Considere a seguinte situação fictícia: Durante uma reunião de equipe em uma...
Monteiro Lobato, racismo e o papel do professor de literatura
1. As discussões sobre a obra de Monteiro Lobato,
principalmente a mais expoente “O sítio do Pica Pau
Amarelo” (1920-1947), versam sobre seu conteúdo
racista. Parece haver um consenso que o autor de
“Urupês” (1918) apresentava um perfil racista em
suas obras, além disso, sua participação na
Sociedade Paulista de Eugenia reforça e faz coro
sobre a acusação. Diante disso, o que fazer com sua
obra? Ela deve ser reescrita ou cancelada,
exterminada de uma vez por todas do cenário da
literatura brasileira?
O objetivo aqui não é amenizar nem ignorar o
pensamento racista apresentado na obra de
Monteiro Lobato, mas propor uma reflexão do
ponto de vista da literatura brasileira,
principalmente do gênero infantil, e debater o papel
do professor de literatura sobre o tema.
Inicialmente, é preciso entender que literatura
tem a função de entreter seu leitor, levantar
reflexões sobre o ser humano, ajudar numa
construção linguística, ser um registro histórico de
um dado momento de uma sociedade, de um povo,
apresentar uma visão de mundo e as lutas do
passado e como tudo isso pode influenciar o futuro
e nossa vida.
O autor que nasceu em Taubaté, interior de São
Paulo, foi o fundador da primeira editora brasileira,
a “Monteiro Lobato e Cia”, antes disso os livros
chegavam no Brasil por meio da importação,
portanto poucas pessoas tinham acesso às obras.
Lobato foi ainda o primeiro escritor a se dedicar à
literatura infantil no Brasil. Polêmico, foi um
grande crítico do movimento Modernista de 1922,
para ele as influências norte-americanas trazidas por
Anita Malfatti representavam um risco para o
desenvolvimento de uma arte genuinamente
brasileira.
O escritor registrava em narrativas suas opiniões
sobre o Brasil, as condições de vida das pessoas mais
humildes e defendia os livros como forma de
revolução de um país. Com o personagem Jeca Tatu,
Lobato fazia duras críticas à política de saúde
pública no Rio de Janeiro, suas histórias tinham o
propósito de conscientizar a população sobre o
problema sanitário, Jeca Tatu foi orientado por um
médico a usar sapatos para evitar doenças, assim o
personagem caipira passou a colocar sapatos nos
animais do sítio, galinhas e porcos passaram a andar
de botinas também. Uma forma didática, criativa e
engraçada de abordar a questão.
“O professor de literatura no ensino
básico tem papel fundamental ao
abordar a obra de Monteiro Lobato,
deve ser de uma forma que proponha a
reflexão do aluno sob todas as nuances
da literatura”
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Monteiro Lobato,
racismo e o papel do
professor de literatura
Por Mieli Rivero Montaño
Jan/2021
2. Na política, Monteiro Lobato também foi
inquieto, o escritor foi preso pelo governo ditador
de Getúlio Vargas por defender o petróleo
brasileiro, sua posição o levou ao comunismo, mas
não à política partidária, pois recusou o convite de
fazer parte do Partido Comunista da época.
Tais observações sobre a biografia de Monteiro
Lobato não são instrumentos para amenizar sua
posição racista e muito menos de invalidar os
argumentos dos movimentos antirracistas que
acontecem no país. Estudar literatura é saber tudo
que o envolve a obra do autor, nesse caso é de
extrema importância discutir sobre como o ser
humano passeia por uma linha tênue entre o dito
“bem” e o “mal”, entender que somos controversos,
complexos, e que há muitos mistérios na mente
humana. Essa deve ser a proposta do professor de
literatura no ensino básico: o pensamento crítico
através da literatura.
O professor de literatura no ensino básico tem
papel fundamental ao abordar a obra de Monteiro
Lobato, deve ser de uma forma que proponha a
reflexão do aluno sob todas as nuances da literatura,
uma abordagem ampla que também inclui o aspecto
racista. O racismo de Monteiro Lobato é parte
preponderante da obra, mas não é o todo.
O que fazer então com a obra de Monteiro
Lobato? Queimar os livros devido à sua posição
racista remete a uma atitude comparada ao nazismo.
Nenhuma obra literária deve ser destruída seja lá
qual for o motivo, como já mencionei, ela é parte da
história de um país. No caso de Monteiro Lobato, o
papel do professor de literatura é apresentar o texto
em sala de aula e propor uma discussão sobre todos
os aspectos aqui exemplificados, inclusive apontar
como ideias absurdas de racismo eram promovidas
sem nenhuma indignação, um registro histórico do
país na época.
Todos os anos, surgem livros sobre Adolf Hitler
mundo afora, se tais obras fossem canceladas ou
censuradas, como conheceríamos a perspectiva
histórico-literária desse momento mundial? Como
propor uma reflexão crítica sobre o nazismo se
houver censura em obras que abordam o tema?
A Bíblia, um dos livros mais vendidos no
mundo, traz em suas histórias o posicionamento de
que mulheres estupradas devem se casar com seus
agressores. Se Houver censura da obra, como
questionar tal posição? É preciso conhecer o
pensamento religioso absurdo de uma época
passada para combatê-la no momento presente.
O livro político mais combatido (e o mais lido) é
o Manifesto Comunista, de Karl Marx. Devemos
queimar a obra? Para combater ou apoiar tal posição
política é preciso conhecê-la minimamente. Muitas
pessoas criticam Paulo Freire sem ao menos ter lido
um capítulo sequer de sua obra. Ignorância pura.
É claro que atualmente um livro que apresente
narrativas de apoio ao racismo deve ter seus direitos
de publicação combatidos, pois é um absurdo
humanitário defender tal posição no mundo de
hoje. No entanto, os livros que já possuem tais
aspectos, aqui necessariamente as obras de Monteiro
Lobato, não devem ser canceladas, censuradas,
queimadas e, principalmente, jamais ser reescrita.
Alguém proporia a repintura do quadro de
Monalisa, de Leonardo da Vince, por não retratar
“padrão” de beleza atual?
Sobre a obra de Monteiro Lobato, o papel do
professor de literatura não é de inquisidor, mas de
um estudioso das letras que procura abordar a obra,
apontar suas diversas nuances e fazer dela um
instrumento contra o racismo estrutural no Brasil.
Qualquer coisa fora disso, é uma forma de censura
sem cabimento, pois além de esvaziar o debate vai
justamente contra a proposta de reflexão que abarca
uma obra literária.
Mieli Rivero Montaño é Educador, Linguista Social,
professor de língua e linguagem, redator e atua com os projetos
“Apreciando Palavras” e “Roda de Leitura de textos Literários”
e futuro Psicólogo.