1. O cachorro dos mortos Ele disse: Tu não sabes
Que meu pai possui dinheiro
Leandro Gomes de Barros Em terras e criações
É o maior fazendeiro?
Os nossos antepassados Ela disse: O meu pai é pobre
Eram muito prevenidos Planta, cria e é ferreiro
Diziam: matos têm olhos
E paredes tem ouvidos Minha mãe tece de ganho
Os crimes são descobertos Nós vivemos de costura
Por mais que sejam escondidos Meu pai vive de sua arte
E de sua agricultura
Em oitocentos e seis Meu irmão é empregado
Na província da Bahia Para que maior ventura?
Distante da capital
três léguas ou menos seria O sedutor conheceu
Sebastião de Oliveira Seus planos serem debalde
ali num canto vivia E só podia vencê-la
Por meio de falsidade
Ele, a mulher e duas filhas Que é a arma mais própria
E um filho já homem feito Aonde existe a maldade
O rapaz era empregado
E estudava direito Saiu dali Valdivino
O velho não era rico Fedendo a chifre queimado
Mas vivia satisfeito E Angelita ficou
Com o coração descansado
As duas filhas eram moças Nem disse aos outros de casa
Bonitas e encantadoras O que tinha passado
Logravam na capital
O nome de sedutoras Ele pensou em forçá-la
Chamavam atenção de todos Mas pensou no resultado
As grandes tranças tão louras Devido o pai de Angelita
Ser muito considerado
Esse velho era ferreiro O filho pelo governo
E ferreiro habilitado Era tão conceituado
Vivia ali do ofício
Plantando e criando gado Exclamou ele consigo:
Por três vezes enjeitou oO! Angelita és tão bela
O cargo de delegado Eu não sossegarei mais
E nem me esquecerei dela
Havia um vizinho dele Farei tudo para vencê-la
Eliaziário Amorim Porém não caso com ela
Esse tinha um filho único
Da espécie de Caim Mas Valdivino temia
Enquanto o espanhol velho O pai dela e o irmão
Até não era ruim Que o governo da província
Tinha-lhe muito atenção
O filho deste espanhol O rapaz era empregado
Era uma fera carniceira E tinha consideração
Veio provocar namoro
Com as filhas de Oliveira Valdivino inda pensou
Uma delas disse a ele: Que matando Floriano
De nós não há quem o queira Podia calçar com ouro
Todo governo bahiano
Ainda que entrasse em júri
Não passava nem um ano
2. Ou poderia matá-lo Passava ali Floriano
Oculto numa emboscada A fera então enfrentou-o
Porque ninguém vendo o crime Disparou o bacamarte
Ele não sofria nada Sem vida em terra lançou-o
Defunto não conta história Calar partiu ao sicário
Estava a questão acabada O assassino amarrou-o
Havia ali um engano As moças lá da fazenda
Entre Vitória e Bahia Ouviram o grande estampido
A divisão das províncias Angelita se assustou
Ali ninguém conhecia Dizendo: O que terá sido?
Sebastião de Oliveira O tiro foi para o lado
Era o único que sabia Que seu irmão tinha ido
O governo da província Angelita convidou
Tendo aquela precisão A sua irmã Esmeralda
Disse um dia a Floriano Dizendo: Vamos aqui
Você vá em comissão A passeio pela estrada
Chamar seu pai para vir Aquele tiro que deram
Mostrar a demarcação Deixou-me sobressaltada
Valdivino de Amorim No sertão naquele tempo
Viu Floriano passar Podia uma moça andar
Escolheu o lugar próprio Passava dois ou três meses
Onde pudesse emboscar Sem nem um homem passar
Dizendo dentro de si: Por isso foram elas duas
Ele não pode escapar Não tinha o que recear
A fera foi emboscá-lo Iam ali conversando
Onde havia uma capoeira Sobre a aragem matutina
Carregou um bacamarte Disse Esmeralda à irmã:
Fez duma árvore trincheira Olha para o céu, menina
Distante um quarto de légua Estás vendo aquelas estrelas
Da fazenda de Oliveira Como têm a luz tão fina?
O rapaz chegou em casa Chegaram aonde o irmão
O velho tinha saído Estava morto na estrada
Foi ver se achava um jumento O criminoso no mato
Que havia se sumido Atirou em Esmeralda
Um amigo lhe escreveu E enfrentou Angelita
Que lá tinha aparecido Dizendo: Não diga nada
O Floriano chegou Angelita muito pálida
Depois que o velho saiu Sem estar esmorecida
Nessa tarde não voltou Vendo os dois irmãos já mortos
Com a família dormiu Por uma mão homicida
Deu o recado à mãe dele Lhe disse: Monstro tirano
De madrugada seguiu Eu morro e não sou vencida
Calar um cachorro velho Ele disse: Angelita
Que Sebastião criou Com tudo isso sou teu
Quando Floriano saiu Foi dar-lhe um beijo nos lábios
Calar o acompanhou E Angelita mordeu
Floriano quis voltar Ele cravou-lhe o punhal
Porém Calar não voltou Ela ali esmoreceu
3. Pondo a mão na punhalada Contudo monstro, perdôo-te
Disse: Monstro desgraçado Porque fui e sou cristã
Aquele velho cachorro A morte do meu irmão
Que está ali amarrado A minha e de minha irmã
Descobrirá este crime Tu hoje matas a mim
E tu serás enforcado Outro te mata amanhã
Olhou para o gameleiro E pondo a mão sobre uma
Que tinha junto a estrada Das punhaladas que tinha
Dizendo: Tu gameleiro Disse a Calar: Se fugires
Viste esta cena passada? Consola a minha mãezinha
És uma das testemunhas E diga-lhe que abençoe
Quando a hora for chegada Os pobres filhos que tinha
Na última agonia Embora que tu não fales
Exclamou: Monstro assassino Pois não te foi concedido
Tirastes agora três vidas Mas um olhar bem lançado
E não sacias o destino? Dá idéia dum sentido
Isso hei de te lembrar Um uivo e um olhar
Perante o juiz divino! Pode ser compreendido
Não julgue que fique impune E ali cerrando os olhos
Este sangue no deserto Quase sorrindo expirou
Tu não vês três testemunhas O assassino olhando
Que estão aqui muito perto Chorando se retirou
Estás perante ao público Depois pensou: Isto é nada!...
Irão depor muito certo Com toda calma voltou
Disse Valdivino: És louca Já estava frio o cadáver
Quem viu o que foi passado? Porém nas faces mimosas
Disse Angelita: Este cão Via-se perfeitamente
Que está ali amarrado Desenho de duas rosas
A gameleira e as flores Como se fossem pintadas
Dirão no dia chegado Por mãos das mais curiosas
Olhou para o cão e disse: Em Esmeralda se via
Olha, meu velho Calar O sangue ainda saindo
Tu dirá tudo ao juiz Vestígio de zombaria
Se ele te perguntar Como quem morre sorrindo
Essa velha gameleira Como criança que brinca
Fica para te ajudar Finge que está dormindo
Essa flor que por ela O rapaz banhado em sangue
Há festa aqui todo ano Bem no meio da estrada
Há de tirar a justiça À esquerda de Angelita
De uma suspeita ou engano À direita de Esmeralda
Dirá ao juiz: Venha ver Com uma mão na ferida
Quem matou o Floriano! E a outra mão estirada
As três vidas que roubaste Valdivino tinha à noite
Pagarás com sua vida Escrito numa carteira:
Tu hás de te arrepender "Eu hoje hei de matar
Depois da causa perdida Floriano de Oliveira
Uma lágrima vertida Se não matá-lo me mato
Será por teu pai vertida Será a minha derradeira"
4. Datou-a e assinou o nome Como não foi seu espanto
Pegou a arma e saiu Quando chegou no lugar
Se encostou num gameleiro Onde achou os filhos mortos
A carteira escapuliu Sem nada ali atinar
Havia um oco da árvore Calar sabia de tudo
Nele a carteira caiu Mas não podia falar
A fera não se lembrou Voltou Maria da Glória
Da testemunha ocular Num triste e penoso estado
Perdendo aquela carteira Já Sebastião em casa
Alguém a podia achar A esperava sentado
Ela na mão da justiça Não sabia da desgraça
Quem poderia o soltar? Que a pouco tinha se dado
Porém uma força oculta Perguntou pela família
Permitiu que ele perdesse Ela não pôde contar
E a mesma força impôs Disse apenas: Morreu tudo
Que dela se esquecesse E apontou o lugar
Para dizer a seu tempo: Estendeu-se para um lado
O assassino foi esse! Sem mais nada atinar
Calar, o velho cachorro Sebastião de Oliveira
Que aquele espetáculo via Foi por onde a mulher veio
Soltando uivos enormes Achou a poça de sangue
Que muito longe se ouvia Os filhos mortos no meio
Rosnava, fitava os olhos Olhou para o céu e disse:
Debalde a corda mordia Oh! Meu Deus que quadro feio
Valdivino ali puxando Foi perguntar à mulher
Um facão muito afiado Como aquilo foi se dado
Descarregou no cachorro Ela apenas lhe contou
Um golpe encolerizado O que tinha passado
Errou e cortou a corda Deixando o ancião
Com que estava amarrado Aflito e impressionado
Valdivino ficou triste Montou num burro e saiu
Vendo o cachorro correr Dali para a capital
Lembrou-se o que Angelita Quando chegou na cidade
Disse antes de morrer Foi ao quartel general
Porém disse: Ele não fala Lá falou mais duma hora
Como poderá dizer? E nada disse afinal
Calar chegou na fazenda Depois de muita insistência
Uivando desesperado O presidente entendeu
Dona Maria da Glória Perguntou por Floriano
Já tinha levantado Ele lhe disse: Morreu..
Quando viu o cão uivando Ele e a família toda!...
Aí cresceu-lhe o cuidado E contou o que se deu
E foi procurar os filhos A justiça foi atrás
Onde ouviu os estampidos Ver o que tinha se dado
Calar foi adiante uivando Encontrou os três cadáveres
Com enormes alaridos No chão em sangue banhado
Dona Maria da Glória Calar inda estava uivando
Ia aguçando os ouvidos Junto dos mortos deitado
5. Foram à casa de Oliveira Eliziário era um desses
Ver se Maria da Glória Abortos que tem havido
Dava um roteiro que ao menos Desses que o pão que come
Se calculasse uma história Considera estruído
Ela contou essa mesma Fazer-lhe o mal é pecado
Que eles guardam na memória Fazer-lhe o bem é perdido
Dona Maria da Glória Esse era fazendeiro
Dois dias depois morreu Porém dali não saía
Sebastião de Oliveira Nem era bem conhecido
Com três dias enlouqueceu No comércio da Bahia
Dentro de duas semanas Só onde vendia lã
Tudo desapareceu Alguém lá o conhecia
A justiça da Bahia E o dono do açougue
Não cessou de procurar Onde ele vendia gado
Espalhou por toda parte O banco onde ele tinha
Secretos a indagar Dinheiro depositado
Não havia uma pessoa Tanto que deu-se esse crime
Que dissesse: Eu vi matar E dele não foi lembrado
Dava dez contos de réis Sentiu e chorou bastante
Na moeda que quisesse A morte do camarada
À pessoa que chegasse E não foi à missa dele
E seriamente dissesse Por não ser de madrugada
Teria mais um terreno Pois só tinha uma camisa
A pessoa que soubesse E essa estava rasgada
Porém o crime se deu Também procurou saber
Quando ali ninguém passava Qual seria o assassino
Calar sabia tudo Não sei se pelo dinheiro
Porque no crime ele estava Ou pelo próprio destino
Se falasse descobria Mas nunca lhe veio na mente
Desejo não lhe faltava Ser seu filho Valdivino
Impressionava a todos Onde deu-se o crime havia
Habitantes da cidade Duas estradas em cruz
Como deu-se aquele crime Diziam que ali se achavam
Naquela localidade Umas flores muito azuis
Floriano de Oliveira Formando uma lapa igual
Todo lhe tinha amizade À do menino Jesus
Atribuiu-se a um roubo Os baianos costumavam
Por algum aventureiro Desde da antigüidade
Mas o rapaz costumava Fazerem uma grande festa
A não andar com dinheiro Naquela localidade
Questão de moça não era Véspera e dia de ano
Ele era justiceiro Ali era novidade
Os moradores de perto Na capital da Bahia
Eram todos conhecidos Não havia outro festim
Compadres dele e do pai Havia missa campal
E por eles protegidos Orquestra e botequim
Tanto que se dando o crime Bailes naquelas latadas
Todos ficaram sentidos Bem cobertas de capim
6. Em oitocentos e nove Então disse o general:
Estava a festa a terminar Isso ainda é descoberto
Um velho que ali passava O crime foi muito oculto
Passou naquele lugar Feito aqui neste deserto
Atrás desse caçador Mas quando chegar o dia
Vinha o cachorro Calar Há de saber-se por certo
Abrigou-se numa sombra Se eu vivo for nesse tempo
Vinha muito esbaforido Serei o algoz mais forte
Foi cheirar o pé da cruz Serei um dos que conduz
Que o senhor tinha morrido Para o teatro da morte
Cheirou a das duas moças Com a minha própria mão
E depois soltou um gemido Amolo o ferro que o corte
Estava ali um general O cachorro ouvindo aquilo
O bispo e o presidente Ergueu-se muito contente
Com o chefe da polícia Foi aos pés do general
Homem muito experiente Festejou o presidente
Todos ficaram daquilo Como quem dizia: O crime
Impressionadamente É punido corretamente
O general perguntou Disse o bispo: Esse cachorro
De quem era aquele cão É testemunha ocular
Respondeu o velho Pedro: Ele viu quem fez as mortes
Este cachorro patrão Só faltava é ele apontar
É do defunto Oliveira Se ele visse o criminoso
Que Deus dê-lhe a salvação Podia lhe denunciar
Este cachorro é o rei Disse o velho: Esse cachorro
Dos cachorros caçadores Fez uma coisa esquisita
Ainda adora o lugar Tinha uma cobra enroscada
Que mataram seus senhores Onde mataram Angelita
Se fosse de madrugada Ele despedaçou-a a dentes
Seus uivos faziam horrores Quase que se precipita
Disse o chefe de policia: Disse o velho: Esse cachorro
Inda não se descobriu Aos pés da cruz se lança
A morte de um patrício Solta um uivo muito triste
Que tanto à pátria serviu Como quem pede vingança
Foi logo nesse deserto Como quem pede debalde
Em horas que ninguém viu Sem ter daquilo esperança
Disse ali o presidente: Nisso chegou um cavalheiro
Se ainda se descobrir Valdivino de Amorim
O autor dessas três mortes Andava fora inda vinha
Eu juro por Deus o punir Ver se alcançava o festim
Serei o carrasco dele Vinha num burro possante
Quando ele à forca subir Alvo da cor de jasmim
Sebastião de Oliveira Assim que o cachorro viu
Era um pobre acreditado Valdivino se apear
A família deu exemplo Rosnou e partiu a ele
O filho um rapaz honrado Querendo lhe estraçalhar
Era um rapaz distinto Só não rasgou-lhe a garganta
Por todo mundo estimado Devido o velho pegar
7. Tremia o queixo e babava Ali trouxeram a carteira
Fitando ali Valdivino Entregaram ao general
Uivava como quem já O bispo disse: Senhor
Tivesse perdido o tino O que lhe disse afinal
Só faltava era dizer Eu não lhe disse que os olhos
— Eis aí o assassino! Só diz o que é legal?
E foi para o pé da cruz Valdivino descobriu tudo
E ali pegou a uivar Em sua interrogação
Fitando os olhos no céu Calar ali demonstrava
Como quem quer suplicar Ter grande satisfação
Como quem dizia: Oh! Deus Pulava um metro de altura
Vens que não posso falar! E rolava pelo chão
O bispo disse: Valdivino Corria escaramuçando
Você está descoberto Como quem estava em folia
O senhor foi autor Festejou o general
Das mortes neste deserto Com demarcada alegria
Aquele cachorro deu Como quem dizia: Nesses
Um depoimento certo Encontrei o que queria
O monstro viu o perigo O povo todo da festa
Fez tudo para negar Quis a Valdivino linchar
O bispo disse: Meu filho O bispo e o presidente
Não há mentira em olhar Tratou de acomodar
Os olhos são verdadeiros Garantindo que a justiça
Não podem nada ocultar Havia de o castigar
Os olhos também se queixam Saiu preso Valdivino
Um olhar diz o que sente Calar o acompanhou
Ameaça ou traição O velho Pedro chamava
Punição severamente Mas ele não escutou
Declara mágoa ou dor Voltou quando Valdivino
Porém o olhar não mente Preso nos ferros deixou
O olhar daquele cão O general ao sair
Está demonstrando a dor Ordenou ao cozinheiro
O sentimento profundo Que desse ao velho Calar
Da morte do seu senhor Um bom lombo de carneiro
Ele só falta falar Porque merecia muito
E apontar o matador Aquele bom companheiro
Naquilo duas crianças O criado deu o lombo
Que estavam em brincadeira Calar nem para ele olhou
Uma delas se trepou Saiu o povo da festa
Num galho de gameleira E o lombo lá ficou
Tirando um ninho de rato O cachorro veio comer
Achou nele uma carteira À noite quando voltou
O leitor deve lembrar-se A mulher de Eliziário
De um verso que aqui já leu Sabendo o que aconteceu
Veja na véspera do crime Deu-lhe um ataque tão forte
O que Valdivino escreveu Que ela no chão se estendeu
E que no oco da gameleira Passou a noite sem fala
A carteira se perdeu No outro dia morreu
8. Juvenal um espanhol Não havia mais recurso
Parente de Eliziário Estava tudo consumado
Chegando lá disse ao velho: O réu dali a três dias
— você é milionário Ia ser executado
Compre três ou quatro médicos Não tinha mais o que apelar
Que provem ele está vario Já tinha sido julgado
Porque ele estando vário O velho quase sem jeito
Não poderá ser julgado Sem nada mais conseguir
O processo fica inválido Tentou o último meio
Não pode ser condenado A fim do filho fugir
Aí o senhor procura Mas só dos degraus da forca
O melhor advogado Podia se escapulir
Eliziário pensou Então soube que o carrasco
Aquilo ser acertado Era um tal de Zeferino
Do contrário Valdivino Um calibre mais ou menos
Ia ser executado Igual o de Valdivino
E tinha toda certeza Tinha os três dons da desgraça
Ele morrer enforcado Covarde, vil, assassino
Dirigiu-se à capital Era um mulato laranjo
Procurou advogado De aspecto aborrecido
Este arrumou cinco médicos O couro da testa dele
Sendo o réu examinado Sempre se via franzido
Provaram que há quatro anos Os cabelos bem vermelhos
Ele era tresloucado Rosto largo e não comprido
O bispo e o presidente Foi o velho Eliziário
Consultaram ao general A esse tal Zeferino
Mandaram vir quatro médicos Ver se ele podia dar
No reino de Portugal Evasão a Valdivino
E fizeram na Bahia Dizendo: Ele pula da forca
Uma junta especial E depois toma destino
Vieram de Portugal Pegue dez contos de réis
Quatro médicos escolhidos Que lhe dou adiantado
Que por dinheiro sem conta E se tiver a fortuna
Não seria iludidos Dele não ser enforcado
Esses homens de caráter Dar-lhe-ei mais vinte contos
Jamais seriam vendidos O dinheiro está guardado
E examinaram o réu Então disse Zeferino
Cada médico de per si — Isso é difícil arranjar
Todos disseram que nunca Porém quando ele subir
Houve tal loucura ali Eu finjo me desculpar
Nem sequer nervoso havia Ele que vai prevenido
Todos juraram aí Trata logo de saltar
Fizeram novo processo Disse Zeferino ao velho:
Depois dele examinado O senhor deve aprontar
E estando pronto o processo Um cavalo bem ligeiro
Valdivino foi julgado Para quando ele saltar
A sentença que pegou Montar-se logo e correr
Foi para ser enforcado Antes do povo chegar
9. Eu hoje direi a ele Foi preso Eliziário
Tudo que está planejado Como autor da evasão
Que cor será o cavalo O povo não o matou
Que há de está selado? Porém foi para a prisão
— Diga que é o poldro branco E o bispo que saiu
Em que ele andava montando Pedindo à população
Valdivino quando soube Era meia-noite em ponto
Esta consulta que havia Valdivino ainda corria
Ficou como uma criança O cavalo já cansado
Chorava ali de alegria Que nada mais resistia
Jurando no mesmo instante E o cachorro Calar
Que Calar lhe pagaria De vez enquanto latia
Então quando chegou o dia Valdivino conhecendo
Estava o povo aglomerado Que nada a ele valia
Valdivino de Amorim E o cachorro Calar
Ia ser executado Seu rastro não deixaria
Tudo ali estava esperando Pensou em suicidar-se
Vê-lo morrer enforcado Só assim descansaria
Presente ao estado maior Dentro do mato apoiou-se
Que vinha presenciar E amarrou o cavalo
Subiu Valdivino à forca Encostou-se numa pedra
Zeferino foi laçar Sentiu alguém acordá-lo
Porém ele se encolhendo Nisto o cavalo espantou-se
Conseguiu dali saltar Ele não soube pegá-lo
E saiu como uma flecha Seguiu por uma vereda
Entre o povo se meteu Descalço e todo rompido
Se montando no cavalo Ouvindo de vez enquanto
Dali desapareceu Calar soltar um ganido
Internando-se no mato Foi sair bem no lugar
Num instante se escondeu Que o crime tinha havido
O povo indignou-se Ele viu a gameleira
Com a fuga de Valdivino Que sombreava a estrada
Um deles que ali estava Floriano de Oliveira
Estrangulou Zeferino Angelita e Esmeralda
Porque este tinha dado Sebastião de Oliveira
Evasão ao assassino E dona Maria prostrada
Porém chegou o cachorro Viu vir uma carruagem
Quase na ocasião Nela vinha um magistrado
Soltou dois ou três latidos Que saudou os três vultos
Saiu de venta no chão Depois de ter se apeado
Sessenta e três praças foram Exclamou: Sangue inocente
Também em perseguição Breve hás de ser vingado!
Porém Valdivino ia Tornou a tomar o carro
Em bom cavalo montando Se montando foi embora
Tinha grande desvantagem Nesse momento Calar
De não ter saído armado Vem com a língua de fora
E Calar no rastro dele Festejou todos os vultos
Gania muito vexado E voltou na mesma hora
10. Um dos vultos chamou ele Veio ali o presidente
O cachorro estacou Que trouxe um pão e lhe deu
Valdivino não ouviu Calar olhou para ele
O que o fantasma falou Cheirou-lhe os pés e gemeu
Só ouviu foi dizer: Volte Botando o pão entre as mãos
E o cachorro voltou Deitou-se e ali comeu
O criminoso pensou Chegou a força do mato
Que ali não escaparia Não trazendo o criminoso
Lembrou-se duma pessoa O general com aquilo
Que morava na Bahia Ficou muito desgostoso
Pois tinha onde ocultá-lo Até o governador
Que nem o cachorro via Ficou doente e nervoso
Era um compadre e amigo O povo ao redor da forca
A quem ele protegeu Só fazia lamentar
Que com dinheiro do pai Que o pai do assassino
Esse tal enriqueceu Deverá se executar
E ia sempre visitá-lo Tudo pedia ao governo
Quando a justiça o prendeu Que o mandasse enforcar
Valdivino calculou: O cachorro levantou-se
Eu o que devo fazer Como quem está chamando
É ir para o quintal Foi à casa de Roberto
Por ali me esconder Na porta ficou uivando
Ou ele ou a mulher dele Olhava para Roberto
Um há de me aparecer Partia a ele rosnando
E saiu o assassino O general com aquilo
Chegando lá se escondeu Ficou bastante nervoso
Não houve ali quem o visse E disse ao governador:
Quando o dia amanheceu Estou muito receoso
O compadre veio fora Que ali naquela casa
E ele lhe apareceu Está oculto o criminoso
Valdivino lhe pediu Então a força cercou
Que não o deixasse morrer Toda casa de Roberto
Disse o velho Roberto: O cachorro só faltava
Eu tenho onde te esconder Era dizer: Está perto
Porém ninguém mais daqui O general disse a ele:
Disso não pode saber O senhor está descoberto
Quatros dias decorriam Roberto ali descobriu
E o assassino escondido Onde o assassino estava
Debaixo dumas madeiras Debaixo das madeiras
Estava ele metido O monstro se conservava
O pai dele na cadeia Foi levado ao pé da forca
Já ia ser concluído Onde o povo lhe esperava
Num dia de quarta-feira Contou tudo que se deu
O velho Calar chegou Antes de ser enforcado
A força ainda estava armada Os vultos que viu nas cruzes
Calar ali a olhou A quem tinha assassinado
Cravando a vista no céu O segredo do cachorro
Um uivo triste soltou E o carro do magistrado
11. Às cinco horas da tarde Saíram cinco ou seis praças
A justiça o enforcou Em procura de Calar
O pai dele estava preso O general tinha dito
Assim que o sino dobrou Não voltem sem o achar
Ali soltando um suspiro Tragam ele direitinho
Na mesma hora expirou Não o façam maltratar
Estando morto o assassino Os praças foram ao lugar
O deitaram sobre o chão Onde o crime tinha havido
O cachorro olhou-o bem Onde a família Oliveira
Chamando tudo atenção Tinha toda sucumbido
Soltou dois ou três latidos Bem no pé duma das cruzes
Que espantou a multidão Tinha o velho cão morrido
Quando a justiça ordenou Tinha posto termo a vida
Pra ser o corpo inhumado O maior dos lutadores
Sobre os pés do general O que em sua existência
Calar caiu mui cansado Viu o horror dos horrores
Talvez querendo dizer Que sem falar descobriu
General, muito obrigado Quem matou os seus senhores
O general foi ver água O general quando soube
Ao cachorro ofereceu Da forma que o tinham achado
Ali o velho Calar Mandou fazer uma cova
Dois litros d'água bebeu E nela foi enterrado
Trouxeram-lhe uma fritada Um dos amigos mais firmes
Porém ele não comeu Que no mundo foi criado
Festejando o general E nas mortes dos senhores
As pernas dele abraçou Ele afirmou ter ação
Dirigiu-se ao presidente Provou que tinha amizade
A mesma ação obrou Ao velho Sebastião
Depois desapareceu A morte só foi vingada
Novo destino tomou Por sua perseguição
Foi direitinho ao lugar Só não fez foi dizer nada
Que o horrendo crime se deu Mas provou por sua vez
No pé da cruz de Angelita Apontou só com a vista
Ele cavou e gemeu O monstro que os crimes fez
O velho Pedro chamou-o Seus olhos diziam ao público
Mas ele não atendeu Esse matou todos três
Deitou-se entre as três cruzes Deitou-se encostado às cruzes
Sua vida liquidou Que tinham edificado
Nas condições dum guerreiro Tinha morrido há três dias
Que da batalha voltou E nem sequer estava inchado
Trazendo os louros de guerra Como quem dizia: Agora
À sepultura baixou Posso morrer estou vingado
O general quando soube Mais de duzentas pessoas
Que Calar era sumido Assistiram enterrar ele
E que fazia três dias Devido à grande firmeza
Que não era aparecido Que tinha se visto nele
Mandou gente procurá-lo Muitas flores naturais
Ficando muito sentido Deitaram na cova dele
12. Agora vejam leitores E só ia para o mato
Quem era o velho Calar Quando o senhor lhe chamava
E como Sebastião
Um dia pôde o achar Depois de terem morrido
Ele tinha cinco dias Os senhores de Calar
O dono ia o matar O pobre cão toda noite
Ia para aquele lugar
Então o velho Oliveira Olhava para as três cruzes
Achou ser ingratidão Levava a noite a uivar
Matar aquele inocente
Embora fosse ele um cão Latia e fitava o céu
Porém disse: A caridade Que causava pena e dó
Não se faz só a cristão Via sangue no capim
Ele cobria com pó
E levou-o para casa Não queria ir para casa
Disse à mulher que criasse Passava a noite ali só
Dizendo: Pode ser bom
Algum dia inda caçasse O velho Pedro dos Anjos
Quando nada da fazenda Vizinho de Sebastião
Talvez os bichos espantasse Achou que aquele animal
Merecia compaixão
De fato, Calar criou-se Chamou-o para não vê-lo
E era um cão caçador Morrer sem ter remissão
Maracajá e raposa
Tinha dele tal pavor O velho Pedro caçava
Que passava muito longe Toda noite com Calar
Da fazenda do senhor Mas ele só ia à caça
Depois que ia ao lugar
Era o vigia da noite Aos pés daquelas três cruzes
Um minuto não dormia Não deixava de uivar
Numa coisa que guardava
O velho cão não bulia Assim morreu o Calar
Só quando os donos lhe davam Ficou também descansado
Era que ele se servia Era um cão porém deixou
O nome imortalizado
A família do Oliveira Morreu depois de livrar
Às vezes a conversar Quem já o tinha livrado
A velha dizia aos filhos:
Esse cachorro Calar Leitor não levantei falso
Tem expressões de pessoa Escrevi o que se deu
Que conhece seu lugar Acreditem que este fato
Na Bahia aconteceu
Em casa do dono ele Depois de lutar então
De noite nada chegava Rolou Calar sobre o chão
Um bacurau que voasse Onde seu senhor morreu
Ele se erguia e ladrava
Do poleiro das galinhas Juazeiro, 19 de janeiro de 1960
Até coruja espantava
Como era muito bom
O dono sempre caçava Retirado do site:
Porém a vizinho algum
A noite acompanhava http://www.jangadabrasil.com.br