discipli- narização2* produziram resultados notáveis. São elas que explicam o extraordinário desenvolvimento científico a que se assistiu nes- se período. O método da divisão e recomposição produz análises muito finas e possibilita a ampliação do conhecimento. Mas prin- cipalmente é preciso dizer que opera uma mudança radical do que se compreende como ciência: é a atividade que pretende descobrir o funcionamento das coisas. 2 Comte, na 60ª lição do Curso de filosofia positiva (t. 6: 723-774.), mostra que a ciência é especulação ou ação: no primeiro caso, ela desvenda as leis dos fenôme- nos e a possibilidade de prevê-los; no segundo, descobre sua utilidade e sua apli- cação; foi essa formulação que distinguiu a ciência pura da aplicada. (Idem: 53-54.) * (Op. cit.: 15-25) * (COMTE,Auguste. Cours de philosophie positive. Paris: J. B. Baillière et Fils, 1869, t.1 e 6. Cf. t. 1: 47-88.)
  • 6. 34 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 A especialização não produziu só maravilhas. De um lado, é preciso considerar que o próprio desenvolvimento da ciência pro- põe novos problemas que não cabem nesse programa científico. De outro, ela deu lugar a uma institucionalização danosa do fazer científico, regulada também pelo princípio da triagem. Os grupos de pesquisa atuam cindidos num regime de concorrência selvagem, cada um competindo com outros. A pesquisa torna-se secreta, o que é avesso ao ideal científico da construção do conhecimento num processo de comunicação universal. Com a especialização, a triagem continua a operar e aí surgem os dogmas, as igrejas, as purezas, as heresias, as excomunhões, os sumos sacerdotes, os cães de guarda... No entanto, não são esses os aspectos mais ruinosos da especializa- ção. O mais grave é o que ela produz sobre a formação e a cultura dos homens de ciência. Nos anos 20 do século passado, Ortega y Gasset, de modo premonitório, pois estávamos longe do auge do processo, já denunciava a “barbárie da especialização”: Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sá- bios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos igno- rantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma des- sas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade, mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem sua porci- úncula do universo. Devemos dizer que é um sábio-ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.* No domínio do conhecimento da linguagem, separam-se niti- damente os estudos lingüísticos e os literários. Ficam de costas um para o outro. Embora, como se mostrou acima, Jakobson conside- re essa atitude um verdadeiro anacronismo, lingüistas e especia- listas em literatura ignoram-se. Isso produziu uma conseqüência devastadora: de um lado, é constrangedor verificar a ignorância literária dos lingüistas e, mais ainda, constatar que eles não dão à literatura nenhuma importância; de outro, é ainda mais embara- çoso ouvir especialistas em literatura enunciando, com a petulân- cia dos sábios-ignorantes, banalidades do senso comum, eivadas de preconceito e de falsidade, sobre a língua. Num texto famoso, Snow mostrava o distanciamento pro- gressivo das ciências naturais das humanidades, com prejuízo para uma e outra.* É curioso que, no domínio dos estudos da linguagem, parece reproduzirem-se essas duas culturas. Com efeito, algumas * (GASSET, José Ortega y. A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Ameri- cano, 1962: 174.) * (SNOW, Charles Percy. As duas culturas e uma segunda leitura:uma versão ampliada das duas culturas e a revolu- ção científica. 2 ed. São Pau- lo: EDUSP, 1995.)
  • 7. 35 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade especialidades da lingüística aproximaram-se das ciências biológi- cas ou das ciências exatas, enquanto a literatura permanece solida- mente ancorada entre as humanidades. Um jovem professor de li- teratura, com a arrogância dos que têm um solene desprezo pelos outros, assim resumiu essa dupla cultura no campo das Letras: os lingüistas marcham e os especialistas em literatura sambam. Qual- quer brasileiro sabe o que é eufórico e o que é disfórico na perspec- tiva desse jovem ignorante. Mas não são apenas filósofos, humanistas e cientistas sociais que se preocupam com as conseqüências da especialização selva- gem. Norbert Wiener, o criador da cibernética, diz: Atualmente, podem contar-se nos dedos de uma mão os cientistas que não sejam exclusivamente matemáticos, físicos ou biólogos. Pode haver topólogos, especialistas em acústica ou coleopteristas, que dominam o jargão de sua especialidade e conhecem toda a li- teratura de sua área e suas ramificações, porém na maioria das ve- zes considerarão qualquer outra disciplina como algo que pertence a um colega, que trabalha no mesmo corredor, três portas adiante, e crerão que qualquer interesse de sua parte pelo tema é uma injus- tificável violação de privacidade.* Na lingüística, essa especialização faz-se sentir fortemente. Já não se encontram mais lingüistas, mas foneticistas, sintaticistas, fonólogos, semanticistas, analistas do discurso e assim por diante. Num processo de cissiparidade, talvez já não se encontrem mais se- manticistas, mas semanticistas formais, semanticistas lexicais, etc. Torna-se cada vez mais difícil encontrar alguém com uma forma- ção lingüística abrangente. A preocupação, mesmo dos cientistas, com a especialização crescente, deriva do fato de que os especialistas trabalham apenas no domínio restrito, fazem progredir a ciência somente no interior de um dado paradigma. No entanto, as grandes criações científi- cas não foram feitas por especialistas, mas pelos sábios, que tinham uma formação abrangente, multidisciplinar, aberta a todos os cam- pos do saber. Gilbert Durand mostra que, se olharmos, na histó- ria da ciência, para cada um dos grandes criadores, vamos verificar que eles não eram especialistas, mas cultivavam a mistura, com sua abertura, sua amplitude, sua largueza e sua profundidade: Os sábios criadores do fim do século XIX e dos dez primeiros anos do século XX, esse período áureo da criação científica em que se per- filam nomes como os de Gauss, Lobohevsky, Riman, Poincaré, Bec- querel, Curie, Pasteur, Max Planck, Niels Bohr, Einstein, etc., tive- * (WIENER, Norbert. Ciber- netica o el control y comu- nicación en animales y má- quinas. Barcelona: Tusquets Editores, 1985: 24.)
  • 8. 36 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 ram todos uma larga formação pluridisciplinar, herdeira do velho tri- vium(as“humanidades”)equadrivium(osconhecimentoscientíficos e também a matemática) medievais, prudente e parcimoniosamente organizados pelos colégios dos jesuítas e dos frades oratorianos e pelas pequenas escolas jansenistas do novo humanismo de Lakanal.* Atualmente, estamos num momento de mudança da forma de fazer ciência. Estamos passando de um fazer científico regido pela triagem para um fazer investigativo governado pela mistura. Fala-se em interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidis- ciplinaridade, transdisciplinaridade e mesmo indisciplinaridade. Hoje, esses termos são universais positivos do discurso, enquanto a especialização é vista como algo fora de moda, relacionada a um pensamento autoritário. Afinal, a destruição das fronteiras é um fenômeno contemporâneo: as grandes entidades transnacionais, como a União Européia e o MERCOSUL, derrubaram as frontei- ras econômicas, permitindo a livre circulação de bens e de capi- tais; a queda do muro de Berlim deitou abaixo uma linha semân- tica divisória entre duas visões de mundo, a famosa cortina de fer- ro; o espaço Shengen demoliu alfândegas e controles entre os esta- dos nacionais. Por outro lado, estamos num tempo do elogio das margens, do descentramento, da alteridade, da heterogeneidade, do dialogismo, vivemos num tempo de mestiçagens e de imigra- ções, de recusa da pureza. Esse ar do tempo leva a pôr em questão as divisões disciplinares, as fronteiras rígidas entre os campos do saber. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da ciência, impulsio- nado por essa epistemé do que foi chamado a pós-modernidade, leva os pesquisadores a começar a pensar problemas que estão si- tuados na fronteira das disciplinas e que, durante muito tempo, foram deixados de lado. No entanto, que é realmente interdisciplinaridade? E mul- tidisciplinaridade? E pluridisciplinaridade? Transdisciplinaridade, então? E essa tal de indisciplinaridade? Ninguém sabe direito. Va- mos tentar uma definição a partir da etimologia das palavras.3 Es- se conjunto de termos tem um radical comum, -disciplina, um su- fixo comum, -dade, e prefixos distintos in-, multi-, pluri-, inter-, trans-. Não se criam diferentes palavras para expressar o mesmo sentido. A distinção do sentido está na parte diversificada e não 3 Essas definições elaboradas a partir da etimologia não diferem do que avança Piaget em seu lúcido ensaio sobre a interdisciplinaridade. (PIAGET, Jean. “Pro- blèmes géneraux de la recherche interdisciplinaire et mécanismes communs”. Em: Épistémologie des sciences de l’homme. Paris: Gallimard, 1970: 253-377.) * (DURAND, Gilbert. “Mul- tidisciplinarités et heuristi- que”. Em: PORTELLA, Edu- ardo. (org.). Entre savoirs. L’interdisciplinarité en acte: enjeux, obstacles, perspec- tives. Toulouse: Ères/UNES- CO, 1991: 36.)
  • 9. 37 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade na parte idêntica dos vocábulos. Disciplina provém do latim disci- plina, formada do radical indo-europeu dek-, que significa “rece- ber” e está na base de discere, “aprender”, discipulus, “o que apren- de”; disciplina, “o que se aprende”. Modernamente, a palavra tem dois grandes sentidos: a) ramo do conhecimento, principalmente entendido como componente de um currículo; b) normas de con- duta. O sufixo -dade é formador de substantivos abstratos a partir de adjetivos. Para definir os termos, a questão é pensar os prefixos, todos de origem latina, sempre a partir das raízes indo-européias: in < ne (indica negação e aparece em palavras como nulo, neutro, negar, ninguém, inútil); inter < en (denota “dentro de”, “entre” e ocorre, por exemplo, em interior, íntimo, interno, entrar, intestino); pluri < pel 4 (remete ao sentido de “encher”, “abundância”, “grande número” e está presente em vocábulos como plural, plenitude, ple- nipotenciário, cheio, pleno, suprir); multi < mel (traduz a noção de “abundância quantitativa ou qualitativa” e aparece em muito, mul- tidão, múltiplo, multiplicação, melhor, etc.); trans < ter (quer dizer, “atravessar, chegar ao fim” e ocorre em termo, término, determinar, traduzir, transportar, trás-os-montes e assim por diante). Observan- do a etimologia das palavras em que aparecem os prefixos pluri e multi, pode-se dizer que há um matiz diferenciador entre eles: o primeiro indica abundância de elementos homogêneos, enquan- to o segundo não traz essa idéia de homogeneidade. No entanto, essa nuança de sentido perdeu-se na história. Podemos, pois, di- zer que multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade querem dizer a mesma coisa. Além disso, se deixarmos de lado o termo indisci- plinaridade, porque, apesar do charme dado pela conotação liber- tária, indica apenas uma negação, sem qualquer valor positivo, te- mos três termos a definir: pluri e multidisciplinaridade, interdisci- plinaridade e transdisciplinaridade. Pode-se pensá-los como o con- tinuum de um processo. Na multidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade), várias dis- ciplinas analisam um dado objeto, sem que haja ligação necessária entre essas abordagens disciplinares. O que se faz é pôr em parale- lo diferentes maneiras de enfocar um tema, que são coordenadas com vistas ao conhecimento global de uma determinada matéria. Tomemos, por exemplo, o caso da energia. Esse assunto deve ne- 4 A forma primeira da raiz é -pel, o que explica o inglês full (cheio), fill (encher), o alemão Fülle (abundância), füllen (encher), voll (cheio), o grego pólys (muito) e pólis (cidade). Essa forma transforma-se em –ple.
  • 10. 38 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 cessariamente ser enfocado multidisciplinarmente: a física estuda as formas e transformações da energia; a biologia investiga os pro- cessos para obtenção da biomassa; a geologia examina as formas de descobrir jazidas de recursos não renováveis de produção de ener- gia, como o carvão mineral, o xisto, o petróleo e o gás natural; as engenharias pesquisam como aproveitar a energia, como extraí-la, como distribuí-la; a economia analisa a oferta e a procura de ener- gia, as vantagens e desvantagens econômicas do uso de uma dada forma de energia; a ecologia avalia os efeitos do uso de certo tipo de energia no meio ambiente; a sociologia e a antropologia obser- vam os efeitos do uso da energia em determinada comunidade hu- mana e assim por diante. A interdisciplinaridade pressupõe uma convergência, uma complementaridade, o que significa, de um lado, a transferência de conceitos teóricos e de metodologias e, de outro, a combinação de áreas. Assim, por exemplo, a sociologia pode utilizar conceitos da economia, como faz Pierre Bourdieu quando se serve dos con- ceitos de capital, mercado e bens para todas as atividades sociais e não somente as econômicas, ou quando faz largo uso da noção de troca. Com muita freqüência, a interdisciplinaridade dá origem a novos campos do saber, que tendem a disciplinarizar-se.* A bioquí- mica, unindo biologia e química, estuda os processos químicos que ocorrem nos organismos vivos. A sociobiologia é a tentativa de ex- plicar biologicamente os comportamentos sociais. Quando as fronteiras das disciplinas se tornam móveis e flui- das num permeável processo de fusão, temos a transdisciplinari- dade. É transdisciplinar uma poética da ciência. Na poesia, perce- bem-se analogias, observam-se correspondências, não se respeita a autoridade dos códigos, das estruturas, da tradição, dos significa- dos, do discurso. Da mesma forma, a transdisciplinaridade é do- mínio da audácia, que leva a examinar todo o conhecimento, não somente a partir dos três axiomas da lógica clássica (o do tercei- ro excluído, o da identidade e o da não contradição) nem apenas com base nos princípios que fundam a ciência moderna (o da or- dem, que engloba o da determinação; o da separação e o da redu- ção), mas a partir de fundamentos analógicos, de conceitos como caos, irreversibilidade, degradação. As interciências, como as Ciên- cias Cognitivas e a Ecologia, são transdisciplinares. A ecologia é o campo transdisciplinar emblemático, pois contém um saber cien- tífico diversificado, utilizado numa concepção generosa, universa- lizante e redentora da vida do homem no planeta. * (cf. PIAGET, op. cit.: 369.)
  • 11. 39 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade Examinemos mais detidamente a interdisciplinaridade, que é uma das formas mais interessantes e produtivas de trabalho cien- tífico de nossa época. Poderíamos dizer que temos, basicamente, duas práticas interdisciplinares: a) transferência, que é a passagem de conceitos, metodologias e técnicas desenvolvidos numa ciência para outra; b) intersecção, em que duas ou mais disciplinas se cru- zam para tratar de determinados problemas. Como se vê, a inter- disciplinaridade não pressupõe a diluição das fronteiras discipli- nares num ecletismo frouxo. Assim, a interdisciplinaridade da lin- güística com outras ciências não é o apagamento dos contornos da ciência da linguagem e sua transformação em outros campos do conhecimento. Não é a biologização, a matematização, a sociolo- gização, a antropologização, etc. da lingüística. Como dizia Sírio Possenti, em recente conferência, o papel dos lingüistas não é fa- zer uma história ou uma sociologia de segunda, mas uma lingüís- tica de primeira. A interdisciplinaridade supõe disciplinas que se interseccionam, que se sobrepõem, que se reorganizam, que bus- cam elementos noutras ciências. Relação da lingüística com outras ciências Como se disse, a interdisciplinaridade pressupõe, de um lado, a transferência de conceitos teóricos e de metodologia e, de outro, a intersecção de áreas. Mostremos, com alguns exemplos, como is- so se deu na lingüística. Transferência de conceitos da lingüística para outras ciências A antropologia estrutural importa da lingüística, antes de tudo, um modelo de cientificidade. Toma métodos e noções da lingüística, considerada então ciência piloto das ciências humanas. Antes de Lévi-Strauss, a antropologia estava ligada às ciências da natureza e comprometida com toda sorte de racismos e com a noção de determinismo biológico. O antropólogo francês, para estudar as estruturas elementares de parentesco, toma da fonologia a idéia da busca de constantes presentes sob a imensa variabilidade da realida- de. Sob as múltiplas práticas matrimoniais, aparecem as invarian- tes, as estruturas elementares, que determinam, basicamente, com quem se pode e com quem não se pode casar. Lévi-Strauss coloca a proibição do incesto como um universal, entendido não como um interdito moral, mas como uma regra de positividade social, desti-
  • 12. 40 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 nada a proteger a espécie contra os efeitos funestos dos casamentos consangüíneos. Assim, ele desbiologiza o fenômeno do parentesco, deslocando a questão das relações consangüíneas para o caráter de transação, de comunicação, que se instaura com a aliança matri- monial. Diz ele que a “proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consangüinidade ao fato cultural da aliança”.* A antropologia deixa a natureza e é colocada no terreno exclusi- vo da cultura. A lingüística, em particular a fonologia, permite, com seus métodos, suas teorias, suas noções, ultrapassar o estágio dos fenômenos conscientes para atingir aquilo que é inconscien- te; possibilita não ver os termos em sua positividade, mas apreen- dê-los em suas relações internas, ou seja, tomar por base da análi- se as relações entre os termos e não os próprios termos; propicia descobrir os sistemas e pôr em evidência suas estruturas; proporcio- na desvendar leis gerais. Lévi-Strauss mostra que se podem anali- sar certos fenômenos sociais, como, por exemplo, o parentesco, de maneira análoga à da fonologia, porque eles são elementos dotados de significação, integram-se em sistemas inconscientes, resultam de leis gerais, dado que se encontram fenômenos similares em regiões bastante afastadas umas das outras.5 Diz o antropólogo francês que, como os fonemas, os termos de parentesco só adquirem significa- ção quando se integram em sistemas.* Na busca das invariantes para além da multiplicidade das variedades percebidas, ele põe de lado todo recurso à consciência do sujeito.6 Dá prevalência à sincronia. Da mesma forma, os mitos formam estruturas: as variantes de um mesmo mito integram-se num sistema no qual cada elemento se opõe a todos os outros. Lacan teve, para a psicanálise, o mesmo papel que Lévi-Strauss para a antropologia. A lingüística oferece para a psicanálise lacania- na um modelo de cientificidade. Por volta dos anos 50 do século passado, na França, reinava uma biologização das conquistas freu- dianas e a psicanálise dissolvia-se na psiquiatria. Lacan denuncia também o behaviorismo, dominante nos Estados Unidos, como 5 Diz Lévi-Strauss que “o sistema de parentesco é uma linguagem” (LÉVI- STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975: 65.); afirma ainda: “postulamos que existe uma correspondência formal entre a estrutura da língua e a do sistema de parentesco” (Idem: 79). 6 Esse é o modo de proceder de um fonólogo. Observe-se, por exemplo, a argu- mentação de Mattoso Camara, para explicar por que o português não tem vo- gais nasais (CAMARA Jr., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Pe- trópolis: Vozes, 1970: 48-50). * (LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares de parentesco. Petrópolis: Vozes, 1976: 70.) * (Idem: 48)
  • 13. 41 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade uma adaptação do indivíduo às normas sociais, como uma teoria que tem uma função de ordem, de normalização. Deseja a desme- dicalização e a desbiologização do discurso freudiano e a retirada do inconsciente do seio das estruturas psicologizantes behavioristas. Propõe uma ruptura enraizada na obra de Freud, uma volta a Freud.* Esse retorno dar-se-ia, levando em conta o modelo da lingüística.* Para Lacan, há uma prevalência da dimensão sincrônica na orga- nização do inconsciente. Portanto, ele não considera essencial em Freud a teoria dos estágios sucessivos, mas a existência de uma es- trutura edipiana de base, caracterizada por sua universalidade, in- diferente às contingências de tempo e de espaço. Para ele, o homem só existe enquanto tal pela função simbólica. Ele é, pois, produto da linguagem, efeito dela. Isso permite ao psicanalista francês criar sua famosa fórmula: “O inconsciente é estruturado como uma lingua- gem.” A existência simbólica do ser humano deixa clara a impor- tância dada à linguagem, à relação com o outro. Dessa forma, ele desmedicaliza a abordagem do inconsciente, objeto da psicanálise, considerando-o como um discurso. A psicanálise deixa de ser uma disciplina médica e passa a ser uma disciplina analítica. Lacan fundamenta-se na teoria saussuriana do signo, apor- tando-lhe uma série de modificações e mesmo de torções.* Saussu- re mostrara que o signo não une um nome a uma coisa, mas um conceito a uma imagem acústica. Ele separou, portanto, o signo de qualquer relação com o referente.* O signo, sem qualquer vínculo com o referente, é, para Lacan, o fundamento da condição hu- mana. No entanto, diferentemente de Saussure, ele relega o sig- nificado a um lugar acessório. A fala, cortada de qualquer acesso ao real, veicula apenas significantes que remetem uns aos outros. O inconsciente, objeto que funda a identidade científica da psica- nálise, é uma cadeia de significantes. O inconsciente é um efeito da linguagem, de suas regras, de seu código. Lacan recorre aos conceitos de metáfora e de metonímia desenvolvidos por Jakobson e assimila-os aos dois processos de fun- cionamento do inconsciente: a condensação e o deslocamento. Além desses modelos gerais, Lacan toma conceitos particulares da lingüística: por exemplo, de Damourette e Pichon vem a divisão entre o je e o moi e o conceito de forclusão.7 O primeiro serve para 7 Pichon era, além de gramático, psicanalista. A forclusão é um fenômeno gra- matical que diz respeito à negação. O francês faz uma negação com um morfema descontínuo. O primeiro elemento da negação é considerado por Damourette e * (LACAN, Jacques. Écrits I. Paris: Seuil, 1966: 145.) * (Idem: 165.) * (Idem: 250-289.) * (SAUSSURE, Op. cit.: 79- 81.)
  • 14. 42 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 pensar a divisão entre o sujeito do inconsciente e o da consciência com seu imaginário; o segundo, para mostrar que há um processo de fracasso do recalcamento originário, em que não se conserva o que se recalcou, porque o recalcado é excluído ou barrado pura e simplesmente, o que produz a psicose.* O recurso da psicanálise a conceitos lingüísticos não era novi- dade. Freud baseara-se em Sperber e Carl Abel, para justificar suas teses de que o simbolismo é sempre sexual, mesmo quando parece que falamos de outra coisa, e de que os símbolos são ambivalentes, porque são aptos a significar dois conteúdos opostos.* De Sperber tomou o longo ensaio “Da influência dos fatores sexuais na forma- ção e na evolução da linguagem” e utilizou-o como base para de- monstrar que, se a linguagem se funda na sexualidade, então não existe contradição entre o funcionamento da linguagem e o simbo- lismo. A Carl Abel dedica um estudo, intitulado “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas”.* O que interessava a Freud era a tese de Abel de que as línguas primitivas tinham uma só palavra para denotar sentidos opostos. Isso comprovava sua tese sobre a ambiva- lência dos símbolos, que podem representar qualquer coisa pelo seu contrário. No caso de um sonho, não se pode, em princípio, saber se um elemento traduz um conteúdo positivo ou negativo. Transferência de conceitos de outras ciências para a lingüística A lingüística histórica toma das ciências históricas, ao longo de seudesenvolvimento,trêsconceitosdehistória:a)ahistóriacomode- cadência; b) a história como progresso; c) a história como mudança. O primeiro vem da Antigüidade e é expresso na doutrina das idades do gênero humano: por exemplo, em Hesíodo, a humani- dade vai da idade de ouro, em que os homens viviam como deuses, até a idade do ferro, em que os homens estão sujeitos a toda espécie Pichon da ordem da discordância. O segundo elemento da negação é denomina- do “forclusivo”. Seu semantismo originário é o de uma ocorrência mínima (pas, goutte, miette, aucun, nul, personne, rien). Essa ocorrência remete a um paradig- ma: personne, por exemplo, é a ocorrência mínima que remete ao paradigma dos animados humanos; rien, ao paradigma dos não animados; pás, assim como nul- lement, ao paradigma das quantificações. O que é dado por forclos (ou excluído, isto é, localizado num exterior nocional) é então a representação de um pa- radigma, evocado em intensão, qualitativamente; em outras palavras, defini- do por uma propriedade e não construído em extensão (DAMOURETTE, Jacques; PICHON, Edouard. Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la lan- gue française. Paris: Éditions d’Artrey, 1970, t. 6: 113-143). * (LACAN, Jacques. Le sémi- naire. Livre III: les psycho- ses, 1955-1956. Paris: Seuil, 1981: 229 e 361.) * (cf. ARRIVÉ, Michel. Lin- güística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e os outros. São Pau- lo: EDUSP, 2001: 79-91.) * (FREUD, Sigmund. “Sobre el sentido antitético de las palabras primitivas”. Em: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2001, v. 11: 143-154.)
  • 15. 43 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade de males, passando pelas idades da prata, do bronze e dos heróis.* Muitos comparatistas, por exemplo, Schleicher,* defendiam que as línguas antigas estavam num estágio superior de desenvolvimen- to em comparação com as línguas modernas, que representariam uma fase de decadência, de degeneração. Isso se devia à organiza- ção morfológica mais densa (declinações e conjugações), que, se- gundo eles, implicava uma maior capacidade de expressão, por rea- lizar um número maior de distinções gramaticais. A História seria, então, um processo degenerador, porque degradava as estruturas da língua. Daí a relevância da reconstituição de seu passado, para buscar atingir o que seria o período áureo das línguas. O conceito da história como progresso é uma idéia iluminis- ta, que aparece, por exemplo, em Voltaire.* Herbert Spencer conce- be a história humana como um processo contínuo e linear de evo- lução.* Em Comte, aparece um determinismo sociológico. Sua lei dos três estados – o teológico, o metafísico e o positivo – opera na ontogênese e na filogênese. Ela indica que, assim como os indiví- duos, todas as sociedades caminham para atingir o mais alto estágio de desenvolvimento.* Otto Jespersen* sustenta que, na história das línguas, há progresso, há uma marcha na direção de formas mais aperfeiçoadas. Como as formas se abreviaram, estruturas analíti- cas tomaram lugar das formas sintéticas, as formas irregulares re- gularizaram-se, a ordem das palavras tornou-se fixa, a língua ficou cada vez mais apta para a expressão, porque adquire maior clare- za e precisão e exige do usuário menor esforço de memória e, até mesmo, menor esforço muscular na fala. O modelo de Jespersen era o inglês, língua da qual escreveu uma monumental gramática.* Vendryès termina sua obra, Le langage, expondo a idéia de que a história das línguas é um aperfeiçoamento constante desse instru- mento criado pelo homem.* A idéia da história como mudança, não governada por ne- nhuma teleologia, rege as concepções atuais em lingüística históri- ca. Já Lucrécio negava o finalismo,* aduzindo que ele põe antes o que vem depois. A lingüística atual não trabalha mais com as idéias de decadência e de progresso. Mattoso Câmara diz que: “a palavra evolução, em lingüística, pressupõe apenas um processo de mudan- ças graduais e coerentes.”* Schleicher, que, além de lingüista, era botânico, preconizava que a ciência da linguagem deveria estar entre as ciências da natu- reza. Importa uma série de princípios da biologia. Seu objetivo era estabelecer leis gerais e rigorosas do desenvolvimento das línguas. * (HESÍODO. Os trabalhos e os dias. 4 ed. São Paulo: Ilu- minuras, 2002: v. 106-201.) * (cf. CAMARA Jr., Joaquim Mattoso. História da lingüís- tica. 4 ed. Petrópolis:Vozes, 1986: 54-55.) * (VOLTAIRE, François-Ma- rie. Oeuvres historiques. Pa- ris: Gallimard, 2000.) * (SPENCER, Herbert. Do progresso, sua lei e sua cau- sa. Lisboa: Editorial Inqué- rito, 1939.) * (COMTE, Auguste. Cours de philosophie positive. Pa- ris: Schleicher Frères, 1908, t. 4: 328-387.) * (JESPERSEN, Otto. Progress in Language. Amsterdam: E. John Benjamins, 1993.) (JES- PERSEN, Otto. Efficiency in Linguistic Change. Copenha- guen: E. Munksgaard, 194.) * (JESPERSEN, Otto. Modern English Grammar on Histo- rical Principles. Londres: G. Allen Unwin; Copenhaguen: E. Munksgaard, 1961, 7 v.) * (VENDRYÈS, J. Le langage. Paris: Albin Michel, 1950: 402-420.) * (LUCRÉCIO. De la natu- re. Paris: Les Belles Lèttres, 1948, t. II: IV, 822-842.) * (CAMARA Jr., Joaquim Mat- toso. Princípios de lingüística geral. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970a: 192.)
  • 16. 44 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 Schleicher contrapunha a lingüística à filologia. Esta é um ramo da história, enquanto aquela, não. As três idéias que traz das ciências da natureza são: a) a língua é um organismo natural e, portanto, ela desenvolve-se até um certo ponto e, depois, entra em decadên- cia; b) a mudança lingüística deve ser entendida como uma evolu- ção natural no sentido darwiniano; c) a língua depende de traços físicos do cérebro e do aparelho fonador e varia segundo as raças do mundo, sendo, portanto, um critério adequado para elaborar uma classificação racial.* Mesmo que hoje essas idéias nos pareçam completamente erradas, Schleicher teve uma importante influên- cia em temas como a classificação das línguas indo-européias, a re- construção do indo-europeu, os estudos de fonética, a classificação tipológica das línguas baseada na estrutura da palavra.* Para Sch- leicher, o ápice da evolução lingüística era o indo-europeu; depois dele, começava a degeneração. A chamada lingüística matemática trouxe desta ciência diver- sos instrumentos para a realização da análise lingüística: teoria dos conjuntos, álgebra de Boole, topologia, estatística, cálculo de pro- babilidades, teoria dos jogos. Zellig Harris, por exemplo, publica um estudo da gramática em termos de teoria dos conjuntos.* De- vem-se lembrar ainda os usos da estatística nos estudos de lexico- logia e lexicografia. Da computação a lingüística toma programas e técnicas para aplicá-los a aspectos da linguagem humana, fazendo um tratamento automático das línguas: tradução automática, cor- reção ortográfica, recuperação de informações e busca nos textos, resumos automáticos, reconhecimento de voz, síntese vocal para o estabelecimento da interface homem-máquina, etc. Intersecção de áreas Asociolingüísticaestudaalínguacomoinstrumentodeintegra- ção social. Em primeiro lugar, interessa-se pela questão da variação lingüística, examinando a covariância sistemática entre a estrutura lingüística e a estrutura social. Estuda, assim, a variação por grupos sociais. Analisa também a língua como classificador social e como fa- tor de coesão social para as etnias, as classes ou outros grupos sociais. Estuda as relações entre as línguas em função de fatores sociais, bem como toda a problemática do contato das línguas e do bilingüismo. Como se vê, da sociologia vem a questão dos fatores sociais e da lin- güística, a análise da língua. O que a sociolingüística faz é estabele- cer a correlação entre fatores sociais e fatos de linguagem. * (Camara Jr., 1986: 50-51.) * (Idem: 52-55.) * (HARRIS, Zellig S. Mathe- matical Structures of Langua- ge. NovaYork: Wiley-Inters- cience, 1968.)
  • 17. 45 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade A antropolingüística estabelece uma correlação entre língua e cultura. Não estão mais em pauta grupos sociais como na sociolin- güística, mas fatores culturais. Estuda-se a língua no contexto cul- tural. Interessa à antropolingüística a questão da língua em relação ao sagrado (por exemplo, línguas cultuais), as teorias populares e os mitos a respeito da linguagem, os tabus e as fórmulas mágicas e en- cantatórias, a visão das relações entre a palavra e a coisa, as taxiono- mias, os sistemas de percepção e de categorização do mundo. A psicolingüística estuda o conjunto de operações mentais li- gadas à linguagem. Assim, ocupa-se da retenção e do esquecimen- to de informações verbais, da aquisição da linguagem, do proces- samento da informação pelo cérebro, etc. A geolingüística é um campo interdisciplinar, em que se unem a linguística e a geografia. A geolingüística ocupa-se de estudar as línguas no seu contexto geográfico. Preocupa-se com a identifica- ção e a descrição de áreas lingüísticas (domínios lingüísticos, áreas dialectais, etc.), com a análise das dinâmicas geográficas das varia- ções internas do idioma, com o estudo da importância territorial das línguas e das suas variedades em diferentes escalas (local, regio- nal, nacional, continental, mundial), com a análise das dinâmicas territoriais das línguas e das suas variedades (evolução demolingü- ística, territórios onde são faladas, dinâmicas de expansão e retro- cesso territorial), com o estudo de situações de conflito territorial causado pelas diferenças lingüísticas, com o conhecimento das re- presentações que as pessoas têm dos espaços lingüísticos, das suas falas e da sua dinâmica territorial. A neurolingüística, compartilhamento da neurologia e da lin- güística, durante muito tempo, estudou (e continua ainda a fazê- lo) as lesões no córtex cerebral e as deficiências afásicas daí resul- tantes. No entanto, ela não se restringe a isso, pois estuda a elabo- ração cerebral da linguagem. Ocupa-se com o estudo dos mecanis- mos do cérebro humano envolvidos na compreensão e na produ- ção lingüística e no conhecimento da língua. Ocupa-se tanto da elaboração da linguagem normal como das alterações lingüísticas causadas por distúrbios. A neurolingüística leva a uma compreen- são das bases biológicas da linguagem. Como se mostrou acima que a linguagem é multiforme e hete- róclita e, portanto, a interdisciplinaridade é da sua natureza, pode- ríamos continuaramostrarainterdisciplinaridadedalingüísticacom outras ciências, em suas diferentes formas, ao longo da história. No
  • 18. 46 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 entanto, é preciso chegar ao ponto final: a discussão da relação entre lingüística e literatura, os dois ramos em que se dividem as Letras. Relação da lingüística com a literatura Até por volta dos anos 60, a relação entre a lingüística e a lite- ratura era bastante simples: de um lado, na medida em que a aná- lise do texto literário era o estudo da substância do plano do con- teúdo em sua relação com uma realidade extralingüística, não era preciso recorrer a qualquer categoria lingüística e, portanto, não havia qualquer ligação entre esses dois campos do conhecimento, em que, tradicionalmente, se dividem os estudos da linguagem; de outro, no estabelecimento de textos e na estilística, havia certa vin- culação, mas bastante rudimentar, entre esses dois domínios. Ex- pliquemos melhor essas afirmações. Quando, por exemplo, a crítica machadiana mostra as tradi- ções de que se valeu o autor para compor sua obra; quando o acu- sa de “macaqueação de Sterne”, como faz Sílvio Romero;* quando detecta temas comuns a seus romances, vinculados a sua biografia, como mostra Lúcia Miguel Pereira;* quando demonstra, como As- trojildo Pereira,* que Machado é o “romancista do segundo reinado”; quando desvela que as formas dos grandes romances machadianos imitam processos histórico-sociais, como faz Roberto Schwarz* e assim por diante, não há necessidade de recorrer à linguagem para estudar uma obra literária, já que ela não é vista como linguagem, mas como representação de uma realidade exterior a ela. Por outro lado, havia uma relação entre lingüística e literatu- ra, quando se estabeleciam textos antigos. A literatura, nesse traba- lho filológico, valia-se das categorias e das descobertas da lingüística histórico-comparada do século XIX, considerada como algo pron- to e acabado. A relação entre língua e literatura ocorria também no domínio da estilística. Inicialmente, a estilística era o estudo dos meios de expressão dos conteúdos afetivos da língua, pois um fato de estilo era entendido como uma ocorrência lingüística que provo- cava um dado efeito no leitor. Nessa estilística, estudavam-se, frag- mentariamente, os fatos de estilo e, numa análise de textos, o que se procurava observar era a soma de efeitos que os fatos estilísticos nele presentes produziam. Essa estilística, tal como foi praticada por Bally* e, entre nós, por Rodrigues Lapa* e Mattoso Camara,* valia-se de uma retórica reduzida, porque restrita à dimensão tro- pológica, e de uma análise lingüística elementar, que se encontra na * (ROMERO, Silvio. Macha- do de Assis: estudo compa- rativo de literatura brasileira. Campinas: Editora da UNI- CAMP, 1992: 164.) * (PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: ensaio crítico e biográfico. 6 ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1988.) * (PEREIRA, Astrojildo. In- terpretações. Rio de Janei- ro: CEB, 1944.) * (SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance bra- sileiro. São Paulo: Duas Ci- dades, 1977.) (SCHWARZ, Roberto. Um mestre na pe- riferia do capitalismo: Ma- chado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.) * (BALLY, Charles. Le lan- gage et la vie. Paris: Payot, 1926.) (BALLY, Charles. Trai- té de stylistique française. 3 ed. Genebra: Georg & Cie., 1951.) * (LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portu- guesa. 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968.) * (CAMARA Jr., Joaquim Mat- toso. Contribuição à estilís- tica portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técni- co, 1977.)
  • 19. 47 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade gramática tradicional. Nada, além disso. Por isso, também se con- siderava que não havia progresso a fazer no domínio dos estudos lingüísticos.Tudo estava feito e acabado. Lembra-me que, uma vez, uma professora de grego me consultou sobre o que eu achava do desejo de um orientando seu de estudar o sistema temporal do gre- go clássico. Antes que eu respondesse que achava interessante fazer um estudo desse sistema do ponto de vista das teorias da enuncia- ção, ela asseverou, com muita certeza, que nada mais havia a estu- dar na gramática grega, porque os alemães do século XIX haviam feito tudo nessa matéria. Que concepção de ciência! Mais tarde, a estilística, com Leo Spitzer* e Damaso Alonso,* torna-se mais orgânica, porque, para eles, o estilo reflete o mun- do interior de um dado autor, seu “conteúdo espiritual”, sua intui- ção, suas vivências. Apesar de ampliar seu escopo, a estilística con- tinua valendo-se das descrições lingüísticas elementares de qual- quer gramática escolar. A lingüística era algo que se aplicava no estudo do texto lite- rário, de maneira errática, segundo o arbítrio do analista, para jus- tificar uma interpretação que não tinha sido dada pela descrição lingüística. O ensino seguia as orientações de pesquisa. Nos cursos de línguas estrangeiras dava-se ênfase ao estudo da literatura em detrimento dos estudos de língua. Essa orientação nitidamente li- terária levava a um estudo de textos com abordagens estilísticas e filológicas.* Pierre Hourcade, no Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, de 1934-1935, traça as diretrizes gerais do ensino de Língua e Literatura Francesa na Faculdade. O aluno precisa ter uma visão geral da Literatura Francesa. Os exercícios por excelência eram a explicação de textos e a dissertação, que era cha- mada, nos relatórios da cadeira, dissertação francesa.* Portanto, o conhecimento lingüístico era simplesmente instrumental, destina- va-se a permitir que os alunos lessem os textos no original.* Pierre Hourcade previa a criação de um curso de Literatura Medieval e História da Língua.* O fato de o curso de História da Língua estar atrelado ao de Literatura Medieval fazia com que ele fosse subsidi- ário para o acesso aos textos medievais. Nos anos 60, o panorama muda. Com o apogeu do estru- turalismo, a literatura apóia-se nas aquisições da lingüística para a elaboração de uma teoria do texto literário. Desloca-se o foco do autor (sua biografia, sua subjetividade, o contexto social em que criou) para o texto. Isso se fez, apesar das críticas acerbas e dos la- mentos amargurados de muitos estudiosos da literatura. Alguns * (SPITZER, Leo. Lingüística e história literária. 2 ed. Ma- drid: Gredos, 1982.) * (ALONSO, Damaso. Poesia espanhola: ensaio de méto- dos e limites estilísticos. Rio de Janeiro: Instituto Nacio- nal do Livro, 1960.) * (Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras 1952. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Le- tras, 1954: 275.) * (Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras 1934-1935. São Paulo: Re- vista dos Tribunais, 1937, p. 204). * (Anuário, 1937: 198-206.) (Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras 1951. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Le- tras, 1952: 245.) (Anuário da Faculdade de Filosofia,Ciên- cias e Letras 1939-1949. São Paulo: Faculdade de Filoso- fia, Ciências e Letras, 1953, v. I e II: 481.) * (Anuário, 1937: 203.)
  • 20. 48 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 chegavam, com base numa visão conspiratória da História, a dizer que o estruturalismo lingüístico era um programa de estudos fi- nanciado pela CIA, para naturalizar a linguagem e, assim, afastar a História, com vistas a aumentar a alienação. Deixando de lado esses pontos de vista que hoje nos parecem no mínimo estranhos, deve-se notar que, nesse período, a literatura não mais buscava, na lingüística, descrições de fatos próprios das línguas naturais nem explicações de tropos, mas conceitos gerais, como conotação/de- notação, significado/significante, sintagma/paradigma etc. Na ver- dade, o que a literatura transfere da lingüística são os conceitos que explicam como se estruturam os sistemas significantes, quais- quer que eles sejam. Mais do que a lingüística, o que mantém re- lações com a literatura é uma semiologia, tal como fora proposta por Saussure.* Nesse período, duas vertentes dos estudos literários desenvolvem-se: a poética e a teoria da narrativa. A primeira, uma teoria da poeticidade, deriva do programa dos formalistas russos e encontra em Jakobson seu grande formulador, que assim enuncia o princípio da função poética: “projeta o princípio de equivalên- cia do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.”8* A segunda vertente busca, com base na idéia de sistema, as invariantes para- digmáticas e sintagmáticas, que ocorrem sob a diversidade quase infinita das narrativas realizadas. Esses dois ramos dos estudos li- terários tiveram um desenvolvimento notável, apesar da acusação de muitos, fundados ainda numa ideologia romântica, que, como diz Régine Robin, é anterior a Marx e a Freud,* de que esses mo- delos eram redutores.9 Para esses estudiosos, os produtos humanos não podem ser examinados do ponto de vista de suas invariantes, porque os seres humanos, em sua infinita criatividade, não estão submetidos a quaisquer coerções sociais e psíquicas. Afinal, para eles, o sujeito é neutro, mestre de si mesmo, sem qualquer deter- minação sócio-ideológica. 8 Um belo exemplo de análise poética, com base nos conceitos da lingüística, é o estudo feito pelo próprio Jakobson, com a colaboração de Luciana Stegagno Pic- chio, sobre os oxímoros em Fernando Pessoa (JAKOBSON, Roman. Lingüística, poética, cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970: 93-118). Um livro teórico, edita- do no Brasil, sobre poética foi Teoria da literatura. Formalistas russos, organizado por Dionísio de Oliveira Toledo (TOLEDO, Dionísio de Oliveira. Teoria da li- teratura. Formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971). 9 Um exemplo brasileiro de análise estrutural da narrativa, realizada com compe- tência, é o livro de Affonso Romano de Sant’Anna, intitulado Análise estrutural de romances brasileiros (SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1973). * (Op. cit.: 23-25.) * (Idem: 130.) * (ROBIN, Régine. História e lingüística. São Paulo: Cul- trix, 1977: 25.)
  • 21. 49 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade No entanto, o mais importante não foi o fato de que a lite- ratura passou a utilizar-se de conceitos da lingüística, mas sim de que ela começou a fundar sua concepção de literatura na noção de arbitrariedade do signo, princípio basilar da ciência da linguagem. A obra é construção e não representação direta e imediata da reali- dade, seja ela a consciência do autor ou a consciência de uma classe social ou de uma fração de classe. Se a literatura é construção, ela é linguagem, regida, portanto, por códigos, que é preciso descobrir no estudo da obra literária. Não se buscam mais as fontes extralingüísti- cas do texto literário e afasta-se a ideologia de que a linguagem repre- senta o real, de que a linguagem é reflexo da realidade. Isso não de- veria causar, como provocou, espanto ou fortes reações, pois, afinal, Antonio Candido, considerado o expoente da análise sociológica, já dissera que a “mimese é sempre uma forma de poiese”.* Mais que o contexto da criação, interessa o estudo da obra em si mesma. Entre o final dos anos 70 e o início dos 80, há um novo rom- pimento entre a lingüística e a literatura. De um lado, os estudiosos de literatura consideram que a lingüística nada tem de interessan- te a dizer sobre a literatura e voltam a utilizar a velha e elementar gramática tradicional para justificar algum fato de língua que sir- va de apoio a suas conclusões. Muito da produção lingüística, por sua vez, abandona a perspectiva mais ampla da semiologia, que se ocupava de explicar os sistemas de signo em geral, a fim de voltar- se para os fatos de língua. É o período do apogeu das idéias forma- listas, como as da gramática gerativa. Mesmo a pragmática, que se consagra ao estudo do uso da linguagem, dedica-se à análise da lin- guagem verbal – cf., por exemplo, os trabalhos de Austin,* Searle,* Grice,* Ducrot.* Mas o campo da lingüística vai ampliando-se. A partir dos trabalhos de Benveniste sobre a enunciação, a ciência da linguagem cria um novo objeto teórico, o discurso.* Diversas teo- rias do discurso são criadas. Uma delas, a semiótica francesa, bus- ca construir o projeto saussuriano de uma semiologia, agora ten- do como objeto não mais os sistemas de signo, mas a significação. Debruça-se sobre os textos, manifestação do discurso. A obra de Bakhtin e a análise do discurso de linha francesa procuram, com os conceitos de dialogismo e de interdiscursividade, mostrar o modo de funcionamento real do discurso, sua inscrição na História. Pa- ralelamente às teorias do discurso, aparece uma lingüística do tex- to, que se debruça sobre os fatores de textualidade, como a coesão, a coerência, a intertextualidade. * (CANDIDO, Antonio. Lite- ratura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 4 ed. São Paulo: Editora Na- cional, 1975: 12.) * (AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Pala- vras e ação.PortoAlegre:Ar- tes Médicas, 1990;) * (SEARLE, John R. Os actos de fala: um ensaio de filoso- fia da linguagem. Coimbra: Almedina, 1991.) * (GRICE, H. Paul. “Logique et conversation”. Commu- nications. Paris, 30, 1979: 57-72.) * (DUCROT, Oswald. Princí- pios de semântica lingüística: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix, 1977.) * (BENVENISTE, Emile. Pro- blemas de lingüística geral. São Paulo: Nacional/ EDUSP, 1976, t. 1: 284-296.)
  • 22. 50 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 Uma relação entre lingüística e literatura, atualmente, não se fundará no uso pela literatura de rudimentos de uma gramática elementar nem em princípios de organização gerais sobre os quais assentar os estudos literários, mas em conceitos que explicam a or- ganização do discurso literário e seu modo de funcionamento. Is- so quer dizer que os conceitos lingüísticos devem ser um instru- mento de investigação do texto literário, que será estudado como processo enunciativo e totalidade textual. É preciso que o recurso aos conceitos desenvolvidos pela lingüística do discurso sirva para desvelar novas camadas de sentido. Não pode ser nunca um meio de validar conclusões oriundas da intuição do analista. Por isso, não serão suficientes as descrições morfológicas e sintáticas. É pre- ciso recorrer a todos os estudos de fenômenos enunciativos (figu- rativização, isotopia, modalização, temporalização, actorialização, espacialização, modulação tensiva, meta-enunciação, aspectualiza- ção, contrato enunciativo;* atos de fala, gêneros do discurso, pres- supostos e subentendidos, leis do discurso, conectores argumen- tativos, cenografia,* interdiscursividade, heterogeneidade, espaços discursivos, campos discursivos, dialogismo,* éthos,* estilo* e assim sucessivamente), bem como àqueles a respeito dos mecanismos de textualização (categorias plásticas, semi-simbolismo, etc.* ). Mas as teorias do discurso permitem ainda ver o próprio processo de cria- ção literária como um ato enunciativo, como uma atividade, como uma práxis discursiva, o que possibilita analisar a adoção ou rejei- ção de usos inovadores ou cristalizados e a criação dos cânones e dos best-sellers, o desgaste e a cristalização das formas, a resseman- tização de fórmulas desgastadas ou cristalizadas, etc. Pensemos agora a questão do lado contrário: o que a lingüís- tica importa da literatura. É necessário colocar o texto literário e os estudos literários no coração da lingüística para pensar a natu- reza da linguagem humana como um mecanismo que contém as regras de sua própria subversão, bem como para ampliar a com- preensão da linguagem e dos mecanismos lingüísticos. É a leitura de João e Maria, de Chico Buarque, com seu uso do pretérito im- perfeito pelo presente (“Agora eu era herói/ E o meu cavalo só fa- lava inglês”), ou do poema Profundamente, de Manuel Bandeira,* com sua presentificação do passado, que nos leva a ver a tempora- lização não como um decalque do tempo do mundo, mas como a construção lingüística de uma vertigem temporal, em que presen- te se torna passado, em que passado se presentifica, em que futuro * (GREIMAS, Algirdas Julien; COURTES, Joseph. Sémioti- que. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Pa- ris: Hachette, 1979.) (FIO- RIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Áti- ca, 1996; Bertrand, 2003.) * (cf. MAINGUENEAU, Do- minique. Pragmatique pour le discours littéraire. Pa- ris: Bordas, 1990; e MAIN- GUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 1995.) * (cf.MAINGUENEAU,Domi- nique. Sémantique de la po- lémique. Discours religieux et ruptures idéologiques au XVIIe siècle. Lausanne: L’Age d’Homme,1983;MAINGUE- NEAU, Dominique. Genèses du discours. Bruxelas: Pierre Mardaga,1984;eMAINGUE- NEAU, Dominique. Nouvel- les tendances en analyse du discours. Paris: Hachet- te, 1987.) * (cf. BAKHTIN, Mikhail. La poétique de Dostoïewski.Pa- ris:Seuil,1970a;eBAKHTIN, Mikhail. L’oeuvre de Fran- çois Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. Paris: Gallimard, 1970b.) * (MAINGUENEAU, Domini- que. Cenas da enunciação. Curitiba: Criar, 2006.) (FIO- RIN, José Luiz. “O éthos do enunciador” Em: CORTINA, Arnaldo; MARCHEZAN, Re- nata Coelho. Razões e sensi- bilidades.Araraquara: Cultu- raAcadêmica Editora, 2004: 117-138.) * (DISCINI, Norma. O estilo nos textos. São Paulo: Con- texto, 2003.) * (cf. TEIXEIRA, Lucia. Leitu- ra de textos visuais na esco- la. Comunicação apresen- tada no III Encontro Fran- co-Brasileiro de Análise do Discurso. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. * (Fontanille e Zilberberg, Op. cit.) * (BANDEIRA, Manuel. Poe- sia completa e prosa. Rio de Janeiro: NovaAguilar, 1983: 217-218.)
  • 23. 51 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade é passado e assim por diante. A leitura da Profissão de fé, de Bilac,* um poeta que hoje não goza de qualquer favor da crítica universitá- ria, permite apreender o modo de funcionamento real do discurso com suas recusas, aceitações, deslizamentos, ressignificações, reto- madas. É a leitura de um poema de Manoel de Barros, como o que se inicia com o verso “A menina apareceu grávida de um gavião”,* que possibilita pensar os deslimites da referenciação e as possibili- dades, com o processo de figurativização, de criação de realidades na linguagem. O capítulo XV, intitulado “Marcela”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, mostra para nós os processos de tematização e figurativização.* A forma como Riobal- do revela à pessoa com quem conversa seus sentimentos por Dia- dorim e seu verdadeiro sexo obriga a postular uma distinção entre o narrador e o observador.* Manuel de Barros, no poema O apa- nhador de desperdícios,* leva a recusar o caráter utilitário da lingua- gem, mostrando que ela é uma fonte de prazer: Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. Poderíamos continuar a desfiar exemplos para mostrar que a li- teratura tem que estar no coração da reflexão lingüística, tem que ser nutrida por ela, pois não é possível construir uma teoria lingüística * (BILAC, Olavo. Poesias. 19 ed. Rio de Janeiro: Francis- co Alves, 1942: 5-7.) * (BARROS, Manoel de. Re- trato do artista quando coi- sa. Rio de Janeiro: Record, 1998: 77.) * (ASSIS, Machado de. Obra completa.RiodeJaneiro:No- va Aguilar, 1979, v. I: 534.) * (ver, por exemplo, ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 22 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986: 469, 471, 560.) * (BARROS, Manuel de. Memórias inventadas: a in- fância. São Paulo: Plane- ta, 2003.)
  • 24. 52 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIRO-JUNHO 2008 com frases como Maria compra arroz e João passeia pelo Rio de Janeiro. No entanto, resta uma última pergunta: é possível renovar o diálogo entre a lingüística e a literatura, ele tem chance de acontecer? A resposta é pessimista: nenhuma. Para que houvesse uma in- terdisciplinaridade entre as duas áreas, seria preciso disposição pa- ra mudar hábitos intelectuais, respeito pela diferença, abertura pa- ra a alteridade, vontade de abandonar a comodidade de trilhar os sendeiros já batidos. Seria necessário olhar para nossos vizinhos de sala sem desprezo; admitir que, em ciência, não há feudo, não há exclusividade; reconhecer a legitimidade do outro para tratar do assunto em que se é especialista. Entretanto, a ciência desertou de nossas escolas, pois, quando um ponto de vista teórico ou um cam- po do saber são vistos como a totalidade do conhecimento, como a verdade, estamos longe do discurso científico e muito perto do dis- curso religioso. Aí a aventura da interdisciplinaridade some, porque aparecem sumos sacerdotes, dogmas, interdições, excomunhões... A triagem sobreleva a mistura. É isso que vivemos em nossas “igre- jas”, que estão fazendo estiolar qualquer projeto científico. José Luiz Fiorin José Luiz Fiorin é mestre e doutor em Letras (Lingüística) pela Uni- versidade de São Paulo. Fez pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) (1983-1984) e na Universidade de Bucareste (1991-1992). Atualmente é Professor Associado do Departamento de Lingüística da FFLCH da Universidade de São Paulo. Foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2000- 2004) e Representante da Área de Letras e Ligüística na CAPES (1995-1999). Publicou muitos artigos em revistas especializadas e diversos livros. Entres estes, citam-se As astúcias da enunciação, Li- ções de texto, Para entender o texto, Elementos de análise do discurso, Discurso e ideologia, Introdução ao pensamento de Bakhtin. Resumo Depois de mostrar que a interdisciplinaridade é da natureza dos es- tudos lingüísticos, porque a linguagem é multiforme e heterogênea, este trabalho expõe os dois modos básicos de fazer ciência, um regi- do pelo princípio da exclusão e outro governado pelo princípio da participação, que produzem, respectivamente, a especialização e a sua ultrapassagem. A partir daí, discute as vantagens e os problemas da disciplinaridade, apresenta as razões pelas quais hoje a interdis- Palavras-chave: lingüística; estudos literários; interdis- ciplinaridade; multidisci- plinaridade; transdiscipli- naridade.
  • 25. 53 JOSÉ LUIZ FIORIN | Linguagem e interdisciplinaridade ciplinaridade é um universal positivo do discurso e conceitua, com base na etimologia, os termos interdisciplinaridade, multidiscipli- naridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade. Examina os vínculos da lingüística com outras ciências, para terminar traçando um histórico das relações entre lingüística e literatura no Brasil. Abstract Since language is multifaceted and heterogeneous, interdisci- plinarity is natural to linguis- tic studies. In this article, after demonstrating that, I present two basic ways of doing science. One is ruled by the principle of exclusion, whereas the other is ruled by the principle of par- ticipation. The former leads to specialization, whereas the latter leads to the surpassing of spe- cialization. From that, I discuss the advantages and problems of disciplinarity, and present the reasons why nowadays interdis- ciplinarity is a positive univer- sal in scientific and pedagogical discourses. Also, based on ety- mology, I discuss the concepts of interdisciplinarity, multidis- ciplinarity, pluridisciplinarity and transdisciplinarity. Finally, I examine the bonds between linguistics and other sciences, by drawing a brief history of the relations between linguistics and literature in Brazil. Résumé Après avoir montré que l’inter- disciplinarité est de l’ordre des études linguistiques, car le lan- gage est multiforme et hétérogè- ne, cet essai expose les deux fa- çons de faire de la science, l’une régie par le principe de l’exclu- sion et l’autre gouvernée par le principe de la participation. Ces deux principes produisent, res- pectivement, la spécialisation et son dépassement. A partir de là, on discute les avantages et les inconvénients de la disci- plinarité, on avance les raisons selon lesquelles l’interdiscipli- narité est aujourd’hui un uni- versel positif du discours et on définit, en s’appuyant sur l’éty- mologie, les termes d’interdis- ciplinarité, multidisciplinarité, pluridisciplinarité et transdis- ciplinarité. On analyse les rap- ports de la linguisitique avec d’autres sciences et on finit par tracer l’historique des relations entre la linguistique et la litté- rature au Brésil. Key words: linguistics; litera- ry studies; interdisciplinari- ty; multidisciplinarity; trans- disciplinarity. Mots-clés: Linguistique; étu- des littéraires; interdiscipli- narité; multidisciplinarité; transdisciplinarité. Recebido em 15/03/2008 Aprovado em 15/04/2008