SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 88
Artimanhas do Destino
Bought: Destitute Yet Defiant
Sarah Morgan
Paixão 226
Sofisticação e sensualidade em cenários internacionais.
Um siciliano sexy, forte e cheio de cicatrizes... Uma mulher desafiadora,
desobediente e sedutora!
Marcas do passado, no corpo e na alma, denunciavam a vida difícil que Silvio
Brianza tivera. Ao reencontrar Jessie, lembranças de sua infância pobre vieram à tona. E ele
decidiu tirá-la da pobreza. Ainda que limpasse o chão durante o dia e cantasse à noite,
Jessie não estava disposta a ceder tão facilmente à sedução de Silvio. Nem todo o glamour
e luxo do mundo seriam capazes de corrompê-la... ainda que sentisse uma atração
irresistível por ele! Afinal, vestidos caros e diamantes não a fariam esquecer o quanto já
sofrera por causa de Silvio, pois ele era seu inimigo!
Da pobreza ao luxo. Eles construíram a própria fortuna e agora desejam conquistar
as mulheres de suas vidas!
Digitalização: Rita
Revisão: Alice A.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
PUBLICADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V/S.à.rl.
Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a
transmissão, no todo ou em parte.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
vivas ou mortas é mera coincidência.
Título original: BOUGHT: DESTITUTE YET DEFIANT
Copyright © 2010 by Sarah Morgan
Originalmente publicado em 2010 por Mills & Boon Modem Romance Arte-final de
capa: Isabelle Paiva
Editoração Eletrônica: ABREU'S SYSTEM
Tel.: (55 XX 21) 2220-3654 / 2524-8037
Impressão: RR DONNELLEY
Tel.: (55 XX 11)2148-3500
www.rrdonnelley.com.br
Distribuição exclusiva para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil:
Fernando Chinaglia Distribuidora S/A
Rua Teodoro da Silva, 907
Grajaú, Rio de Janeiro, RJ — 20563-900
Para solicitar edições antigas, entre em contato com o
DISKBANCAS: (55 XX 11) 2195-3186/2195-3185/2195-3182
Editora HR Ltda.
Rua Argentina, 171, 4° andar
São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380
Correspondência para:
Caixa Postal 8516
Rio de Janeiro, RJ — 20220-971
Aos cuidados de Virgínia Rivera
virginia.rivera@harlequinbooks.com.br
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
CAPÍTULO UM
Vieram matá-la.
Há dois anos trabalhava no lado miserável da cidade, só isso já servira para lhe
aguçar os sentidos; aprendera a se manter alerta. Olhou ao redor e notou a presença deles
— e eles a notaram. Era um grupo de homens bebendo muito, embora soubesse que isso
agradaria Joe, que sempre aumentava os preços quando os clientes estavam bêbados
demais para reparar. De seu ponto estratégico no palco, vira o dinheiro trocando de mãos,
as garrafas de uísque, os copos vazios e os olhares desfocados, mas continuara cantando,
mantinha voz doce e suave, embora nem todos se dessem ao trabalho de ouvir. Ignorando
o mal-estar, cantou amores e perdas, ciente de que os frequentadores do Joe's Bar sabiam
mais a respeito de perdas do que de amores. Ela também.
Essa existência estava muito aquém dos seus sonhos, mas Jessie deixara de sonhar
aos 5 anos de idade.
— Ei, boneca! — Um homem sentado perto do palco a chamou, balançando uma
nota. — Gostaria de uma apresentação particular. Venha até aqui e cante essa música no
meu colo.
Sem perder o tom, Jessica afastou-se, inclinou a cabeça para trás, cerrou os olhos e
cantou a plenos pulmões o verso final da canção. Enquanto mantinha os olhos cerrados,
conseguia fingir estar em outro lugar. Não cantava para uma multidão de homens
sórdidos, mas num estádio cheio ou em uma casa de espetáculos, onde as pessoas tinham
pagado o equivalente a um mês de aluguel apenas para ouvir a sua voz.
Nessa mesma fantasia, não sentia fome nem remendara seu vestido dourado barato
uma centena de vezes. Sobretudo, não estava sozinha. Havia alguém à sua espera. Alguém
iria buscá-la após o show e a levaria para uma casa aconchegante e segura.
A música terminou. Abriu os olhos. E viu quem a esperava: vários homens, mas eles
não faziam parte de seus sonhos — e sim de um pesadelo aterrorizador. Sabia que tinham
vindo atrás dela. O medo a acompanhava a cada passo, há tanto tempo que se sentia
exausta, ansiosa, cansada de olhar desconfiada por cima do ombro. O último aviso tinha
sido violento, deixou-a ferida em casa por uma semana. Contudo, desta vez, não estavam
ali para dar mais avisos. Sentindo a boca seca e o coração acelerado, lembrou-se que tinha
um plano. E uma faca enfiada na cinta-liga.
Ele se sentou nos fundos do salão, a escuridão lhe permitia um raro momento de
anonimato, logo para ele que sempre esteve sob a luz dos refletores. Na noite anterior,
caminhara pelo tapete vermelho de braços dados com uma estrela. Seu negócio o tornara
bilionário antes dos 30 e ele apreciava a existência privilegiada dos muito ricos, mas já
vivera em lugares como esse — cercado por bêbados, pela violência e por uma constante
ameaça.
Crescera ali. Quase fora sugado pelo submundo até finalmente, graças a muita
garra e determinação, emergir em um mundo diferente. Outro homem talvez preferisse
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
esquecer esses anos, mas odiava qualquer tipo de fingimento e carregava as marcas sem
preconceito, sem justificativas, achando divertido que as cicatrizes visíveis servissem de
atrativo para as mulheres, bem como o seu passado sombrio.
Nada despertava tanto interesse em uma mulher quanto um mau elemento, refletiu
Silvio, sabendo que se elas fossem capazes de enxergar sua alma, teriam saído em
disparada. Tinha consciência de que as mulheres com quem saía gostavam do perigo
imaginado, mas não real. Também sabia que a jovem no palco vivia o perigo a cada passo,
a cada respiração. Não podia imaginar como ela chegara a esse ponto e identificou uma
emoção estranha a ele: culpa.
Por causa dele ela levava essa vida. A tensão aumentou quando ela se moveu seguindo
o ritmo, o sutil movimento dos quadris fazendo o homem ao lado dele deixar cair o copo.
O barulho do vidro no chão era um som familiar e praticamente não despertou a atenção
das pessoas ao redor. Ou talvez estivessem muito anestesiadas pelo álcool para reagir.
Silvio continuou imóvel; o uísque intocado. O copo não passava de um acessório. Sabendo
o que estava por vir, não podia dar-se ao luxo de entorpecer os sentidos. Também sabia
que não adiantava fugir de algo hoje, pois este algo estaria à sua espera no dia seguinte e
ele não precisava adiar o momento crucial como se pudesse acionar um botão de pausa.
Admitia seus erros e encarava um deles agora. Nunca deveria tê-la deixado. Por
mais difícil a situação entre eles, por mais profundo o ódio que ela experimentava por ele,
ele não deveria ter ido embora. A jovem moveu-se graciosamente pelo palco, seduzindo a
plateia, aumentando o batimento cardíaco e as esperanças dos homens na mesma
proporção, os olhos escuros derretidos e a boca molhada prometendo tudo. Ele a vira
crescer. Vira transformar-se de criança em mulher e a natureza não fora apenas generosa
em conceder-lhe dons, mas pródiga. Jessie explorava esses dons cantando com paixão e
sentimento, a voz maravilhosa causando um arrepio ao longo da espinha de Silvio.
Excitou-se ao observar-lhe o gingado, o que o irritou, pois nunca se permitira pensar nela
como mulher. A química que compartilharam lhe era proibida. Algo que nenhum dos dois
jamais explorara ou jamais exploraria.
Ela cantava uma balada lenta, uma censura provocante dedicada a um homem que
lhe partira o coração. Ele estreitou os olhos, sabendo que ela não tivera essa experiência.
Nunca permitira que um homem se aproximasse do seu coração. Fechara-se
emocionalmente quando criança. Apenas seu irmão fora capaz de romper o muro de
defesa construído entre ela e o mundo. Mudando de ideia quanto aos neutralizantes
efeitos do álcool, Silvio pegou o copo. Engoliu a bebida de um trago, o olhar sempre fixo
na jovem no palco.
Os cachos cor de ébano caíam nos ombros nus, as curvas sedutoras do corpo divino
ressaltadas por um minivestido dourado que deixavam à mostra as incríveis pernas e,
literalmente, mais nada à imaginação. Só podia ser intencional. Se um homem estivesse
procurando ouro e descobrisse Jessie, morreria feliz. O uísque queimou-lhe a garganta. Ou
teria sido a raiva? Fora isso o que ela fizera da vida durante a sua ausência? Precisou de
uma enorme força de vontade para não arrancá-la do palco e arrastá-la para fora daquele
antro, para longe daqueles olhos cobiçosos e mentes sórdidas. Mas não queria chamar
atenção. Esta era a última vez em que ela cantava naquele palco, prometeu a si mesmo.
O garçom aproximou-se, mas Silvio recusou outra dose com um ligeiro aceno de
cabeça, o olhar gélido desviando-se da jovem para o grupo de homens em uma mesa perto
da sua.
Conhecia todos eles; sabia o perigo que ela corria. Cometera um erro, pensou
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
irritado, achando que ela ficaria melhor sozinha. Quando ela lhe ordenara desaparecer da
sua vida, devia tê-la ignorado. Mas fora impossível defender-se de suas acusações, pois
tudo que ela dissera era verdade. A boca contraiu-se, ciente de que escolhera a pior noite
possível para voltar à sua vida. Hoje era o terceiro aniversário da morte do irmão dela. E
ele era o responsável por essa morte.
Ciente de que não teria tempo, Jessica nem mudou de roupa. Menos de um minuto
depois de entrar no cubículo que Joe, rindo, chamava de camarim, já saía novamente, um
fino cardigã cobria o vestido dourado, calçava tênis em lugar dos saltos altos. Os pés
doíam, machucados pelos sapatos baratos, mas achara melhor ignorar a dor. Os pés
sempre doíam. Tudo doía. Hoje não seria diferente. O coração batia forte, as palmas das
mãos suavam, mas forçou-se a concentrar-se, sabendo que se deixasse o medo invadi-la,
tudo estaria perdido.
E ela devia isso a Johnny. Saberiam o que representava o dia de hoje ou seria
apenas uma coincidência? Um nó formou-se em sua garganta ao pensar no irmão. Ele
sempre a ajudara, mas quando se metera em confusão, ela não fora capaz de salvá-lo...
Acalentando a raiva, saiu no escuro beco atrás do bar, receosa do que a esperava.
Terminaria ali naquela rua escura entre pessoas que não se importavam se ela vivesse ou
morresse?
— Vejam, se não é nossa bonequinha... — Uma voz masculina saiu das sombras.
Emergiram em grupo, capuzes nas cabeças, os rostos ocultos pela escuridão. — Tem o
dinheiro ou vai nos presentear com uma apresentação particular?
Morta de medo, Jessie conseguiu abrir um sorriso.
— Não tenho o dinheiro, mas tenho outra coisa. Melhor ainda — disse com voz
rouca, suave e cheia de promessas. — Mas vocês não vão ganhar ficando tão longe. — Deu
um sorriso provocante para o líder, convidando-o a se aproximar. — Precisa chegar mais
perto. Um de cada vez.
O homem riu.
— Sabia que você tinha juízo. Por que está cobrindo o vestido dourado? — Saltou
em sua direção.
Jessie obrigou-se a ficar parada e calar o grito preso na garganta.
— Está chovendo. —Abriu o cardigã e viu a satisfação brilhar nos olhos, o cérebro
parar de funcionar. Homens são tão previsíveis. — Estou com frio.
— Não vai sentir frio por muito tempo, boneca. Somos seis para te esquentar. —
Parou diante dela, arrogante, exibindo-se diante dos outros membros da gangue. — Cadê
os sapatos sexy de salto alto? — Ele agarrou o cardigã e arrancou-o, o movimento
rasgando o fino tecido. — Espero sinceramente que não tenha esquecido o salto alto,
gatinha, ou vou ter que puni-la.
— Não esqueci os sapatos — disse, meiga. — Na verdade, estão bem aqui. —
Realmente zangada por ele ter arruinado seu único cardigã, pegou o sapato e enfiou-lhe o
salto fino com força na virilha.
O homem dobrou-se de dor, estatelando-se no chão. Deteve-se um momento,
levemente chocada diante da visão do corpo agonizante, contorcido. Então o sapato caiu-
lhe das mãos e ela correu. Os tênis entravam nas poças, a respiração estourava-lhe os
pulmões e os joelhos tremiam tanto que as pernas não obedeciam direito. Atrás ouvia
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
gritos, palavrões e o barulho de passos. Parecia ser perseguida por um bando de cães de
caça furiosos e a terrível inevitabilidade do fim diminuiu-lhe a força.
Era melhor correr e ser atacada por trás? Ou melhor, virar-se e enfrentar o inimigo?
Queria ver o que estava acontecendo... Então bateu em algo sólido e um par de mãos
fortes a seguraram, interrompendo-lhe a fuga. Ai, meu Deus, um deles conseguira se
antecipar. Não tinha escapatória. Por um único momento, ficou imóvel como um pássaro
assustado preso nas garras de um falcão, e então o som de gritos e dos passos elevou-se e
soube que tinha poucos momentos. O instinto de sobrevivência falou mais alto. Ergueu o
joelho para golpeá-lo, mas esse homem era mais rápido do que ela. Prevendo o
movimento, desviou o corpo. Sem emitir um som, segurou-a pela cintura e a prendeu,
deixando-a sem espaço para manobras. Presa entre as coxas fortes e os músculos de pedra,
tentou desesperadamente, sem êxito, encontrar um ponto fraco. Entretanto, ser agarrada
por aquele corpo másculo despertou uma reação totalmente inesperada nela. Pânico, sim.
Também algo mais íntimo, duas vezes mais assustador.
Jessie tentou se desvencilhar, chocada e horrorizada com a súbita chama que a
possuiu. Devia ter algo a ver com a adrenalina. Algo sobre os momentos finais antes de a
morte deixar seus sentidos mais aguçados. A morte a dominava e ela estava excitada.
Ainda tentava encontrar uma explicação para a inexplicável reação quando tomou
consciência da súbita mudança no corpo masculino pressionado contra o seu. Então o
mesmo acontecia com ele, pensou com um sorriso amargo. Afinal, ele tinha um ponto
fraco... o mesmo de todos os homens. Tirando vantagem disso, cobriu-lhe a masculinidade
com a mão. O choque dele foi ligeiramente maior do que o seu. Ouviu um sibilar entre os
dentes por uma fração de segundo antes de ele afrouxar o aperto. Era tudo de que
precisava. Deu-lhe um soco na cara e voltou a correr.
Pouco mais de três passos adiante, os braços novamente se fecharam nela e a
penduraram como uma boneca de pano.
— Maledezione, nunca mais faça isso! — A voz fria e furiosa encheu-a de terror.
Jessie sentiu um medo muito mais profundo do que jamais experimentara, pois
finalmente reconheceu quem a segurava.
Atônita, olhou o rosto que socara.
— Silvio...?
— Stai zitto! Fique quieta! Não diga nada — ordenou, os dedos apertando-lhe os
pulsos quando os homens os alcançaram.
A mente de Jessie esvaziou-se. Silvio Brianza. Em seguida, imagens explodiram.
Imagens da última vez que o vira. Imagens que banira do cérebro.
— Ei, obrigado por pegá-la. — Esse não era o homem que machucara com o sapato
e Jessie ficou tentando adivinhar se o amigo ainda estaria estirado no beco, contorcendo-
se.
Pouco lhe importava. Deixara de se preocupar com eles. O ar encheu-se de outro
tipo de tensão e suas emoções concentravam-se no homem cujo corpo forte pressionava o
seu. Ao tentar soltar-se, ele urrou de raiva. Gostaria que fosse qualquer um, menos Silvio a
vir salvá-la.
— Solte-me. Não quero sua ajuda.
— Claro que não; você está se virando bem sozinha. — O tom zombeteiro a deixou
ruborizada, sentiu-se humilhada por ser vista nessa situação.
— Deixe comigo — murmurou, sabendo que ele não a soltaria. Silvio Brianza era
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
muito macho para deixar uma mulher lutar sozinha.
Pensar nele como homem foi um erro. Voltou a corar lembrando-se do estado em
que ele se encontrava quando ela colocara a mão nele. Bendita escuridão! Deu uma risada
histérica. Prestes a ser morta, pensava de novo em sexo. Só ele mesmo exercia esse efeito
sobre ela. Sempre a fizera pensar no que não devia.
— Você vai ser morto, Silvio.
— Achei que fosse esse o seu desejo.
A referência ao último encontro a fez estremecer. Quantas noites passara
planejando sua morte enquanto o resto do mundo dormia? Mil maneiras de matar Silvio
Brianza. Era o que queria? Não conseguia raciocinar direito apertada contra seu corpo.
Tudo o que sabia é que o medo sumira. Perto dele, sentia-se a salvo. O que era ridículo.
Nunca estivera menos segura em toda a vida.
— Fora. Ela é nossa. — A voz rude e ameaçadora avisou: — Pode entregá-la e voltar
para seu carro de luxo. Não queremos briga com você.
Carro de luxo? Jessie virou a cabeça e viu a Ferrari estacionada no final do beco. Um
portal para outra vida. A constatação de como Silvio progredira. Ele deixara tudo isso para
trás. Este deixara de ser o seu mundo. Então, o que fazia ali? Por que escolhera justo hoje
para retornar ao passado?
O homem que machucara com o sapato finalmente uniu-se aos amigos, os olhos
fuzilando de raiva e ressentimento. Olhou aqueles olhos esgazeados de droga e viu a
própria morte. Os pensamentos eram estranhamente objetivos ao se preparar para o fim.
Com Silvio ao seu lado, haveria uma briga, mas seria impossível vencerem. Seria rápido o
final? Uma faca? Um revólver? De repente, percebeu que não desejava que Silvio
morresse. Não por ela. Tentou falar, mas Silvio beijou-a — um beijo avassalador. Não
protestou, de tão chocada. Ou teria talvez a falta de reação a ver com os pensamentos
maliciosos dos últimos momentos? Entreabriu os lábios para a boca quente, o prazer
dissipando o medo. Retribuiu apaixonadamente, com tanto ardor quanto ele. Durante
quase toda a adolescência fantasiara esse beijo. Mesmo após aquela noite terrível, quando
seu mundo desabara e a atitude em relação a ele alterara-se irrevogavelmente, ainda
fantasiava o beijo. Mas os sonhos alimentados não chegavam perto da realidade. A boca
deixou-a com a cabeça oca. Porém, se tivesse que escolher um momento para morrer, seria
esse. Em meio à onda de desejo, ouviu o riso abafado dos homens.
— Puxa, que egoísmo — reclamou um deles.
A cabeça ainda girando do beijo, nem notou que Silvio a soltara até ele dar um
passo à frente, saindo das sombras. No movimento, uma ameaça que a deixou ao mesmo
tempo assustada e fascinada.
Ele não falou — permaneceu frio, o rosto lindo não demonstrando qualquer emoção
ao confrontar os homens. E isso, refletiu, era tudo a ser dito sobre Silvio Brianza. Um
guerreiro solitário.
As pernas ameaçavam ceder, se de desejo ou de medo já não tinha certeza. Apenas
sabia que queria gritar, avisá-lo que não morresse por ela, mas os lábios tinham ficado
paralisados pelo toque de sua boca e ela não pensava em mais nada exceto na sensação de
ser beijada por ele. E, então, notou que o roteiro não acontecia como previra. Em vez de
atacar Silvio, o grupo recuava. Haviam perdido a coragem e a intenção de matar e apenas
o encaravam.
A água de uma calha pingava em sua nuca. Jessie estremeceu tentando adivinhar o
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
que ocorria. Por que seis homens recuariam diante de um? Confusa, viu Silvio parado sob
a luz fraca do beco e entendeu o que eles tinham visto. A cicatriz cortando sua face — a
única falha no rosto perfeito. Caso contrário, os traços pareceriam obra de Michelangelo.
Jessie tentou ouvir a conversa, mas os pingos d'água dos telhados abafavam as
palavras que ele dizia e a escuridão impossibilitava a leitura dos lábios. Em determinado
momento, julgou ouvir alguém dizer "o siciliano", mas não podia ter certeza e eles
obviamente não tinham interesse em incluí-la na conversa. Quando teve a ideia de sair de
fininho, todos se voltaram para ela. Jessie ficou imóvel e por um segundo achou que Silvio
se juntaria a eles. Tinha credenciais, bastava tirar as roupas caras. A princípio, ele vivera
entre gente como aquela; fora o chefe da mais temida gangue. Os olhos penetrantes a
fitaram; por uma fração de segundo, ele virou um estranho. Viu o que os outros tinham
visto. E o que viu era aterrorizador. Engoliu em seco. Apesar dos desentendimentos, ele
nunca a machucaria fisicamente. Emocionalmente? Emocionalmente ele havia conseguido
o que uma infância difícil não conseguira.
Ele a deixara em pedaços. Seus olhos percorreram a cicatriz; a respiração parou;
encararam-se. A tensão no ar metamorfoseou-se em algo mil vezes mais perigoso. Sem
quebrar o contato visual, Silvio caminhou em sua direção, assustadoramente calmo. Jessie
desejou avisá-lo que não devia virar as costas para aqueles homens, mas não ousou
romper a tensão que mantém todos imóveis. Quando ele a alcançou, ergueu a mão e
afastou-lhe o cabelo do rosto — gesto totalmente inesperado em situação tão tensa. Um
toque ao mesmo tempo deliberado e possessivo, como uma declaração sobre o
relacionamento. Ela não entendeu nada, pois não tinham mais um relacionamento. Fora
destruído naquele quarto miserável exatamente três anos atrás, diante do corpo sem vida
do irmão. Então ele abaixou a mão.
— Andiamo. Vamos. Entre no carro — ordenou.
Jessie obedeceu não por querer entrar no carro, mas por estar hipnotizada por sua
aura de autoridade, assim como os membros da gangue. Ele dominava aquele ambiente
sem lei com a força de sua presença. Jessie entrou na suntuosa Ferrari como quem entra
em outro mundo. Momentos depois ele entrou e ela não sabia se o ronco vinha do motor
ou das profundezas de sua garganta. Tudo o que sabe era que se enganara quanto a seu
estado.
Ele não estava calmo. Nada calmo. Forçada à proximidade pelo espaço exíguo do
carro, percebia sua luta contra a raiva, o que a desnorteou. Em todos os anos de
convivência nunca o vira assim. Nunca perdera o controle. Nem na noite em que o
relacionamento deles fora por água abaixo.
— Silvio...
— Não diga nada. — A voz tensa não lhe permitiu completar a frase. Sem olhar em
sua direção, manteve os olhos fixos da estrada, acelerando como se competisse pelo título
da Fórmula 1.
Jessie ficou tentada a argumentar que não fazia sentido livrá-la de uma ameaça para
matar a ambos num acidente de carro, mas manteve-se calada. Por que ele? Por que justo
ele tinha que salvá-la? Passado o perigo imediato, os pensamentos se confundiam. A
adrenalina fora diluída por outro hormônio e só pensava naquele beijo. O corpo ainda
trêmulo, quanto mais se lembrava de como correspondera, mais alarmada ficava. Teria ele
notado sua reação? Afundou no assento, torcendo para que ele estivesse distraído demais
para registrar como ela desempenhara seu papel com entusiasmo.
Não tinha vergonha? Como fora possível reagir daquela maneira? Passara três anos
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
odiando-o. O cérebro passava slides — em um minuto lembrava-se de ficar sem fôlego
quando ele a beijou, no seguinte via o rosto do irmão. Chocada, confusa, destroçada,
percebeu que tinha parado de pensar nos seis homens que haviam tentado matá-la.
Definitivamente não fazia sentido. Olhou Silvio de relance. Ele era apenas um homem. Por
que se sentia segura? Conteve uma risada histérica. Por que tal pergunta?
As visíveis marcas de sucesso não o alteraram. O relógio caro, o carro — nada disso
mudara o homem. Sob a fachada sofisticada que lhe permitia frequentar a alta sociedade,
Silvio era puro aço. Duro, a essência de um verdadeiro homem. Sentia-se segura por estar
segura. Fisicamente. Qualquer mulher ficaria segura com ele, apesar de apenas ela
compreender quem realmente ele era. Bastava olhá-lo para ser invadida pela culpa.
Desviou o olhar para trás. Não por achar que alguém seguiria a Ferrari. Seria o mesmo que
mandar um asno perseguir um cavalo de corrida.
— Eles o chamaram de "siciliano". — Incapaz de conter-se, lançou outro olhar ao
perfil. Obedecia a uma compulsão irresistível. — Faz tanto tempo que deixou para trás
essa vida e, no entanto, sua fama ainda os assusta. Conheciam você. — Olhou-o fascinada,
perguntando-se o motivo de não sentir medo dele.
Seria por não poder ver a cicatriz? Desse ângulo era invisível, as feições perfeitas.
Perfeitas, mas frias. Até aquela noite, diria que ele nada sentia, embora tivesse sido
evidente que sentia alguma coisa. Perguntou-se por que ele estava tão zangado.
— Por que veio aqui hoje?
— Ouvi um rumor sobre um grupo da pesada e uma garota com voz de veludo. —
Mudou a marcha, fez uma curva fechada e acelerou tão rápido que a cabeça de Jessie
bateu no assento.
— Eu não estava procurando confusão.
Os olhos dele estavam fixos na rua londrina.
— Quanto ele devia?
Jessie deu um sorriso sem graça, embora nada surpresa por ele conhecer a verdade.
Não perdeu tempo fingindo não ter entendido. Nem perguntou como ele sabia. Ele sabia
tudo. Tinha contatos em todas as camadas da sociedade — uma rede que faria tanto os
alpinistas sociais quanto a polícia morrer de inveja.
— Quarenta mil — disse sem rodeios, na esperança de que o valor não, soasse
exagerado. — Era o dobro disso, mas eu já paguei metade. O resto do pagamento está
atrasado. Por isso vieram atrás de mim hoje. — Não lhe deu maiores detalhes. Mas ele
sabia. Conhecia a fome, a violência e a privação. Um segundo antes de controlar-se, ela viu
o brilho de raiva em seus olhos.
— Você pagou? — A pergunta saiu sibilante, lembrando-a que este homem era
duas vezes mais perigoso do que aqueles de quem a resgatara.
— Eu não tinha escolha.
Mudou a marcha com violência.
— Mas podia ter procurado a polícia.
As ruas escuras passavam voando. Será que ele não percebia que ultrapassara um
sinal fechado?
— Isso só pioraria a situação.
— Para quem? Cidadãos cumpridores da lei não deviam temer a polícia. Ou tinha
medo de ser presa? — O desprezo na voz a desnorteou até perceber o olhar passando de
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
relance por suas pernas desnudas. Então viu a fúria e entendeu o significado da raiva.
Ele achava que ela... Por isso estava tão zangado? Jessie ficou tão chocada que, por
um momento, não conseguiu responder.
— Que tipo de trabalho você imagina que eu faço?
— Presumivelmente o mesmo que as outras garotas naquele cabaré.
Achava que ela era prostituta.
Encostou a cabeça e começou a rir. Ou ria ou chorava e não havia chance de chorar
na frente desse homem. Derramara todas as lágrimas na solidão.
— Você acha engraçado? — Pisou ainda mais fundo no acelerador. Por que ela se
importava tanto com o que ele pensasse dela?
— Uso o que Deus me deu. O que há de errado? — Coisa mais estúpida de dizer.
Provocativa, vulgar. Como um pedaço de carne diante de um lobo faminto. Tão logo
emitiu as palavras, arrependeu-se. Tarde demais. Tarde demais para que tudo fosse
diferente entre eles.
Tarde demais para desejar que o passado não existisse. Talvez fosse mais seguro. Se
sua opinião era essa, melhor para ambos. Assim ficariam protegidos da química entre eles,
funcionando como um campo de força. Ela não queria. Ele não queria. Ele parou o carro
abruptamente. Jessie encolheu-se diante da fúria em seus olhos.
— Se estava tão desesperada por dinheiro, podia ter me procurado. Não importava
o que tivesse acontecido entre nós. Nada importava. Você estava em dificuldades, deveria
ter me contatado.
— Você seria a última pessoa no mundo a quem eu pediria ajuda. — As palavras
saíram num sussurro, abalada demais para ser mais convincente.
Auto depreciação mesclada a uma desesperada nostalgia a deixaram assustada.
Não queria se sentir assim.
— O orgulho pode matar.
— Não se trata de orgulho. Mesmo que quisesse entrar em contato com você, não
saberia como. Não o conheço mais. — Nem a si própria. — Você está sempre cercado de
pessoas chiques e seguranças, embora eu não entenda a razão dos guarda-costas. —
Voltou-se para fitá-lo e de pronto desviou o olhar, pois bastou ver-lhe a boca para lembrar-
se daquele beijo. — Qual o porquê dos seguranças? Você não precisa de ajuda. Ou está
preocupado em sujar seu terno caro?
— Não mude de assunto. Preferia realmente morrer a me procurar? Está falando a
verdade?
Jessie olhou à frente, surpresa ao perceber que tinham estacionado perto do seu
prédio.
— Sabe a razão de não ter procurado você.
— Si, sei. Você me odeia. — O tom era indiferente, mas continuava apertando o
volante. — Você me culpa por tudo.
—Não por tudo, apenas por aquilo. Sabe que dia é hoje?
A voz tremeu de emoção. Os olhos dele faiscaram.
— Como poderia esquecer essa data? Ajuda saber que eu me culpo tanto quanto
você? — A chuva desabou, embaçando a visão.
Feito lágrimas, pensou vendo a água escorrer pelo vidro dianteiro.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Não, não ajuda. — Nada ajudava.
A lembrança daquela noite pairava como uma nuvem ameaçadora anunciando a
tempestade. Jessie soltou o cinto de segurança e abriu a porta do carro, compelida a fugir
das lembranças e da conversa indesejada.
— Obrigada pela carona. — Não disse "até em casa" porque não pensava naquele
lugar como casa. Era apenas o lugar onde dormia por enquanto. Até se mudar, como o
fazia regularmente.
Chovia muito, o piso escorregadio estava cheio de detritos, os grafites nas paredes
brilhavam sob a lâmpada do poste. Sentiu-se ridícula ali parada, encharcada até os ossos
em seu vestido dourado barato. Diminuída, perto dá Ferrari e do bilionário. Jessie, a
prostituta. Era isso o que parecia? Adeus às fantasias de cantar em estádios lotados ou
casas de espetáculos. Tão distante do sonho como a mulher comum cantando enquanto
segura o secador de cabelos. Tão distante quanto ela do homem que saía do carro.
Os olhos dele brilhavam na luz amortecida. Ignorando a chuva, Silvio tirou o casaco
e protegeu-lhe os ombros. Cobriu cada milímetro do seu corpo, como se não suportasse
vê-lo.
— Você se dá conta de que este é o último lugar no mundo onde uma mulher
normal andaria sozinha à noite?
O casaco a cobria, quase roçando o chão, cobrindo-lhe as mãos.
— Eles andaram me seguindo. Não sabem que moro aqui, mas preciso me mudar.
— Enrolou as mangas, tentando encontrar as mãos. Nesse instante, ficou paralisada,
defrontada com a verdade.
Ele sabia que ela morava ali. Empalideceu. Fitou-o horrorizada.
— Você não perguntou onde eu morava. — A voz não passava de um sussurro
entrecortado. — Como sabia?
— Eu me encarrego de saber de tudo. E se eu sei, pode ter certeza que aqueles
animais também sabem. Calculo que temos menos de dez minutos para retirar suas coisas
antes que eles cheguem aqui. Ande!
CAPÍTULO DOIS
Térreo. Ela morava no térreo. Silvio permaneceu imóvel, louco de raiva, enquanto
ela abria os trincos da porta. Sabia que a habilidade em controlar as emoções era o que o
separava dos animais deixados para trás, mas naquele momento sentia-se igual a eles. O
que ela lhe dissera? Uso o que Deus me deu. Lembrando-se do modo despreocupado com
que falara, afastou-se, incapaz de falar ou sequer olhá-la. Revia Jessie criança, agarrada ao
irmão, sem compreender onde fora parar sua confortável vida familiar. Não conseguia
conciliar essa visão de vulnerável inocência com a realidade — continuava vendo Jessie no
vestido colante dourado, usando o que Deus lhe dera.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
A inocência desaparecera. Soubera no momento em que a beijara e ela
correspondera: fogosa, desinibida. Só a lembrança causou imediato impacto em seu corpo.
Silvio xingou em italiano, exasperado com sua inabilidade de apagar essa parte. Sabendo
que sua prioridade era tirá-la dali, respirou fundo e obrigou-se a concentrar-se no que era
importante. Salvar-lhe a vida. Voltando-se, viu que ela tremia debaixo do casaco dele, mas
sabia não poder ajudar. Embora ela vendesse seus favores, instintivamente soube que se a
tocasse arriscaria acrescentar outra ferida à que doía do lado direito do rosto. Não se
surpreendera por ela saber bater. Ele lhe ensinara. Ela abriu o último trinco e empurrou a
porta.
— Lar, doce lar. Agora pode ir. Obrigada pela carona.
— Não vou a lugar nenhum. — Eram um alvo perfeito na entrada mal iluminada e
ele não a deixaria ali.
Silvio observou a pintura intacta da Ferrari preta, o carro tão visível e deslocado
quanto uma nave especial num parquinho.
— Se está preocupado com seu brinquedinho, vá brincar — disse debochada.
Ele a empurrou, plantando-se diante dela.
— O que está fazendo? Não convidei você para tomar café, se é isso que pretende.
Ganhou um beijo de graça. É tudo o que vai conseguir. — A bravata escondia um oceano
de medo. Quanto tempo demoraria a admitir estar apavorada?
— Aquele beijo salvou-lhe a vida. — Mesmo que ao preço da estabilidade mental
dele.
Dando o que supôs ser a última olhada em seu carro, entrou no apartamento,
sabendo exatamente o que encontraria. Passara grande parte da infância em lugares como
esse — grades na janela, trancas na porta, a caixa de correio inutilizada, pois das coisas
que colocariam em sua porta, certamente não estaria incluída uma carta. Voltar ali era
mais difícil do que estava preparado para admitir, mesmo a si próprio. Úmido, pequeno;
em menos de cinco segundos, verificou não ter ninguém ali. Fechando as cortinas e
trancando a porta, virou-se.
— Você não devia morar no térreo. — Tão logo falou, veio a vontade de morder a
língua. Justo ele devia saber o motivo pelo qual ela escolhera esse andar.
Arrependido, apertou as têmporas. Palavras sensíveis não lhe ocorriam com
frequência, mas tinha certeza de que poderia ter feito melhor se não estivesse distraído.
Antecipando-lhe a reação, fitou-a e ela o encarou, os olhos escuros lagos de desafio.
— Sé quer que eu rasteje, está perdendo tempo. Sou dura na queda.
Silvio balançou a cabeça, sem saber se ria ou a estrangulava.
— Não temos tempo para você rastejar. Tem quinze minutos para pegar o que é
importante. Depois, vamos nos mandar. — A visão do vestido dourado anuviou-lhe o
cérebro. Desviou o olhar. O fato de precisar fazer isso mostrou que ele estava à beira do
precipício.
Pensando melhor, devia ter encontrado outra maneira de garantir-lhe a segurança
sem beijá-la. Nunca antes perdera o controle e sabia que se a visse naquele vestido sexy
começaria a pensar o mesmo que todos os outros homens ao olhá-la. Quantos deles a
teriam acariciado? E por que esperara três anos para procurá-la? Por que achara que ela
ficaria melhor longe dele? Aparentemente inconsciente do seu tormento, ela fez menção de
pegar algo na estante. O casaco escorregou dos ombros e o movimento do corpo permitiu-
lhe vislumbrar a liga. E algo mais. Irritado, deu um passo à frente e enfiou a mão debaixo
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
do vestido, ignorando-lhe o insulto. Recuou com a faca na mão.
— Maledezione, o que é isso?
— Uma faca. Parece até que nunca viu uma antes!
— Não devia carregar isso. — Os dedos brincaram com a lâmina. — Se eu não
tivesse aparecido.
— Eu teria usado a faca se precisasse.
Pensar no que poderia ter ocorrido, caso ela tivesse puxado a faca, gelou-lhe o
sangue. Quase a perdera. Um coro de latidos do lado de fora o lembrou que não tinham
tempo para reflexões ou recriminações. Guardou a faca no bolso e pegou o casaco do chão.
— Pegue um casaco. Você deve ter um. Apresse-se. — Tinha sido tolo em deixá-la
voltar ao apartamento, mas em seguida lembrou-se de que precisavam do seu passaporte.
— Não entendo a pressa. Vai demorar um tempo até encontrar outro lugar para
morar. — Abrindo o armário, pegou uma caneca e estendeu-lhe. — Quer água? Não posso
lhe oferecer café, pois o gás e a eletricidade foram desligados semana passada.
— Você perdeu 30 segundos de tempo para juntar as coisas — resmungou,
espiando pela janela e vendo o piso de concreto que conduzia aos apartamentos. A área o
fazia tremer. Quantas vezes ela arriscara a vida atravessando aquela rua imunda e deserta
tarde da noite?
— Tomo isso como um não. — Dando de ombros, colocou a caneca na mesinha.
Silvio franziu o cenho ao ver as queimaduras nas articulações dos dedos.
— Tinha esquecido da sua mão.
— Minha mão vai bem. E o seu rosto?
— Também. — Lutando contra emoções que julgava esquecidas, abriu a pequena
geladeira deparando com as prateleiras completamente vazias. — O que você come?
— Costumo comer fora — respondeu alegremente, a figura muito magra contando
outra história. — Não consigo passar uma semana sem jantar pelo menos uma vez num
restaurante cinco estrelas do guia Michelin.
Ignorando-lhe o sarcasmo, lembrou-se que sua prioridade era tirá-la daquele lugar
e não classificar as deficiências da sua dieta.
— Onde fica o freezer?
— Não tem. Vai ter que tomar gim-tônica sem gelo. Sinto muito pelo inconveniente.
Se a situação não exigisse presa, teria admirado sua coragem. Quem sabe ela não
tinha consciência do perigo que corria? Então ele viu as olheiras. Sim, ela tinha consciência.
O fato de estar terrivelmente assustada, o atingiu. Suas escolhas de vida voltavam para
assombrá-la e o remorso o invadia porque se ele tivesse permanecido ao seu lado, tudo
teria sido diferente. Ele achara que partir era o melhor que podia fazer por ela. Ao vê-la,
sabia ter sido o pior.
— Outro minuto perdido. Esqueça o gelo. Pensamos nisso quando chegarmos ao
meu apartamento. — O machucado na mão estaria pior, mas teria de encontrar outro meio
de lidar com isso. Melhor do que continuarem nessa tensão.
— Não vou com você. — Voltou-se, encheu a caneca e sedenta, tomou toda a água,
mas a mão tremia. — Suma da minha vida.
— Fiz isso antes. Não funcionou muito bem, certo?
— Funcionou perfeitamente para mim.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Voltei, Jessie, queira ou não.
— Você não pode pagar meu preço, Silvio. Pode ser rico, mas não faço parte da sua
turma. —A alusão ao seu estilo de vida duvidoso o encheu de raiva. Teve vontade de
empurrá-la na parede e obrigá-la a contar por que deixara isso acontecer. Mas já conhecia
a resposta.
Ele era responsável. Por causa dele, deixara de gostar de si. Por ele ter se deixado
mandar embora, ela não fora capaz de se proteger. A culpa o arrasou, mas afastou-a
sabendo que o sentimento não levaria a nada. O importante era seguir em frente, como
sempre vivera.
— Mais trinta segundos perdidos. Espero que você leve poucas roupas quando
viaja. — Silvio espiou pelas frestas da cortina.
A primeira visão foi do seu carro cercado por uma pequena multidão. A segunda,
uma van preta amassada, sem luzes parada na extremidade da rua.
Soltou um palavrão em italiano.
— Acabou o tempo, Cinderela. Pegue seu passaporte.
— Já disse. Não vou com você.
—Anda! — Ela estremeceu. — Vamos antes que nossos miolos espalhem-se em sua
parede. Mova-se.
— Eu...
— Então me ajude, Jess, minha reputação não vai nos proteger por muito tempo.
Precisamos de algo mais concreto. Se disser mais uma palavra, eu mesmo acabo com você.
— Distraído pelo decote do vestido dourado, encontrava dificuldade em se concentrar. —
Pegue seu passaporte!
— Eu não tenho passaporte. Foi você quem passou a fazer parte ao jet set, não eu! —
berrou, as faces coradas, os olhos desafiantes. — Para que eu precisaria de um passaporte?
Viagens internacionais não fazem parte da minha lista de prioridades.
Consciente da vulnerabilidade revelada em tal confissão procurou uma resposta
sensível, mas retorquiu com praticidade.
— Eu consigo um passaporte para você.
— Já disse, não vou...
— Ou, vem por livre e espontânea vontade ou eu a arrasto. Você decide.
— Chama a isso escolha? — A porta de um carro bateu e ela pulou. Ele percebeu-
lhe o terror.
— Acabou a discussão. — Agarrou-lhe o punho, mas ela resistiu.
— Espere, preciso de uma coisa... — desvencilhando-se, correu e tirou uma caixa de
sapato do armário.
Desviando os olhos das coxas, espreitou pela cortina e viu as portas da van abrindo.
Seis homens. Os mesmos seis. Pegando o celular, fez uma ligação que durou no máximo
cinco segundos. Tentou tirar a caixa de sapatos da sua mão, mas ela a defendeu como uma
leoa aos filhotes, de tal forma que os nós dos dedos ficaram brancos e a tampa amassada.
— Não sei o que tem nessa caixa, mas não vale a pena arriscar a vida por ela. A
janela do banheiro abre? Tem uma saída nos fundos? — Devia haver, pois Jessie não
viveria num lugar sem várias saídas.
— Por aqui. — Desapareceu atrás de uma porta.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Silvio a seguiu, batendo com a cabeça na soleira e entrando no banheiro minúsculo
que vira ao procurar por intrusos. Mal tinha espaço para um, quanto mais para dois.
Ela não voltaria ali, prometeu a si mesmo. Jessie empurrou a janela e pulou. Caiu na
grama, o movimento permitindo-lhe outra visão das pernas maravilhosas. Ele passou pela
janela, segurou-lhe a mão e correram para frente do prédio. Ela estancou.
— Por aí não. Eles estão esperando por nós.
— Eles entraram. — Ouvindo o estilhaçar da madeira, pegou-a nos braços e
carregou-a na direção do carro no exato momento em que se ouviram as sirenes dos carros
da polícia. Ainda agarrava a caixa de sapatos e o cabelo roçava-lhe o rosto, o perfume
fazendo as lembranças atiçar seus sentidos.
— O que tem nessa droga de caixa, Jess?
— Coisas. Silvio, me bote no chão e dê o fora daqui... Você não vai querer se
envolver nisso. Não precisa desse tipo de manchete em sua nova vida. Me deixe em paz.
Foi a primeira vez que reconheceu Jessie — a jovem gentil, atenciosa, aterrorizada
que conhecera quando ainda era um adolescente desajustado.
— Não vou deixar você de novo. Acostume-se à ideia. E com um passado como o
meu, é um pouco tarde para me preocupar com o que a mídia vai publicar. — Abriu a
Ferrari e sentou-a, ainda agarrada à preciosa caixa de sapatos.
O movimento foi brusco demais para o vestido barato e a costura abriu, testando-
lhe o controle diante da exposição da calcinha sexy. Decidindo preferir defrontar-se com
um revólver, recuou e bateu a porta. Sem olhar para trás, entrou no carro e acelerou,
abandonando o passado, os olhos fixos à frente.
Algo macio pressionado em sua face. Sentia-se bem aquecida. Se isso era o paraíso,
era fantástico.
— Jessie, pode me ouvir?
Assumiu que deveria responder, mas estava tão quentinho, tão confortável... Não
queria se mexer. A voz parecia zangada e ela preferia permanecer entre as nuvens
protetoras do sono, onde nada poderia atingi-la.
— Maledezione, devia ter tirado esse vestido molhado. Ela está dormindo há muito
tempo.
— Pode ser o choque, chefe. Está bem agasalhada pelas cobertas. Quer que eu
chame um médico?
—Não, ainda não. —A voz firme, zangada novamente. Só que desta vez havia um
toque extra no tom frio.
Preocupação? Teria dormido tanto? Com certeza não. Nunca dormia. Apenas
cochilava, mantinha-se acordada pelos pensamentos atormentados e a constante ameaça
de perigo. Flutuando entre o sono e o despertar, percebeu que tinha dormido por ter se
sentido segura. Pela primeira vez, há tempos, sabia estar a salvo. Abriu os olhos e
encontrou os dele. O coração se entregou naquele único olhar e viu uma chama arder. Não
se ouvia um som no quarto. Nada, exceto o pulsar do seu corpo e a respiração profunda de
Silvio.
E então ela lembrou-se. Lembrou-se o porquê de não poder sentir-se assim. Ele afastou-se
instantaneamente, o contrair da boca a única indicação de ter lido seus pensamentos.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Tem um banheiro bem ali. — O tom era neutro. Gesticulou mostrando um arco.
— O quarto de vestir fica ali. Pode pegar qualquer roupa que sirva em você. Quando tiver
se lavado, conversaremos.
— Quarto de vestir? — Jessie sentou-se, percebendo que o calor e o conforto
vinham do cobertor de veludo berinjela.
Debaixo da coberta, ainda vestia o minúsculo vestido dourado e perto dela, estava a
caixa de sapatos. Com um suspiro de alívio, abraçou-a. Silvio a observou por um longo e
perturbador momento, e um homem apareceu na entrada.
— Sim?
— Inspetor-chefe Warren no telefone. Disse ser urgente.
— Eu ligo de volta. — Voltou-se para ela, que o fitava, incrédula.
— Você chamou a polícia?
— É para isso que são pagos, Jess. Para lidar com o crime. Preciso retornar a ligação.
— Olhou o relógio. — Se precisar de algo, chame. Estarei aqui fora.
— Não, espere, não podemos ficar aqui. Se sabiam onde eu morava, então
provavelmente nos seguiram. Eles são perigosos... — O pânico expandiu-se como as asas
de uma borboleta aprisionada e os lábios dele curvaram-se num sorriso sardônico.
— Eu também sou perigoso — disse, baixinho. — Ou já esqueceu?
Esquecera tudo e os olhos ergueram-se para o rosto bonito e frio.
— Você usou a polícia como tática para afastá-los por um tempo, mas não vai
funcionar para sempre. Eles querem dinheiro, e querem... — Não conseguia articular o
resto da frase. Nem precisava, pois ambos sabiam a que se referia.
Os olhos faiscaram; virou-se bruscamente e caminhou para a janela, parecendo
inquieto.
— Se não pode nem dizer a palavra, talvez seja melhor considerar mudar de
profissão.
Deveria tê-lo corrigido, mas não quis. Que pensasse... Sua repulsa e desprezo
ajudariam a criar a distância de que ela necessitava.
— Que lugar é esse? — Olhou o quarto espaçoso e luxuoso. — É um hotel? Bem
esperto. Eles não me procurariam num lugar chique como esse.
— É o meu apartamento — respondeu sem virar-se. — E você está deitada na
minha cama.
Seu apartamento? Sua cama? Tentando não pensar na parte referente à cama,
engoliu em seco, odiando-se por ser tão idiota. Por não saber que apartamentos grandes
assim existiam. Sentindo-se desajeitada e nada sofisticada, deu de ombros, indiferente.
— Então os negócios devem estar dando certo, se pode pagar um lugar desses.
— Os negócios vão bem.
Jessie afastou o cabelo dos olhos. Podia apostar que ele nunca recebera alguém
como ela no chique apartamento. Era um domínio masculino. Nada feminino. Nada rosa,
nenhum babado, nenhuma concessão a detalhes delicados. Era sofisticado e caro, luxuoso.
E surpreendentemente minimalista.
Os cantos da boca ergueram-se.
— Achei que não pudesse viver sem seus aparelhos. Cadê a TV de tela plana?
— Escondida. Por quê? — Finalmente voltou-se, a expressão desprovida de
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
emoções, os olhos escuros sem revelar seus pensamentos. — Quer assistir a algum
programa?
— Não. — Os olhos fixaram-se na moderna lareira ao fundo. Embora não estivesse
acesa, ficou sem ar, obrigando-se a respirar com calma, sabendo que seus olhos estavam
fixos nela. Observando. — Estilosa. — Murmurou a palavra entre os lábios secos e ele
meneou a cabeça, aparentemente satisfeito com o comentário.
Impressionada com a dificuldade em ocultar seus sentimentos, lembrou-se de
manter a cautela. Ele a conhecia bem demais.
— Essa é mesmo a sua casa?
— Uma delas.
Jessica tentou imaginou ser dona de um lugar desses e deu um sorriso esquisito.
Não podia estar mais deslocada se ele a tivesse deixado na selva em seu vestido dourado
barato. Na verdade, provavelmente se sentiria mais segura na selva. Afinal, costumava
viver entre animais selvagens. Mas isso? Olhou o quarto espaçoso... Um ambiente
extraterrestre.
— Não precisa se sentir desconfortável, Jess.
— Quem disse que estou? — As palavras saíram desafiantes. Tolice, pois ambos
sabiam que mentia.
Suspirou.
— Nem precisa ter medo.
— Não estou com medo.
Estava aterrorizada. Não do grupo de homens decididos a derramar seu sangue, nem
mesmo deste apartamento pretensioso. Ele a assustava. Seus sentimentos por ele.
Sentimentos misturados, complexos, sinistros... O destino fora cruel ao enviá-lo como seu
salvador. De repente, soube que não podia ficar mais tempo na cama — na cama dele.
Afastou a coberta e silenciosamente passou por ele, sentindo os olhos acompanhando-lhe
cada movimento. Não deveria se incomodar. Homens faziam isso. Olhavam. Aprendera a
lidar com isso e deixara de se preocupar. Às vezes era mesmo útil, pois significava gorjetas
mais gordas. Desta vez era diferente. Esse homem era diferente.
— Onde estamos? — Não estava interessada em onde estavam, mas olhou pela
janela, pois assim podia concentrar-se em outra coisa que não no homem.
Levou um minuto para reagir ao ver que a vista era muito diferente do que
esperava. Era a vista de um apartamento de um homem rico— Londres em seu melhor, as
luzes cintilantes, uma cidade vibrante vestida para um encontro glamouroso, usando
diamantes. Seu mundo. Abaixo, o rio Tâmisa serpenteava. Jess soluçou e recuou. Como se
esperasse por essa reação, segurou-lhe os ombros e a manteve firme.
— Está tudo bem.
O pânico a sufocou, buscou o ar, vacilando entre a sanidade e a histeria.
— Não é certo, não é certo, Silvio! Você me trouxe para o último andar! — A voz
ficou aguda; ofegava. — Como pode fazer isso? Como? Preciso sair daqui! — Tentou
desvencilhar-se, mas os dedos se cravaram em seus braços e ele a sacudiu devagar.
— Jess, ouça. — A voz era autoritária, o aperto a impedia de correr. Ela teria ido
para a sacada se tivesse chance e ele sabia disso. — Você não está presa. Está a salvo.
Ouvia um rugido em seus ouvidos; tapou a boca com a mão, respirando tão rápido
que o mundo começou a girar. Ouviu Silvio resmungar baixinho, conduzi-la pelo quarto e
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
abrir uma porta. Diante dela, um escorrega sinuoso de metal, como num playground. Ela
olhou com olhos vazios e ouviu-o suspirar.
— Se sentar aí, estará no térreo em menos de quatro segundos. Eu mesmo o
desenhei.
Ainda segurando-a pelo punho, levou-a de volta à parede de vidro de onde se via o
rio. Apertou um botão e a parede se abriu.
O ar frio e a chuva a fizeram arfar, mas ele puxou-a para a sacada e fez um gesto.
— Escadas. — O tom era decidido, o olhar coercitivo, ao tentar penetrar no terror
que a consumia. — Neste quarto há três saídas. Você me entende, Jess? Três saídas. Tem
outras nove no resto da casa. É impossível ficar presa aqui.
Outra pancada de chuva tornou o vestido dourado barato um trapo encharcado.
Tremia de frio, mas acenou. Ele levou-a para dentro, pressionou novamente o botão e mais
uma vez o mundo lá fora sumiu e a parede de vidro fechou-a num casulo de luxo e calor.
A humilhação inundou-a.
— Desculpe...
— Jessie, você foi tirada de uma casa em chamas quando tinha 5 anos. Não me peça
desculpas. Sei o porquê de morar no térreo, não gostar de prédios altos, mas está a salvo
aqui. Eu sei que não é o térreo, mas não tem como ficar presa. Confie em mim.
Ele era o último homem no mundo em quem queria confiar, mas que escolha lhe
restava? Nesse momento, metida numa enorme confusão, não podia dar-se ao luxo. Se
abrisse mão da sua proteção, estaria morta. Sem soltar-lhe a mão, Silvio caminhou
decidido até o banheiro. Apertou um botão na parede e a água quente e perfumada
começou a encher a enorme banheira. Jessie queria dizer algo, mas não sabia o quê. Ele
olhou os traços imóveis com um misto de preocupação e irritação.
— Você está congelada, molhada. Teve um dia difícil. Tire esse maldito vestido,
mergulhe na banheira, feche os olhos. Depois, pode comer. A julgar pela sua geladeira,
deve estar precisando. — Os olhos percorreram-lhe o rosto e então, cautelosamente,
soltou-lhe o punho, ainda a fitando.
— Depois conversamos.
Rangia os dentes.
— Qual o sentido de conversar? Faça o que bem entender.
Um sorriso irônico brotou da boca linda.
— Isso mesmo, você tem razão. Entre no banho, Jess.
Nossa, ela estava assim tão horrível? Afastou o cabelo ensopado do rosto. Devia
parecer um rato molhado. Devia agradecer-lhe. Apesar da gratidão por sua intervenção, não
conseguia pronunciar as palavras. Demonstrar gratidão por um homem que odiava era
impossível. Ainda tentava botar para fora as palavras através dos lábios pouco
cooperativos quando ele apontou um armário perto da banheira.
— Toalhas. Se precisar de algo mais, é só chamar. — Parou na porta, bonito,
sofisticado e muito à vontade nesse mundo. — Talvez seja melhor não trancar a porta.
Fechou a porta e Jessie a trancou em seguida. Por que ele reaparecera de repente em
sua vida? E por que a ajudava? Depois de tudo o que lhe dissera, não esperava voltar a vê-
lo. Não podia ser culpa ou remorso. Sabia que Silvio Brianza não tinha consciência.
Recostou a testa na porta fechada, constrangida com sua falta de controle e desejando que
ele não tivesse testemunhado tudo. Depois riu. Ninguém, exceto ele, teria compreendido.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Mas Silvio estivera lá depois do incêndio. Ele morara no abrigo onde ela e o irmão
adolescente, ambos órfãos, foram parar depois da tragédia que arruinara suas vidas.
Tinham perdido tudo, todos, atirados num mundo ao mesmo tempo severo e cruel, nada
familiar.
Jessie virou-se e olhou a banheira, tentada pelas bolhas. Desde quando não entrava
numa banheira de água quente? Já nem se lembrava. E nunca em uma como essa. Ficar
simplesmente deitada e relaxar, sabendo que outra pessoa estava atenta ao perigo...
Apesar de ter dormido, sentia-se exausta, mas sabia que não podia ficar ali. Não com ele.
Fora de questão. Ele era seu inimigo. Esfregou os dedos nos lábios, tentando apagar a
memória do beijo — dizendo a si mesma que não havia razão para culpa. Ele a beijara. Não
o contrário. Mas ela não o impedira... Confusa e zangada consigo mesma, despiu o vestido
dourado, destruindo-o ainda mais no processo. Não se sentiria culpada. Não lhe pedira
ajuda. Mesmo no fundo do poço, não se aproximara dele.
Hoje, não lhe restava outra escolha senão aceitar sua ajuda. Caso contrário, acabaria
sangrando naquele beco. Sobrevivência, lembrou-se. Era disso que se tratava sua vida.
Sobrevivência. Concluindo que não iria longe num vestido dourado ensopado, entrou no
banho, gemendo de delícia quando a água quente aqueceu-lhe a pele. Só por um minuto,
prometeu a si mesma, afundando. Que mal havia? Contudo, não conseguia relaxar. Estava
tensa demais depois de todo o ocorrido, e deliciar-se com bolhas quentes como aquelas era
algo que nunca fizera.' Sentia-se... decadente. Lavou o cabelo depressa e saiu do banho em
menos de dois minutos, enxugando-se com uma toalha macia e quente. Espiando o
vestido dourado úmido no chão, defrontou-se com o fato de que teria que pegar uma
roupa emprestada. Seu instinto era recusar-lhe a oferta, mas como poderia? Suas poucas
roupas estavam em seu apartamentinho úmido. Não sentiria falta de nenhuma delas.
Questionando-se por se preocupar tanto com o recato, quando ele a julgava uma
prostituta, enrolou-se num comprido roupão antes de sair cautelosamente do banheiro.
Suas precauções provaram-se desnecessárias. O quarto encontrava-se vazio, a luz fraca,
dando um toque de intimidade. Olhou a cama, a mente voluntariosa conjurando imagens
que não queria ver.
Era para lá que ele levava as namoradas? Beijava-as como a beijara? Afastando o
pensamento desestabilizador, pegou a caixa de sapato resgatada no apartamento e
colocou-a debaixo do braço. Perambulou pela sala de vestir, ciente de que o último
apartamento em que morara caberia naquela sala e ainda sobraria espaço. Era imensa.
Uma porta fora deixada aberta e ela espiou, como uma criança nervosa explorando o
armário da mãe com medo de ser pega. Ficou boquiaberta; nunca vira nada parecido, nem
mesmo em sonhos. Prateleiras de sapatos guardados em caixas transparentes; pulôveres e
camisetas num arco-íris de cores, todos perfeitamente dobrados, cabides com vestidos
glamorosos. Jessie estendeu a mão, tocou os vestidos, a seda escorregando entre seus
dedos. Não havia nada barato ali. Nada condizente com a vida que ela levava. As roupas
combinavam com o apartamento, o domínio de um milionário. Curvou-se para esconder a
caixa de sapato amassada num canto da prateleira.
— Você está bem? — A voz veio de trás e Jessie pulou como se tivesse sido pega
roubando, colocando o vestido na frente, certificando-se de não deixar um milímetro de
carne exposta.
— Estou bem.
— Você foi rápido.
Contraiu-se na defensiva, sem querer admitir o nervosismo.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Levei o tempo necessário. Por que não está vestida?
Jessie riu angustiada e olhou os cabides de roupas.
— Porque não achei nada.
O olhar percorreu os cabides de roupas e um sorriso brotou de seus lábios.
— Comentário tipicamente feminino. Um armário cheio de roupas e nada para
vestir.
— Nada combina comigo.
— Nada cai bem?
— Não faço ideia se algo me cai bem. Não experimentei nada.
— Por que não?
— Porque não posso usar essas roupas, Silvio!
De repente, desejou estar usando salto alto. Pelo menos não se sentiria tão pequena
e insignificante ao seu lado. Ou talvez sim. Reconhecendo que o sentimento de
inferioridade vinha de dentro, fitou-o, exasperada por ele não fazer ideia do que ela sentia.
— Onde vou usar uma roupa arrumada dessa? Mal consigo andar pelas ruas
usando um vestido longo...
— Você não vai ficar andando pela rua. — Observando-lhe o rosto, recostou-se no
batente da porta, completamente à vontade e indecentemente lindo.
Jessie notou que ele tomara banho e mudara de roupa. Usava jeans preto, o cabelo
escuro ainda molhado. Um relógio caro brilhava no pulso. Jessie ficou imaginando quanto
teria custado. Mais do que ganharia ao longo de toda a sua vida. Ele parecia tão elegante e
chique quanto o apartamento no qual morava e o carro que dirigia. E o mais importante,
sentia-se à vontade ali. Tanto quanto naquele beco imundo. Era capaz de transitar entre os
dois mundos sem vacilar. Sentindo o abismo aumentar, Jessie recuou. No passado o
adorava. Mas isso fora há muito tempo. Agora, nem o reconhecia.
— Olhe... — Pigarreou. — Se puder encontrar para mim um jeans velho ou algo
parecido, seria ótimo. Então, posso me mandar daqui e deixar você viver a sua vida.
Sem responder, Silvio abriu outra gaveta e momentos depois lhe despejou várias
peças de roupas nos braços.
— Tente essas. Dão para quebrar o galho até acharmos outras.
Jessie olhou o jeans macio e meneou a cabeça.
— Perfeito. Não preciso de mais nada. Tenho roupa no meu apartamento. —A ideia
de voltar deixou-a morta de medo. Ele, obviamente, teve reação similar, pois os olhos
ficaram frios.
— Faça uma lista do que precisa e eu mando alguém buscar.
Envergonhada, encolheu-se. Não queria que vissem quão pouco possuía.
— Não é preciso. Eu tenho que voltar mesmo.
— Você não vai voltar. Vai morar comigo por enquanto.
O alívio mesclou-se ao medo. Por que ficar perto desse homem despertava emoções
tão contraditórias?
— Está planejando me manter trancada aqui em seu chique apartamento de solteiro
para eles não me pegarem? — Riu em tom estridente. — Isso arruinaria sua reputação.
Nem imagino o que seus novos amigos bacanas diriam se me conhecessem.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Gostariam de você. Caso contrário, isso seria problema deles, não seu.
Jessie afastou-se, olhando o armário para esconder as lágrimas de humilhação.
Devia estar cansada para estar tão emotiva.
— Não posso ficar aqui com você. Seria errado. — Não acrescentou que se sentia
deslocada. — Preciso ir embora. Tenho que ir. — Disse as palavras pensando nos dois,
tentando agir corretamente. Mas o estômago embrulhou ao pensar em partir. Caso se
afastasse dele, estaria abandonando a segurança. Realmente queria continuar lutando e
olhando por cima do ombro, sempre desconfiada?
— Não perca tempo em discussões consigo mesma.
Lendo sua mente, encaminhou-se para a porta do armário.
— Você não vai a lugar nenhum, Jess. Vai ficar comigo até eu dizer que é seguro
voltar para lá. Fim de papo.
Encarou o olhar duro, inflexível, o comportamento másculo e super protetor.
Deveria discutir com ele. Horrorizou-se ao descobrir que não queria. Sentir-se protegida era
muito bom.
— Acha que eles vêm atrás de mim?
— Não acho, eu sei. Vão checar se eu disse a verdade, mas não precisa ter medo. —
Falou com a fria convicção de alguém que nunca tivera medo de nada. — Este lugar é uma
fortaleza. Não podem chegar perto enquanto estiver aqui.
Algo que ele dissera despertou-lhe a curiosidade.
— Você mencionou que eles iam checar se você dissera a verdade? Que verdade? O
que disse a eles para que recuassem? — O batimento cardíaco dobrou e as palmas das
mãos ficaram úmidas ao lembrar-se dos momentos terríveis no beco. — Eles não iam me
deixar ir embora. Achei que iam me matar...
A tensão percorreu-lhe o corpo vigoroso e ela se perguntou se ele sempre fora tão
intimidante ou se ela é quem se sentia mais vulnerável que de hábito.
— Silvio? Como os convenceu a não me matar? — A boca ficou subitamente seca, as
pernas trêmulas. — O que você disse?
O silêncio se prolongou entre os dois, enquanto ele mantinha seu olhar firme e
penetrante.
— Disse a única coisa que garante que ninguém irá tocar em você. — O tom era
rude e ele a observou, meditativo. — Disse a eles que você é minha mulher.
CAPÍTULO TRÊS
— Diga o que gostaria de comer e meu cozinheiro irá preparar. Ovos? Bacon?
Panquecas?
— Você disse que sou sua mulher. Por que faria isso? — Jesse andava de um lado
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
para o outro pela imensa sala de estar, incapaz de concentrar-se em nada além das
palavras ditas há pouco. — Não posso acreditar que fez isso.
Sua mulher... Sentiu um frio no estômago, pois isso fazia parte de suas fantasias de
adolescente. Enquanto as meninas eram loucas por garotos de bandas de rock e jogadores
de futebol, Jessie pensava em Silvio Brianza. Quando o via com diferentes mulheres
chegava a sentir dor física, e a infelicidade intensificara-se ao saber que ele conhecia seus
sentimentos, o que era humilhante. Amava-o apaixonadamente, mas ele sempre a tratara
como a irmã caçula do melhor amigo. Entre eles, um abismo de dez anos e experiência. E
esse abismo aprofundara-se pelas circunstâncias da morte de seu irmão. Ela o traía só de
estar ali.
— Comida, Jess — disse, pacientemente.
Fitou-o, agitada demais para se concentrar. Tudo parecia estranho. O lugar, ele, e
até as roupas.
O jeans e o pulôver de caxemira caíam perfeitamente, mas ela nunca usara nada
semelhante antes. Incrível o que o dinheiro podia comprar.
— Como pode pensar em comida? — perguntou com voz rouca. — Precisamos
conversar.
— Conversaremos depois que você tiver comido. — Irritantemente calmo, Silvio
dirigiu-se em italiano à empregada que aguardava. Depois se voltou para Jessie. — Ela vai
pedir ao cozinheiro para preparar alguma coisa. Você está magra demais. Quando foi a
última vez que comeu?
— Não estou magra e precisamos...
— Não, não precisamos nada. Você precisa confiar em mim. — Dirigiu-se à grande
mesa de vidro no centro da parte mais afastada da enorme sala. — Venha comigo.
Dividida entre a fome e a culpa, não se moveu.
— Sente-se, Jess. — O tom era neutro, como se estivesse cansado de toda a situação.
— Ou me odeia tanto a ponto de não poder sentar-se à minha mesa?
Jessie encarou-o em silêncio, refletindo como era possível sentir tantas emoções em
relação a um homem.
— Não posso sentar — disse, rispidamente, retorcendo a barra do pulôver com
nervosismo. — Não posso comer sua comida nem dormir na sua cama. Simplesmente não
posso. Sei que me salvou hoje, mas isso não muda o que sinto por você.
Seu rosto não revelava qualquer emoção, mas a mão apertou as costas de uma
cadeira, os nós dos dedos brancos.
— Então você prefere morrer de fome e colocar sua vida em risco?
— Posso cuidar de mim mesma.
Felizmente ele não riu.
— Você precisa de ajuda, Jess.
— Não preciso.
— Quer dizer que não precisa da minha ajuda.
Afastando a cadeira, sentou-se, os olhos ainda fixos nela. A barba por fazer, as
pernas compridas e fortes, um perfeito exemplar da fantasia secreta de todas as mulheres.
— Você tem razão — Jessie resmungou, registrando o súbito fraquejar dos joelhos
com uma ponta de arrependimento. — Não quero sua ajuda. Não quero nada de você.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Silvio estendeu a mão e brincou com o garfo, em movimentos lentos e deliberados.
— Se sair daqui hoje — disse, calmamente —, eles a encontrarão. É isso mesmo o
que quer?
Jessie esfregou os braços com as mãos, tentando controlar o tremor.
— Posso me proteger.
— Como hoje? Não estou lhe dando uma opção, portanto não precisa ficar aí
plantada refletindo se está traindo a memória do seu irmão se comer da minha comida.
Não é decisão sua. Se isso a faz sentir-se melhor, pode dizer a si mesma que a estou
mantendo aqui à força. — Um sorriso triste brotou dos cantos da boca sensual. — Outro
crime a acrescentar aos muitos que já cometi contra você.
Afastando o olhar para a janela, pensou no que a esperava lá fora, na escuridão e na
chuva. Se o deixasse, morreria e não fazia sentido ter outras pretensões. Ele era o único
capaz de protegê-la do perigo lá fora. Para minar ainda mais a sua resolução, nesse
momento, surgiram empregados e puseram a mesa. Seu estômago indiscreto roncou.
— Melhor comer enquanto agoniza se decidindo se é certo aceitar minha ajuda. —
Fez um gesto impaciente na direção da mesa. — Sente-se.
O cheiro de bacon frito a deixou salivando. Caminhou para a mesa tão hesitante
quanto uma gazela aproximava-se do riacho, ciente de estar sendo observada por um
predador. Felizmente, a mesa era grande o suficiente para jantarem sem precisarem sentar
perto um do outro. Puxou a cadeira na extremidade oposta.
— Esse lugar é imenso.
— Espaço é importante para mim.
— Por causa de todos aqueles anos amontoado em um quarto?
Uma sombra cobriu-lhe o rosto.
— Mais ou menos.
— Bem, certamente você deixou tudo para trás.
Curiosa, olhou à volta, momentaneamente distraída com o que viu.
— Você construiu isso?
— Não com as minhas mãos, se é isso que está perguntando. — A voz lenta e
masculina tingiu-se de divertimento. — Minha empresa construiu.
Era impossível não ficar impressionada com o que ele obtivera.
— Você costumava fazer isso com as próprias mãos. Costumava carregar os tijolos e
suar junto com os outros peões. — Olhando o braço musculoso coberto pelo tecido fino da
camisa cara, refletiu se ele ainda pegava pesado. Afinal, algo devia fazer para manter o
porte atlético. Esse não era o corpo de um homem que passava o dia numa mesa, entre
papéis.
As palavras seguintes confirmaram suas suspeitas.
— Ainda faço algum trabalho braçal, mas nem mesmo eu tenho tempo para,
sozinho, erigir prédios de apartamentos e hotéis. Vai comer de pé?
Jessie sentou-se na beirada da cadeira. Obviamente ele não conversaria até ela ter
comido; então, era melhor comer.
— Essa sua empresa... diga, o que mais você constrói? — Observou a elegante mesa
de vidro, perguntando-se se quebraria caso colocassem algo pesado em cima.
— Basicamente hotéis. Mas posso ser persuadido a construir prédios comerciais,
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
caso o projeto me desperte interesse.
Jessie ergueu a faca na mão e girou-a, a luz refletindo-se no objeto de prata. Prata.
— Você progrediu muito desde que trabalhava em canteiros de obras.
— Era essa a intenção.
— Mas você escolheu construir seu apartamento de luxo na parte mais violenta de
Londres. Você olha todos os dias pela janela e vê o que deixou para trás. Um psicólogo
diria que está tentando provar algo.
— E um economista que foi um investimento sagaz. O prédio é bem localizado. Em
menos de três anos, este vai se tornar o lugar da moda. — Falou, com a segurança de
alguém cujo julgamento não admite erros. — Bem em frente ao rio. Perto do coração
comercial de Londres.
— Terrivelmente perto da parte mais miserável de Londres.
— Esta é uma cidade cosmopolita. — Silvio reclinou-se na cadeira quando um chefe
de cozinha trajando branco colocou mais comida no centro da mesa. — Grazie, Roberto.
Falou algumas palavras em italiano e o homem sumiu, deixando-os novamente a
sós. Determinada a não demonstrar o quanto estava impressionada, conteve a gargalhada.
— Esse cara fica aí parado a noite inteira esperando para ver se você quer comer?
— Tenho uma equipe de cozinheiros. Trabalham em sistema de rodízio.
— Você agora é tão rico que não pode cozinhar um ovo?
— Recebo muitas visitas. Em geral, meus convidados esperam mais que um simples
ovo cozido.
— Mas agora se misturou a seres inferiores. Está aqui preso comigo. Pobrezinho. —
Escondendo a inibição com a bravata, inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. —
Hummmm. Bacon.
Seduzida pelo delicioso aroma, deu-se conta, repentinamente, do quão faminta
estava.
— Posso me servir ou alguém tem que me servir?
— Achei que você preferia privacidade.
Em outras palavras, ela o embaraçava. O rosto de Jessie ruborizou-se; espetou o
garfo em algumas fatias de bacon, dizendo a si mesma que pouco Se importava com o que
ele pensasse.
— Não quer um pouco?
—Agora não. — Serviu-se de café. — Não estou com fome.
— Estou sempre faminta. — Esquecendo-se de que tentava mostrar reserva, olhou o
bacon no prato, sem saber se botara demais. Decidindo que chamaria mais atenção se
devolvesse parte, ficou parada, sem graça.
— Só vai comer isso? — Silvio ergueu-se e aproximou-se. Sem perguntar, empilhou
mais bacon em seu prato, serviu-lhe ovos mexidos e pão quentinho. — Se não comer, vai
ofender o chefe de cozinha e não estou em condições de perdê-lo. Ele é muito bom no que
faz.
Mordiscando um pedaço do pão mais delicioso que já comera, Jessie foi forçada a
concordar.
— Ele cozinha assim para você todos os dias? — Saboreava os ovos mexidos,
gemendo de prazer. — Ele é casado? Tem interesse em se casar?
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Ignorou-lhe a, pergunta.
— Quando terminar de comer, deve tentar dormir mais um pouco. Amanhã vou
levá-la para fazer compras. — Voltara à outra extremidade da mesa e bebia café.
Com a boca cheia de bacon, Jessie parou de mastigar e o encarou. Então engoliu
tudo.
— Fazer compras? — Começou a rir, pois a ideia era ridícula. — Você deve estar me
confundido com outra. Não preciso de roupas novas e sim de uma vida nova e isso você
não pode comprar na Harvey Nichols. De qualquer maneira... — Sem pensar, colocou com
a mão um pedaço de bacon crocante na boca —... não tenho dinheiro para fazer compras.
— Você vai comprar roupas com o meu dinheiro.
Reparando no guardanapo perto do prato, Jessie limpou os dedos, imediatamente
sujando o tecido impecável de linho de gordura. Envergonhada, pensou em escondê-lo,
mas se deu conta de que ele a observava. Rubra, remexeu-se na cadeira.
— Desculpe. Não estava concentrada. Peguei o bacon com a mão. — Jessie
amassou-o. — Depois me mostra onde posso lavar o guardanapo.
A surpresa iluminou os olhos escuros.
— Pode deixar aí. Outra pessoa se encarrega disso. Por que sugeriu isso?
Ela deu uma risada e colocou cuidadosamente o guardanapo na mesa.
— Porque em geral eu sou essa outra pessoa.
Ele registrou esse comentário trincando os dentes.
— Bem, tudo agora vai mudar. Sua vida vai mudar.
De repente, perdeu a vontade de comer.
— Acha que vai resolver o problema se me oferecer dinheiro?
Ergueu o queixo e se encararam num tenso silêncio.
— Pelo menos resolverá parte do problema.
— Dinheiro não vai mudar meus sentimentos em relação a você. De qualquer
modo, não preciso do seu dinheiro. Posso ganhar o meu. — Percebendo a desaprovação
em seus olhos, suspirou. Embora conhecesse a verdade, não se sentia bem em saber o que
ele pensava a seu respeito. — Olha, preciso dizer...
— Esqueça. Não quero saber. — O tom era firme.
— O que desejo saber é o motivo de estar pagando as dívidas de Johnny.
Ouvir o nome do irmão deixou-a sem ar. Mordeu o lábio inferior, surpresa pela
súbita onda de emoção que a atingiu.
— Não diga o nome dele.
— Por quê?
— Porque e-eu não suporto. Não diga! — Saíra da cadeira, o coração palpitando, a
respiração presa na garganta, esquecida da comida no prato.
— Você está pagando pelos erros do seu irmão, Jess — disse com voz baixa e cruel.
— Isso tem que parar.
— Vai parar quando eu pagar o dinheiro que ele devia.
— Eles vão querer mais de você, tesoro,
O carinho cortou-lhe o coração. Não queria carinho. Não queria nada dele.
— Eu sei. — Jessie começou a andar de um lado para o outro, sentindo-se
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
aprisionada numa situação que não criara. — Sei o que querem. — E por isso passara
meses sem dormir direito.
— Maledezione, todo homem que olha para você quer a mesma coisa. — Ele também
se levantara, o tom vibrando de raiva, a mão agitando-se no ar. — Sabe o que aqueles
homens no bar estavam pensando? Cada um deles imaginava você nua e graças à escolha
do vestido, não era preciso puxar muito pela imaginação.
— Joe insiste que as cantoras se vistam assim.
— Porque as mulheres que ele contrata fornecem outros serviços que não a voz! —
Enfiou os dedos no cabelo, os traços bonitos, másculos, o poder e a autoridade estampados
em cada linha do rosto lindo. — Não acredito que você faça isso consigo mesma, Jess.
— O que faço com a minha vida não é da sua conta.
— Acaba de se tornar da minha conta. — Ele não desistia, não demonstrava
remorso. — Por que está jogando fora sua voz maravilhosa num lugar daqueles? Podia
trabalhar em qualquer outro lugar.
Jessie examinou-se nas roupas emprestadas e deu um sorriso cínico.
— Sou uma cantora de cabaré, Silvio.
— Não. Você é uma cantora. Foi decisão sua usar sua voz num cabaré. Há outras
opções.
— Não para gente como eu. — Disse a si mesma que a altura e o porte de Silvio é
que o tornavam intimidante.
— Jess... — Disse seu nome entre os dentes, como se lutasse para não explodir. —
Sua voz é excepcional. Verdadeiramente excepcional. Com treino, poderia chegar ao topo.
Seria uma estrela internacional.
Jess ficou parada um instante, imobilizada pela ilusão que ele criava. Então,
lembrou-se de que sonhos desmoronavam.
— Difícil ser uma estrela internacional sem um passaporte — disse, petulante.
Silvio emitiu um som impaciente.
— Então é melhor desistir, certo?
Ela engoliu em seco. Não confessaria a ninguém que, quando cantava, não estava
em um clube de última. Estava cantado para uma multidão de pessoas maravilhadas.
— Às vezes, sonhar só piora as coisas.
— O sonho pode fazê-la progredir.
— Sonhar pode enfatizar o abismo entre as esperanças e a realidade.
— Então transforme seus sonhos em realidade! — Os olhos estreitos formavam dois
traços perigosos e Jessie o fitou insegura, abalada pela raiva que pressentia.
— Não entendo o motivo de estar tão chateado.
— E eu não entendo o motivo de você não estar mais chateada — rebateu em tom
agressivo. — Você nunca sente raiva de Johnny por tê-la deixado nessa situação?
Jessie piscou, os punhos cerrados.
— Sinto — sussurrou. — Às vezes sinto raiva. E depois culpa, porque sei que
grande parte do que aconteceu foi culpa minha.
O rosto de Silvio endureceu.
— Nada foi culpa sua.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Você está enganado. — As palavras obstruíam-lhe a garganta.
Estava dividida entre a necessidade de confiar nele e a de ir embora.
— Eu podia ter feito tanta coisa... Eu cometi erros.
— Nós todos cometemos erros — afirmou Silvio, inconscientemente demonstrando
a autoconfiança que o ajudara a ganhar milhões. — E Johnny cometeu o maior deles.
— Você não tem o direito de acusá-lo.
— Tenho todo o direito. — Deu-lhe as costas, olhando pela janela, o protótipo da
tensão. — Ele era egoísta, fraco; deveria ter tomado conta direito de você. Comportava-se
feito um garoto quando deveria agir como homem.
— Bem, nem todo mundo é forte como você! — Viu os ombros retesarem-se.
— Você está nessa situação por causa dele. Se eu não tivesse aparecido hoje... — As
palavras calaram-se abruptamente. Voltou-se de repente. — Agora chega, Jessie, a vida é
sua. Vamos parar de fingir que você tem um milhão de opções.
Ela ficou imóvel.
— Você culpa Johnny por tudo — sussurrou —, só porque ele não está aqui para se
defender.
— Gostaria que estivesse. Uma das coisas que mais lamento é não tê-lo feito encarar
a realidade.
Jessie empalideceu.
— Você era amigo dele.
— Se tivesse sido um amigo melhor o teria forçado a pensar em suas
responsabilidades em vez de lhe dar o que pediu. Eu falhei com ele. Eu não me
arrependo? — O tom era de autorrecriminação. — Sim, me arrependo. Mais do que você
pode imaginar. Mas tem algo de que me arrependo ainda mais: não ter feito Johnny
entender que tinha responsabilidades, que deveria proteger você!
— Ele me amava! — Instintivamente pulando em defesa do irmão, Jessie recuou.
—..Johnny me amava.
— Si, ele a amava. — O tom era contemporizador — Ele a amava como lhe
convinha, não da melhor maneira para você. Mas tudo isso vai mudar. Você não voltará
para aquela vida, Jess. Acabou. Eu não devia tê-la deixado sozinha e, a partir de agora,
vou agir como seu irmão deveria ter agido. Estou ocupando o lugar dele. E se ficar comigo
a deixa culpada, vai ter que lidar com isso. — Ele não demonstrava piedade. Jessie recuou
mais alguns passos, o coração batendo disparado.
— Não sou sua responsabilidade. Não quero sua ajuda. Odeio você. — Relanceou
os olhos pelo suntuoso apartamento, sentindo-se desleal em relação a Johnny pelo simples
fato de estar ali. Doía pensar no contraste entre esse apartamento e o lugar desolado em
que ele passara as últimas horas. — Por que ia querer me ajudar, sabendo como me sinto
em relação a você?
— Você perdeu seu irmão. Não a culpo por seus sentimentos em relação a mim.
Falava sem emoção, mas Silvio Brianza não lidava com emoções.
— Bem, eu culpo você! — A voz tremeu com suficiente paixão por ambos. — Você
lhe deu dinheiro. Sem isso, ele não teria conseguido.
Os olhos faiscaram e ele pareceu prestes a dizer algo, mas mudou de ideia.
— Eu sei o que fiz. — O tom era neutro. Não tentou rechaçar suas acusações ou se
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
desculpar. — E sei que me culpa.
— É por isso que está me ajudando? Por culpa? Achei que você nunca olhasse pra
trás. Só para frente.
Ele demorou tanto a responder que pensou que não tivesse ouvido a pergunta.
Então, suspirou devagar.
— Já o perdi. — Respirou. — Não quero perder você também. Isso é olhar para
adiante.
As palavras causaram-lhe um arrepio e profunda tristeza, pois tinha consciência de
que eles tinham perdido anos separados. Já era tarde demais. A culpa e a recriminação
haviam destruído a relação — tão certo quanto o tempo corrói as pedras. O
relacionamento se transformara em algo que não mais reconhecia.
— Não posso fingir ser... — era difícil pronunciar as palavras —... sua mulher.
— Pode sim. Johnny gostaria que você fizesse qualquer coisa para se manter a
salvo.
— Então vou me mudar para seu chique apartamento, você vai comprar roupas
novas para mim e me beijar em público?
— Você vai aonde eu for. — Os olhos abaixaram-se para sua boca. — E vou beijá-la
quando quiser. — Ele era autoconfiante, forte e mais másculo do que qualquer outro que
ela tinha conhecido.
A menção ao beijo deixou-lhe as pernas bambas.
— É um plano louco.
— O que há de louco nisso?
— Pra começar, sua atual namorada não vai gostar dê ter chamado uma mulher do
submundo para se mudar para o seu apartamento.
— Não fale de você desse jeito. Além do mais, não estou namorando no momento.
Jessie olhou-o incrédula.
— Claro. Um homem como você deve penar para conseguir sair com alguém. Não
sou ingênua. As mulheres sempre o acharam irresistível. Sei que recebe milhões de
propostas.
Ele não sorriu.
— Só porque tenho a oportunidade de dormir com uma mulher, não significa que
eu aceite — disse baixinho, a voz uma sutil condenação à vida que acreditava que ela
levava. — Sempre fui extremamente seletivo.
Jessie fitou-o cautelosamente e relanceou os olhos pelo ambiente. Nada senão o
melhor para Silvio Brianza. Apartamentos, carros, mulheres.
— Mais uma razão para ninguém acreditar que sou sua mulher. Eu não
convenceria. Não sei como viver nesse mundo.
— Esse mundo é fácil. — O tom cauteloso escondia um toque de humor. — O seu é
que é difícil.
—A vida é dura, Silvio. É assim que funciona. — Retorceu as pontas do cabelo,
ciente de que depois de ter secado ficara todo desarrumado. — Por quanto tempo
manteremos essa mentira?
— Até eu decidir.
Jessie fitou-o irritada.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
— Nunca acreditarão. Nenhuma mulher envolvida com você trabalharia num bar
vagabundo.
Silvio deu um sorriso amargo.
— Você não trabalha mais lá.
— Você me fez perder o emprego?
— Você não precisa de um emprego que exija andar como a página de centro de
uma revista pornográfica.
— Mas paga bem!
— Você não vai voltar. — A voz rouca deixou claro que não havia espaço para
negociações.
Escandalizada e subitamente assustada, Jessie andava de um lado para o outro pelo
piso de tábuas corridas claras.
— Não devia ter feito isso.
— Gostava tanto assim do seu trabalho?
Parou de andar e o fitou, desafiante.
— Não, claro que não. Mas não quero que você assuma o controle da minha vida.
Como vou ganhar dinheiro? Como vou poder pagar aqueles bandidos? E, quer a gente vá
em frente ou não com essa mentira, vou precisar de um emprego quando tudo isso acabar.
— Eu posso lhe oferecer um emprego.
— Não preciso da sua caridade.
— Não é caridade, é trabalho.
— Como pode me dar emprego? — Preocupada, exausta, deu uma risada histérica.
— Você constrói hotéis.
— Depois de construídos, meus hotéis são administrados por um grupo de pessoas.
Música ao vivo é um dos entretenimentos que oferecemos.
— Está me oferecendo um emprego de cantora?
— Certamente não espero que carregue tijolos.
O orgulho guerreava com a praticidade. Queria dizer que preferia morrer a aceitar
um emprego dele. O problema é que se não aceitasse, morrer podia ser seu destino
imediato. Ficou imóvel, alerta ao exame minucioso, sabendo ser esse um momento
decisivo. Precisava tomar uma decisão. O instinto de sobrevivência provou ser mais forte
do que seus princípios. Não seria caridade, pois ganharia para exercer uma função. E a
oportunidade de mudar-se para algum lugar a quilômetros dali era por demais tentadora
para ser rejeitada.
— Aonde eu iria?
— Para começar, Sicília. Meu hotel à beira mar abriu no mês passado e vamos
realizar o casamento do ano em poucos dias. Gisella Howard e Brentwood Altingham
casam-se no próximo dia três. — O nome trouxe um sorrisinho em sua boca severa. —
Dinheiro antigo. Família tradicional.
Tentando não parecer impressionada, deu de ombros.
— Eles sabem de onde você veio?
— Por isso escolheram meu hotel. — Os olhos faiscaram de ironia. — Têm certeza
de que eu posso cuidar da segurança.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
E tinham razão, pensou Jessie, lembrando-se do modo arrojado, destemido com que
a livrara do perigo.
— E você contratou todos os seus amigos barra-pesada para manter os paparazzi à
distância.
— Mais ou menos isso.
—Então você está me oferecendo um emprego em um hotel super chique? —
Tentada, desejou ter autoconfiança suficiente para aceitar o emprego. — Vou realmente
me encaixar no emprego usando meu vestido dourado.
— Você não vai usar seu vestido dourado. Isso está fora de questão. — Olhou o
Rolex. — Já é muito tarde. Obviamente você está exausta, portanto vá descansar. Faça-me
um favor, não tente fugir, porque meus empregados têm instruções para não deixá-la
passar. Use meu quarto. Eu durmo em outro. Preciso dar uma saída.
— Vai sair?
Ia deixá-la?
O abrigo de segurança a envolvê-la desde que esbarrara nele no beco desmoronou;
teve vontade de implorar que não saísse.
— A-aonde você vai?
— Vou sair. — Sem maiores explicações, caminhou para a porta, deixando Jessie
paralisada de pânico.
O que era tão urgente que precisasse sair de madrugada? E como continuaria a se
sentir segura sem ele?
— Silvio... — O tom era urgente.
Ele voltou-se, a testa franzida, a mente obviamente longe.
— O quê?
Jessie tentou pedir-lhe para não ir, mas as palavras não saíram. Qual o seu
problema? Por que se comportava de modo tão patético?
— Nada — resmungou. — Nos vemos depois. — Foi preciso um esforço
monumental para ocultar seu mal-estar; por um instante, achou que falhara, pois ele a
encarou com olhar penetrante.
— Non ti preoccupare. Não se preocupe. Está a salvo aqui, Jess. Este lugar é coberto
por sistemas de segurança de última geração.
— Não estou preocupada — murmurou, odiando-se por demonstrar suas
inseguranças. Afinal, vivia sozinha há três anos.
Entretanto, nas últimas horas saboreara o gostinho da segurança e não queria
perdê-la. Após três anos dormindo com um dos olhos abertos, vivendo à beira do
precipício, de repente fora capaz de relaxar, consciente de que ele assumira o controle.
Ciente de que a observava atentamente, deu de ombros, indiferente.
— Divirta-se. — Aonde iria a esta hora da noite? Só podia ter um encontro com
uma mulher. E por que isso a deixava tão infeliz?
Silvio voltou a verificar as horas.
— Vá para a cama, Jess. — Ao fechar da porta, Jessie acovardou-se.
De repente, deu-se conta do enorme espaço e sentiu-se assustadoramente
vulnerável.
Olhando ao redor, perguntou-se o que ele quisera dizer com "sistemas de segurança
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
de última geração". Presumivelmente não se referia a ela, segurando uma caçarola, pronta
para abater um intruso. Como saber se tinha alguém à espreita num lugar como esse? Era
cheio de espaços escuros, ocultos. Entrando em pânico, tentou convencer-se de que
qualquer apartamento construído por ele devia ser seguro, mas sabia que não fora o
prédio que oferecera aquela sensação de segurança. Tinha sido o homem. E ele tinha ido
embora.
Horas depois, Silvio voltou ao apartamento. Satisfeito com o resultado, dispensou
os empregados e serviu-se de um drinque. Quando os primeiros raios da aurora
iluminaram o céu, olhou através da vidraça, tentando não pensar no que teria acontecido
com ela caso tivesse decidido não retornar. O que aprendera sobre a sua vida ao longo das
últimas horas havia congelado suas entranhas. Fizera perguntas, cobrara favores, entrara
em contato com antigos conhecidos, espalhando constantemente a mesma mensagem:
Jessie era sua e de nenhum outro homem.
Não conseguira imaginar outra maneira de garantir sua proteção. Tomando a
bebida de um só trago, refletiu sobre a ironia da situação. Ainda bem que ambos eram
reservados, pensou amargamente olhando o copo vazio, caso contrário todos saberiam
que um envolvimento pessoal entre os dois era impossível. O apartamento estava
silencioso quando caminhou na direção de uma das suítes de hóspedes, mas parou na
porta da suíte principal, incapaz de resistir ao impulso de verificar como ela estava.
Ao abrir a porta devagarzinho, encontrou a cama vazia. Não havia sinal dela.
Preparando-se para acionar o chefe da segurança, fez menção de deixar o quarto e armar
um escândalo quando percebeu a falta do cobertor de veludo. Franzindo o cenho, entrou
no quarto, uma suspeita delineando-se em sua mente. Checou o banheiro e o quarto de
vestir. Tudo escuro. Esfregando a mão na nuca, parou um momento e tentou pensar como
ela. Seu medo infantil de ficar presa nunca a abandonara e ele não precisaria presenciar
seu ataque para saber como ela odiava ficar em andares altos. Para Jessie, uma cobertura
não era um paraíso imobiliário, mas o inferno. Ciente disso, não havia como se trancar no
quarto de vestir. Girando a cabeça, Silvio estreitou os olhos e rejeitou a possibilidade que
lhe veio à mente. Não, não faria isso... Talvez sim.
Silenciosamente, atravessou o quarto e parou do lado de fora da porta que escondia
o escorrega. Enfiou os dedos na porta entreaberta e abriu-a. Encontrou Jessie enrascada no
chão a centímetros do escorrega, o corpo esbelto oculto pelo imenso cobertor, o braço
apertando protetoramente a caixa de sapatos. Silvio observou-a em silêncio, mil emoções
cruzando sua cabeça. Que terror habitava-lhe a mente a ponto de preferir dormir embaixo
de um armário e não em uma cama confortável? Seu apartamento era protegido pelo mais
sofisticado sistema de segurança existente, mas Jessie não confiava nele. Viu a mancha de
maquiagem em seus olhos, sinal de que ela tinha chorado. O fato de ter esperado ficar
sozinha antes de ter se permitido chorar criou mais culpa em sua consciência. Não quisera
desabar diante dele e ele lhe devia ser grato por isso. Não sabia como oferecer consolo a
uma mulher e tudo que fizera fora magoá-la. Levantando-a no colo sem dificuldade,
levou-a de volta à cama. Os olhos se abriram. As pálpebras pesadas, os olhos enevoados
de sono.
— Silvio...
— Volte a dormir. — O arrependimento fez sua voz vacilar. Deitou-a no colchão e a
cobriu. Iria implorar-lhe que a pusesse de volta no lugar onde escaparia mais rápido?
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Entretanto, não o fez. Em vez disso, a mão segurou a sua. Silvio ficou tenso, pois
essa atitude de fraqueza destoava tanto de Jessie que ele não sabia como reagir.
Normalmente, seria o último homem para quem ela se voltaria em busca de conforto e o
fato de ela ter buscado a sua mão demonstrava seu desespero. Sem respirar, olhou as
mãos, observou a fragilidade dos dedos claros e delicados repousados em sua forte palma
da mão. Após um momento de hesitação, entrelaçou os dedos aos seus. Jessie suspirou
baixinho.
— Estou feliz por ter chegado — disse sonolenta, e abriu a boca em um sorriso
enquanto os olhos se fechavam. — Vai sair de novo?
Sabendo que se ela estivesse totalmente desperta, o teria mandado para o inferno,
Silvio encontrou dificuldade em falar.
— Não — disse finalmente, a voz tensa. — Não vou a lugar nenhum, tesoro. Pode
dormir.
Ela obedeceu, com o sorriso ainda no rosto e a mão apertando a sua. Preso, Silvio
foi forçado a enfrentar dilemas com que não queria se confrontar. Como a perigosa
química que os unia. E o fato de ser responsável por ela ter perdido a pessoa mais
importante da sua vida. Observou o rosto pálido, os ombros estreitos e a caixa de sapatos
amassada que ela agarrava como quem se agarra à própria vida. Queria abri-la para ver o
que continha, do que se recusava a se afastar, mas não queria correr o risco de acordá-la.
Tampouco invadir sua privacidade, pois sabia o quanto isso era importante para ela.
Não podia apagar o que estava feito. Não poderia trazer seu irmão de volta. Mas
podia tirá-la daquela vida. Tirá-la do inferno que ela achava merecer e dar-lhe algo
diferente. Ele lhe devia isso.
CAPÍTULO QUATRO
— Você não precisa me levar para fazer compras. — Outro golpe em seu orgulho.
— Não posso me dar a esse luxo.
— Você precisa de roupas. Não é luxo, é necessidade.
Incapaz de discordar, Jessie afundou no banco da Ferrari, desviando o olhar.
Parecia que todos testemunhavam sua humilhação.
— Então só pouca coisa. Talvez outro jeans. Você precisa dirigir este carro? Todo
mundo está olhando.
Entretanto, sabia que o motorista era tão chamativo quanto o carro. Com sua beleza
mediterrânea e o físico espetacular, Silvio atraía olhares cobiçosos onde passava.
— Preferia uma limusine com motorista? — Parou o carro em fila dupla do lado de
fora da loja mais sofisticada de Knightsbridge.
Um homem uniformizado os recebeu.
— Dr. Brianza. — A voz denotava surpresa e respeito.
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Silvio entregou-lhe as chaves e disse algo que Jessie não entendeu.
— Acho que não vendem o tipo de roupas que uso aqui. — Pisando
cautelosamente, olhou ao redor furtivamente, deslumbrada com a quantidade de
mulheres produzidas passando por ela em tailleurs e saltos vertiginosos, todas exalando
confiança. Olhando o cabelo liso de uma delas, enfiou o dedo nos cachos e contraiu-se
quando Silvio tomou-lhe o braço.
— Tente não demonstrar o medo de ser agredida a qualquer momento — disse
suavemente, guiando-a com passo determinado para as portas de vidro. — Você está
comigo. Ninguém vai tocá-la.
Ele a estava tocando, e a mão em seu braço e o roçar do corpo constituíam um letal
ataque a seus sentidos, nada bem-vindo ao ser tomada pelas lembranças perturbadoras de
ter se aninhado em seus braços quando dormira. Em vez de empurrá-lo e dizer que não
precisava dele, agarrara-se à sua mão como um afogado se agarraria a uma tábua de
salvação. Ele não mencionara a noite, mas ela não conseguia tirar isso da cabeça. Embora
sozinha na cama ao acordar, sabia que ele passara o resto da noite ao seu lado. Mais um
motivo para se sentir agradecida, pensou mal-humorada, olhando, incrédula, o perfeito arco
das sobrancelhas da mulher passando apressada rumo a algum lugar importante. A
imagem dele como monstro desumano tornava-se desconfortavelmente distorcida.
Encolhendo-se de medo ao se lembrar de como ficara assustada quando ele deixara
o apartamento, recriminou-se. Ela era patética. Só esperava que o sofisticado apartamento
não tivesse câmaras internas ou enfrentaria algum embaraço por ter checado debaixo da
cama e dentro dos armários, antes de finalmente ir dormir. Silvio guiou-a até o elevador.
Jessie só olhava em frente, determinada a não olhar as paredes espelhadas. Sabia o que
veria. Uma mulher que não deveria estar ali.
— Andei pensando na sua sugestão.
— Naquela em que você permanece viva? — Os olhos negros cintilaram.
Impossível Jessie conseguir desviar os seus.
— Não é tão simples. — Com esforço evitou-lhe o olhar e respirou fundo.,— Preciso
pagar o resto do dinheiro que Johnny ficou devendo ou essa história nunca terá fim. Você
me ofereceu um emprego, o que é ótimo, mas vou demorar até juntar toda a grana. —
Orgulhosa, custou-lhe pronunciar as palavras. — Sei que tem contatos. Será que eu
poderia conseguir um empréstimo? Acho que seria mais seguro dever dinheiro a um
estranho.
— Você não deve dinheiro a ninguém. — Silvio apertou o botão do elevador. — Já
quitei a dívida.
— Você pagou? — Chocada, voltou-se para fitá-lo. — Quando?
— Ontem à noite.
Ontem à noite, quando a deixou sozinha. Atônita, demorou a responder.
— Não queria que fizesse isso. Eu vinha pagando...
— Aos poucos — disse, com desprezo, o olhar surpreendentemente magoado.
Era óbvio que ela não podia descer mais em seu conceito. Mas por que deveria se
importar com isso? A opinião dele não deveria ter a menor importância. Sentindo as
lágrimas de humilhação, ergueu o queixo.
— Vou pagar tudo.
— Falarei com meu departamento financeiro e eles encontrarão uma solução. —
95
Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan
Mudou de assunto, enquanto ela digeria lentamente o fato de o débito ter finalmente sido
quitado. Todos aqueles anos de preocupação. Anos de trabalho árduo, de terror. Um peso
tinha sido retirado de seus ombros. Só gostaria que não tivesse sido ele o responsável. Por
que ele agira assim?
— Obrigada — disse, finalmente. Nunca imaginara que um dia o agradeceria por algo.
— Nesse caso, não entendo o motivo de ter me trazido aqui. Não precisa se dar ao
trabalho. — As portas do elevador se abriram e ela continuou parada, fazendo menção de
apertar o botão do térreo.
— Maledezione, o que está fazendo? — Segurou-lhe a mão, interceptando-lhe o
gesto.
— Você disse que quitou a dívida. — Com ele tão perto, ficava difícil respirar.
Ruborizou-se ao sentir o embaraçoso e familiar calor na pélvis. — Acabou.
— Não acabou, Jess. Não é possível ser tão ingênua. O dinheiro era apenas parte do
que queriam e você sabe disso.
Sabia. E a certeza a aterrorizou. O pensamento de voltar a pisar naquele lugar a
assustava. Passara as noites se perguntando qual seria a noite em que eles sairiam
vencedores.
— Você tem razão. — A voz parecia mais calma. — Gostaria que devolvesse minha
faca.
— Não tenho a menor intenção de devolvê-la. Se a tivessem encontrado, teriam
usado contra você. A única maneira de impedi-los de conseguir o que querem é acharem
que estamos juntos. Desde que eles não tenham motivo para dúvidas, você estará a salvo.
Sentindo-se vulnerável, Jessica olhou o centro do peito largo.
— Então não me restam muitas opções: ou me arrisco com eles ou com você.
— Não sou perigoso.
Era uma declaração tão falsa que Jessica riu, mas foi uma risada histérica.
— Decida-se. Ontem à noite você disse que também era perigoso.
— Está bem, deixe que me expresse de outra maneira. — Um sorriso irônico surgiu
na linda boca. — Não sou perigoso para você.
Ah, era sim, e como. Sabia que este homem tinha o poder de lhe causar mais danos do
que qualquer gangue das ruas de Londres. E ele também sabia. Sempre conhecera seus
sentimentos em relação a ele. Jessie respirou fundo, lembrando-se de que tudo agora era
diferente. Ele deixara de ser seu herói. Era forte, sem dúvida. E poderoso. Mas não o santo
que imaginara no passado. Os olhos estavam bem abertos e o coração, trancado. Ele não
podia magoá-la mais do que já o fizera, certo? Seria loucura recusar-lhe a proteção. Passara
a vida à beira do precipício tempo suficiente para saber que não se deve deixar escapar as
oportunidades.
— Acho que não vai funcionar. Vão saber que não sou o tipo de mulher com que
costuma sair. Não vou a primeiras exibições de filmes e a festas de celebridades. Não sei
como andar no tapete vermelho.
— Basta botar uma perna na frente da outra — retrucou. — E festas de celebridades
e primeiras exibições vão parecer férias, depois da vida que vem levando. Não há
necessidade de praticar.
As portas do elevador se abriram. Jessie não se moveu, amedrontada com a
quantidade de espelhos e a elegância do prédio.
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men
Destitute Singer Faces Dangerous Men

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

S. c. stephens [thoughtless 02] - effortless ok 1
S. c. stephens    [thoughtless 02] - effortless ok 1S. c. stephens    [thoughtless 02] - effortless ok 1
S. c. stephens [thoughtless 02] - effortless ok 1Fê Cagno
 
09 série maridos italianos- juras secretas kl)
09 série maridos italianos- juras secretas kl)09 série maridos italianos- juras secretas kl)
09 série maridos italianos- juras secretas kl)marilene queiroz
 
Encarnação
EncarnaçãoEncarnação
EncarnaçãoLRede
 
154 o caminho de damasco
154   o caminho de damasco154   o caminho de damasco
154 o caminho de damascoJorginho Jhj
 
Capturando caroline
Capturando carolineCapturando caroline
Capturando carolineViviFailla
 
O reino das vozes que não se calam
O reino das vozes que não se calamO reino das vozes que não se calam
O reino das vozes que não se calamf t
 
Barbara cartland a deusa vencida
Barbara cartland   a deusa vencidaBarbara cartland   a deusa vencida
Barbara cartland a deusa vencidaAriovaldo Cunha
 
Liz fielding a lista de desejos de juliet
Liz fielding   a lista de desejos de julietLiz fielding   a lista de desejos de juliet
Liz fielding a lista de desejos de julietKarinearcega
 
Susan Boyle - Essência
Susan Boyle - EssênciaSusan Boyle - Essência
Susan Boyle - EssênciaRedator MAM
 
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renatosilvartes
 

Mais procurados (18)

S. c. stephens [thoughtless 02] - effortless ok 1
S. c. stephens    [thoughtless 02] - effortless ok 1S. c. stephens    [thoughtless 02] - effortless ok 1
S. c. stephens [thoughtless 02] - effortless ok 1
 
09 série maridos italianos- juras secretas kl)
09 série maridos italianos- juras secretas kl)09 série maridos italianos- juras secretas kl)
09 série maridos italianos- juras secretas kl)
 
Encarnação
EncarnaçãoEncarnação
Encarnação
 
154 o caminho de damasco
154   o caminho de damasco154   o caminho de damasco
154 o caminho de damasco
 
Capturando caroline
Capturando carolineCapturando caroline
Capturando caroline
 
Perigosa atração
Perigosa atraçãoPerigosa atração
Perigosa atração
 
O reino das vozes que não se calam
O reino das vozes que não se calamO reino das vozes que não se calam
O reino das vozes que não se calam
 
E book portrait_of_my_heart
E book portrait_of_my_heartE book portrait_of_my_heart
E book portrait_of_my_heart
 
Barbara cartland a deusa vencida
Barbara cartland   a deusa vencidaBarbara cartland   a deusa vencida
Barbara cartland a deusa vencida
 
O cachorro dos mortos
O cachorro dos mortosO cachorro dos mortos
O cachorro dos mortos
 
Liz fielding a lista de desejos de juliet
Liz fielding   a lista de desejos de julietLiz fielding   a lista de desejos de juliet
Liz fielding a lista de desejos de juliet
 
A rainha da primavera
A rainha da primaveraA rainha da primavera
A rainha da primavera
 
Susan Boyle - Essência
Susan Boyle - EssênciaSusan Boyle - Essência
Susan Boyle - Essência
 
A noiva_do_inverno
 A noiva_do_inverno A noiva_do_inverno
A noiva_do_inverno
 
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
 
O Feiticeiro
O FeiticeiroO Feiticeiro
O Feiticeiro
 
Um defeito de cor 3
Um defeito de cor 3Um defeito de cor 3
Um defeito de cor 3
 
Vestido de noiva
Vestido de noivaVestido de noiva
Vestido de noiva
 

Semelhante a Destitute Singer Faces Dangerous Men

Semelhante a Destitute Singer Faces Dangerous Men (20)

José de Alencar - Encarnação
José de Alencar - EncarnaçãoJosé de Alencar - Encarnação
José de Alencar - Encarnação
 
Capturando caroline
Capturando carolineCapturando caroline
Capturando caroline
 
Micrônicas, por Walmar Andrade
Micrônicas, por Walmar AndradeMicrônicas, por Walmar Andrade
Micrônicas, por Walmar Andrade
 
Conto - Resgate - Immortales - Roxane Norris
Conto - Resgate - Immortales - Roxane NorrisConto - Resgate - Immortales - Roxane Norris
Conto - Resgate - Immortales - Roxane Norris
 
Brigite - Sexo, Amor & Crime
Brigite - Sexo, Amor & CrimeBrigite - Sexo, Amor & Crime
Brigite - Sexo, Amor & Crime
 
Frank e. peretti este mundo tenebroso - vol. 1
Frank e. peretti   este mundo tenebroso - vol. 1Frank e. peretti   este mundo tenebroso - vol. 1
Frank e. peretti este mundo tenebroso - vol. 1
 
Análise de laços de família, clarice lispector
Análise de laços de família, clarice lispectorAnálise de laços de família, clarice lispector
Análise de laços de família, clarice lispector
 
COUTO,-Mia-O-Fio-das-missangas.pdf
COUTO,-Mia-O-Fio-das-missangas.pdfCOUTO,-Mia-O-Fio-das-missangas.pdf
COUTO,-Mia-O-Fio-das-missangas.pdf
 
O realismo
O realismoO realismo
O realismo
 
Série Fallen 1- Fallen, Lauren Kate txt
Série Fallen 1- Fallen, Lauren Kate txtSérie Fallen 1- Fallen, Lauren Kate txt
Série Fallen 1- Fallen, Lauren Kate txt
 
No ponto de ônibus
No ponto de ônibusNo ponto de ônibus
No ponto de ônibus
 
Amante Liberto 2
Amante Liberto 2Amante Liberto 2
Amante Liberto 2
 
112
112112
112
 
Literaturapiauiense 2.1
Literaturapiauiense 2.1Literaturapiauiense 2.1
Literaturapiauiense 2.1
 
Literatura Piauiense
Literatura PiauienseLiteratura Piauiense
Literatura Piauiense
 
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
Ameopoema jun 2017 - Ed 0050
 
Amor, conto de Clarice Lispector
Amor, conto de Clarice LispectorAmor, conto de Clarice Lispector
Amor, conto de Clarice Lispector
 
Aromas
AromasAromas
Aromas
 
93
9393
93
 
Capítulo i original
Capítulo i   originalCapítulo i   original
Capítulo i original
 

Destitute Singer Faces Dangerous Men

  • 1. Artimanhas do Destino Bought: Destitute Yet Defiant Sarah Morgan Paixão 226 Sofisticação e sensualidade em cenários internacionais. Um siciliano sexy, forte e cheio de cicatrizes... Uma mulher desafiadora, desobediente e sedutora! Marcas do passado, no corpo e na alma, denunciavam a vida difícil que Silvio Brianza tivera. Ao reencontrar Jessie, lembranças de sua infância pobre vieram à tona. E ele decidiu tirá-la da pobreza. Ainda que limpasse o chão durante o dia e cantasse à noite, Jessie não estava disposta a ceder tão facilmente à sedução de Silvio. Nem todo o glamour e luxo do mundo seriam capazes de corrompê-la... ainda que sentisse uma atração irresistível por ele! Afinal, vestidos caros e diamantes não a fariam esquecer o quanto já sofrera por causa de Silvio, pois ele era seu inimigo! Da pobreza ao luxo. Eles construíram a própria fortuna e agora desejam conquistar as mulheres de suas vidas! Digitalização: Rita Revisão: Alice A.
  • 2. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan PUBLICADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V/S.à.rl. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: BOUGHT: DESTITUTE YET DEFIANT Copyright © 2010 by Sarah Morgan Originalmente publicado em 2010 por Mills & Boon Modem Romance Arte-final de capa: Isabelle Paiva Editoração Eletrônica: ABREU'S SYSTEM Tel.: (55 XX 21) 2220-3654 / 2524-8037 Impressão: RR DONNELLEY Tel.: (55 XX 11)2148-3500 www.rrdonnelley.com.br Distribuição exclusiva para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil: Fernando Chinaglia Distribuidora S/A Rua Teodoro da Silva, 907 Grajaú, Rio de Janeiro, RJ — 20563-900 Para solicitar edições antigas, entre em contato com o DISKBANCAS: (55 XX 11) 2195-3186/2195-3185/2195-3182 Editora HR Ltda. Rua Argentina, 171, 4° andar São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 Correspondência para: Caixa Postal 8516 Rio de Janeiro, RJ — 20220-971 Aos cuidados de Virgínia Rivera virginia.rivera@harlequinbooks.com.br
  • 3. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan CAPÍTULO UM Vieram matá-la. Há dois anos trabalhava no lado miserável da cidade, só isso já servira para lhe aguçar os sentidos; aprendera a se manter alerta. Olhou ao redor e notou a presença deles — e eles a notaram. Era um grupo de homens bebendo muito, embora soubesse que isso agradaria Joe, que sempre aumentava os preços quando os clientes estavam bêbados demais para reparar. De seu ponto estratégico no palco, vira o dinheiro trocando de mãos, as garrafas de uísque, os copos vazios e os olhares desfocados, mas continuara cantando, mantinha voz doce e suave, embora nem todos se dessem ao trabalho de ouvir. Ignorando o mal-estar, cantou amores e perdas, ciente de que os frequentadores do Joe's Bar sabiam mais a respeito de perdas do que de amores. Ela também. Essa existência estava muito aquém dos seus sonhos, mas Jessie deixara de sonhar aos 5 anos de idade. — Ei, boneca! — Um homem sentado perto do palco a chamou, balançando uma nota. — Gostaria de uma apresentação particular. Venha até aqui e cante essa música no meu colo. Sem perder o tom, Jessica afastou-se, inclinou a cabeça para trás, cerrou os olhos e cantou a plenos pulmões o verso final da canção. Enquanto mantinha os olhos cerrados, conseguia fingir estar em outro lugar. Não cantava para uma multidão de homens sórdidos, mas num estádio cheio ou em uma casa de espetáculos, onde as pessoas tinham pagado o equivalente a um mês de aluguel apenas para ouvir a sua voz. Nessa mesma fantasia, não sentia fome nem remendara seu vestido dourado barato uma centena de vezes. Sobretudo, não estava sozinha. Havia alguém à sua espera. Alguém iria buscá-la após o show e a levaria para uma casa aconchegante e segura. A música terminou. Abriu os olhos. E viu quem a esperava: vários homens, mas eles não faziam parte de seus sonhos — e sim de um pesadelo aterrorizador. Sabia que tinham vindo atrás dela. O medo a acompanhava a cada passo, há tanto tempo que se sentia exausta, ansiosa, cansada de olhar desconfiada por cima do ombro. O último aviso tinha sido violento, deixou-a ferida em casa por uma semana. Contudo, desta vez, não estavam ali para dar mais avisos. Sentindo a boca seca e o coração acelerado, lembrou-se que tinha um plano. E uma faca enfiada na cinta-liga. Ele se sentou nos fundos do salão, a escuridão lhe permitia um raro momento de anonimato, logo para ele que sempre esteve sob a luz dos refletores. Na noite anterior, caminhara pelo tapete vermelho de braços dados com uma estrela. Seu negócio o tornara bilionário antes dos 30 e ele apreciava a existência privilegiada dos muito ricos, mas já vivera em lugares como esse — cercado por bêbados, pela violência e por uma constante ameaça. Crescera ali. Quase fora sugado pelo submundo até finalmente, graças a muita garra e determinação, emergir em um mundo diferente. Outro homem talvez preferisse
  • 4. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan esquecer esses anos, mas odiava qualquer tipo de fingimento e carregava as marcas sem preconceito, sem justificativas, achando divertido que as cicatrizes visíveis servissem de atrativo para as mulheres, bem como o seu passado sombrio. Nada despertava tanto interesse em uma mulher quanto um mau elemento, refletiu Silvio, sabendo que se elas fossem capazes de enxergar sua alma, teriam saído em disparada. Tinha consciência de que as mulheres com quem saía gostavam do perigo imaginado, mas não real. Também sabia que a jovem no palco vivia o perigo a cada passo, a cada respiração. Não podia imaginar como ela chegara a esse ponto e identificou uma emoção estranha a ele: culpa. Por causa dele ela levava essa vida. A tensão aumentou quando ela se moveu seguindo o ritmo, o sutil movimento dos quadris fazendo o homem ao lado dele deixar cair o copo. O barulho do vidro no chão era um som familiar e praticamente não despertou a atenção das pessoas ao redor. Ou talvez estivessem muito anestesiadas pelo álcool para reagir. Silvio continuou imóvel; o uísque intocado. O copo não passava de um acessório. Sabendo o que estava por vir, não podia dar-se ao luxo de entorpecer os sentidos. Também sabia que não adiantava fugir de algo hoje, pois este algo estaria à sua espera no dia seguinte e ele não precisava adiar o momento crucial como se pudesse acionar um botão de pausa. Admitia seus erros e encarava um deles agora. Nunca deveria tê-la deixado. Por mais difícil a situação entre eles, por mais profundo o ódio que ela experimentava por ele, ele não deveria ter ido embora. A jovem moveu-se graciosamente pelo palco, seduzindo a plateia, aumentando o batimento cardíaco e as esperanças dos homens na mesma proporção, os olhos escuros derretidos e a boca molhada prometendo tudo. Ele a vira crescer. Vira transformar-se de criança em mulher e a natureza não fora apenas generosa em conceder-lhe dons, mas pródiga. Jessie explorava esses dons cantando com paixão e sentimento, a voz maravilhosa causando um arrepio ao longo da espinha de Silvio. Excitou-se ao observar-lhe o gingado, o que o irritou, pois nunca se permitira pensar nela como mulher. A química que compartilharam lhe era proibida. Algo que nenhum dos dois jamais explorara ou jamais exploraria. Ela cantava uma balada lenta, uma censura provocante dedicada a um homem que lhe partira o coração. Ele estreitou os olhos, sabendo que ela não tivera essa experiência. Nunca permitira que um homem se aproximasse do seu coração. Fechara-se emocionalmente quando criança. Apenas seu irmão fora capaz de romper o muro de defesa construído entre ela e o mundo. Mudando de ideia quanto aos neutralizantes efeitos do álcool, Silvio pegou o copo. Engoliu a bebida de um trago, o olhar sempre fixo na jovem no palco. Os cachos cor de ébano caíam nos ombros nus, as curvas sedutoras do corpo divino ressaltadas por um minivestido dourado que deixavam à mostra as incríveis pernas e, literalmente, mais nada à imaginação. Só podia ser intencional. Se um homem estivesse procurando ouro e descobrisse Jessie, morreria feliz. O uísque queimou-lhe a garganta. Ou teria sido a raiva? Fora isso o que ela fizera da vida durante a sua ausência? Precisou de uma enorme força de vontade para não arrancá-la do palco e arrastá-la para fora daquele antro, para longe daqueles olhos cobiçosos e mentes sórdidas. Mas não queria chamar atenção. Esta era a última vez em que ela cantava naquele palco, prometeu a si mesmo. O garçom aproximou-se, mas Silvio recusou outra dose com um ligeiro aceno de cabeça, o olhar gélido desviando-se da jovem para o grupo de homens em uma mesa perto da sua. Conhecia todos eles; sabia o perigo que ela corria. Cometera um erro, pensou
  • 5. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan irritado, achando que ela ficaria melhor sozinha. Quando ela lhe ordenara desaparecer da sua vida, devia tê-la ignorado. Mas fora impossível defender-se de suas acusações, pois tudo que ela dissera era verdade. A boca contraiu-se, ciente de que escolhera a pior noite possível para voltar à sua vida. Hoje era o terceiro aniversário da morte do irmão dela. E ele era o responsável por essa morte. Ciente de que não teria tempo, Jessica nem mudou de roupa. Menos de um minuto depois de entrar no cubículo que Joe, rindo, chamava de camarim, já saía novamente, um fino cardigã cobria o vestido dourado, calçava tênis em lugar dos saltos altos. Os pés doíam, machucados pelos sapatos baratos, mas achara melhor ignorar a dor. Os pés sempre doíam. Tudo doía. Hoje não seria diferente. O coração batia forte, as palmas das mãos suavam, mas forçou-se a concentrar-se, sabendo que se deixasse o medo invadi-la, tudo estaria perdido. E ela devia isso a Johnny. Saberiam o que representava o dia de hoje ou seria apenas uma coincidência? Um nó formou-se em sua garganta ao pensar no irmão. Ele sempre a ajudara, mas quando se metera em confusão, ela não fora capaz de salvá-lo... Acalentando a raiva, saiu no escuro beco atrás do bar, receosa do que a esperava. Terminaria ali naquela rua escura entre pessoas que não se importavam se ela vivesse ou morresse? — Vejam, se não é nossa bonequinha... — Uma voz masculina saiu das sombras. Emergiram em grupo, capuzes nas cabeças, os rostos ocultos pela escuridão. — Tem o dinheiro ou vai nos presentear com uma apresentação particular? Morta de medo, Jessie conseguiu abrir um sorriso. — Não tenho o dinheiro, mas tenho outra coisa. Melhor ainda — disse com voz rouca, suave e cheia de promessas. — Mas vocês não vão ganhar ficando tão longe. — Deu um sorriso provocante para o líder, convidando-o a se aproximar. — Precisa chegar mais perto. Um de cada vez. O homem riu. — Sabia que você tinha juízo. Por que está cobrindo o vestido dourado? — Saltou em sua direção. Jessie obrigou-se a ficar parada e calar o grito preso na garganta. — Está chovendo. —Abriu o cardigã e viu a satisfação brilhar nos olhos, o cérebro parar de funcionar. Homens são tão previsíveis. — Estou com frio. — Não vai sentir frio por muito tempo, boneca. Somos seis para te esquentar. — Parou diante dela, arrogante, exibindo-se diante dos outros membros da gangue. — Cadê os sapatos sexy de salto alto? — Ele agarrou o cardigã e arrancou-o, o movimento rasgando o fino tecido. — Espero sinceramente que não tenha esquecido o salto alto, gatinha, ou vou ter que puni-la. — Não esqueci os sapatos — disse, meiga. — Na verdade, estão bem aqui. — Realmente zangada por ele ter arruinado seu único cardigã, pegou o sapato e enfiou-lhe o salto fino com força na virilha. O homem dobrou-se de dor, estatelando-se no chão. Deteve-se um momento, levemente chocada diante da visão do corpo agonizante, contorcido. Então o sapato caiu- lhe das mãos e ela correu. Os tênis entravam nas poças, a respiração estourava-lhe os pulmões e os joelhos tremiam tanto que as pernas não obedeciam direito. Atrás ouvia
  • 6. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan gritos, palavrões e o barulho de passos. Parecia ser perseguida por um bando de cães de caça furiosos e a terrível inevitabilidade do fim diminuiu-lhe a força. Era melhor correr e ser atacada por trás? Ou melhor, virar-se e enfrentar o inimigo? Queria ver o que estava acontecendo... Então bateu em algo sólido e um par de mãos fortes a seguraram, interrompendo-lhe a fuga. Ai, meu Deus, um deles conseguira se antecipar. Não tinha escapatória. Por um único momento, ficou imóvel como um pássaro assustado preso nas garras de um falcão, e então o som de gritos e dos passos elevou-se e soube que tinha poucos momentos. O instinto de sobrevivência falou mais alto. Ergueu o joelho para golpeá-lo, mas esse homem era mais rápido do que ela. Prevendo o movimento, desviou o corpo. Sem emitir um som, segurou-a pela cintura e a prendeu, deixando-a sem espaço para manobras. Presa entre as coxas fortes e os músculos de pedra, tentou desesperadamente, sem êxito, encontrar um ponto fraco. Entretanto, ser agarrada por aquele corpo másculo despertou uma reação totalmente inesperada nela. Pânico, sim. Também algo mais íntimo, duas vezes mais assustador. Jessie tentou se desvencilhar, chocada e horrorizada com a súbita chama que a possuiu. Devia ter algo a ver com a adrenalina. Algo sobre os momentos finais antes de a morte deixar seus sentidos mais aguçados. A morte a dominava e ela estava excitada. Ainda tentava encontrar uma explicação para a inexplicável reação quando tomou consciência da súbita mudança no corpo masculino pressionado contra o seu. Então o mesmo acontecia com ele, pensou com um sorriso amargo. Afinal, ele tinha um ponto fraco... o mesmo de todos os homens. Tirando vantagem disso, cobriu-lhe a masculinidade com a mão. O choque dele foi ligeiramente maior do que o seu. Ouviu um sibilar entre os dentes por uma fração de segundo antes de ele afrouxar o aperto. Era tudo de que precisava. Deu-lhe um soco na cara e voltou a correr. Pouco mais de três passos adiante, os braços novamente se fecharam nela e a penduraram como uma boneca de pano. — Maledezione, nunca mais faça isso! — A voz fria e furiosa encheu-a de terror. Jessie sentiu um medo muito mais profundo do que jamais experimentara, pois finalmente reconheceu quem a segurava. Atônita, olhou o rosto que socara. — Silvio...? — Stai zitto! Fique quieta! Não diga nada — ordenou, os dedos apertando-lhe os pulsos quando os homens os alcançaram. A mente de Jessie esvaziou-se. Silvio Brianza. Em seguida, imagens explodiram. Imagens da última vez que o vira. Imagens que banira do cérebro. — Ei, obrigado por pegá-la. — Esse não era o homem que machucara com o sapato e Jessie ficou tentando adivinhar se o amigo ainda estaria estirado no beco, contorcendo- se. Pouco lhe importava. Deixara de se preocupar com eles. O ar encheu-se de outro tipo de tensão e suas emoções concentravam-se no homem cujo corpo forte pressionava o seu. Ao tentar soltar-se, ele urrou de raiva. Gostaria que fosse qualquer um, menos Silvio a vir salvá-la. — Solte-me. Não quero sua ajuda. — Claro que não; você está se virando bem sozinha. — O tom zombeteiro a deixou ruborizada, sentiu-se humilhada por ser vista nessa situação. — Deixe comigo — murmurou, sabendo que ele não a soltaria. Silvio Brianza era
  • 7. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan muito macho para deixar uma mulher lutar sozinha. Pensar nele como homem foi um erro. Voltou a corar lembrando-se do estado em que ele se encontrava quando ela colocara a mão nele. Bendita escuridão! Deu uma risada histérica. Prestes a ser morta, pensava de novo em sexo. Só ele mesmo exercia esse efeito sobre ela. Sempre a fizera pensar no que não devia. — Você vai ser morto, Silvio. — Achei que fosse esse o seu desejo. A referência ao último encontro a fez estremecer. Quantas noites passara planejando sua morte enquanto o resto do mundo dormia? Mil maneiras de matar Silvio Brianza. Era o que queria? Não conseguia raciocinar direito apertada contra seu corpo. Tudo o que sabia é que o medo sumira. Perto dele, sentia-se a salvo. O que era ridículo. Nunca estivera menos segura em toda a vida. — Fora. Ela é nossa. — A voz rude e ameaçadora avisou: — Pode entregá-la e voltar para seu carro de luxo. Não queremos briga com você. Carro de luxo? Jessie virou a cabeça e viu a Ferrari estacionada no final do beco. Um portal para outra vida. A constatação de como Silvio progredira. Ele deixara tudo isso para trás. Este deixara de ser o seu mundo. Então, o que fazia ali? Por que escolhera justo hoje para retornar ao passado? O homem que machucara com o sapato finalmente uniu-se aos amigos, os olhos fuzilando de raiva e ressentimento. Olhou aqueles olhos esgazeados de droga e viu a própria morte. Os pensamentos eram estranhamente objetivos ao se preparar para o fim. Com Silvio ao seu lado, haveria uma briga, mas seria impossível vencerem. Seria rápido o final? Uma faca? Um revólver? De repente, percebeu que não desejava que Silvio morresse. Não por ela. Tentou falar, mas Silvio beijou-a — um beijo avassalador. Não protestou, de tão chocada. Ou teria talvez a falta de reação a ver com os pensamentos maliciosos dos últimos momentos? Entreabriu os lábios para a boca quente, o prazer dissipando o medo. Retribuiu apaixonadamente, com tanto ardor quanto ele. Durante quase toda a adolescência fantasiara esse beijo. Mesmo após aquela noite terrível, quando seu mundo desabara e a atitude em relação a ele alterara-se irrevogavelmente, ainda fantasiava o beijo. Mas os sonhos alimentados não chegavam perto da realidade. A boca deixou-a com a cabeça oca. Porém, se tivesse que escolher um momento para morrer, seria esse. Em meio à onda de desejo, ouviu o riso abafado dos homens. — Puxa, que egoísmo — reclamou um deles. A cabeça ainda girando do beijo, nem notou que Silvio a soltara até ele dar um passo à frente, saindo das sombras. No movimento, uma ameaça que a deixou ao mesmo tempo assustada e fascinada. Ele não falou — permaneceu frio, o rosto lindo não demonstrando qualquer emoção ao confrontar os homens. E isso, refletiu, era tudo a ser dito sobre Silvio Brianza. Um guerreiro solitário. As pernas ameaçavam ceder, se de desejo ou de medo já não tinha certeza. Apenas sabia que queria gritar, avisá-lo que não morresse por ela, mas os lábios tinham ficado paralisados pelo toque de sua boca e ela não pensava em mais nada exceto na sensação de ser beijada por ele. E, então, notou que o roteiro não acontecia como previra. Em vez de atacar Silvio, o grupo recuava. Haviam perdido a coragem e a intenção de matar e apenas o encaravam. A água de uma calha pingava em sua nuca. Jessie estremeceu tentando adivinhar o
  • 8. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan que ocorria. Por que seis homens recuariam diante de um? Confusa, viu Silvio parado sob a luz fraca do beco e entendeu o que eles tinham visto. A cicatriz cortando sua face — a única falha no rosto perfeito. Caso contrário, os traços pareceriam obra de Michelangelo. Jessie tentou ouvir a conversa, mas os pingos d'água dos telhados abafavam as palavras que ele dizia e a escuridão impossibilitava a leitura dos lábios. Em determinado momento, julgou ouvir alguém dizer "o siciliano", mas não podia ter certeza e eles obviamente não tinham interesse em incluí-la na conversa. Quando teve a ideia de sair de fininho, todos se voltaram para ela. Jessie ficou imóvel e por um segundo achou que Silvio se juntaria a eles. Tinha credenciais, bastava tirar as roupas caras. A princípio, ele vivera entre gente como aquela; fora o chefe da mais temida gangue. Os olhos penetrantes a fitaram; por uma fração de segundo, ele virou um estranho. Viu o que os outros tinham visto. E o que viu era aterrorizador. Engoliu em seco. Apesar dos desentendimentos, ele nunca a machucaria fisicamente. Emocionalmente? Emocionalmente ele havia conseguido o que uma infância difícil não conseguira. Ele a deixara em pedaços. Seus olhos percorreram a cicatriz; a respiração parou; encararam-se. A tensão no ar metamorfoseou-se em algo mil vezes mais perigoso. Sem quebrar o contato visual, Silvio caminhou em sua direção, assustadoramente calmo. Jessie desejou avisá-lo que não devia virar as costas para aqueles homens, mas não ousou romper a tensão que mantém todos imóveis. Quando ele a alcançou, ergueu a mão e afastou-lhe o cabelo do rosto — gesto totalmente inesperado em situação tão tensa. Um toque ao mesmo tempo deliberado e possessivo, como uma declaração sobre o relacionamento. Ela não entendeu nada, pois não tinham mais um relacionamento. Fora destruído naquele quarto miserável exatamente três anos atrás, diante do corpo sem vida do irmão. Então ele abaixou a mão. — Andiamo. Vamos. Entre no carro — ordenou. Jessie obedeceu não por querer entrar no carro, mas por estar hipnotizada por sua aura de autoridade, assim como os membros da gangue. Ele dominava aquele ambiente sem lei com a força de sua presença. Jessie entrou na suntuosa Ferrari como quem entra em outro mundo. Momentos depois ele entrou e ela não sabia se o ronco vinha do motor ou das profundezas de sua garganta. Tudo o que sabe era que se enganara quanto a seu estado. Ele não estava calmo. Nada calmo. Forçada à proximidade pelo espaço exíguo do carro, percebia sua luta contra a raiva, o que a desnorteou. Em todos os anos de convivência nunca o vira assim. Nunca perdera o controle. Nem na noite em que o relacionamento deles fora por água abaixo. — Silvio... — Não diga nada. — A voz tensa não lhe permitiu completar a frase. Sem olhar em sua direção, manteve os olhos fixos da estrada, acelerando como se competisse pelo título da Fórmula 1. Jessie ficou tentada a argumentar que não fazia sentido livrá-la de uma ameaça para matar a ambos num acidente de carro, mas manteve-se calada. Por que ele? Por que justo ele tinha que salvá-la? Passado o perigo imediato, os pensamentos se confundiam. A adrenalina fora diluída por outro hormônio e só pensava naquele beijo. O corpo ainda trêmulo, quanto mais se lembrava de como correspondera, mais alarmada ficava. Teria ele notado sua reação? Afundou no assento, torcendo para que ele estivesse distraído demais para registrar como ela desempenhara seu papel com entusiasmo. Não tinha vergonha? Como fora possível reagir daquela maneira? Passara três anos
  • 9. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan odiando-o. O cérebro passava slides — em um minuto lembrava-se de ficar sem fôlego quando ele a beijou, no seguinte via o rosto do irmão. Chocada, confusa, destroçada, percebeu que tinha parado de pensar nos seis homens que haviam tentado matá-la. Definitivamente não fazia sentido. Olhou Silvio de relance. Ele era apenas um homem. Por que se sentia segura? Conteve uma risada histérica. Por que tal pergunta? As visíveis marcas de sucesso não o alteraram. O relógio caro, o carro — nada disso mudara o homem. Sob a fachada sofisticada que lhe permitia frequentar a alta sociedade, Silvio era puro aço. Duro, a essência de um verdadeiro homem. Sentia-se segura por estar segura. Fisicamente. Qualquer mulher ficaria segura com ele, apesar de apenas ela compreender quem realmente ele era. Bastava olhá-lo para ser invadida pela culpa. Desviou o olhar para trás. Não por achar que alguém seguiria a Ferrari. Seria o mesmo que mandar um asno perseguir um cavalo de corrida. — Eles o chamaram de "siciliano". — Incapaz de conter-se, lançou outro olhar ao perfil. Obedecia a uma compulsão irresistível. — Faz tanto tempo que deixou para trás essa vida e, no entanto, sua fama ainda os assusta. Conheciam você. — Olhou-o fascinada, perguntando-se o motivo de não sentir medo dele. Seria por não poder ver a cicatriz? Desse ângulo era invisível, as feições perfeitas. Perfeitas, mas frias. Até aquela noite, diria que ele nada sentia, embora tivesse sido evidente que sentia alguma coisa. Perguntou-se por que ele estava tão zangado. — Por que veio aqui hoje? — Ouvi um rumor sobre um grupo da pesada e uma garota com voz de veludo. — Mudou a marcha, fez uma curva fechada e acelerou tão rápido que a cabeça de Jessie bateu no assento. — Eu não estava procurando confusão. Os olhos dele estavam fixos na rua londrina. — Quanto ele devia? Jessie deu um sorriso sem graça, embora nada surpresa por ele conhecer a verdade. Não perdeu tempo fingindo não ter entendido. Nem perguntou como ele sabia. Ele sabia tudo. Tinha contatos em todas as camadas da sociedade — uma rede que faria tanto os alpinistas sociais quanto a polícia morrer de inveja. — Quarenta mil — disse sem rodeios, na esperança de que o valor não, soasse exagerado. — Era o dobro disso, mas eu já paguei metade. O resto do pagamento está atrasado. Por isso vieram atrás de mim hoje. — Não lhe deu maiores detalhes. Mas ele sabia. Conhecia a fome, a violência e a privação. Um segundo antes de controlar-se, ela viu o brilho de raiva em seus olhos. — Você pagou? — A pergunta saiu sibilante, lembrando-a que este homem era duas vezes mais perigoso do que aqueles de quem a resgatara. — Eu não tinha escolha. Mudou a marcha com violência. — Mas podia ter procurado a polícia. As ruas escuras passavam voando. Será que ele não percebia que ultrapassara um sinal fechado? — Isso só pioraria a situação. — Para quem? Cidadãos cumpridores da lei não deviam temer a polícia. Ou tinha medo de ser presa? — O desprezo na voz a desnorteou até perceber o olhar passando de
  • 10. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan relance por suas pernas desnudas. Então viu a fúria e entendeu o significado da raiva. Ele achava que ela... Por isso estava tão zangado? Jessie ficou tão chocada que, por um momento, não conseguiu responder. — Que tipo de trabalho você imagina que eu faço? — Presumivelmente o mesmo que as outras garotas naquele cabaré. Achava que ela era prostituta. Encostou a cabeça e começou a rir. Ou ria ou chorava e não havia chance de chorar na frente desse homem. Derramara todas as lágrimas na solidão. — Você acha engraçado? — Pisou ainda mais fundo no acelerador. Por que ela se importava tanto com o que ele pensasse dela? — Uso o que Deus me deu. O que há de errado? — Coisa mais estúpida de dizer. Provocativa, vulgar. Como um pedaço de carne diante de um lobo faminto. Tão logo emitiu as palavras, arrependeu-se. Tarde demais. Tarde demais para que tudo fosse diferente entre eles. Tarde demais para desejar que o passado não existisse. Talvez fosse mais seguro. Se sua opinião era essa, melhor para ambos. Assim ficariam protegidos da química entre eles, funcionando como um campo de força. Ela não queria. Ele não queria. Ele parou o carro abruptamente. Jessie encolheu-se diante da fúria em seus olhos. — Se estava tão desesperada por dinheiro, podia ter me procurado. Não importava o que tivesse acontecido entre nós. Nada importava. Você estava em dificuldades, deveria ter me contatado. — Você seria a última pessoa no mundo a quem eu pediria ajuda. — As palavras saíram num sussurro, abalada demais para ser mais convincente. Auto depreciação mesclada a uma desesperada nostalgia a deixaram assustada. Não queria se sentir assim. — O orgulho pode matar. — Não se trata de orgulho. Mesmo que quisesse entrar em contato com você, não saberia como. Não o conheço mais. — Nem a si própria. — Você está sempre cercado de pessoas chiques e seguranças, embora eu não entenda a razão dos guarda-costas. — Voltou-se para fitá-lo e de pronto desviou o olhar, pois bastou ver-lhe a boca para lembrar- se daquele beijo. — Qual o porquê dos seguranças? Você não precisa de ajuda. Ou está preocupado em sujar seu terno caro? — Não mude de assunto. Preferia realmente morrer a me procurar? Está falando a verdade? Jessie olhou à frente, surpresa ao perceber que tinham estacionado perto do seu prédio. — Sabe a razão de não ter procurado você. — Si, sei. Você me odeia. — O tom era indiferente, mas continuava apertando o volante. — Você me culpa por tudo. —Não por tudo, apenas por aquilo. Sabe que dia é hoje? A voz tremeu de emoção. Os olhos dele faiscaram. — Como poderia esquecer essa data? Ajuda saber que eu me culpo tanto quanto você? — A chuva desabou, embaçando a visão. Feito lágrimas, pensou vendo a água escorrer pelo vidro dianteiro.
  • 11. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Não, não ajuda. — Nada ajudava. A lembrança daquela noite pairava como uma nuvem ameaçadora anunciando a tempestade. Jessie soltou o cinto de segurança e abriu a porta do carro, compelida a fugir das lembranças e da conversa indesejada. — Obrigada pela carona. — Não disse "até em casa" porque não pensava naquele lugar como casa. Era apenas o lugar onde dormia por enquanto. Até se mudar, como o fazia regularmente. Chovia muito, o piso escorregadio estava cheio de detritos, os grafites nas paredes brilhavam sob a lâmpada do poste. Sentiu-se ridícula ali parada, encharcada até os ossos em seu vestido dourado barato. Diminuída, perto dá Ferrari e do bilionário. Jessie, a prostituta. Era isso o que parecia? Adeus às fantasias de cantar em estádios lotados ou casas de espetáculos. Tão distante do sonho como a mulher comum cantando enquanto segura o secador de cabelos. Tão distante quanto ela do homem que saía do carro. Os olhos dele brilhavam na luz amortecida. Ignorando a chuva, Silvio tirou o casaco e protegeu-lhe os ombros. Cobriu cada milímetro do seu corpo, como se não suportasse vê-lo. — Você se dá conta de que este é o último lugar no mundo onde uma mulher normal andaria sozinha à noite? O casaco a cobria, quase roçando o chão, cobrindo-lhe as mãos. — Eles andaram me seguindo. Não sabem que moro aqui, mas preciso me mudar. — Enrolou as mangas, tentando encontrar as mãos. Nesse instante, ficou paralisada, defrontada com a verdade. Ele sabia que ela morava ali. Empalideceu. Fitou-o horrorizada. — Você não perguntou onde eu morava. — A voz não passava de um sussurro entrecortado. — Como sabia? — Eu me encarrego de saber de tudo. E se eu sei, pode ter certeza que aqueles animais também sabem. Calculo que temos menos de dez minutos para retirar suas coisas antes que eles cheguem aqui. Ande! CAPÍTULO DOIS Térreo. Ela morava no térreo. Silvio permaneceu imóvel, louco de raiva, enquanto ela abria os trincos da porta. Sabia que a habilidade em controlar as emoções era o que o separava dos animais deixados para trás, mas naquele momento sentia-se igual a eles. O que ela lhe dissera? Uso o que Deus me deu. Lembrando-se do modo despreocupado com que falara, afastou-se, incapaz de falar ou sequer olhá-la. Revia Jessie criança, agarrada ao irmão, sem compreender onde fora parar sua confortável vida familiar. Não conseguia conciliar essa visão de vulnerável inocência com a realidade — continuava vendo Jessie no vestido colante dourado, usando o que Deus lhe dera.
  • 12. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan A inocência desaparecera. Soubera no momento em que a beijara e ela correspondera: fogosa, desinibida. Só a lembrança causou imediato impacto em seu corpo. Silvio xingou em italiano, exasperado com sua inabilidade de apagar essa parte. Sabendo que sua prioridade era tirá-la dali, respirou fundo e obrigou-se a concentrar-se no que era importante. Salvar-lhe a vida. Voltando-se, viu que ela tremia debaixo do casaco dele, mas sabia não poder ajudar. Embora ela vendesse seus favores, instintivamente soube que se a tocasse arriscaria acrescentar outra ferida à que doía do lado direito do rosto. Não se surpreendera por ela saber bater. Ele lhe ensinara. Ela abriu o último trinco e empurrou a porta. — Lar, doce lar. Agora pode ir. Obrigada pela carona. — Não vou a lugar nenhum. — Eram um alvo perfeito na entrada mal iluminada e ele não a deixaria ali. Silvio observou a pintura intacta da Ferrari preta, o carro tão visível e deslocado quanto uma nave especial num parquinho. — Se está preocupado com seu brinquedinho, vá brincar — disse debochada. Ele a empurrou, plantando-se diante dela. — O que está fazendo? Não convidei você para tomar café, se é isso que pretende. Ganhou um beijo de graça. É tudo o que vai conseguir. — A bravata escondia um oceano de medo. Quanto tempo demoraria a admitir estar apavorada? — Aquele beijo salvou-lhe a vida. — Mesmo que ao preço da estabilidade mental dele. Dando o que supôs ser a última olhada em seu carro, entrou no apartamento, sabendo exatamente o que encontraria. Passara grande parte da infância em lugares como esse — grades na janela, trancas na porta, a caixa de correio inutilizada, pois das coisas que colocariam em sua porta, certamente não estaria incluída uma carta. Voltar ali era mais difícil do que estava preparado para admitir, mesmo a si próprio. Úmido, pequeno; em menos de cinco segundos, verificou não ter ninguém ali. Fechando as cortinas e trancando a porta, virou-se. — Você não devia morar no térreo. — Tão logo falou, veio a vontade de morder a língua. Justo ele devia saber o motivo pelo qual ela escolhera esse andar. Arrependido, apertou as têmporas. Palavras sensíveis não lhe ocorriam com frequência, mas tinha certeza de que poderia ter feito melhor se não estivesse distraído. Antecipando-lhe a reação, fitou-a e ela o encarou, os olhos escuros lagos de desafio. — Sé quer que eu rasteje, está perdendo tempo. Sou dura na queda. Silvio balançou a cabeça, sem saber se ria ou a estrangulava. — Não temos tempo para você rastejar. Tem quinze minutos para pegar o que é importante. Depois, vamos nos mandar. — A visão do vestido dourado anuviou-lhe o cérebro. Desviou o olhar. O fato de precisar fazer isso mostrou que ele estava à beira do precipício. Pensando melhor, devia ter encontrado outra maneira de garantir-lhe a segurança sem beijá-la. Nunca antes perdera o controle e sabia que se a visse naquele vestido sexy começaria a pensar o mesmo que todos os outros homens ao olhá-la. Quantos deles a teriam acariciado? E por que esperara três anos para procurá-la? Por que achara que ela ficaria melhor longe dele? Aparentemente inconsciente do seu tormento, ela fez menção de pegar algo na estante. O casaco escorregou dos ombros e o movimento do corpo permitiu- lhe vislumbrar a liga. E algo mais. Irritado, deu um passo à frente e enfiou a mão debaixo
  • 13. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan do vestido, ignorando-lhe o insulto. Recuou com a faca na mão. — Maledezione, o que é isso? — Uma faca. Parece até que nunca viu uma antes! — Não devia carregar isso. — Os dedos brincaram com a lâmina. — Se eu não tivesse aparecido. — Eu teria usado a faca se precisasse. Pensar no que poderia ter ocorrido, caso ela tivesse puxado a faca, gelou-lhe o sangue. Quase a perdera. Um coro de latidos do lado de fora o lembrou que não tinham tempo para reflexões ou recriminações. Guardou a faca no bolso e pegou o casaco do chão. — Pegue um casaco. Você deve ter um. Apresse-se. — Tinha sido tolo em deixá-la voltar ao apartamento, mas em seguida lembrou-se de que precisavam do seu passaporte. — Não entendo a pressa. Vai demorar um tempo até encontrar outro lugar para morar. — Abrindo o armário, pegou uma caneca e estendeu-lhe. — Quer água? Não posso lhe oferecer café, pois o gás e a eletricidade foram desligados semana passada. — Você perdeu 30 segundos de tempo para juntar as coisas — resmungou, espiando pela janela e vendo o piso de concreto que conduzia aos apartamentos. A área o fazia tremer. Quantas vezes ela arriscara a vida atravessando aquela rua imunda e deserta tarde da noite? — Tomo isso como um não. — Dando de ombros, colocou a caneca na mesinha. Silvio franziu o cenho ao ver as queimaduras nas articulações dos dedos. — Tinha esquecido da sua mão. — Minha mão vai bem. E o seu rosto? — Também. — Lutando contra emoções que julgava esquecidas, abriu a pequena geladeira deparando com as prateleiras completamente vazias. — O que você come? — Costumo comer fora — respondeu alegremente, a figura muito magra contando outra história. — Não consigo passar uma semana sem jantar pelo menos uma vez num restaurante cinco estrelas do guia Michelin. Ignorando-lhe o sarcasmo, lembrou-se que sua prioridade era tirá-la daquele lugar e não classificar as deficiências da sua dieta. — Onde fica o freezer? — Não tem. Vai ter que tomar gim-tônica sem gelo. Sinto muito pelo inconveniente. Se a situação não exigisse presa, teria admirado sua coragem. Quem sabe ela não tinha consciência do perigo que corria? Então ele viu as olheiras. Sim, ela tinha consciência. O fato de estar terrivelmente assustada, o atingiu. Suas escolhas de vida voltavam para assombrá-la e o remorso o invadia porque se ele tivesse permanecido ao seu lado, tudo teria sido diferente. Ele achara que partir era o melhor que podia fazer por ela. Ao vê-la, sabia ter sido o pior. — Outro minuto perdido. Esqueça o gelo. Pensamos nisso quando chegarmos ao meu apartamento. — O machucado na mão estaria pior, mas teria de encontrar outro meio de lidar com isso. Melhor do que continuarem nessa tensão. — Não vou com você. — Voltou-se, encheu a caneca e sedenta, tomou toda a água, mas a mão tremia. — Suma da minha vida. — Fiz isso antes. Não funcionou muito bem, certo? — Funcionou perfeitamente para mim.
  • 14. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Voltei, Jessie, queira ou não. — Você não pode pagar meu preço, Silvio. Pode ser rico, mas não faço parte da sua turma. —A alusão ao seu estilo de vida duvidoso o encheu de raiva. Teve vontade de empurrá-la na parede e obrigá-la a contar por que deixara isso acontecer. Mas já conhecia a resposta. Ele era responsável. Por causa dele, deixara de gostar de si. Por ele ter se deixado mandar embora, ela não fora capaz de se proteger. A culpa o arrasou, mas afastou-a sabendo que o sentimento não levaria a nada. O importante era seguir em frente, como sempre vivera. — Mais trinta segundos perdidos. Espero que você leve poucas roupas quando viaja. — Silvio espiou pelas frestas da cortina. A primeira visão foi do seu carro cercado por uma pequena multidão. A segunda, uma van preta amassada, sem luzes parada na extremidade da rua. Soltou um palavrão em italiano. — Acabou o tempo, Cinderela. Pegue seu passaporte. — Já disse. Não vou com você. —Anda! — Ela estremeceu. — Vamos antes que nossos miolos espalhem-se em sua parede. Mova-se. — Eu... — Então me ajude, Jess, minha reputação não vai nos proteger por muito tempo. Precisamos de algo mais concreto. Se disser mais uma palavra, eu mesmo acabo com você. — Distraído pelo decote do vestido dourado, encontrava dificuldade em se concentrar. — Pegue seu passaporte! — Eu não tenho passaporte. Foi você quem passou a fazer parte ao jet set, não eu! — berrou, as faces coradas, os olhos desafiantes. — Para que eu precisaria de um passaporte? Viagens internacionais não fazem parte da minha lista de prioridades. Consciente da vulnerabilidade revelada em tal confissão procurou uma resposta sensível, mas retorquiu com praticidade. — Eu consigo um passaporte para você. — Já disse, não vou... — Ou, vem por livre e espontânea vontade ou eu a arrasto. Você decide. — Chama a isso escolha? — A porta de um carro bateu e ela pulou. Ele percebeu- lhe o terror. — Acabou a discussão. — Agarrou-lhe o punho, mas ela resistiu. — Espere, preciso de uma coisa... — desvencilhando-se, correu e tirou uma caixa de sapato do armário. Desviando os olhos das coxas, espreitou pela cortina e viu as portas da van abrindo. Seis homens. Os mesmos seis. Pegando o celular, fez uma ligação que durou no máximo cinco segundos. Tentou tirar a caixa de sapatos da sua mão, mas ela a defendeu como uma leoa aos filhotes, de tal forma que os nós dos dedos ficaram brancos e a tampa amassada. — Não sei o que tem nessa caixa, mas não vale a pena arriscar a vida por ela. A janela do banheiro abre? Tem uma saída nos fundos? — Devia haver, pois Jessie não viveria num lugar sem várias saídas. — Por aqui. — Desapareceu atrás de uma porta.
  • 15. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Silvio a seguiu, batendo com a cabeça na soleira e entrando no banheiro minúsculo que vira ao procurar por intrusos. Mal tinha espaço para um, quanto mais para dois. Ela não voltaria ali, prometeu a si mesmo. Jessie empurrou a janela e pulou. Caiu na grama, o movimento permitindo-lhe outra visão das pernas maravilhosas. Ele passou pela janela, segurou-lhe a mão e correram para frente do prédio. Ela estancou. — Por aí não. Eles estão esperando por nós. — Eles entraram. — Ouvindo o estilhaçar da madeira, pegou-a nos braços e carregou-a na direção do carro no exato momento em que se ouviram as sirenes dos carros da polícia. Ainda agarrava a caixa de sapatos e o cabelo roçava-lhe o rosto, o perfume fazendo as lembranças atiçar seus sentidos. — O que tem nessa droga de caixa, Jess? — Coisas. Silvio, me bote no chão e dê o fora daqui... Você não vai querer se envolver nisso. Não precisa desse tipo de manchete em sua nova vida. Me deixe em paz. Foi a primeira vez que reconheceu Jessie — a jovem gentil, atenciosa, aterrorizada que conhecera quando ainda era um adolescente desajustado. — Não vou deixar você de novo. Acostume-se à ideia. E com um passado como o meu, é um pouco tarde para me preocupar com o que a mídia vai publicar. — Abriu a Ferrari e sentou-a, ainda agarrada à preciosa caixa de sapatos. O movimento foi brusco demais para o vestido barato e a costura abriu, testando- lhe o controle diante da exposição da calcinha sexy. Decidindo preferir defrontar-se com um revólver, recuou e bateu a porta. Sem olhar para trás, entrou no carro e acelerou, abandonando o passado, os olhos fixos à frente. Algo macio pressionado em sua face. Sentia-se bem aquecida. Se isso era o paraíso, era fantástico. — Jessie, pode me ouvir? Assumiu que deveria responder, mas estava tão quentinho, tão confortável... Não queria se mexer. A voz parecia zangada e ela preferia permanecer entre as nuvens protetoras do sono, onde nada poderia atingi-la. — Maledezione, devia ter tirado esse vestido molhado. Ela está dormindo há muito tempo. — Pode ser o choque, chefe. Está bem agasalhada pelas cobertas. Quer que eu chame um médico? —Não, ainda não. —A voz firme, zangada novamente. Só que desta vez havia um toque extra no tom frio. Preocupação? Teria dormido tanto? Com certeza não. Nunca dormia. Apenas cochilava, mantinha-se acordada pelos pensamentos atormentados e a constante ameaça de perigo. Flutuando entre o sono e o despertar, percebeu que tinha dormido por ter se sentido segura. Pela primeira vez, há tempos, sabia estar a salvo. Abriu os olhos e encontrou os dele. O coração se entregou naquele único olhar e viu uma chama arder. Não se ouvia um som no quarto. Nada, exceto o pulsar do seu corpo e a respiração profunda de Silvio. E então ela lembrou-se. Lembrou-se o porquê de não poder sentir-se assim. Ele afastou-se instantaneamente, o contrair da boca a única indicação de ter lido seus pensamentos.
  • 16. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Tem um banheiro bem ali. — O tom era neutro. Gesticulou mostrando um arco. — O quarto de vestir fica ali. Pode pegar qualquer roupa que sirva em você. Quando tiver se lavado, conversaremos. — Quarto de vestir? — Jessie sentou-se, percebendo que o calor e o conforto vinham do cobertor de veludo berinjela. Debaixo da coberta, ainda vestia o minúsculo vestido dourado e perto dela, estava a caixa de sapatos. Com um suspiro de alívio, abraçou-a. Silvio a observou por um longo e perturbador momento, e um homem apareceu na entrada. — Sim? — Inspetor-chefe Warren no telefone. Disse ser urgente. — Eu ligo de volta. — Voltou-se para ela, que o fitava, incrédula. — Você chamou a polícia? — É para isso que são pagos, Jess. Para lidar com o crime. Preciso retornar a ligação. — Olhou o relógio. — Se precisar de algo, chame. Estarei aqui fora. — Não, espere, não podemos ficar aqui. Se sabiam onde eu morava, então provavelmente nos seguiram. Eles são perigosos... — O pânico expandiu-se como as asas de uma borboleta aprisionada e os lábios dele curvaram-se num sorriso sardônico. — Eu também sou perigoso — disse, baixinho. — Ou já esqueceu? Esquecera tudo e os olhos ergueram-se para o rosto bonito e frio. — Você usou a polícia como tática para afastá-los por um tempo, mas não vai funcionar para sempre. Eles querem dinheiro, e querem... — Não conseguia articular o resto da frase. Nem precisava, pois ambos sabiam a que se referia. Os olhos faiscaram; virou-se bruscamente e caminhou para a janela, parecendo inquieto. — Se não pode nem dizer a palavra, talvez seja melhor considerar mudar de profissão. Deveria tê-lo corrigido, mas não quis. Que pensasse... Sua repulsa e desprezo ajudariam a criar a distância de que ela necessitava. — Que lugar é esse? — Olhou o quarto espaçoso e luxuoso. — É um hotel? Bem esperto. Eles não me procurariam num lugar chique como esse. — É o meu apartamento — respondeu sem virar-se. — E você está deitada na minha cama. Seu apartamento? Sua cama? Tentando não pensar na parte referente à cama, engoliu em seco, odiando-se por ser tão idiota. Por não saber que apartamentos grandes assim existiam. Sentindo-se desajeitada e nada sofisticada, deu de ombros, indiferente. — Então os negócios devem estar dando certo, se pode pagar um lugar desses. — Os negócios vão bem. Jessie afastou o cabelo dos olhos. Podia apostar que ele nunca recebera alguém como ela no chique apartamento. Era um domínio masculino. Nada feminino. Nada rosa, nenhum babado, nenhuma concessão a detalhes delicados. Era sofisticado e caro, luxuoso. E surpreendentemente minimalista. Os cantos da boca ergueram-se. — Achei que não pudesse viver sem seus aparelhos. Cadê a TV de tela plana? — Escondida. Por quê? — Finalmente voltou-se, a expressão desprovida de
  • 17. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan emoções, os olhos escuros sem revelar seus pensamentos. — Quer assistir a algum programa? — Não. — Os olhos fixaram-se na moderna lareira ao fundo. Embora não estivesse acesa, ficou sem ar, obrigando-se a respirar com calma, sabendo que seus olhos estavam fixos nela. Observando. — Estilosa. — Murmurou a palavra entre os lábios secos e ele meneou a cabeça, aparentemente satisfeito com o comentário. Impressionada com a dificuldade em ocultar seus sentimentos, lembrou-se de manter a cautela. Ele a conhecia bem demais. — Essa é mesmo a sua casa? — Uma delas. Jessica tentou imaginou ser dona de um lugar desses e deu um sorriso esquisito. Não podia estar mais deslocada se ele a tivesse deixado na selva em seu vestido dourado barato. Na verdade, provavelmente se sentiria mais segura na selva. Afinal, costumava viver entre animais selvagens. Mas isso? Olhou o quarto espaçoso... Um ambiente extraterrestre. — Não precisa se sentir desconfortável, Jess. — Quem disse que estou? — As palavras saíram desafiantes. Tolice, pois ambos sabiam que mentia. Suspirou. — Nem precisa ter medo. — Não estou com medo. Estava aterrorizada. Não do grupo de homens decididos a derramar seu sangue, nem mesmo deste apartamento pretensioso. Ele a assustava. Seus sentimentos por ele. Sentimentos misturados, complexos, sinistros... O destino fora cruel ao enviá-lo como seu salvador. De repente, soube que não podia ficar mais tempo na cama — na cama dele. Afastou a coberta e silenciosamente passou por ele, sentindo os olhos acompanhando-lhe cada movimento. Não deveria se incomodar. Homens faziam isso. Olhavam. Aprendera a lidar com isso e deixara de se preocupar. Às vezes era mesmo útil, pois significava gorjetas mais gordas. Desta vez era diferente. Esse homem era diferente. — Onde estamos? — Não estava interessada em onde estavam, mas olhou pela janela, pois assim podia concentrar-se em outra coisa que não no homem. Levou um minuto para reagir ao ver que a vista era muito diferente do que esperava. Era a vista de um apartamento de um homem rico— Londres em seu melhor, as luzes cintilantes, uma cidade vibrante vestida para um encontro glamouroso, usando diamantes. Seu mundo. Abaixo, o rio Tâmisa serpenteava. Jess soluçou e recuou. Como se esperasse por essa reação, segurou-lhe os ombros e a manteve firme. — Está tudo bem. O pânico a sufocou, buscou o ar, vacilando entre a sanidade e a histeria. — Não é certo, não é certo, Silvio! Você me trouxe para o último andar! — A voz ficou aguda; ofegava. — Como pode fazer isso? Como? Preciso sair daqui! — Tentou desvencilhar-se, mas os dedos se cravaram em seus braços e ele a sacudiu devagar. — Jess, ouça. — A voz era autoritária, o aperto a impedia de correr. Ela teria ido para a sacada se tivesse chance e ele sabia disso. — Você não está presa. Está a salvo. Ouvia um rugido em seus ouvidos; tapou a boca com a mão, respirando tão rápido que o mundo começou a girar. Ouviu Silvio resmungar baixinho, conduzi-la pelo quarto e
  • 18. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan abrir uma porta. Diante dela, um escorrega sinuoso de metal, como num playground. Ela olhou com olhos vazios e ouviu-o suspirar. — Se sentar aí, estará no térreo em menos de quatro segundos. Eu mesmo o desenhei. Ainda segurando-a pelo punho, levou-a de volta à parede de vidro de onde se via o rio. Apertou um botão e a parede se abriu. O ar frio e a chuva a fizeram arfar, mas ele puxou-a para a sacada e fez um gesto. — Escadas. — O tom era decidido, o olhar coercitivo, ao tentar penetrar no terror que a consumia. — Neste quarto há três saídas. Você me entende, Jess? Três saídas. Tem outras nove no resto da casa. É impossível ficar presa aqui. Outra pancada de chuva tornou o vestido dourado barato um trapo encharcado. Tremia de frio, mas acenou. Ele levou-a para dentro, pressionou novamente o botão e mais uma vez o mundo lá fora sumiu e a parede de vidro fechou-a num casulo de luxo e calor. A humilhação inundou-a. — Desculpe... — Jessie, você foi tirada de uma casa em chamas quando tinha 5 anos. Não me peça desculpas. Sei o porquê de morar no térreo, não gostar de prédios altos, mas está a salvo aqui. Eu sei que não é o térreo, mas não tem como ficar presa. Confie em mim. Ele era o último homem no mundo em quem queria confiar, mas que escolha lhe restava? Nesse momento, metida numa enorme confusão, não podia dar-se ao luxo. Se abrisse mão da sua proteção, estaria morta. Sem soltar-lhe a mão, Silvio caminhou decidido até o banheiro. Apertou um botão na parede e a água quente e perfumada começou a encher a enorme banheira. Jessie queria dizer algo, mas não sabia o quê. Ele olhou os traços imóveis com um misto de preocupação e irritação. — Você está congelada, molhada. Teve um dia difícil. Tire esse maldito vestido, mergulhe na banheira, feche os olhos. Depois, pode comer. A julgar pela sua geladeira, deve estar precisando. — Os olhos percorreram-lhe o rosto e então, cautelosamente, soltou-lhe o punho, ainda a fitando. — Depois conversamos. Rangia os dentes. — Qual o sentido de conversar? Faça o que bem entender. Um sorriso irônico brotou da boca linda. — Isso mesmo, você tem razão. Entre no banho, Jess. Nossa, ela estava assim tão horrível? Afastou o cabelo ensopado do rosto. Devia parecer um rato molhado. Devia agradecer-lhe. Apesar da gratidão por sua intervenção, não conseguia pronunciar as palavras. Demonstrar gratidão por um homem que odiava era impossível. Ainda tentava botar para fora as palavras através dos lábios pouco cooperativos quando ele apontou um armário perto da banheira. — Toalhas. Se precisar de algo mais, é só chamar. — Parou na porta, bonito, sofisticado e muito à vontade nesse mundo. — Talvez seja melhor não trancar a porta. Fechou a porta e Jessie a trancou em seguida. Por que ele reaparecera de repente em sua vida? E por que a ajudava? Depois de tudo o que lhe dissera, não esperava voltar a vê- lo. Não podia ser culpa ou remorso. Sabia que Silvio Brianza não tinha consciência. Recostou a testa na porta fechada, constrangida com sua falta de controle e desejando que ele não tivesse testemunhado tudo. Depois riu. Ninguém, exceto ele, teria compreendido.
  • 19. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Mas Silvio estivera lá depois do incêndio. Ele morara no abrigo onde ela e o irmão adolescente, ambos órfãos, foram parar depois da tragédia que arruinara suas vidas. Tinham perdido tudo, todos, atirados num mundo ao mesmo tempo severo e cruel, nada familiar. Jessie virou-se e olhou a banheira, tentada pelas bolhas. Desde quando não entrava numa banheira de água quente? Já nem se lembrava. E nunca em uma como essa. Ficar simplesmente deitada e relaxar, sabendo que outra pessoa estava atenta ao perigo... Apesar de ter dormido, sentia-se exausta, mas sabia que não podia ficar ali. Não com ele. Fora de questão. Ele era seu inimigo. Esfregou os dedos nos lábios, tentando apagar a memória do beijo — dizendo a si mesma que não havia razão para culpa. Ele a beijara. Não o contrário. Mas ela não o impedira... Confusa e zangada consigo mesma, despiu o vestido dourado, destruindo-o ainda mais no processo. Não se sentiria culpada. Não lhe pedira ajuda. Mesmo no fundo do poço, não se aproximara dele. Hoje, não lhe restava outra escolha senão aceitar sua ajuda. Caso contrário, acabaria sangrando naquele beco. Sobrevivência, lembrou-se. Era disso que se tratava sua vida. Sobrevivência. Concluindo que não iria longe num vestido dourado ensopado, entrou no banho, gemendo de delícia quando a água quente aqueceu-lhe a pele. Só por um minuto, prometeu a si mesma, afundando. Que mal havia? Contudo, não conseguia relaxar. Estava tensa demais depois de todo o ocorrido, e deliciar-se com bolhas quentes como aquelas era algo que nunca fizera.' Sentia-se... decadente. Lavou o cabelo depressa e saiu do banho em menos de dois minutos, enxugando-se com uma toalha macia e quente. Espiando o vestido dourado úmido no chão, defrontou-se com o fato de que teria que pegar uma roupa emprestada. Seu instinto era recusar-lhe a oferta, mas como poderia? Suas poucas roupas estavam em seu apartamentinho úmido. Não sentiria falta de nenhuma delas. Questionando-se por se preocupar tanto com o recato, quando ele a julgava uma prostituta, enrolou-se num comprido roupão antes de sair cautelosamente do banheiro. Suas precauções provaram-se desnecessárias. O quarto encontrava-se vazio, a luz fraca, dando um toque de intimidade. Olhou a cama, a mente voluntariosa conjurando imagens que não queria ver. Era para lá que ele levava as namoradas? Beijava-as como a beijara? Afastando o pensamento desestabilizador, pegou a caixa de sapato resgatada no apartamento e colocou-a debaixo do braço. Perambulou pela sala de vestir, ciente de que o último apartamento em que morara caberia naquela sala e ainda sobraria espaço. Era imensa. Uma porta fora deixada aberta e ela espiou, como uma criança nervosa explorando o armário da mãe com medo de ser pega. Ficou boquiaberta; nunca vira nada parecido, nem mesmo em sonhos. Prateleiras de sapatos guardados em caixas transparentes; pulôveres e camisetas num arco-íris de cores, todos perfeitamente dobrados, cabides com vestidos glamorosos. Jessie estendeu a mão, tocou os vestidos, a seda escorregando entre seus dedos. Não havia nada barato ali. Nada condizente com a vida que ela levava. As roupas combinavam com o apartamento, o domínio de um milionário. Curvou-se para esconder a caixa de sapato amassada num canto da prateleira. — Você está bem? — A voz veio de trás e Jessie pulou como se tivesse sido pega roubando, colocando o vestido na frente, certificando-se de não deixar um milímetro de carne exposta. — Estou bem. — Você foi rápido. Contraiu-se na defensiva, sem querer admitir o nervosismo.
  • 20. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Levei o tempo necessário. Por que não está vestida? Jessie riu angustiada e olhou os cabides de roupas. — Porque não achei nada. O olhar percorreu os cabides de roupas e um sorriso brotou de seus lábios. — Comentário tipicamente feminino. Um armário cheio de roupas e nada para vestir. — Nada combina comigo. — Nada cai bem? — Não faço ideia se algo me cai bem. Não experimentei nada. — Por que não? — Porque não posso usar essas roupas, Silvio! De repente, desejou estar usando salto alto. Pelo menos não se sentiria tão pequena e insignificante ao seu lado. Ou talvez sim. Reconhecendo que o sentimento de inferioridade vinha de dentro, fitou-o, exasperada por ele não fazer ideia do que ela sentia. — Onde vou usar uma roupa arrumada dessa? Mal consigo andar pelas ruas usando um vestido longo... — Você não vai ficar andando pela rua. — Observando-lhe o rosto, recostou-se no batente da porta, completamente à vontade e indecentemente lindo. Jessie notou que ele tomara banho e mudara de roupa. Usava jeans preto, o cabelo escuro ainda molhado. Um relógio caro brilhava no pulso. Jessie ficou imaginando quanto teria custado. Mais do que ganharia ao longo de toda a sua vida. Ele parecia tão elegante e chique quanto o apartamento no qual morava e o carro que dirigia. E o mais importante, sentia-se à vontade ali. Tanto quanto naquele beco imundo. Era capaz de transitar entre os dois mundos sem vacilar. Sentindo o abismo aumentar, Jessie recuou. No passado o adorava. Mas isso fora há muito tempo. Agora, nem o reconhecia. — Olhe... — Pigarreou. — Se puder encontrar para mim um jeans velho ou algo parecido, seria ótimo. Então, posso me mandar daqui e deixar você viver a sua vida. Sem responder, Silvio abriu outra gaveta e momentos depois lhe despejou várias peças de roupas nos braços. — Tente essas. Dão para quebrar o galho até acharmos outras. Jessie olhou o jeans macio e meneou a cabeça. — Perfeito. Não preciso de mais nada. Tenho roupa no meu apartamento. —A ideia de voltar deixou-a morta de medo. Ele, obviamente, teve reação similar, pois os olhos ficaram frios. — Faça uma lista do que precisa e eu mando alguém buscar. Envergonhada, encolheu-se. Não queria que vissem quão pouco possuía. — Não é preciso. Eu tenho que voltar mesmo. — Você não vai voltar. Vai morar comigo por enquanto. O alívio mesclou-se ao medo. Por que ficar perto desse homem despertava emoções tão contraditórias? — Está planejando me manter trancada aqui em seu chique apartamento de solteiro para eles não me pegarem? — Riu em tom estridente. — Isso arruinaria sua reputação. Nem imagino o que seus novos amigos bacanas diriam se me conhecessem.
  • 21. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Gostariam de você. Caso contrário, isso seria problema deles, não seu. Jessie afastou-se, olhando o armário para esconder as lágrimas de humilhação. Devia estar cansada para estar tão emotiva. — Não posso ficar aqui com você. Seria errado. — Não acrescentou que se sentia deslocada. — Preciso ir embora. Tenho que ir. — Disse as palavras pensando nos dois, tentando agir corretamente. Mas o estômago embrulhou ao pensar em partir. Caso se afastasse dele, estaria abandonando a segurança. Realmente queria continuar lutando e olhando por cima do ombro, sempre desconfiada? — Não perca tempo em discussões consigo mesma. Lendo sua mente, encaminhou-se para a porta do armário. — Você não vai a lugar nenhum, Jess. Vai ficar comigo até eu dizer que é seguro voltar para lá. Fim de papo. Encarou o olhar duro, inflexível, o comportamento másculo e super protetor. Deveria discutir com ele. Horrorizou-se ao descobrir que não queria. Sentir-se protegida era muito bom. — Acha que eles vêm atrás de mim? — Não acho, eu sei. Vão checar se eu disse a verdade, mas não precisa ter medo. — Falou com a fria convicção de alguém que nunca tivera medo de nada. — Este lugar é uma fortaleza. Não podem chegar perto enquanto estiver aqui. Algo que ele dissera despertou-lhe a curiosidade. — Você mencionou que eles iam checar se você dissera a verdade? Que verdade? O que disse a eles para que recuassem? — O batimento cardíaco dobrou e as palmas das mãos ficaram úmidas ao lembrar-se dos momentos terríveis no beco. — Eles não iam me deixar ir embora. Achei que iam me matar... A tensão percorreu-lhe o corpo vigoroso e ela se perguntou se ele sempre fora tão intimidante ou se ela é quem se sentia mais vulnerável que de hábito. — Silvio? Como os convenceu a não me matar? — A boca ficou subitamente seca, as pernas trêmulas. — O que você disse? O silêncio se prolongou entre os dois, enquanto ele mantinha seu olhar firme e penetrante. — Disse a única coisa que garante que ninguém irá tocar em você. — O tom era rude e ele a observou, meditativo. — Disse a eles que você é minha mulher. CAPÍTULO TRÊS — Diga o que gostaria de comer e meu cozinheiro irá preparar. Ovos? Bacon? Panquecas? — Você disse que sou sua mulher. Por que faria isso? — Jesse andava de um lado
  • 22. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan para o outro pela imensa sala de estar, incapaz de concentrar-se em nada além das palavras ditas há pouco. — Não posso acreditar que fez isso. Sua mulher... Sentiu um frio no estômago, pois isso fazia parte de suas fantasias de adolescente. Enquanto as meninas eram loucas por garotos de bandas de rock e jogadores de futebol, Jessie pensava em Silvio Brianza. Quando o via com diferentes mulheres chegava a sentir dor física, e a infelicidade intensificara-se ao saber que ele conhecia seus sentimentos, o que era humilhante. Amava-o apaixonadamente, mas ele sempre a tratara como a irmã caçula do melhor amigo. Entre eles, um abismo de dez anos e experiência. E esse abismo aprofundara-se pelas circunstâncias da morte de seu irmão. Ela o traía só de estar ali. — Comida, Jess — disse, pacientemente. Fitou-o, agitada demais para se concentrar. Tudo parecia estranho. O lugar, ele, e até as roupas. O jeans e o pulôver de caxemira caíam perfeitamente, mas ela nunca usara nada semelhante antes. Incrível o que o dinheiro podia comprar. — Como pode pensar em comida? — perguntou com voz rouca. — Precisamos conversar. — Conversaremos depois que você tiver comido. — Irritantemente calmo, Silvio dirigiu-se em italiano à empregada que aguardava. Depois se voltou para Jessie. — Ela vai pedir ao cozinheiro para preparar alguma coisa. Você está magra demais. Quando foi a última vez que comeu? — Não estou magra e precisamos... — Não, não precisamos nada. Você precisa confiar em mim. — Dirigiu-se à grande mesa de vidro no centro da parte mais afastada da enorme sala. — Venha comigo. Dividida entre a fome e a culpa, não se moveu. — Sente-se, Jess. — O tom era neutro, como se estivesse cansado de toda a situação. — Ou me odeia tanto a ponto de não poder sentar-se à minha mesa? Jessie encarou-o em silêncio, refletindo como era possível sentir tantas emoções em relação a um homem. — Não posso sentar — disse, rispidamente, retorcendo a barra do pulôver com nervosismo. — Não posso comer sua comida nem dormir na sua cama. Simplesmente não posso. Sei que me salvou hoje, mas isso não muda o que sinto por você. Seu rosto não revelava qualquer emoção, mas a mão apertou as costas de uma cadeira, os nós dos dedos brancos. — Então você prefere morrer de fome e colocar sua vida em risco? — Posso cuidar de mim mesma. Felizmente ele não riu. — Você precisa de ajuda, Jess. — Não preciso. — Quer dizer que não precisa da minha ajuda. Afastando a cadeira, sentou-se, os olhos ainda fixos nela. A barba por fazer, as pernas compridas e fortes, um perfeito exemplar da fantasia secreta de todas as mulheres. — Você tem razão — Jessie resmungou, registrando o súbito fraquejar dos joelhos com uma ponta de arrependimento. — Não quero sua ajuda. Não quero nada de você.
  • 23. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Silvio estendeu a mão e brincou com o garfo, em movimentos lentos e deliberados. — Se sair daqui hoje — disse, calmamente —, eles a encontrarão. É isso mesmo o que quer? Jessie esfregou os braços com as mãos, tentando controlar o tremor. — Posso me proteger. — Como hoje? Não estou lhe dando uma opção, portanto não precisa ficar aí plantada refletindo se está traindo a memória do seu irmão se comer da minha comida. Não é decisão sua. Se isso a faz sentir-se melhor, pode dizer a si mesma que a estou mantendo aqui à força. — Um sorriso triste brotou dos cantos da boca sensual. — Outro crime a acrescentar aos muitos que já cometi contra você. Afastando o olhar para a janela, pensou no que a esperava lá fora, na escuridão e na chuva. Se o deixasse, morreria e não fazia sentido ter outras pretensões. Ele era o único capaz de protegê-la do perigo lá fora. Para minar ainda mais a sua resolução, nesse momento, surgiram empregados e puseram a mesa. Seu estômago indiscreto roncou. — Melhor comer enquanto agoniza se decidindo se é certo aceitar minha ajuda. — Fez um gesto impaciente na direção da mesa. — Sente-se. O cheiro de bacon frito a deixou salivando. Caminhou para a mesa tão hesitante quanto uma gazela aproximava-se do riacho, ciente de estar sendo observada por um predador. Felizmente, a mesa era grande o suficiente para jantarem sem precisarem sentar perto um do outro. Puxou a cadeira na extremidade oposta. — Esse lugar é imenso. — Espaço é importante para mim. — Por causa de todos aqueles anos amontoado em um quarto? Uma sombra cobriu-lhe o rosto. — Mais ou menos. — Bem, certamente você deixou tudo para trás. Curiosa, olhou à volta, momentaneamente distraída com o que viu. — Você construiu isso? — Não com as minhas mãos, se é isso que está perguntando. — A voz lenta e masculina tingiu-se de divertimento. — Minha empresa construiu. Era impossível não ficar impressionada com o que ele obtivera. — Você costumava fazer isso com as próprias mãos. Costumava carregar os tijolos e suar junto com os outros peões. — Olhando o braço musculoso coberto pelo tecido fino da camisa cara, refletiu se ele ainda pegava pesado. Afinal, algo devia fazer para manter o porte atlético. Esse não era o corpo de um homem que passava o dia numa mesa, entre papéis. As palavras seguintes confirmaram suas suspeitas. — Ainda faço algum trabalho braçal, mas nem mesmo eu tenho tempo para, sozinho, erigir prédios de apartamentos e hotéis. Vai comer de pé? Jessie sentou-se na beirada da cadeira. Obviamente ele não conversaria até ela ter comido; então, era melhor comer. — Essa sua empresa... diga, o que mais você constrói? — Observou a elegante mesa de vidro, perguntando-se se quebraria caso colocassem algo pesado em cima. — Basicamente hotéis. Mas posso ser persuadido a construir prédios comerciais,
  • 24. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan caso o projeto me desperte interesse. Jessie ergueu a faca na mão e girou-a, a luz refletindo-se no objeto de prata. Prata. — Você progrediu muito desde que trabalhava em canteiros de obras. — Era essa a intenção. — Mas você escolheu construir seu apartamento de luxo na parte mais violenta de Londres. Você olha todos os dias pela janela e vê o que deixou para trás. Um psicólogo diria que está tentando provar algo. — E um economista que foi um investimento sagaz. O prédio é bem localizado. Em menos de três anos, este vai se tornar o lugar da moda. — Falou, com a segurança de alguém cujo julgamento não admite erros. — Bem em frente ao rio. Perto do coração comercial de Londres. — Terrivelmente perto da parte mais miserável de Londres. — Esta é uma cidade cosmopolita. — Silvio reclinou-se na cadeira quando um chefe de cozinha trajando branco colocou mais comida no centro da mesa. — Grazie, Roberto. Falou algumas palavras em italiano e o homem sumiu, deixando-os novamente a sós. Determinada a não demonstrar o quanto estava impressionada, conteve a gargalhada. — Esse cara fica aí parado a noite inteira esperando para ver se você quer comer? — Tenho uma equipe de cozinheiros. Trabalham em sistema de rodízio. — Você agora é tão rico que não pode cozinhar um ovo? — Recebo muitas visitas. Em geral, meus convidados esperam mais que um simples ovo cozido. — Mas agora se misturou a seres inferiores. Está aqui preso comigo. Pobrezinho. — Escondendo a inibição com a bravata, inclinou-se e levantou a tampa de um dos pratos. — Hummmm. Bacon. Seduzida pelo delicioso aroma, deu-se conta, repentinamente, do quão faminta estava. — Posso me servir ou alguém tem que me servir? — Achei que você preferia privacidade. Em outras palavras, ela o embaraçava. O rosto de Jessie ruborizou-se; espetou o garfo em algumas fatias de bacon, dizendo a si mesma que pouco Se importava com o que ele pensasse. — Não quer um pouco? —Agora não. — Serviu-se de café. — Não estou com fome. — Estou sempre faminta. — Esquecendo-se de que tentava mostrar reserva, olhou o bacon no prato, sem saber se botara demais. Decidindo que chamaria mais atenção se devolvesse parte, ficou parada, sem graça. — Só vai comer isso? — Silvio ergueu-se e aproximou-se. Sem perguntar, empilhou mais bacon em seu prato, serviu-lhe ovos mexidos e pão quentinho. — Se não comer, vai ofender o chefe de cozinha e não estou em condições de perdê-lo. Ele é muito bom no que faz. Mordiscando um pedaço do pão mais delicioso que já comera, Jessie foi forçada a concordar. — Ele cozinha assim para você todos os dias? — Saboreava os ovos mexidos, gemendo de prazer. — Ele é casado? Tem interesse em se casar?
  • 25. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Ignorou-lhe a, pergunta. — Quando terminar de comer, deve tentar dormir mais um pouco. Amanhã vou levá-la para fazer compras. — Voltara à outra extremidade da mesa e bebia café. Com a boca cheia de bacon, Jessie parou de mastigar e o encarou. Então engoliu tudo. — Fazer compras? — Começou a rir, pois a ideia era ridícula. — Você deve estar me confundido com outra. Não preciso de roupas novas e sim de uma vida nova e isso você não pode comprar na Harvey Nichols. De qualquer maneira... — Sem pensar, colocou com a mão um pedaço de bacon crocante na boca —... não tenho dinheiro para fazer compras. — Você vai comprar roupas com o meu dinheiro. Reparando no guardanapo perto do prato, Jessie limpou os dedos, imediatamente sujando o tecido impecável de linho de gordura. Envergonhada, pensou em escondê-lo, mas se deu conta de que ele a observava. Rubra, remexeu-se na cadeira. — Desculpe. Não estava concentrada. Peguei o bacon com a mão. — Jessie amassou-o. — Depois me mostra onde posso lavar o guardanapo. A surpresa iluminou os olhos escuros. — Pode deixar aí. Outra pessoa se encarrega disso. Por que sugeriu isso? Ela deu uma risada e colocou cuidadosamente o guardanapo na mesa. — Porque em geral eu sou essa outra pessoa. Ele registrou esse comentário trincando os dentes. — Bem, tudo agora vai mudar. Sua vida vai mudar. De repente, perdeu a vontade de comer. — Acha que vai resolver o problema se me oferecer dinheiro? Ergueu o queixo e se encararam num tenso silêncio. — Pelo menos resolverá parte do problema. — Dinheiro não vai mudar meus sentimentos em relação a você. De qualquer modo, não preciso do seu dinheiro. Posso ganhar o meu. — Percebendo a desaprovação em seus olhos, suspirou. Embora conhecesse a verdade, não se sentia bem em saber o que ele pensava a seu respeito. — Olha, preciso dizer... — Esqueça. Não quero saber. — O tom era firme. — O que desejo saber é o motivo de estar pagando as dívidas de Johnny. Ouvir o nome do irmão deixou-a sem ar. Mordeu o lábio inferior, surpresa pela súbita onda de emoção que a atingiu. — Não diga o nome dele. — Por quê? — Porque e-eu não suporto. Não diga! — Saíra da cadeira, o coração palpitando, a respiração presa na garganta, esquecida da comida no prato. — Você está pagando pelos erros do seu irmão, Jess — disse com voz baixa e cruel. — Isso tem que parar. — Vai parar quando eu pagar o dinheiro que ele devia. — Eles vão querer mais de você, tesoro, O carinho cortou-lhe o coração. Não queria carinho. Não queria nada dele. — Eu sei. — Jessie começou a andar de um lado para o outro, sentindo-se
  • 26. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan aprisionada numa situação que não criara. — Sei o que querem. — E por isso passara meses sem dormir direito. — Maledezione, todo homem que olha para você quer a mesma coisa. — Ele também se levantara, o tom vibrando de raiva, a mão agitando-se no ar. — Sabe o que aqueles homens no bar estavam pensando? Cada um deles imaginava você nua e graças à escolha do vestido, não era preciso puxar muito pela imaginação. — Joe insiste que as cantoras se vistam assim. — Porque as mulheres que ele contrata fornecem outros serviços que não a voz! — Enfiou os dedos no cabelo, os traços bonitos, másculos, o poder e a autoridade estampados em cada linha do rosto lindo. — Não acredito que você faça isso consigo mesma, Jess. — O que faço com a minha vida não é da sua conta. — Acaba de se tornar da minha conta. — Ele não desistia, não demonstrava remorso. — Por que está jogando fora sua voz maravilhosa num lugar daqueles? Podia trabalhar em qualquer outro lugar. Jessie examinou-se nas roupas emprestadas e deu um sorriso cínico. — Sou uma cantora de cabaré, Silvio. — Não. Você é uma cantora. Foi decisão sua usar sua voz num cabaré. Há outras opções. — Não para gente como eu. — Disse a si mesma que a altura e o porte de Silvio é que o tornavam intimidante. — Jess... — Disse seu nome entre os dentes, como se lutasse para não explodir. — Sua voz é excepcional. Verdadeiramente excepcional. Com treino, poderia chegar ao topo. Seria uma estrela internacional. Jess ficou parada um instante, imobilizada pela ilusão que ele criava. Então, lembrou-se de que sonhos desmoronavam. — Difícil ser uma estrela internacional sem um passaporte — disse, petulante. Silvio emitiu um som impaciente. — Então é melhor desistir, certo? Ela engoliu em seco. Não confessaria a ninguém que, quando cantava, não estava em um clube de última. Estava cantado para uma multidão de pessoas maravilhadas. — Às vezes, sonhar só piora as coisas. — O sonho pode fazê-la progredir. — Sonhar pode enfatizar o abismo entre as esperanças e a realidade. — Então transforme seus sonhos em realidade! — Os olhos estreitos formavam dois traços perigosos e Jessie o fitou insegura, abalada pela raiva que pressentia. — Não entendo o motivo de estar tão chateado. — E eu não entendo o motivo de você não estar mais chateada — rebateu em tom agressivo. — Você nunca sente raiva de Johnny por tê-la deixado nessa situação? Jessie piscou, os punhos cerrados. — Sinto — sussurrou. — Às vezes sinto raiva. E depois culpa, porque sei que grande parte do que aconteceu foi culpa minha. O rosto de Silvio endureceu. — Nada foi culpa sua.
  • 27. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Você está enganado. — As palavras obstruíam-lhe a garganta. Estava dividida entre a necessidade de confiar nele e a de ir embora. — Eu podia ter feito tanta coisa... Eu cometi erros. — Nós todos cometemos erros — afirmou Silvio, inconscientemente demonstrando a autoconfiança que o ajudara a ganhar milhões. — E Johnny cometeu o maior deles. — Você não tem o direito de acusá-lo. — Tenho todo o direito. — Deu-lhe as costas, olhando pela janela, o protótipo da tensão. — Ele era egoísta, fraco; deveria ter tomado conta direito de você. Comportava-se feito um garoto quando deveria agir como homem. — Bem, nem todo mundo é forte como você! — Viu os ombros retesarem-se. — Você está nessa situação por causa dele. Se eu não tivesse aparecido hoje... — As palavras calaram-se abruptamente. Voltou-se de repente. — Agora chega, Jessie, a vida é sua. Vamos parar de fingir que você tem um milhão de opções. Ela ficou imóvel. — Você culpa Johnny por tudo — sussurrou —, só porque ele não está aqui para se defender. — Gostaria que estivesse. Uma das coisas que mais lamento é não tê-lo feito encarar a realidade. Jessie empalideceu. — Você era amigo dele. — Se tivesse sido um amigo melhor o teria forçado a pensar em suas responsabilidades em vez de lhe dar o que pediu. Eu falhei com ele. Eu não me arrependo? — O tom era de autorrecriminação. — Sim, me arrependo. Mais do que você pode imaginar. Mas tem algo de que me arrependo ainda mais: não ter feito Johnny entender que tinha responsabilidades, que deveria proteger você! — Ele me amava! — Instintivamente pulando em defesa do irmão, Jessie recuou. —..Johnny me amava. — Si, ele a amava. — O tom era contemporizador — Ele a amava como lhe convinha, não da melhor maneira para você. Mas tudo isso vai mudar. Você não voltará para aquela vida, Jess. Acabou. Eu não devia tê-la deixado sozinha e, a partir de agora, vou agir como seu irmão deveria ter agido. Estou ocupando o lugar dele. E se ficar comigo a deixa culpada, vai ter que lidar com isso. — Ele não demonstrava piedade. Jessie recuou mais alguns passos, o coração batendo disparado. — Não sou sua responsabilidade. Não quero sua ajuda. Odeio você. — Relanceou os olhos pelo suntuoso apartamento, sentindo-se desleal em relação a Johnny pelo simples fato de estar ali. Doía pensar no contraste entre esse apartamento e o lugar desolado em que ele passara as últimas horas. — Por que ia querer me ajudar, sabendo como me sinto em relação a você? — Você perdeu seu irmão. Não a culpo por seus sentimentos em relação a mim. Falava sem emoção, mas Silvio Brianza não lidava com emoções. — Bem, eu culpo você! — A voz tremeu com suficiente paixão por ambos. — Você lhe deu dinheiro. Sem isso, ele não teria conseguido. Os olhos faiscaram e ele pareceu prestes a dizer algo, mas mudou de ideia. — Eu sei o que fiz. — O tom era neutro. Não tentou rechaçar suas acusações ou se
  • 28. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan desculpar. — E sei que me culpa. — É por isso que está me ajudando? Por culpa? Achei que você nunca olhasse pra trás. Só para frente. Ele demorou tanto a responder que pensou que não tivesse ouvido a pergunta. Então, suspirou devagar. — Já o perdi. — Respirou. — Não quero perder você também. Isso é olhar para adiante. As palavras causaram-lhe um arrepio e profunda tristeza, pois tinha consciência de que eles tinham perdido anos separados. Já era tarde demais. A culpa e a recriminação haviam destruído a relação — tão certo quanto o tempo corrói as pedras. O relacionamento se transformara em algo que não mais reconhecia. — Não posso fingir ser... — era difícil pronunciar as palavras —... sua mulher. — Pode sim. Johnny gostaria que você fizesse qualquer coisa para se manter a salvo. — Então vou me mudar para seu chique apartamento, você vai comprar roupas novas para mim e me beijar em público? — Você vai aonde eu for. — Os olhos abaixaram-se para sua boca. — E vou beijá-la quando quiser. — Ele era autoconfiante, forte e mais másculo do que qualquer outro que ela tinha conhecido. A menção ao beijo deixou-lhe as pernas bambas. — É um plano louco. — O que há de louco nisso? — Pra começar, sua atual namorada não vai gostar dê ter chamado uma mulher do submundo para se mudar para o seu apartamento. — Não fale de você desse jeito. Além do mais, não estou namorando no momento. Jessie olhou-o incrédula. — Claro. Um homem como você deve penar para conseguir sair com alguém. Não sou ingênua. As mulheres sempre o acharam irresistível. Sei que recebe milhões de propostas. Ele não sorriu. — Só porque tenho a oportunidade de dormir com uma mulher, não significa que eu aceite — disse baixinho, a voz uma sutil condenação à vida que acreditava que ela levava. — Sempre fui extremamente seletivo. Jessie fitou-o cautelosamente e relanceou os olhos pelo ambiente. Nada senão o melhor para Silvio Brianza. Apartamentos, carros, mulheres. — Mais uma razão para ninguém acreditar que sou sua mulher. Eu não convenceria. Não sei como viver nesse mundo. — Esse mundo é fácil. — O tom cauteloso escondia um toque de humor. — O seu é que é difícil. —A vida é dura, Silvio. É assim que funciona. — Retorceu as pontas do cabelo, ciente de que depois de ter secado ficara todo desarrumado. — Por quanto tempo manteremos essa mentira? — Até eu decidir. Jessie fitou-o irritada.
  • 29. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan — Nunca acreditarão. Nenhuma mulher envolvida com você trabalharia num bar vagabundo. Silvio deu um sorriso amargo. — Você não trabalha mais lá. — Você me fez perder o emprego? — Você não precisa de um emprego que exija andar como a página de centro de uma revista pornográfica. — Mas paga bem! — Você não vai voltar. — A voz rouca deixou claro que não havia espaço para negociações. Escandalizada e subitamente assustada, Jessie andava de um lado para o outro pelo piso de tábuas corridas claras. — Não devia ter feito isso. — Gostava tanto assim do seu trabalho? Parou de andar e o fitou, desafiante. — Não, claro que não. Mas não quero que você assuma o controle da minha vida. Como vou ganhar dinheiro? Como vou poder pagar aqueles bandidos? E, quer a gente vá em frente ou não com essa mentira, vou precisar de um emprego quando tudo isso acabar. — Eu posso lhe oferecer um emprego. — Não preciso da sua caridade. — Não é caridade, é trabalho. — Como pode me dar emprego? — Preocupada, exausta, deu uma risada histérica. — Você constrói hotéis. — Depois de construídos, meus hotéis são administrados por um grupo de pessoas. Música ao vivo é um dos entretenimentos que oferecemos. — Está me oferecendo um emprego de cantora? — Certamente não espero que carregue tijolos. O orgulho guerreava com a praticidade. Queria dizer que preferia morrer a aceitar um emprego dele. O problema é que se não aceitasse, morrer podia ser seu destino imediato. Ficou imóvel, alerta ao exame minucioso, sabendo ser esse um momento decisivo. Precisava tomar uma decisão. O instinto de sobrevivência provou ser mais forte do que seus princípios. Não seria caridade, pois ganharia para exercer uma função. E a oportunidade de mudar-se para algum lugar a quilômetros dali era por demais tentadora para ser rejeitada. — Aonde eu iria? — Para começar, Sicília. Meu hotel à beira mar abriu no mês passado e vamos realizar o casamento do ano em poucos dias. Gisella Howard e Brentwood Altingham casam-se no próximo dia três. — O nome trouxe um sorrisinho em sua boca severa. — Dinheiro antigo. Família tradicional. Tentando não parecer impressionada, deu de ombros. — Eles sabem de onde você veio? — Por isso escolheram meu hotel. — Os olhos faiscaram de ironia. — Têm certeza de que eu posso cuidar da segurança.
  • 30. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan E tinham razão, pensou Jessie, lembrando-se do modo arrojado, destemido com que a livrara do perigo. — E você contratou todos os seus amigos barra-pesada para manter os paparazzi à distância. — Mais ou menos isso. —Então você está me oferecendo um emprego em um hotel super chique? — Tentada, desejou ter autoconfiança suficiente para aceitar o emprego. — Vou realmente me encaixar no emprego usando meu vestido dourado. — Você não vai usar seu vestido dourado. Isso está fora de questão. — Olhou o Rolex. — Já é muito tarde. Obviamente você está exausta, portanto vá descansar. Faça-me um favor, não tente fugir, porque meus empregados têm instruções para não deixá-la passar. Use meu quarto. Eu durmo em outro. Preciso dar uma saída. — Vai sair? Ia deixá-la? O abrigo de segurança a envolvê-la desde que esbarrara nele no beco desmoronou; teve vontade de implorar que não saísse. — A-aonde você vai? — Vou sair. — Sem maiores explicações, caminhou para a porta, deixando Jessie paralisada de pânico. O que era tão urgente que precisasse sair de madrugada? E como continuaria a se sentir segura sem ele? — Silvio... — O tom era urgente. Ele voltou-se, a testa franzida, a mente obviamente longe. — O quê? Jessie tentou pedir-lhe para não ir, mas as palavras não saíram. Qual o seu problema? Por que se comportava de modo tão patético? — Nada — resmungou. — Nos vemos depois. — Foi preciso um esforço monumental para ocultar seu mal-estar; por um instante, achou que falhara, pois ele a encarou com olhar penetrante. — Non ti preoccupare. Não se preocupe. Está a salvo aqui, Jess. Este lugar é coberto por sistemas de segurança de última geração. — Não estou preocupada — murmurou, odiando-se por demonstrar suas inseguranças. Afinal, vivia sozinha há três anos. Entretanto, nas últimas horas saboreara o gostinho da segurança e não queria perdê-la. Após três anos dormindo com um dos olhos abertos, vivendo à beira do precipício, de repente fora capaz de relaxar, consciente de que ele assumira o controle. Ciente de que a observava atentamente, deu de ombros, indiferente. — Divirta-se. — Aonde iria a esta hora da noite? Só podia ter um encontro com uma mulher. E por que isso a deixava tão infeliz? Silvio voltou a verificar as horas. — Vá para a cama, Jess. — Ao fechar da porta, Jessie acovardou-se. De repente, deu-se conta do enorme espaço e sentiu-se assustadoramente vulnerável. Olhando ao redor, perguntou-se o que ele quisera dizer com "sistemas de segurança
  • 31. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan de última geração". Presumivelmente não se referia a ela, segurando uma caçarola, pronta para abater um intruso. Como saber se tinha alguém à espreita num lugar como esse? Era cheio de espaços escuros, ocultos. Entrando em pânico, tentou convencer-se de que qualquer apartamento construído por ele devia ser seguro, mas sabia que não fora o prédio que oferecera aquela sensação de segurança. Tinha sido o homem. E ele tinha ido embora. Horas depois, Silvio voltou ao apartamento. Satisfeito com o resultado, dispensou os empregados e serviu-se de um drinque. Quando os primeiros raios da aurora iluminaram o céu, olhou através da vidraça, tentando não pensar no que teria acontecido com ela caso tivesse decidido não retornar. O que aprendera sobre a sua vida ao longo das últimas horas havia congelado suas entranhas. Fizera perguntas, cobrara favores, entrara em contato com antigos conhecidos, espalhando constantemente a mesma mensagem: Jessie era sua e de nenhum outro homem. Não conseguira imaginar outra maneira de garantir sua proteção. Tomando a bebida de um só trago, refletiu sobre a ironia da situação. Ainda bem que ambos eram reservados, pensou amargamente olhando o copo vazio, caso contrário todos saberiam que um envolvimento pessoal entre os dois era impossível. O apartamento estava silencioso quando caminhou na direção de uma das suítes de hóspedes, mas parou na porta da suíte principal, incapaz de resistir ao impulso de verificar como ela estava. Ao abrir a porta devagarzinho, encontrou a cama vazia. Não havia sinal dela. Preparando-se para acionar o chefe da segurança, fez menção de deixar o quarto e armar um escândalo quando percebeu a falta do cobertor de veludo. Franzindo o cenho, entrou no quarto, uma suspeita delineando-se em sua mente. Checou o banheiro e o quarto de vestir. Tudo escuro. Esfregando a mão na nuca, parou um momento e tentou pensar como ela. Seu medo infantil de ficar presa nunca a abandonara e ele não precisaria presenciar seu ataque para saber como ela odiava ficar em andares altos. Para Jessie, uma cobertura não era um paraíso imobiliário, mas o inferno. Ciente disso, não havia como se trancar no quarto de vestir. Girando a cabeça, Silvio estreitou os olhos e rejeitou a possibilidade que lhe veio à mente. Não, não faria isso... Talvez sim. Silenciosamente, atravessou o quarto e parou do lado de fora da porta que escondia o escorrega. Enfiou os dedos na porta entreaberta e abriu-a. Encontrou Jessie enrascada no chão a centímetros do escorrega, o corpo esbelto oculto pelo imenso cobertor, o braço apertando protetoramente a caixa de sapatos. Silvio observou-a em silêncio, mil emoções cruzando sua cabeça. Que terror habitava-lhe a mente a ponto de preferir dormir embaixo de um armário e não em uma cama confortável? Seu apartamento era protegido pelo mais sofisticado sistema de segurança existente, mas Jessie não confiava nele. Viu a mancha de maquiagem em seus olhos, sinal de que ela tinha chorado. O fato de ter esperado ficar sozinha antes de ter se permitido chorar criou mais culpa em sua consciência. Não quisera desabar diante dele e ele lhe devia ser grato por isso. Não sabia como oferecer consolo a uma mulher e tudo que fizera fora magoá-la. Levantando-a no colo sem dificuldade, levou-a de volta à cama. Os olhos se abriram. As pálpebras pesadas, os olhos enevoados de sono. — Silvio... — Volte a dormir. — O arrependimento fez sua voz vacilar. Deitou-a no colchão e a cobriu. Iria implorar-lhe que a pusesse de volta no lugar onde escaparia mais rápido?
  • 32. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Entretanto, não o fez. Em vez disso, a mão segurou a sua. Silvio ficou tenso, pois essa atitude de fraqueza destoava tanto de Jessie que ele não sabia como reagir. Normalmente, seria o último homem para quem ela se voltaria em busca de conforto e o fato de ela ter buscado a sua mão demonstrava seu desespero. Sem respirar, olhou as mãos, observou a fragilidade dos dedos claros e delicados repousados em sua forte palma da mão. Após um momento de hesitação, entrelaçou os dedos aos seus. Jessie suspirou baixinho. — Estou feliz por ter chegado — disse sonolenta, e abriu a boca em um sorriso enquanto os olhos se fechavam. — Vai sair de novo? Sabendo que se ela estivesse totalmente desperta, o teria mandado para o inferno, Silvio encontrou dificuldade em falar. — Não — disse finalmente, a voz tensa. — Não vou a lugar nenhum, tesoro. Pode dormir. Ela obedeceu, com o sorriso ainda no rosto e a mão apertando a sua. Preso, Silvio foi forçado a enfrentar dilemas com que não queria se confrontar. Como a perigosa química que os unia. E o fato de ser responsável por ela ter perdido a pessoa mais importante da sua vida. Observou o rosto pálido, os ombros estreitos e a caixa de sapatos amassada que ela agarrava como quem se agarra à própria vida. Queria abri-la para ver o que continha, do que se recusava a se afastar, mas não queria correr o risco de acordá-la. Tampouco invadir sua privacidade, pois sabia o quanto isso era importante para ela. Não podia apagar o que estava feito. Não poderia trazer seu irmão de volta. Mas podia tirá-la daquela vida. Tirá-la do inferno que ela achava merecer e dar-lhe algo diferente. Ele lhe devia isso. CAPÍTULO QUATRO — Você não precisa me levar para fazer compras. — Outro golpe em seu orgulho. — Não posso me dar a esse luxo. — Você precisa de roupas. Não é luxo, é necessidade. Incapaz de discordar, Jessie afundou no banco da Ferrari, desviando o olhar. Parecia que todos testemunhavam sua humilhação. — Então só pouca coisa. Talvez outro jeans. Você precisa dirigir este carro? Todo mundo está olhando. Entretanto, sabia que o motorista era tão chamativo quanto o carro. Com sua beleza mediterrânea e o físico espetacular, Silvio atraía olhares cobiçosos onde passava. — Preferia uma limusine com motorista? — Parou o carro em fila dupla do lado de fora da loja mais sofisticada de Knightsbridge. Um homem uniformizado os recebeu. — Dr. Brianza. — A voz denotava surpresa e respeito.
  • 33. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Silvio entregou-lhe as chaves e disse algo que Jessie não entendeu. — Acho que não vendem o tipo de roupas que uso aqui. — Pisando cautelosamente, olhou ao redor furtivamente, deslumbrada com a quantidade de mulheres produzidas passando por ela em tailleurs e saltos vertiginosos, todas exalando confiança. Olhando o cabelo liso de uma delas, enfiou o dedo nos cachos e contraiu-se quando Silvio tomou-lhe o braço. — Tente não demonstrar o medo de ser agredida a qualquer momento — disse suavemente, guiando-a com passo determinado para as portas de vidro. — Você está comigo. Ninguém vai tocá-la. Ele a estava tocando, e a mão em seu braço e o roçar do corpo constituíam um letal ataque a seus sentidos, nada bem-vindo ao ser tomada pelas lembranças perturbadoras de ter se aninhado em seus braços quando dormira. Em vez de empurrá-lo e dizer que não precisava dele, agarrara-se à sua mão como um afogado se agarraria a uma tábua de salvação. Ele não mencionara a noite, mas ela não conseguia tirar isso da cabeça. Embora sozinha na cama ao acordar, sabia que ele passara o resto da noite ao seu lado. Mais um motivo para se sentir agradecida, pensou mal-humorada, olhando, incrédula, o perfeito arco das sobrancelhas da mulher passando apressada rumo a algum lugar importante. A imagem dele como monstro desumano tornava-se desconfortavelmente distorcida. Encolhendo-se de medo ao se lembrar de como ficara assustada quando ele deixara o apartamento, recriminou-se. Ela era patética. Só esperava que o sofisticado apartamento não tivesse câmaras internas ou enfrentaria algum embaraço por ter checado debaixo da cama e dentro dos armários, antes de finalmente ir dormir. Silvio guiou-a até o elevador. Jessie só olhava em frente, determinada a não olhar as paredes espelhadas. Sabia o que veria. Uma mulher que não deveria estar ali. — Andei pensando na sua sugestão. — Naquela em que você permanece viva? — Os olhos negros cintilaram. Impossível Jessie conseguir desviar os seus. — Não é tão simples. — Com esforço evitou-lhe o olhar e respirou fundo.,— Preciso pagar o resto do dinheiro que Johnny ficou devendo ou essa história nunca terá fim. Você me ofereceu um emprego, o que é ótimo, mas vou demorar até juntar toda a grana. — Orgulhosa, custou-lhe pronunciar as palavras. — Sei que tem contatos. Será que eu poderia conseguir um empréstimo? Acho que seria mais seguro dever dinheiro a um estranho. — Você não deve dinheiro a ninguém. — Silvio apertou o botão do elevador. — Já quitei a dívida. — Você pagou? — Chocada, voltou-se para fitá-lo. — Quando? — Ontem à noite. Ontem à noite, quando a deixou sozinha. Atônita, demorou a responder. — Não queria que fizesse isso. Eu vinha pagando... — Aos poucos — disse, com desprezo, o olhar surpreendentemente magoado. Era óbvio que ela não podia descer mais em seu conceito. Mas por que deveria se importar com isso? A opinião dele não deveria ter a menor importância. Sentindo as lágrimas de humilhação, ergueu o queixo. — Vou pagar tudo. — Falarei com meu departamento financeiro e eles encontrarão uma solução. —
  • 34. 95 Paixão 226 – Artimanhas do Destino (Bought: Destitute Yet Defiant) Sarah Morgan Mudou de assunto, enquanto ela digeria lentamente o fato de o débito ter finalmente sido quitado. Todos aqueles anos de preocupação. Anos de trabalho árduo, de terror. Um peso tinha sido retirado de seus ombros. Só gostaria que não tivesse sido ele o responsável. Por que ele agira assim? — Obrigada — disse, finalmente. Nunca imaginara que um dia o agradeceria por algo. — Nesse caso, não entendo o motivo de ter me trazido aqui. Não precisa se dar ao trabalho. — As portas do elevador se abriram e ela continuou parada, fazendo menção de apertar o botão do térreo. — Maledezione, o que está fazendo? — Segurou-lhe a mão, interceptando-lhe o gesto. — Você disse que quitou a dívida. — Com ele tão perto, ficava difícil respirar. Ruborizou-se ao sentir o embaraçoso e familiar calor na pélvis. — Acabou. — Não acabou, Jess. Não é possível ser tão ingênua. O dinheiro era apenas parte do que queriam e você sabe disso. Sabia. E a certeza a aterrorizou. O pensamento de voltar a pisar naquele lugar a assustava. Passara as noites se perguntando qual seria a noite em que eles sairiam vencedores. — Você tem razão. — A voz parecia mais calma. — Gostaria que devolvesse minha faca. — Não tenho a menor intenção de devolvê-la. Se a tivessem encontrado, teriam usado contra você. A única maneira de impedi-los de conseguir o que querem é acharem que estamos juntos. Desde que eles não tenham motivo para dúvidas, você estará a salvo. Sentindo-se vulnerável, Jessica olhou o centro do peito largo. — Então não me restam muitas opções: ou me arrisco com eles ou com você. — Não sou perigoso. Era uma declaração tão falsa que Jessica riu, mas foi uma risada histérica. — Decida-se. Ontem à noite você disse que também era perigoso. — Está bem, deixe que me expresse de outra maneira. — Um sorriso irônico surgiu na linda boca. — Não sou perigoso para você. Ah, era sim, e como. Sabia que este homem tinha o poder de lhe causar mais danos do que qualquer gangue das ruas de Londres. E ele também sabia. Sempre conhecera seus sentimentos em relação a ele. Jessie respirou fundo, lembrando-se de que tudo agora era diferente. Ele deixara de ser seu herói. Era forte, sem dúvida. E poderoso. Mas não o santo que imaginara no passado. Os olhos estavam bem abertos e o coração, trancado. Ele não podia magoá-la mais do que já o fizera, certo? Seria loucura recusar-lhe a proteção. Passara a vida à beira do precipício tempo suficiente para saber que não se deve deixar escapar as oportunidades. — Acho que não vai funcionar. Vão saber que não sou o tipo de mulher com que costuma sair. Não vou a primeiras exibições de filmes e a festas de celebridades. Não sei como andar no tapete vermelho. — Basta botar uma perna na frente da outra — retrucou. — E festas de celebridades e primeiras exibições vão parecer férias, depois da vida que vem levando. Não há necessidade de praticar. As portas do elevador se abriram. Jessie não se moveu, amedrontada com a quantidade de espelhos e a elegância do prédio.