1. Perigosa Atração
Inglaterra, 1873
U MA OBSESSÃO ... UM SEGREDO ...
No passado, Ryan Donally devotara verdadeira adoração a Rachel Bailey. Mas a linda e
graciosa menina o via com indiferença. A vida separou os caminhos de ambos, mas anos depois
eles voltaram a se encontrar... e Rachel descobriu que o menino que ela um dia desprezara havia
se transformado num homem irresistível, que lhe despertava um intenso desejo. Ryan, porém,
recusava-se a perdoá-la, e Rachel, por sua vez, guardava um segredo que poderia destruir tudo o
que ela lutara para construir. Mas um momento de irrefreável paixão fez desmoronar as frágeis
barreiras que haviam se erguido entre eles, levando-os a se defrontar com um difícil impasse...
Pois a sensualidade tão longamente reprimida poderia conduzi-los a um trágico desfecho... ou a
um glorioso e eterno amor!
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3. Perigosa Atração
Capítulo I
Londres, 1873.
Rachell Bailey subiu a escada e parou no balcão de onde se podia ver o salão de
baile. Um leque fechado pendia de seu pulso. Na outra mão ela levava um cartão de
danças em branco.
Ela tentava não se incomodar por muitos ali a julgarem uma espécie de excentricidade
intelectual, e essa era a única razão pela qual não a excluíam inteiramente de seu círculo
social.
Especialmente esta noite.
Cinderela e Rachell tinham pouco ou nada em comum, exceto, talvez, a curiosidade
com relação ao príncipe, ou, nesse caso específico, o talentoso detentor de um dos mais
prestigiados prêmios de toda a Inglaterra. Um engenheiro civil não podia sonhar com
honra maior do que o Golden Telford Award, uma homenagem que ela jamais receberia
por ser mulher, mas que Ryan Donally certamente merecia.
Do balcão do Palace Hotel, sobre o salão de baile, ela o viu alto e moreno, fácil de
reconhecer entre os convidados. O baile transcorria animado, e vestidos coloridos e
elegantes flutuavam pelo espaço do amplo aposento como um gigantesco arco-íris.
Incrivelmente belo, Ryan era o par perfeito para a loira delicada que ele conduzia pelo
braço, lady Gwyneth Abbott. Sua futura esposa, a julgar pelo rumor que corria na
sociedade. Loira e altiva, ela era uma jóia cintilante envolta em seda vermelha. Os dois
conversavam. Ele sorria com uma energia vital que hipnotizava Rachell.
Desde que eram crianças, Ryan chamava atenção em todos os lugares. Dominava
multidões com a mesma facilidade com que reunia seguidores, resultado de sua boa
aparência e dos traços herdados da família irlandesa. Agora, depois de fazer fortuna na
indústria do aço, Ryan comandava um forte conglomerado de empresas totalmente
distinto dos negócios da família. Ele mesmo se apartara de suas raízes, tornando-se um
homem poderoso que em nada lembrava o menino indomável que jogava aranhas em
seus cabelos quando ela era também uma menina.
O relacionamento sempre havia sido impossível. Ryan era sua maldição e seu castigo.
E também era a razão que a fizera voltar à Inglaterra.
Havia sido pura ingenuidade pensar que poderia voltar à vida dele esta noite, depois
de tudo que havia feito com esse homem, e não sentir pânico ou ansiedade.
Nunca mais haviam conversado depois da morte e do funeral de Kathleen quatro anos
antes.
Tinha de encontrar um jeito de falar com ele. Precisava falar com ele.
— A mulher ao lado de meu irmão é sobrinha do conde de Devonshire — anunciou
uma voz masculina a seu lado.
Rachell assustou-se.
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John Donally se aproximara silencioso e a surpreendera olhando para Ryan com uma
mistura de curiosidade e fascinação.
— De quem está falando? — Rachell serviu-se de uma taça de champanhe da
bandeja carregada por um garçom que por ali passava a caminho do salão.
— Você sabe de quem estou falando. Ela é sobrinha do conde e é muito assediada
pelos solteiros da sociedade. Mas só tem olhos para meu irmão. Linda, não?
O irmão de Ryan, com quem sempre tivera um bom relacionamento, cravava a faca
mais fundo em seu coração, intensificando a dor da antiga ferida. Rachell não queria
saber se a mulher de cabelos dourados e traços delicados era a imagem da perfeição, ou
se todos os homens disponíveis da sociedade local se batiam em duelo por um segundo
de sua atenção.
— Lady Gwyneth o convenceu a cortar o cabelo? — ela indagou com falso
desinteresse, notando a ausência da marca registrada de Ryan, o rabo-de-cavalo.
— Duvido que tenha sido realmente assim, mas você pode perguntar a ele.
— Gostaria muito de conversar com Ryan. Não o encontrei em Londres nessa última
semana.
— Ele estava em Bristol. Voltaram a Londres ontem à noite.
— Voltaram...? No plural?
— Ryan, lady Gwyneth e a irmã dela. Já deve ter ouvido os rumores. Meu irmão acaba
de adquirir uma propriedade aqui.
— Acredita que ele quer mesmo se casar com essa jovem, Johnny?
— O que sei sobre o coração de Ryan? Seus sentimentos compõem um enigma
insondável! Desde a morte de Kathleen, ele tem guardado as emoções com tanto
empenho que ninguém mais é capaz de adivinhá-las. Ryan não é mais o mesmo homem
de antes. Não se deixe enganar...
— Ele nunca fala sobre Kathleen? Não se lembra dela?
Johnny cruzou os braços e se apoiou na balaustrada da galeria.
— Por que veio da Irlanda para estar aqui esta noite?
— Apesar de tudo que ele fez nesses últimos quatro anos, Ryan ainda é presidente da
Donally & Bailey Engineering. Tem de admitir que o prêmio é merecido. Os trabalhos por
ele redigidos são leitura obrigatória em Edimburgo e Gõttingen.
— E, naturalmente, você está cheia de admiração por seus talentos. É só isso,
Rachell?
— Não devia estar dançando com sua esposa? O que ela vai pensar se nos vir juntos
e sozinhos aqui, conversando em voz baixa e bebendo champanhe?
— Vai pensar que nos conhecemos desde sempre, Rachell. — Ele a segurou pelo
braço. — Ela mesma me disse para procurá-la, encontrá-la e arrastá-la ao salão de baile,
se fosse necessário. Nenhum de nós julga oportuno que você fique aqui olhando o mundo
de cima. É hora de participar. Integrar-se.
Rachell engoliu um gemido aflito e se deixou levar pela larga e imponente escada de
mármore para o arco-íris de saias e sedas que coloriam o animado salão.
— Não precisa me levar pela mão, Johnny.
— Preciso, se quero dançar. — Ele a segurou pela cintura e encarou-a. — Não
esqueceu a valsa, não é? — Johnny a levou para a pista de dança e começou a girar com
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movimentos precisos, elegantes e experientes.
Nada a perturbava mais do que o medo do fracasso.
— Acho que está desafiando o perigo, meu caro. Posso arruinar seus dois pés antes
de o relógio marcar meia-noite.
— Eu não desperdiçaria a oportunidade de ter uma bela mulher em meus braços. E
com a permissão de minha esposa? Que homem tem tanta sorte? Não, minha querida.
Nem o medo de ter meus dedos esmagados me faria abrir mão de tão deliciosa e única
oportunidade.
Rachell acompanhava os passos fáceis da valsa.
— Está procurando encrenca, Johnny Donally. Mesmo assim, sou grata por sua
delicadeza. Você sempre foi um perfeito cavalheiro.
Estava grata porque, mesmo depois de todos os erros que cometera na vida, alguém
na família Donally ainda podia lhe oferecer amizade e apoio. Na verdade, todos da família
a tratavam com cortesia e respeito. Com simpatia, até...
Todos, exceto Ryan.
Sua garganta doía pelo esforço de conter as lágrimas, mas os olhos estavam secos.
A vida a fizera entender a inutilidade do pranto e os perigos das emoções que podiam
levar ao caos o mundo organizado e preciso que criara para si mesma por meio de sua
profissão. Rachell era uma das duas únicas mulheres engenheiras no mundo. Mas as
rachaduras começaram a surgir depois da morte de Kathleen, quatro anos atrás, e se
alargaram em seu vigésimo nono aniversário no mês anterior. Não sabia o que fazer com
o lado feminino e pouco prático que redespertara dentro dela repentinamente.
Precisava desesperadamente retificar sua história de erros e mal entendidos com
Ryan.
No passado, ficara assistindo enquanto ele se casava com sua melhor amiga. Sabia
que, se partisse essa noite sem falar com ele sobre as coisas de seu coração, nunca mais
teria outra chance de manifestá-las.
Em poucos meses, ele estaria fora de sua vida para sempre.
— Você bebe mesmo essa coisa, Donally?
Com um Havana em uma das mãos, Ryan estivera parado na porta da sala de jogos
na última meia hora, observando o baile lá embaixo. Lorde Devonshire entrou na sala de
bilhar pelo terraço, e Ryan lamentou a interrupção do momento de solidão.
Mesmo assim, ele levantou o cálice que segurava com a outra mão.
— Comparado ao uísque irlandês, toda bebida é suave, milorde. — Ele sorveu o
líquido âmbar de uma só vez e deixou o copo sobre a mesa de jogo. A sala de bilhar se
esvaziara quando a orquestra voltara a tocar no salão.
Como todos os homens presentes, o conde usava casaca preta formal com gravata e
luvas. Esse não era o tipo de evento que senhores como Devonshire freqüentavam. Os
parceiros profissionais de Ryan não eram da nobreza, mas essa noite o conde e sua
família ali estavam como convidados.
— Não dança? — Devonshire estava parado na porta, olhando para o salão.
— O cartão de dança de sua sobrinha está totalmente preenchido. Sabe jogar bilhar,
milorde?
Devonshire continuava olhando para os dançarinos com interesse.
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— Não — respondeu distraído.
Ryan preparou um taco. O charuto repousava sobre o cinzeiro. Podia ouvir as notas
da valsa. Risadas. Os próprios pensamentos desorganizados.
Sabia quem havia atraído a atenção de Devonshire. Ryan a observava desde o início
da noite. Mesmo enquanto dançava com Gwyneth, notara Rachell parada no balcão da
galeria sobre o salão de baile. Retornara de Bristol na noite anterior e descobrira que ela
estava em Londres havia mais de uma semana.
— A presença da srta. Bailey esta noite é curiosa. Ela não é o tipo de mulher que eu
esperava encontrar em uma profissão tão masculina. Engenheira? É mesmo
surpreendente e... intrigante, devo admitir.
Ryan manteve o olhar fixo na mesa de jogo.
— Por que, exatamente? O que tanto o intriga e surpreende nisso?
— Uma mulher com a aparência da srta. Bailey devia tirar melhor proveito dos
refinados e encantadores talentos de seu sexo.
Devonshire olhou para Ryan, e o sorriso se apagou de seus lábios. Havia algo frio e
ameaçador no olhar do cavalheiro, como se ele pudesse atingi-lo fisicamente com a força
do pensamento.
Ryan voltou ao jogo e acertou uma bola na caçapa.
— Há algum motivo especial para essa conversa, milorde? Ou seus comentários são
realmente casuais, como quer fazer parecer?
— Deve saber que minha sobrinha deseja se casar no outono. Não sei o que
conversam quando estão juntos e sozinhos, mas compreendo que ela planeja um futuro a
seu lado. Como sua esposa.
— E o tamanho de minha conta bancária a torna mais tolerante com relação aos meus
defeitos inerentes. Mesmo que essas faltas sejam conhecidas e condenadas pela
sociedade como um todo e pela nobreza em particular.
Ryan notou o rubor de Devonshire com interesse e serenidade. O homem tratava com
desprezo aqueles que julgava inferiores, e nessa noite essa descrição incluía todos os
presentes, pessoas que se dedicavam com seriedade e afinco ao exercício de uma
profissão. Gente que não desfrutava dos privilégios da nobreza. No entanto, ambos
conheciam seus respectivos lugares no relacionamento comercial que os aproximava.
Devonshire precisava do dinheiro de Ryan. O relacionamento pessoal ainda teria de ser
compreendido, estudado e definido.
— Ah, aí está você, tio! — A sobrinha do conde surgiu na porta da sala de jogos. Seu
rosto corado denotava grande agitação. — Procurei-o por todos os lugares. A orquestra
toca uma nova valsa.
— Beatrice, onde estão seus modos?
Os olhos azuis da jovem buscaram os de Ryan.
— Permita-me roubar a companhia de meu tio, sr. Donally. Gwyneth pôs o nome dele
no meu cartão de dança a fim de preenchê-lo. Esperava que talvez...
— Onde está sua irmã?
— Dançando, meu tio, é claro. Ela sempre tem o cartão cheio.
— Porque sua irmã não corre pelo salão como uma colegial tola.
— Eu... sinto muito, tio.
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— Vá ajeitar o cabelo! Está completamente desalinhada, Beatrice.
— Sim, tio. Desculpe-me.
Ryan pegou a casaca das costas de uma cadeira e começou a vesti-la.
— Temos um acordo, Donally? — Devonshire falou por cima de um ombro enquanto
se dirigia à porta.
— Seu servo, como sempre, milorde. — Mas a ironia na voz de Ryan sugeria uma
realidade bem distinta.
Sozinho, Ryan voltou a observar a movimentação no salão. Havia em sua boca um
gosto amargo. Passara toda a vida enfrentando homens como Devonshire, gente que
pensava possuir o mundo e tudo nele contido por conta da posição de privilégio conferida
por seu nascimento. Nesse caminho árduo, contraíra inimizades. E sabia que Devonshire
era um desses oponentes. Um dos mais ferrenhos, talvez.
De repente, ele notou uma figura feminina na periferia do grupo de Johnny, e todos os
outros pensamentos perderam a importância.
Rachell Bailey havia sido sua obsessão de adolescente.
Sua maldição.
A única mulher no mundo capaz de vencê-lo no críquete,superá-lo em matemática, e
ainda, provavelmente, alguém que sabia mais sobre ele do que qualquer outra criatura
viva.
Ela era linda.
Devonshire não conhecia a mulher que tentara ofender e caluniar com aquela
insinuação mesquinha e baixa sobre eventuais segundas intenções relacionadas a sua
presença no baile dessa noite. Sabia que Rachell estava ali apenas para ver a Donally &
Bailey receber o honroso prêmio. Ela vivia e respirava D&B. Trabalhava no escritório da
empresa em Dublin há quatro anos e dedicava-se inteiramente à carreira com
competência e seriedade.
Ryan sempre tivera um jeito especial com as mulheres. As mais astutas o evitavam, o
que comprovava que Rachell era mais esperta do que a maioria. No entanto, mesmo
tendo passado boa parte da juventude perseguindo seu irmão mais velho, ela tinha o
poder de atrair seu olhar e prejudicar seu julgamento. Então, em algum momento entre a
adolescência e a idade adulta, ele a beijara e se formara com louvor em Edimburgo. E
conhecera Kathleen.
O lustre de cristal iluminava os dançarinos. Rachell olhou em volta, buscando uma
área mais tranqüila para onde pudesse escapar. Lady Gwyneth dançava, mas Ryan não
estava em parte alguma.
Ela se serviu de mais uma taça de champanhe, pensando em quão pouco tinha em
comum com aquela gente e como detestava ambientes cheios e quentes. Afastada da
pista, ela parou para observar um quadro da rainha Vitória e pensou como um povo
governado por uma mulher podia ser tão arcaico com relação à posição de outras
mulheres em suas profissões.
— Majestade... — Ela levou a taça aos lábios.
Dedos enluvados passaram por cima de seu ombro e removeram a taça da mão dela
antes que pudesse sorver o líquido claro e borbulhante.
— Alguém já disse que você bebe demais? Devia conter seus impulsos, senhorita!
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A voz de Ryan parecia soar distante, como se viesse de um sonho.
— Praticamente toda a sua família — Rachell respondeu.
— As pessoas vivem dizendo que bebo demais, que devia ter outro comportamento,
outros interesses... Enfim, devo ser realmente inadequada.
Ele deixou a taça sobre um consolo próximo.
— Ainda sabe dançar?
Com o coração aos saltos, ela se deixou levar para a pista.
— Francamente, Ryan, às vezes, sua arrogância ultrapassa todos os limites.
— Eu mudei. Sou um homem diferente.
— Sim, eu notei. Agora é um adulto. Mas continua arrogante.
Ele a encarou. Lá estava, a mesma velha fricção que sempre existira entre eles. Havia
esquecido o calor que essa centelha podia gerar.
— O que faz fora da Irlanda?
— Estou expandido o projeto Rathdrum. — Falar sobre o trabalho era mais seguro, por
isso ela respondeu sem hesitar.
— Escrevi para você há alguns meses. Duas vezes.
— Estive fora do país.
— Johnny me contou que nessa última semana você esteve em Bristol.
— E você está em Londres há mais de uma semana.
— Exatamente. Nesse mesmo hotel. — Ela se calou. A declaração soava como um
convite ousado. Então, por que era tão difícil dizer aquilo que pretendia revelar? —
Escute, podemos conversar durante um almoço. No restaurante do hotel, é claro.
— Não sei, Rachell. Veio até aqui para me ver, agora me convida para almoçar...
Posso ter a impressão de que está tentando me seduzir. Seria perigoso alimentar essa
impressão, não acha?
— Não seja bobo. Minha avó poderia seduzi-lo. É fácil demais. E você tem essa
mesma impressão com todas as mulheres, porque acha que todas estão suspirando por
você.
Ele sorriu.
— Falando em sua avó, como está Memaw?
— Como sempre. Lendo sobre sua vida nos tablóides que divulgam os grandes
escândalos da sociedade britânica.
Ryan não parecia preocupado com a idéia de ser assunto constante tanto nas colunas
financeiras quanto nas páginas sociais.
— Posso imaginar o que Memaw anda dizendo a meu respeito — ele debochou. —
Mas e você, Rachell? Envolvida com alguém? Está apaixonada? O que faz além de
trabalhar para a D&B?
— Muitas coisas. Leciono em um colégio para moças na periferia de Dublin. E pratico
esgrima.
— De fato? Há quanto tempo?
— Há três anos. David é meu instrutor.
— Ah... Como vai meu ilustre irmão David? Ainda se dedica ao sacerdócio?
— Ah, francamente, Ryan! Você não tem tantos irmãos que falem com você
regularmente ou se preocupem em manter esse laço familiar. Precisa debochar de David?
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— Sempre emocional... Passional. Algumas coisas nunca mudam, Rachell. Pelo
menos não preciso temer a possibilidade de uma mudança indesejada. Sei que a Irlanda
jamais conseguirá fazer de você uma dessas damas fúteis e vaidosas.
Ele parou. Discreto, conseguira conduzi-la para além das portas de vidro do salão, e
agora estavam sozinhos sob uma árvore frondosa do jardim. Ainda podiam ouvir a música
do baile, porém as notas soavam distantes.
— Por que as cartas? — Ryan indagou sério, sem rodeios. — Por que o interesse
renovado em minha vida? Pensei que já houvéssemos dito tudo um ao outro.
— Por que não foi à Irlanda? Aquele trem percorre o caminho nos dois sentidos. Sei
que tem todo o direito de odiar-me, mas...
— Olhe para mim.
Ela atendeu ao comando. Ryan removeu do peito uma fita de seda com uma medalha
de bronze e a pôs em seu pescoço.
— Leve-a com você — disse. — Você também trabalhou para merecê-la. A
condecoração também é sua.
Rachell balançou a cabeça tentando esconder a forte emoção provocada pelo gesto
inesperado.
— Por favor, pelo menos uma vez, aceite o que quero lhe dar — insistiu Ryan.
— Maldição... — Sentia o coração tão agitado, que não podia dizer mais nada. Um nó
na garganta a impedia de pronunciar as palavras que se atropelavam em sua mente.
— Esses seus sentimentos... estão abertos à discussão?
— Não. — A palavra soou rouca, sufocada.
Ryan era lindo. Sedutor. Irresistível. Amara Kathleen, a irmã que ela não tivera
realmente, mas que encontrara nos caminhos da vida. Ele se casara com sua melhor
amiga, e Rachell detestava sentir que traía essa lealdade. Mas havia decidido pôr fim à
mentira que ocupara papel central em sua vida, e manteria essa decisão a qualquer
preço.
— Escute, certa vez disse coisas horríveis de que me arrependi mais tarde. Coisas de
que ainda me arrependo. Coisas que jamais deveria ter dito, especialmente no funeral de
Kathleen.
— Não, Rachell. — Ele se virou e deu alguns passos na direção da varanda, como se
pretendesse deixá-la ali.
— Ryan, não pode simplesmente dar as costas para esse assunto como se ele não
existisse. O que tenho para dizer é importante!
— Se quer fazer uma confissão de erros passados, eu a perdôo por tudo. Pronto.
Assunto encerrado. Não precisa dizer mais nada.
— Não quer nem saber quais são os pecados? Não quer ouvir o que tenho para dizer?
— Que pecados você poderia ter? Vai à missa duas vezes por semana. Nunca matou
ninguém. Se não considerarmos seu gosto pela bebida, pelo cigarro, por palavrões e
chocolate, você é praticamente uma candidata à santidade!
— Santidade? Eu o acusei de matar minha melhor amiga! — E ainda lembrava as
coisas horríveis que dissera naquele dia. Kathleen morrera no parto, e Rachell culpara
Ryan por essa terrível e trágica fatalidade. Em sua dor, fora cruel e egoísta.
Pior, fizera com a própria vida coisas terríveis que cobriram a família de vergonha. Não
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era quem Ryan acreditava que fosse.
— Há algumas semanas, completei vinte e nove anos. — Rachell começou com tom
firme. — Sabe disso, não é? Você perguntou por que vim a Londres. Pois bem, sabe que
passei boa parte da vida trabalhando pela posição e pelo status que, francamente, você e
Johnny têm. Que meu pai teve. De certa forma, queria que soubesse que sou digna do
posto que ocupo na D&B em Dublin. Deve ter notado que meu compromisso com a
carreira é inabalável, tanto que, praticamente, não me dedico a outros interesses na vida.
Fiz escolhas. Só Deus sabe os erros que cometi. Quero ver Mary Elizabeth. E você...
Quero consertar erros do nosso passado. Você não merecia ser atacado naquele
momento de tanta dor. Eu errei. Depois desapareci e... nunca mais tivemos uma chance
de conversar. Sobre nada.
— O que há para falar?
— Por que tem sempre de dificultar as coisas? Estou me esforçando para falar... Para
dizer coisas importantes que...
— Importantes? De repente você reaparece querendo limpar sua consciência com
relação a um evento ocorrido há quase quatro anos, e eu tenho de ouvi-la? Devo estar
aqui, disponível e pronto para acatar sua decisão? Para amenizar sua culpa? Aliviar seu
remorso? Rachell, esses sentimentos são inúteis e infundados. Tudo que disse naquele
dia é verdade. Kathleen morreu por minha causa, e essa minha culpa se manifesta de
várias formas. Portanto, não me faça lembrar o passado. Não, se quer mesmo me ajudar.
— Eu... sinto muito.
— Não sabe quem sou. Nunca soube. Vivia num mundo próprio cercada de sonhos
grandiosos, e sempre foi muito boa em conseguir tudo aquilo que queria.
— Por favor, pare...
— Você é madrinha da minha filha. Nunca a impedi de vê-la. Mas não quero ouvir
suas confissões só porque, aos vinte e nove anos, decidiu voltar à Inglaterra e se
reconciliar com o passado para poder dormir em paz.
— Você é impossível! Não sabe nem por que estou tentando falar com você! Por que
vim procurá-lo agora, após tantos anos...
— Não há nenhuma novidade nisso, há?
— Voltei para ver você, Ryan. Tentei escrever para falar sobre os sentimentos mais
caros de meu coração, mas...
— Rachell, o que está fazendo?
Agora sabia que conseguira atingi-lo. E era hora de seguir o caminho escolhido por
seu coração. Era hora de ter a coragem de fazer o que devia ter feito no passado, muito
antes de olhar para o espelho e descobrir que estava jogando a própria vida fora por
orgulho e rancor.
Ela o beijou.
Ryan correspondeu ao beijo, mas só por um instante. Depois se afastou.
— Não! — protestou angustiado. — Não posso fazer isso. Jamais haverá nada entre
nós, Rachell! Vá embora.
Furiosa com a rejeição, incapaz de considerar que a atitude denotava respeito e
estima, ela o atacou:
— Essa mulher não o ama, Ryan!
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— Por que não? Acha que não sou digno do amor de uma mulher? É essa sua opinião
a meu respeito, Rachell?
Ela ainda pensava em uma resposta plausível, quando Ryan voltou ao salão deixando-
a sozinha no jardim.
Desolada, Rachell não se deu conta da presença de um homem alto e loiro que se
aproximava dela com passos lentos.
— Prefiro Covent Garden para meu entretenimento, mas sou obrigado a confessar que
me diverti muito esta noite — ele disse, atraindo seu olhar apavorado. Então, o fracasso
tivera uma testemunha! — Presumo que seja a famosa associada comercial do homem
que pretende desposar minha prima. A valorosa profissional que tanto tem a acrescentar
ao já retumbante sucesso da D&B. Exatamente a pessoa que eu procurava. Não pude
deixar de ouvir o que diziam.
— Não teria sido difícil, se houvesse simplesmente se retirado. Sendo assim, suponho
que nos tenha ouvido deliberadamente, senhor... senhor...
— Permita apresentar-me. Sou lorde Gideon Montague, visconde de Bathwick, filho de
lorde Devonshire, que está aqui como convidado de Ryan Donally. Minha prima, como
bem sabe, está ocupada com os próprios planos. Então, cá estou eu, sozinho entre as
almas perdidas da noite. Temos algo em comum, srta. Bailey.
— Duvido que tal coisa seja possível.
Humilhada, ela viu Johnny surgir na varanda e caminhar em sua direção.
— Bathwick... milorde.
— Johnny Donally. — O visconde cumprimentou-o sem esconder o desprazer causado
pela interrupção. — Que atitude mais antiquada. O que faz aqui? Veio realizar um
resgate?
— Você está bem? — Johnny perguntou a Rachell com ar protetor, sem dar atenção à
provocação do nobre de aparência pálida e frágil.
Rachell não precisava de ninguém para protegê-la. Só queria ir embora.
— Por favor, Johnny, meu rapaz — Bathwick prosseguiu irônico. — Ainda somos
cavalheiros aqui, apesar da atitude arrogante de seu irmão. Algumas coisas na Inglaterra
não pertencem à sua família. Queria apenas trocar algumas palavras com essa
encantadora integrante do corpo de diretores da D&B.
— Já trocou, pelo que pude notar. Agora vá. — Bathwick encarou-a com um sorriso
gelado.
— Pois bem, não pretendo criar uma cena. Quando quiser conversar, srta. Bailey...
Rachell segurou o braço de Johnny para impedir um confronto aberto, mas uma coisa
era evidente ali: Ryan fizera alguma coisa para despertar o ódio desse cavalheiro. E
agora teria de enfrentar as conseqüências.
— Qual é a relação entre lorde Bathwick e Ryan? — Rachell perguntou intrigada a
Johnny na manhã seguinte, quando o encontrou no escritório da D&B.
— Sugiro que fique longe dele. — Johnny respondeu sério e com tom firme. — Lorde
Bathwick não é amigo de Ryan.
— Andei lendo as páginas financeiras dos jornais e notei que muitas outras pessoas
não são exatamente amigas de seu irmão.
— Ryan enfrentou uma terrível batalha pública quando adquiriu a Ore Industries há um
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ano. Devonshire e o filho, Bathwick, não são mais os proprietários da companhia.
No entanto, Devonshire consentira o noivado da sobrinha com Ryan. O compromisso
havia sido anunciado nos jornais daquela manhã, e a publicação dava conta de que o
casamento não tardaria a ser realizado.
— Bem, a D&B é uma empresa pequena, comparada ao porte da Ore. Imagino que
Ryan tenha perdido o interesse por ela...
— Não conte com isso, Rachell. Ele ainda é o presidente aqui. E ainda acompanha de
perto tudo que acontece na D&B. Tomando decisões.
— O que significa que continuarei sendo uma figura decorativa no escritório. Quero
fazer projetos, Johnny, supervisionar as obras... Quero exercer a profissão que escolhi.
— Se está falando sobre a ponte destruída pela inundação em Rathdrum há dois
anos, esqueça. O projeto já está pronto.
— Não está. Sei que não está. Centenas de pessoas dependem de mim para
alimentar suas famílias, Johnny. Só preciso da sua autorização e do seu apoio para levar
o orçamento ao departamento financeiro e pedir a aprovação do projeto.
— Não tenho autoridade para tanto. Ryan é o único que pode autorizá-la a levar
adiante esse seu projeto.
Estava farta do anonimato profissional. Ela e Ryan tinham em comum o desejo de ver
a D&B prosperar, sem mencionar um passado e muitas outras coisas que ele se negava a
reconhecer. Viajara para Londres com um propósito: conquistar o amor de sua vida.
Jamais havia imaginado que Ryan não sentisse por ela o mesmo amor que tinha por ele.
Dançara em seus braços como uma Cinderela ingênua e apaixonada, mas o sapato na
mão dele esta manhã não cabia em seu pé.
Restavam apenas os sonhos profissionais.
— Pois bem, então — disse, pegando um projeto sobre sua mesa.
— Não vai me contar o que houve ontem à noite?
— Não sei do que está falando, Johnny.
— Meu irmão me interrompeu quando eu dançava com minha esposa. Ele me pediu
para ir procurá-la e levá-la de volta ao salão. Disse que, de lá, você se recolheria aos
seus aposentos naquele mesmo hotel. Fiquei preocupado.
— Não foi nada. Esqueça, está bem?
— Se não quer falar... — Ele vestiu a casaca.
— Aonde vai?
— Não passo o dia todo no escritório, Rachell. Especialmente os sábados. Moira e as
crianças vão comigo ao jogo de críquete hoje à tarde. Já esteve com Mary Elizabeth?
Queria muito ver sua afilhada, filha de Kathleen, mas a idéia de reencontrar Ryan
depois da noite anterior a enchia de pavor.
— Não... Ainda não.
— Por que não vai vê-la? Talvez Ryan nem esteja em casa. E mesmo que esteja, você
precisa falar com ele sobre o projeto.
— Ele... vai querer que eu volte para Dublin.
— Provavelmente. O casamento vai ser realizado em outubro na propriedade de
Devonshire. Sinto muito, Rachell. Devia ter vindo antes. Talvez então ainda houvesse
uma chance.
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13. Perigosa Atração
Ela não disse nada. Se tentasse falar, acabaria chorando, e odiava demonstrar
fraqueza. E seria forte, porque, com ou sem Ryan, era filha de um dos fundadores
daquela companhia e integrava sua diretoria. Ryan teria de aceitá-la e respeitar sua
posição, porque não pretendia abandoná-la.
— Está inquieto, sr. Donally.
— De fato, Jacques — Ryan concordou com o competente mestre de esgrima.
— Vamos tentar novamente.
Ryan exercitava-se há uma hora no salão de sua propriedade rural, mas ainda estava
agitado, tenso. E a concentração sofria as conseqüências da falta de sono. Jacques o
acertou no peito pela terceira vez com a incômoda ponta de borracha usada para proteger
o florete.
— Se usássemos armas reais, sr. Donally, já estaria morto. Perfurei seu coração.
— Não, Jacques — ele protestou removendo a máscara. — Meu coração foi destruído
há muito tempo. — Ryan tirou o colete protetor de couro e enxugou o suor do rosto cora
uma toalha branca.
— Li o anúncio de seu noivado com lady Gwyneth, senhor. Meus parabéns.
— Obrigado, Jacques.
— Pai!
A voz da menina soou além das portas do salão. A babá mal podia conter a dinâmica
criança de três anos.
— Até a semana que vem, Jacques. Por hoje chega. Não consigo mesmo me
concentrar. Deve ser o cansaço.
— Certamente. Até logo, senhor.
Ryan foi ao encontro da criança. Boswell, seu fiel valete, a seguia de perto.
— Pensei que fosse dormir a manhã toda! — ele disse, pegando-a nos braços para
beijá-la.
— A menina não devia dormir até tão tarde — opinou a srta. Peabody, a babá.
— Ela já comeu?
— Não, senhor. Boswell informou que desejava fazer seu desjejum com sua filha,
então...
— Quero ir pescar e montar meu pônei, pai.
Ryan olhou para a babá.
— Ela tossiu novamente essa noite?
— Não, senhor. Não creio que ela deveria ter ficado fora de casa por tanto tempo
ontem à tarde, senhor, mas Boswell nunca concorda comigo.
— Esteve doente ontem, minha querida?
— Doeu...
— O que doeu?
Mary Elizabeth mostrou o dedo de onde um espinho havia sido retirado na semana
anterior.
— Acho melhor jogarmos fora esse dedo feio e dolorido. O que acha?
Ela riu.
— Não! — Essa era sua palavra preferida nos últimos tempos.
— Vamos almoçar fora — Ryan anunciou, certo de que Boswell, seu valete há mais de
13
14. Perigosa Atração
dez anos, o encheria com uma lista de queixas sobre a srta. Peabody assim que
estivessem longe dela. — Pegue a vara de pescar de Elizabeth. Ah, e leve-a com você,
Boswell. Quero ter uma palavrinha com a srta. Peabody.
— Sim, sr. Donally. Vou providenciar para que Elizabeth vista roupas mais adequadas
ao passeio.
Contrariada, a srta. Peabody permaneceu no salão enquanto o valete se retirava com
a menina.
Ryan olhou para a babá que havia contratado há dois meses por ter recebido
excelentes referências.
— Fui informado de que ontem à noite Mary Elizabeth acordou chorando. Quando
cheguei em casa, o quarto dela estava escuro.
— Ela tem quase quatro anos, senhor...
— Não me interessa. Ela pode ter quarenta. Exijo que haja sempre uma luz no quarto
dela.
— Ela raramente acorda, senhor. E dar atenção a esses temores tolos da infância só
vai ensiná-la a chorar no meio da noite. Se a deixar sozinha, logo ela saberá que...
— Pago seu salário para ser babá de Mary Elizabeth. Quando eu quiser educá-la,
contratarei tutores ou cuidarei pessoalmente da questão. Insisto na necessidade da luz no
quarto dela. Já havíamos falado sobre isso antes.
O mordomo entrou com a correspondência e interrompeu a conversa.
— Sr. Donally, um portador da D&B acaba de deixar isto em seu nome. Ela disse
que...
— Ela? — Ryan pegou o pacote e examinou-o.
— Sim, senhor. A correspondência foi trazida por uma mulher. Ela o espera no salão.
Quem poderia ser, e por que Johnny ou Stewart enviavam alguém da companhia à
sua casa num sábado? Além do mais, não havia mulheres mensageiras na D&B. E Mary
Elizabeth o esperava para ir pescar.
— Por favor, pague a portadora e dispense-a.
— Não creio que ela aceite partir sem vê-lo, senhor. Ela não está vestida como uma
mensageira e... é muito autoritária. Imponente, mesmo.
— Ah, sim... Bem, já vou recebê-la, então.
— E quanto a mim, senhor?
Ryan olhou para a babá.
— Srta. Peabody, sei que é uma profissional de renome e competência, mas, se quiser
permanecer nesta casa, nunca mais questione minha autoridade. Fui claro?
Ela assentiu e se calou.
Ryan não estava vestido para receber visitantes, mas a presença de Rachell em sua
casa, e sem uma companhia conveniente, tornava seu vestuário um detalhe sem
nenhuma importância.
— Rachell... Que surpresa!
— Vim me desculpar — ela começou sem rodeios. — Não sei por que fiz aquilo, mas
espero que seja um perfeito cavalheiro e esqueça que o beijei. Prometo que não vai mais
acontecer. Nunca. A menos que eu beba, é claro.
— É claro... Pensei que já estivesse a caminho da Irlanda. Como chegou aqui?
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15. Perigosa Atração
— Saí de Londres de trem. Na estação, contratei um rapaz da estrebaria para trazer-
me até aqui. Vim por duas razões.
— Suspeito de que pelo menos uma delas esteja relacionada ao trabalho. Estou
certo?
— Sim, certamente.
— E a outra razão?
— Queria ver Mary Elizabeth.
— Quer ver minha filha?
— Por que a surpresa? Ela é minha afilhada. — Rachell abriu uma pasta que
carregava e retirou dela uma foto da menina segurando um coelho. O retrato havia sido
feito dois anos antes em uma reunião de família.
— Como conseguiu isso? — Ryan espantou-se.
— Brianna mandou para mim. E tenho outras.
— Estou pronta, papai!
Mary Elizabeth entrou na sala correndo, e Ryan sorriu.
— Mary Elizabeth decidiu ir pescar o jantar desta noite. Não é verdade, minha
querida?
— Gosto de pescar — ela concordou animada. — E de montar meu pônei, também.
— Sua afilhada... — Ryan apresentou olhando para Rachell. — Diga olá, Mary
Elizabeth.
A menina olhou para Rachell e pôs o polegar na boca. Era evidente que não estava
habituada a interagir com desconhecidos.
Rachell também estava nervosa. Alguns elementos não faziam parte de sua vida, e
crianças estavam no topo dessa lista.
E para tornar a situação ainda mais difícil, essa menina era filha de Ryan.
— Ela tem cílios como os seus — Rachell apontou sem pensar nas palavras.
— Meus cílios? O que têm eles?
— Bem, eu sempre disse que você devia ter nascido mulher...
— Ouviu isso, princesa?
Mary Elizabeth riu e se encolheu no colo do pai.
— Ela é... linda, Ryan.
— Por que não vem conosco? Se conseguir fisgar um peixe, talvez ela se impressione
o bastante para falar com você.
— Deus! Não pesco há anos! Na verdade, não faço nada tão divertido há muito tempo!
— O que acha, princesa? Devemos salvá-la dessa vida aborrecida e sem nenhuma
diversão?
A menina assentiu com evidente entusiasmo. Rachell suspirou. Precisava encontrar
alguém que a salvasse deles!
Capítulo II
Rachell e Elizabeth pescavam no rio que cortava a propriedade. Rachell havia tirado
os sapatos, as meias e os saiotes e prendera a saia na cintura, exibindo as pernas dos
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16. Perigosa Atração
joelhos para baixo. Em pé na parte mais rasa do rio, ela tentava fisgar alguma coisa
enquanto conversava com a menina.
Ryan as observava da margem, sentado sob uma árvore. Gostava daquela área da
propriedade. Eram duzentos acres de terras bem cuidadas em torno da casa, mais dez
mil acres ocupados por pastos que alimentavam o rebanho de cabras. Possuía três casas
na Inglaterra, incluindo aquela que comprara recentemente em Bristol, mas era ali que
encontrava paz e conforto. Sem mencionar os contratos e os negócios.
Há oito anos assumira o comando da D&B como presidente, mas a grande riqueza
que amealhara vinha de seus investimentos na indústria de ferro e minério. Sempre
conseguira realizar o que todos consideravam impossível, inclusive a hostil aquisição da
Ore Industries há um ano, o mais divulgado de seus movimentos nos últimos tempos.
Poucas pessoas sabiam que lorde Devonshire era um de seus alvos. Devonshire, que
ocupava a presidência da empresa e agia como um rei sanguinário, acreditava-se
intocável.
Para se livrar da falência, Devonshire negociara o noivado da sobrinha, de quem era
guardião legal, com o irlandês que arrancara a empresa de suas mãos.
Sim, o noivado com lady Gwyneth Abbott traria mais benefícios do que simplesmente
uma nova esposa. Ryan não se casava por amor. Havia enterrado esse sentimento com a
esposa há quatro anos,ou pensava ter enterrado, até a declaração de Rachell no baile da
noite anterior.
Mas não a queria ali. Exatamente por isso, não a queria ali.
Não queria voltar ao passado e sentir-se vulnerável outra vez. Era tarde demais para
mudar, mesmo que quisesse. E não queria. Queria que Rachell voltasse para a Irlanda.
Queria ter paz outra vez.
— Sr. Donally.
Um de seus criados o chamava.
Ryan viu o criado se aproximar com uma mensagem e, depois de recebê-la, olhou na
direção da casa. Seu advogado estava em pé no terraço.
— Elizabeth, eu volto num instante, está bem? Fique aqui com a srta. Bailey — disse
antes de afastar-se com passos apressados.
— Está bem, papai — a menina respondeu sem se virar. Pela primeira vez desde que
podia se lembrar, Ryan experimentava um grande alívio por trocar o prazer pelos
negócios.
— Você é minha fada-madrinha?
Rachell e Elizabeth estavam sentadas sobre um cobertor, comendo a galinha frita que
uma das criadas pusera no cesto com o almoço.
— Sou sua madrinha.
A menina tocou sua trança, e o gesto simples quase a fez chorar. No terraço da casa,
Ryan ainda conversava com o desconhecido. A distância entre sua vida próspera e
estável e a dela, também próspera, mas solitária e cheia de insegurança, era tão grande,
que sentia vergonha ainda maior pela cena da noite anterior.
Pouco depois, enquanto Mary Elizabeth dormia deitada sobre o cobertor, Rachell
retomou a pescaria. Não estava realmente prestando atenção aos peixes, até porque
começava a suspeitar de que eles nem existissem naquele rio, mas aproveitava a
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17. Perigosa Atração
oportunidade para desfrutar do ar puro e apreciar toda a beleza do impecável cenário
natural. Eram árvores frondosas e carregadas de frutos maduros e suculentos que
perfumavam o ar, e um céu azul e sem nuvens emoldurava a paisagem de perfeição.
Estava tão distraída com toda aquela beleza, que nem percebeu o retorno de Ryan. Só se
deu conta de sua presença quando viu a sombra ao lado da dela na superfície da água.
— Lamento ter demorado tanto — ele disse em voz baixa.
— Pensei que não trabalhasse nos finais de semana. Era o que estava fazendo, não?
Tratando de negócios?
— Tem razão, normalmente não trabalho aos sábados e domingos, mas esse é um
final de semana diferente. Atípico. Tenho um jantar importante esta noite. Meu tempo de
lazer terminou. E o seu também, infelizmente.
— O meu tempo de lazer? É muita ousadia! Depois de deixar sua...
— Fale baixo, ou vai acordar Elizabeth. Há quanto tempo ela está dormindo?
— Meia hora. Escute, tem certeza de que há peixes para se pescar nesse rio?
— Não sei. Nunca pesquei nenhum.
— O quê? Quer dizer que passei a tarde inteira aqui tentando pescar e... não há
peixes?
— Essa é uma de suas maiores qualidades, Rachell. É persistente. Determinada.
Obstinada, mesmo.
— E você é arrogante! Tem idéia do risco a que expôs sua filha? Nunca cuidei de
crianças antes! E se ela houvesse caído no rio? Se houvesse se machucado, ou...
— Ficou com medo?
— É claro... que não! Saia do meu caminho, Ryan Donally, ou vai se arrepender de ter
me provocado. Vai se arrepender de ter nascido! Nesse momento, não sinto grande
simpatia por você!
— Nem eu por você — ele murmurou, aproximando-se um pouco mais.
Rachell nem percebeu a mudança no tom de voz e a sutil aproximação. Estava muito
irritada.
— Primeiro me convida para pescar em um rio onde não há peixes, depois vai cuidar
de negócios quando já havia dito que não trabalha aos sábados, agora tem um jantar de
negócios e ainda diz que meu tempo de lazer acabou? Devia desejar felicidades a você e
à srta. Floco de Neve! Suponho que sejam perfeitos um para o outro!
Ryan não respondeu. Sabia que a explosão era só uma encenação. Performance
sempre havia sido fundamental na casa dos Bailey. O pai dela não passara de um
dominador egoísta, e desde cedo Rachell aprendera a amarrar os próprios sapatos e
vestir-se sozinha, e nunca precisar de ninguém nem contar com nenhuma ajuda.
Capacidade era seu nome do meio.
Sim, ela precisava insultá-lo para não demonstrar que estava magoada. Sofrendo.
Então, por que o insulto o afetava tão profundamente?
Com os cabelos presos num coque, Rachell viu sua roupa ser levada por uma criada
que a lavaria e passaria. Vestida apenas com a combinação e um robe tão grande que
arrastava no chão, ela deixou os aposentos onde se despira, um quarto de vestir que
integrava um dos dormitórios da imponente e ampla residência que Ryan mantinha na
área rural de Londres, longe da cidade.
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18. Perigosa Atração
Era um terrível aborrecimento ter de discutir negócios com Ryan sem ao menos poder
contar com o benefício de estar adequadamente vestida. Mas ela e Ryan nunca haviam
se preocupado com modéstia, e não seria agora que deixaria de resolver uma questão
importante por não estar vestida de acordo com a etiqueta. Além do mais, o robe a cobria
por completo. Era o suficiente. Não precisava estar bonita ou atraente. Apenas decente.
— Ah, aí está você — ele declarou ao vê-la no corredor, onde a encontrou quando
deixava seus aposentos. — Boswell vai cuidar de suas roupas.
— E se não for possível repará-las? Receio que seja impossível remover todas
aquelas nódoas com uma escovação, mesmo que caprichada.
— Nesse caso, espero que tenha um manto para cobrir as manchas de lodo e água.
Se sair daqui vestindo meu robe, as pessoas vão tirar conclusões horríveis sobre o que
estivemos fazendo nessa tarde. A sociedade nunca perdoa certas indiscrições, e as
línguas mais ferinas podem causar danos extensivos e permanentes à reputação de uma
mulher.
— Por que fala apenas de mulheres? Os homens nunca são vítimas dessas fofocas e
desses rumores maledicentes?
— Oh, sim, a sociedade fala de tudo e todos.
— O que deve ser uma ocorrência comum para você.
— Não acha que anda dando muita importância às colunas sociais? Os tablóides nem
sempre se ocupam de verificar a veracidade de tudo aquilo que publicam, especialmente
sobre certas personalidades.
— Está dizendo que as fofocas não correspondem à verdade? E a condessa italiana?
Ano passado, quando esteve em Veneza...
— Ah, isso foi verdade.
Ela se conteve com grande esforço, consciente de que não tinha nenhum direito de
acusá-lo ou exigir explicações. Uma cena de ciúme seria inteiramente descabida e sem
propósito, além de ridícula e humilhante.
— Precisamos conversar — disse, seguindo-o até o quarto de decoração discreta e
sóbria. Assim que entraram, ela retirou o projeto da pasta que levava sob um braço. —
Será que poderia estudar minha proposta para a reconstrução da ponte? Trouxe o projeto
da Irlanda e incluí nele um orçamento complexo e detalhado que...
— A D&B já tem uma equipe cuidando disso, Rachell.
— Eu também tenho! Não vou passar meses esperando um comitê qualquer reavaliar
o relatório que meu pessoal já fez!
— Meu irmão a meteu nisso, não é? Ele está incentivando essas suas idéias de
autonomia e apoiando atitudes que são...
— Johnny não me meteu em nada. Tenho aqui um projeto para avaliação, só isso. Um
projeto simples, Ryan, apenas alguns dados relativos à construção de uma ponte que foi
arrastada por uma enxurrada e precisa ser reconstruída.
Ele deu uma rápida olhada no desenho e nos cálculos.
— Não vejo o nome de Allan Marrow aqui. Quem é o engenheiro encarregado?
— Eu.
— Ah... Entendi. Acha que vindo me procurar diretamente vai conseguir escapar da
formalidade do comitê. Precisa da minha ajuda. Era essa a intenção por trás daquela
18
19. Perigosa Atração
encenação de ontem à noite? Foi isso, Rachell? Um traque para me envolver e arrancar
de mim a permissão de que precisa para levar adiante esse projeto?
— Não! É claro que não, Ryan! Não é nada disso!
— Você não tem a responsabilidade de criar ou supervisionar projetos. Seu trabalho
na Irlanda consiste em coordenar e verificar a contabilidade daquela divisão. Não vai fazer
nenhum trabalho de campo. Foi o que acertamos quando foi transferida para lá.
— Eu sou perfeitamente capaz de...
— Rachell, eu conheço sua capacidade, e você conhece as dificuldades. Passou anos
freqüentando as aulas, mesmo sabendo que jamais poderia exercer a profissão que
escolheu. Tinha consciência dos problemas e dos obstáculos intransponíveis. Permitir que
você assinasse e supervisionasse um projeto seria o mesmo que entregar a chave da
porta ao concorrente, entende? Os tablóides a destruiriam! E a D&B seria destruída com
você.
— Por quê?
— Porque o público adora escândalos! A opinião pública nos atacaria até levar o valor
das nossas ações ao chão.
— Não importa. Se somos competentes, quem pode nos arruinar? Ou o quê?
Rumores? Fofocas? Não, Ryan. Permiti que tomasse decisões por mim nessa companhia
por tempo demais. Agora vou assumir oficialmente meu lugar na diretoria. Quero que
devolva aquela procuração que assinei. Vou participar diretamente da administração da
empresa. Caso tenha esquecido, sou proprietária de uma grande parte das ações dessa
companhia.
— Obrigado por me lembrar desse pequeno detalhe.
— Tenho tanto direito quanto você ou Johnny de participar das decisões. Mais, na
verdade, porque meu pai fundou a empresa.
— É mesmo? E eu pensando que havia sido uma sociedade entre seu pai e o meu!
Parece que tenho perdido de vista alguns dados muito importantes aqui. Escute, quanto
tempo pretende passar em Londres conhecendo esse lado da empresa?
— O suficiente para ter meu projeto aprovado e meu nome no espaço reservado ao
engenheiro responsável pela obra. Uma semana? Duas? Por quanto tempo quer que eu
fique? Quanto tempo acha que será necessário?
Ryan encarou-a. Rachell sabia que ele era um empresário implacável. Tinha
consciência de que ele havia adquirido e desmantelado diversas empresas nos últimos
anos, e faria o mesmo com ela se soubesse o quanto estivera envolvida no lado técnico
da operação em Dublin. A divisão passava por problemas financeiros há quase um ano,
basicamente porque ela havia dado mais atenção aos projetos do que à contabilidade.
— Está tentando dificultar minha vida? Agora que completou vinte e nove anos,
quando começa a ouvir a mortalidade batendo na porta dos fundos, decidiu voltar e me
lembrar que...
— Não se atreva a me ofender, Ryan Donally. Não ia gostar das conseqüências.
— Deixe-me contar um segredo que você certamente não lembra, uma vez que, na
época, preferiu não estar por perto. Já tive vinte e nove anos. Há dois anos. Sei que vai
sobreviver à crise. Como sempre...
— Ryan, você sempre fez tudo de acordo com sua vontade. Devia ter nascido rei.
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20. Perigosa Atração
Suas qualidades napoleônicas fazem de você um ditador formidável, realmente. Digno de
medalhas!
— Obrigado. Vindo de você vou interpretar o comentário como um elogio.
— Não é um elogio!
Ele se aproximou e, encostando-a contra a parede, pôs as duas mãos ao lado de sua
cabeça, impedindo-a de fugir.
— Eu sei que é. Sempre é.
Rachell sentia o coração bater depressa no peito. Estava ofegante. A proximidade, o
ambiente e os trajes conferiam ao momento uma intimidade envolvente e perigosa. Muito
perigosa.
— E agora, Rachell? O que fazemos?
— Não passei os últimos anos trabalhando duro para continuar me escondendo, só
porque você julga inconveniente a presença de uma mulher na diretoria. Pode ter certeza
de que voltaremos a nos ver em breve para tratar desse assunto — ela ameaçou arfante.
— Tem certeza de que é... seguro? Estamos sozinhos no meu quarto, você veste só o
meu robe, e seu cabelo cheira a torta de maçã e canela... Francamente, eu seria capaz
de devorá-la, Rachell. O risco é realmente imenso.
— Oh... — A voz rouca e as palavras provocantes despertaram nela o desejo há muito
suprimido. Podia sentir o calor do corpo de Ryan e antecipar o contato do peito largo e
forte com seus seios. — Você é um homem impossível, Ryan Donally. — Ela escapou
passando por baixo de um dos braços dele. Era imperativo que recuperasse a sanidade
mental e o bom senso. — E não vai se livrar de mim assim tão fácil. É hora de aprender a
dividir.
Ainda com as mãos apoiadas na parede, ele ouviu o farfalhar do robe e o estrondo
provocado pela batida da porta. Batendo a testa contra a parede três vezes, Ryan
praguejou contra o próprio descontrole e contra os impulsos primitivos que não conseguia
conter. Era terrível sentir-se traído pelo próprio corpo.
Só Rachell era capaz de frustrá-lo a ponto de provocar reações tão violentas. Só ela
era capaz de transformar a fragrância de maçãs e canela em sinônimo de pecado. Só ela
podia levá-lo ao total descontrole.
Luxúria e raiva se misturavam, lutando pela primazia. Desejo e ressentimento, paixão
e culpa... A mistura de emoções era perigosa, explosiva e ameaçadora. Anos de
autocontrole, e de repente voltava a ser um adolescente obcecado. Vinte e quatro horas
depois do reencontro, já se sentia correndo o risco de esquecer cautela, propriedade e
conveniência, e tomá-la em seus braços para nunca mais soltá-la.
— Quer um conhaque, senhor? — Boswell perguntou da porta do quarto.
Ele olhou para o leal valete e franziu a testa.
— Por favor, cuide para que a srta. Bailey não tenha a estúpida idéia de voltar a
Londres antes de estar adequadamente vestida. Ela seria inteiramente capaz disso. Pode
imaginar o que diriam os tablóides, não?
— Sim, senhor.
Mas a ordem era apenas um esforço de autopreservação. Seria capaz de mandá-la
embora nua, se fosse necessário, mas não passaria a noite sob o mesmo teto que ela.
Não era tão corajoso. Nem tão insano.
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21. Perigosa Atração
— Tem certeza de que o sr. Donally sabe que passei a noite aqui? — Rachell
perguntou quando Boswell deixou a bandeja de café na mesa da sala de jantar.
— Sim, senhora. Ele foi informado ontem à noite, logo que chegou em casa depois do
jantar.
— Quer dizer que ele está em casa? Aqui?
— O sr. Donally chegou pouco antes do amanhecer, senhora. — Havia uma alegria
em sua voz que a desconcertava e intrigava. — E estava exausto.
Rachell sabia que sua presença naquela casa violava todas as regras de etiqueta
moral, mas ela e Ryan não eram amantes, embora já o houvesse visto nu há muito
tempo. E ele a vira em pior estado de descompostura do que naquele robe da noite
anterior. Além do mais, nunca se ocupara muito de questões da moda ou outras
frivolidades. Não dava nenhuma importância ao que publicavam os tablóides ou ao que
era comentado nos salões da sociedade.
— Ele não gosta muito de mim, Boswell — Rachell disse com um suspiro que soou
estranho mesmo aos seus ouvidos.
— Pelo contrário, srta. Bailey. Nunca o vi tão zangado antes — o valete protestou.
— E isso é bom?
— O sr. Donally nunca fica zangado, senhora. Ele nunca demonstra seus sentimentos.
— Ah... entendo.
— Não creio que entenda realmente.
— Compreendo que minha presença aqui o incomoda.
— Incomoda, de fato, mas não pelas razões que imagina.
— Escute, por que ele não fica na casa que possui em Londres? Não seria mais
simples?
— Normalmente ele fica na casa da cidade quando tem de passar mais do que
algumas poucas noites em Londres, senhora. Mas aqui ele tem mais privacidade e
conforto para ele e a filha. Por isso prefere a propriedade rural, apesar da distância.
Rachell folheou o jornal que o mensageiro entregava todas as manhãs. Já havia
cavalgado até a capela onde Kathleen fora sepultada, graças à gentileza de Boswell que
providenciara calça de montaria e colete, além de uma égua dócil que comandara sem
nenhuma dificuldade, e agora estava na sala, tomando seu desjejum. Mas não podia ficar
o dia todo ali, bebendo café, lendo o jornal e pensando onde Ryan havia passado a noite.
Ou por que ainda dormia, apesar do adiantado da hora.
Irritada por ele permanecer na cama enquanto todo o seu futuro era incerto, Rachell
terminou o desjejum e foi explorar a casa. Um longo corredor partia da sala de refeições e
atravessava todo o comprimento da casa, oferecendo inúmeras possibilidades na forma
de portas fechadas que provocavam a curiosidade. Ela as foi abrindo uma a uma,
examinando salas e estúdios mobiliados com bom gosto e criados para oferecer conforto
aos moradores da residência. Atrás de uma dessas portas estava a sala de esgrima, um
espaço amplo e bem iluminado com piso de madeira e paredes revestidas por espelhos.
Rachell entrou e fechou a porta. Depois de examinar as estantes onde ficavam as armas,
ela empunhou um florete experimentando o peso da arma. Sozinha, executou alguns
movimentos de treino, investindo contra alvos imaginários, cortando o ar e movendo os
pés com impressionante agilidade. De repente, uma idéia surgiu em sua cabeça. Havia
21
22. Perigosa Atração
outra forma de domar o dragão chamado Ryan Donally.
Sorrindo, Rachell empunhou outro florete e saiu, percorrendo o longo corredor até o
quarto dele. Aproximando a orelha da porta, tentou identificar algum som do outro lado.
Ele devia estar dormindo, ou o silêncio não seria tão completo.
Rachell bateu e esperou. Não obtendo resposta, abriu a porta e entrou. Ryan dormia.
Mesmo adormecido, seu corpo emanava poder e força. Os músculos definidos lembravam
a obra de um escultor minucioso, e os cabelos castanhos sobre o travesseiro branco eram
sedosos e abundantes. O lençol branco o cobria da cintura para baixo, mas podia ver os
contornos das pernas fortes sob o tecido fino. O desenho provocava imagens mentais
mais do que sugestivas, quase pecaminosas.
— Se continuar olhando, vai acabar encontrando o que procura.
A voz rouca a assustou. Ryan soava furioso, o que não era de estranhar. Não tinha o
direito de invadir sua privacidade dessa maneira.
— Esteve bebendo? — ele perguntou, referindo-se à ousadia da invasão e à
estranheza de seu comportamento.
— Francamente, Ryan! Não seja ridículo! E já vi você nu antes, lembra? Não sei por
que está tão... perturbado.
— Não sabe? Pense bem, ache. Você me viu nu há muito tempo, quando ainda
éramos adolescentes. E eu estava nadando em água gelada.
— Que diferença isso faz?
— Se eu disser, vai se sentir insultada. Ou constrangida.
— Então não diga.
De que adiantaria incentivar tamanha intimidade? Não havia possibilidade de futuro
para eles. Jamais haveria. Ryan não a amava. Além do mais, estava noivo de uma jovem
nobre, sobrinha de um conde. Finalmente, ele poderia relaxar e dar por encerrada a luta
contra uma sociedade que segregava e humilhava irlandeses e outros estrangeiros.
Passaria a ser parte integrante dessa poderosa comunidade.
Ryan teria um lugar na sociedade. Ninguém jamais humilharia Mary Elizabeth por ser
de uma religião inadequada ou por descender de celtas primitivos. A menina seria bem
recebida na sociedade e em todas as casas. Poderia debutar e freqüentar os melhores
salões. Tudo que Ryan sempre lutara para conquistar na vida finalmente estava ao seu
alcance.
Sim, ela e Ryan se dispuseram a conquistar o mundo em detrimento de todo o resto.
Empenharam-se nessa árdua luta, e a disputa de hoje só ressaltava a importância de sua
batalha pessoal, especialmente agora. Dessa vez, quando deixasse Londres, deixaria
para trás apenas a D&B. Não deixaria assuntos inacabados, sentimentos confusos ou
possibilidades que, em última análise, serviam de alimento para sonhos que agora
provavam ser impossíveis. Partiria sozinha, consciente de sua solidão, e voltaria toda a
energia para a realização de propósitos profissionais. Mais nada.
— Invadiu meus aposentos para pôr fim a sua infelicidade, Rachell? Ou vai acabar
também com o meu tormento? A lâmina sobre a qual caminhamos aqui é afiada. O perigo
é inegável. E a lâmina que empunha é igualmente letal, caso não tenha notado. O que
pretende, afinal?
Ela brandiu o florete.
22
23. Perigosa Atração
— Vim propor um duelo.
— Um duelo? Perdeu o pouco juízo que tinha, Rachell?
— Escute o que tenho a propor. Se eu vencer, você enviará meu projeto para a
avaliação do comitê, com meu nome ocupando o espaço reservado para a identificação
do engenheiro responsável. O que me diz?
— Digo que perdeu realmente o juízo. Não há dúvida disso.
— Por quê? Tem medo de perder? Ou não acredita que posso vencê-lo na esgrima?
— Nem uma coisa, nem outra. Só penso que tudo isso pode esperar, porque cheguei
em casa pouco antes do amanhecer e estou exausto. Preciso dormir, se não se importa.
— Não! É claro que me importo! Esse assunto é muito importante para mim, Ryan.
— E eu preciso dormir. Já disse.
— É muito tarde para continuar na cama, Ryan. O sol nasceu há mais de três horas.
— Jesus! — Ele jogou as cobertas longe. — Perdeu a razão e decidiu que vai me
enlouquecer, também? É isso? Pois saiba que está muito perto de realizar esse seu
propósito.
Felizmente, Ryan não estava nu, mas vestia uma calça de pijama fina, larga e de cós
baixo que mais revelava do que escondia. Rachell suspirou aliviada ao vê-lo se dirigir ao
quarto de vestir. Ao menos se livraria dessa tortura. Era difícil ignorar o calor provocado
pela visão do corpo másculo e forte. .
— Vai me prometer uma coisa, Rachell.
— O que é?
— Quando isso acabar, você vai voltar para a Irlanda.
— Só quando for aceita como diretora dentro da companhia. Você vai ter de me
aceitar como igual.
— Mal posso esperar por isso! — Ryan exclamou debochado enquanto se lavava e se
vestia. — Noto que está confiante! Deve ter muita certeza da competência do seu instrutor
de esgrima.
— Na competência do meu instrutor, na minha competência, e também na sorte.
Afinal, estamos falando de um sacerdote aqui. Os santos estão do meu lado. Vamos lutar
descalços e na grama. O primeiro a acertar o outro com um golpe leal e justo será o
vencedor.
— Por que descalços e por que na grama?
— Porque foi assim que aprendi. Minha vantagem com relação ao ambiente vai
compensar sua estatura superior à minha.
— O que significa realmente esse embate, Rachell? O que vamos disputar?
— Acho que esqueceu o que é ter de lutar por alguma coisa, Ryan. Por isso reluta
tanto em aceitar meu desafio.
— Não diga tolices. Trabalhei e continuo trabalhando muito por tudo na vida. Fui
desafiado, intimidado e humilhado por gente que se negava a reconhecer minha
existência. Agora chega. Estou farto disso.
— Se acha que sinto pena de você, esqueça. Você é como um imenso incêndio na
floresta: suga tudo que o cerca com essa energia incontrolável que emana. Domina e
absorve sem olhar duas vezes para aquilo que conquista. Só precisa entrar em algum
lugar para ser notado. Nunca pude competir com isso.
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24. Perigosa Atração
— Competir? Quando me deu alguma coisa além do seu desprezo? Quando pude
olhar para você sem ver outro homem em seus olhos?
— Quando foi a última vez em que olhou nos meus olhos? Não há outro homem neles,
Ryan. Nunca houve. Se tivesse realmente olhado com atenção no passado...
— Se eu tivesse olhado? Você estava apaixonada por meu irmão! Nunca houve uma
chance para nós. E você sempre deixou isso bem claro.
— Você me beijou, Ryan. Depois foi para Edimburgo e nunca sequer escreveu para
mim.
Era impressionante como lembranças da infância podiam elevar as razões de uma
pessoa até fazê-las chegar à lua.
Rachell conhecia os seis irmãos Donally, crescera com Brianna e Ryan, os dois mais
novos, mas sempre tivera uma paixão infantil por Christopher, o irmão mais velho. Todas
as meninas o adoravam naquele uniforme militar. Onze anos mais velho que ela,
Christopher era um herói inatingível, um mito. Uma obsessão da infância.
Ryan sempre fora o rebelde, aquele que desafiava as regras e a provocava,
convencendo-a a segui-lo nessas aventuras. Era ele o rapaz ousado que ia visitar as
filhas gêmeas do vigário no meio da noite, o sedutor juvenil que conquistava todas as
garotas por quem se interessava. Ela e Kathleen o seguiam sem questionar suas atitudes
e decisões. Confiavam cegamente em sua força física e em sua inteligência. Com ele
sentiam-se corajosas, protegidas, invencíveis.
Então, Ryan saíra de casa para ir estudar. E elas ficaram.
— Você se casou com a minha melhor amiga! — ela disparou com tom de acusação.
Ryan não respondeu. Não de imediato. Em silêncio, ele a conduziu para fora do
quarto, pelo corredor e pela porta para o exterior da casa. No gramado, ele empunhou o
florete e se posicionou para a luta. Rachell investiu contra ele com uma mistura de
técnica, vigor e vontade.
Foi uma luta equilibrada, enérgica, mas muito rápida. Em um ataque mais ousado da
respeitável oponente, Ryan se esquivou, agarrou-a pelo pulso e a puxou contra o peito,
imobilizando-a. Ela inclinou o corpo e o arremessou por cima da cabeça, jogando-o de
costas no gramado. Por um momento, foi como se todo o ar escapasse de seus pulmões.
— Ryan!
Ele permaneceu imóvel, os olhos abertos fixos no céu. Rachell largou o florete e caiu
de joelhos a seu lado.
— Ryan, você está bem?
Ele precisou de alguns instantes para recuperar o ar e a capacidade de raciocinar e
falar. O choque era evidente em sua voz rouca e ainda um pouco ofegante.
— Por Deus, onde aprendeu isso?
— Não sei ao certo. Sei apenas que com esse movimento posso me livrar de ataques
traiçoeiros e superar qualquer adversário.
— Na próxima vez, quero ser avisado com antecedência sobre quais armas serão
usadas.
— Para que você possa vencer?
O embate ainda não terminara. Agora duelavam com as palavras.
— Jamais haverá um vencedor entre nós, Rachell. Esse nosso esforço é inútil.
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25. Perigosa Atração
— Isso é o que você pensa.
De repente, já recuperado do choque e do golpe violento, ele a segurou pelo braço e,
rápido, girou o corpo e a jogou de costas sobre a relva, imobilizando-a com o peso do
próprio corpo.
— Isso é o que vejo. O que sei.
— Acredita que me venceu com esse golpe barato e desleal?
— Por quê? Não concorda comigo? Acha que ainda pode me superar de alguma
forma, mesmo estando imobilizada?
— Ainda posso gritar.
— Talvez deva. Nesse momento, não sei qual de nós precisa mais de ajuda.
Rachell encarou-o confusa, sem entender o significado do comentário.
Aproveitando esse momento de hesitação, Ryan beijou-a. Foi um beijo ousado,
ardente e sensual. Rachell correspondeu com fervor, enterrando as unhas em seus
ombros. O beijo imitava o ato primitivo da posse sexual. Ela tremia. Podia sentir as mãos
tocando seu corpo de maneira atrevida, despertando sentimentos desconhecidos e
perigosos, fazendo ferver o sangue em suas veias. Precisava recuperar o controle, ou
estaria perdida. Em breve seria tarde demais para tentar voltar atrás. E quando isso
acontecesse...
— Oh, Rachell... — A voz rouca de Ryan alimentou o desejo. Era como se ele
suplicasse por sua permissão para seguir adiante, para realizar, finalmente, o que ambos
fantasiavam e esperavam há anos.
Porém, enquanto Rachell ainda estava perdida naquela nuvem acetinada de langor,
paixão e luxúria, ele se afastou, abriu os olhos e encarou-a.
A respiração de Ryan era úmida e morna em seus lábios, como uma carícia sensual e
provocante, uma promessa de prazeres nunca antes vividos. Nuvens de tempestade
seriam um refúgio seguro comparado ao convite e ao desafio que via em seus olhos.
— O que estamos fazendo?
A pergunta soou aflita, cheia de apreensão. Assustada, ela despertou do idílio.
— Saia de cima de mim — disse apavorada. — Por favor. Ele se levantou e levou as
mãos à lateral do corpo, como se sentisse dor nas costelas. Seus cabelos estavam em
desalinho. Ryan a encarou, abriu a boca para dizer alguma coisa, mas permaneceu
calado, os olhos fixos em um determinado ponto do gramado.
Rachell seguiu a direção do olhar de Ryan e percebeu que a filha dele se aproximava
correndo.
— Papai! — A menina parecia agitada, mas sorria com alegria.
— Mary Elizabeth se aproxima. — Ryan anunciou desnecessariamente, uma vez que
a presença da criança era óbvia. — Não quero que ela tenha a impressão de que
estamos tentando nos matar. — Ele se abaixou e recuperou os dois floretes. — Volte para
casa e recomponha-se. Tenho certeza de que suas roupas já estão prontas e em
perfeitas condições de uso. Enquanto você se arruma, vou pedir a carruagem.
Rachell não se deixava enganar pela falsa indiferença de Ryan. Sabia que ele tinha
consciência da importância do que acabara de acontecer ali. Alguma coisa o impedia de
agir com franqueza e espontaneidade. Alguma coisa...
— Vai partir para sua residência em Londres esta noite? — ela perguntou sem fitá-lo
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26. Perigosa Atração
diretamente.
Antes de deixar o edifício da D&B, precavera-se pedindo a Stewart o itinerário
completo de Ryan, e fora imediatamente atendida em seu pedido. Sempre acreditara que
informação é a melhor arma com que se pode contar em uma guerra. E o que vivia com
Ryan não deixava de ser uma guerra fria, ao menos nesse estágio em que se
encontravam.
Ryan parecia constrangido. Na verdade, ele hesitou por alguns instantes antes de
responder em voz baixa:
— Rachell, amanhã ficarei oficialmente noivo. Vai haver uma recepção para anunciar o
compromisso à sociedade.
A notícia causou um impacto intenso que ela não conseguiu ignorar, mas que,
determinada e forte, decidiu esconder. Não daria a Ryan o prazer de descobrir que ainda
tinha o poder de afetá-la tão profundamente.
— Entendo — ela disse. — E agora que você vai ser oficialmente aceito pela
sociedade local e pela nobreza britânica, suponho que planeje participar de uma caça à
raposa com seus novos amigos. É isso? Vai começar essa nova etapa em sua vida
dedicando-se a uma atividade tipicamente nobre... e absolutamente detestável?
— Não. Meus planos não incluem nenhuma atividade tão emocionante, tradicional ou
dinâmica. Além do mais, com o anúncio oficial do noivado, ficará evidente que já cacei a
única raposa que merece algum esforço em toda a Inglaterra.
Rachell sabia que ele se referia à bela sobrinha de lorde Devonshire.
— Tenho reuniões na terça e na quarta-feira — Ryan continuou em voz baixa, mesmo
sabendo que não devia nenhuma explicação a Rachell. — Tenho de tratar de questões de
trabalho.
— Ah, bem... Nesse caso, vamos nos encontrar. Também vou participar das reuniões.
Como acionista e membro da diretoria...
— Rachell, não é o que está pensando. Essas reuniões...
— Por favor, Ryan, não subestime minha inteligência. Essa é uma ofensa que sou
incapaz de relevar ou perdoar.
— Acreditaria em mim se eu dissesse que esse negócio nada tem a ver com a D&B?
— Eu até poderia acreditar em tudo que diz, Ryan, mas só se eu confiasse em você.
Ele se virou.
Depois, devagar, caminhou até perto dela e estendeu a mão.
Rachell não entendia o desejo que sentia por ele. Não conseguia compreender como
havia se comportado de maneira tão leviana e inconseqüente, e no meio do jardim da
casa dele, onde poderiam ter sido vistos por qualquer pessoa e envolvidos num terrível
escândalo de conseqüências incomensuráveis. Não conseguia entender a total falta de
compostura e equilíbrio que em nada combinava com sua personalidade prática, com sua
natureza objetiva e cautelosa.
Ryan recuou e baixou a mão. Era evidente que Rachell não pretendia aceitar sua
oferta de ajuda, nem mesmo para levantar-se do chão.
— Como preferir — ele disse impaciente e irritado. Depois se inclinou com galanteria e
cavalheirismo. No instante seguinte, ele partiu deixando-a sentada entre as petúnias,
levando a mente confusa e as emoções ao mais completo caos. Rachell ficou ali sentada,
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27. Perigosa Atração
sem saber o que fazer. Pior do que a incerteza e do que todos os outros sentimentos era
a humilhação de sentir-se desdenhada e rejeitada como uma criatura baixa e sem
importância. Como uma mulher vulgar e sem nenhum amor próprio, alguém que se
oferecia sem pudores a um homem que já a havia rejeitado no passado.
Capítulo III
— Srta. Bailey? — O homem de cabelos brancos e rosto sereno e bondoso que abriu a
porta deu um passo à frente, saindo para ir encontrá-la na varanda. — O que faz sozinha
num tempo como esse? Devia estar abrigada em um local seco e quente.
Ele tinha razão, certamente. Afinal, chovia forte e incessantemente. Rachell apertava o
manto contra o corpo, tentando aquecer-se. Era inútil. A umidade parecia penetrar até
mesmo em seus ossos, congelando o sangue em suas veias. Podia sentir o perfume de
cera de limão no interior da residência. A luminosidade da lareira tornava o ambiente
ainda mais convidativo.
— Lamento muito incomodá-lo, sr. Williams — ela disse com a cabeça coberta pelo
capuz do manto. — Mas preciso lhe falar.
Ele olhou por cima dos óculos. Havia um jornal dobrado sob seu braço, sinais claros
de que interrompera sua leitura com a visita inesperada. Segurando a porta aberta, o sr.
Williams passou ao interior da casa e a convidou a segui-lo.
— Gostaria de um café, ou um chá? Alguma outra bebida que seja capaz de aquecê-
la, talvez?
— Não, não se incomode comigo. Não é necessário. —Rachell sorriu rapidamente a
fim de cumprimentar a jovem criada que, parada no hall de entrada, esperava obediente e
solícita para recolher seu manto. — Não vou demorar — explicou. Era impossível não
notar a poça de água que deixava no chão de madeira encerada. — Desculpe-me... — ela
pediu constrangida, percebendo repentinamente que causava maiores transtornos do que
havia previsto.
— Não se incomode com isso, srta. Bailey. Sei que não teria vindo até aqui nesse
tempo inclemente se o assunto não fosse realmente importante. Por favor, entre e venha
se aquecer. Em que posso ajudá-la?
O sr. Williams fechou a porta e, ao ver que a criada se afastava com seu manto
encharcado, levou-a até a biblioteca. Ele havia sido advogado de seu pai e seu homem de
confiança em Londres por dez anos. Agora, Williams cuidava dos negócios de Rachell
com idêntica eficiência e a mesma dedicação. Confiava nele. Sabia que podia contar com
sua eficiência e com sua capacidade sempre que delas precisasse. Sabia que suas
questões, apreensões e interações jamais ultrapassariam os limites do relacionamento
profissional. Em suma, tinha absoluta certeza de que, fosse qual fosse o assunto, o sr.
Williams seria sempre discreto e nunca, em nenhuma circunstância, revelaria o teor de
suas conversas a quem quer que fosse.
—Não quer se sentar, senhorita? — ele convidou com a delicadeza de sempre.
Rachell aceitou o convite. Williams acomodou-se atrás da mesa da biblioteca que
funcionava também como escritório e, paciente e discreto, esperou em silêncio que ela
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28. Perigosa Atração
abordasse o assunto que a levara até ali.
Rachell respirou fundo. Havia retornado da casa de Ryan na área rural no domingo
anterior e, desde então, passara a maior parte do tempo tabulando números, estudando-
os e decidindo por quanto tempo ainda poderia defender o projeto em Rathdrum sem pôr
em risco a saúde financeira da empresa. Havia contratos a serem cumpridos,
compromissos a serem saldados. E não pediria mais nada a Ryan. Era hora de resolver
os próprios problemas sozinha, ou sua credibilidade como profissional e líder de equipe
estaria prejudicada para sempre. Ninguém jamais a julgaria capaz de concluir um projeto
se deixasse essa questão de Rathdrum ir por água abaixo. Se não concluísse o projeto de
construção da ponte e não cumprisse todos os contratos, Ryan fecharia a divisão na
Irlanda. E ela estaria arruinada.
— Sr. Williams — Rachell começou, retirando da bolsa os papéis no qual estivera
trabalhando durante os últimos dias. — Gostaria de vender o que resta da minha herança.
Não é muito, mas sei que a transação vai render o valor de que necessito nesse momento
para solucionar problemas prementes. Tenho uma propriedade em Carlisle que vai render
um bom dinheiro. Desejo vender a casa e o terreno. Não vou lá há anos. Não vai fazer
falta. Não preciso do imóvel, mas necessito urgentemente do dinheiro que será auferido
com essa venda. Aqui estão os nomes de algumas pessoas que já me procuraram
indagando sobre meu interesse em vender o imóvel. Os contatos foram feitos no passado,
quando eu não pensava em vender a propriedade, mas... Bem, talvez ainda haja alguém
interessado.
A transação produziria dois resultados imediatos: obteria o dinheiro de que
necessitava para cumprir os contratos em Dublin e concluir o projeto Rathdrum, e ainda
cortaria definitivamente seus últimos laços com a Inglaterra. Não havia dúvida, de que a
decisão era sábia e astuta, embora difícil e dolorosa.
— Mas esse é o lugar onde passou sua infância, srta. Bailey. Seu pai construiu aquela
casa. Deve haver muitas lembranças doces em Carlisle, recordações caras que qualquer
pessoa gostaria de guardar eternamente. Não entendo por que deseja vender a
propriedade.
— Basicamente, porque agora vivo na Irlanda. A propriedade é a única coisa de valor
que ainda me resta e, por uma infeliz circunstância, preciso do dinheiro. Como pode
perceber, não me resta alternativa se não essa que exponho agora, sr. Williams. Mesmo
com todas as boas lembranças da minha infância, vou ter de me desfazer da casa. E
inevitável.
— Ainda tem a Donally & Bailey. A casa em Carlisle não é seu único bem, como
afirmou há pouco. É sócia dos Donally na empresa, e o sr. Ryan não se negaria a...
Rachell ergueu uma das mãos de forma a calar o protesto do homem que, intrigado
com sua atitude, tentava demovê-la da decisão que entendia como absurda e
perfeitamente possível de evitar.Ryan. O Sr. Tubarão de Londres, rico industrial e
personalidade do momento, o homem que detinha o controle sobre sua vida. Esse era um
bom momento para tentar reunir a munição necessária para uma eventual guerra. Talvez
o sr. Williams pudesse ajudá-la nesse sentido.
— Por favor, gostaria de entender o aspecto comercial dessa minha sociedade com
Ryan e Johnny.
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29. Perigosa Atração
— O que quer saber exatamente, senhorita?
— Entre outras coisas, quero que me diga o que eu teria de fazer para adquirir o
controle acionário da D&B.
Silêncio. O pobre homem parecia estar chocado com a pergunta inesperada.
— E então, sr. Williams? Pode me ajudar, ou não?
— Posso responder a sua pergunta, certamente, mas...
— Mas?
— Infelizmente, o custo de tal operação é proibitivo, senhorita. Não dispõe do capital
nem dos meios para realizar tamanha façanha.
— Como pode ser possível que Ryan ainda não seja proprietário da companhia? Ele
comprou quase todas as ações de minha família.
— De fato, senhorita, aconteceu exatamente como está dizendo, mas tudo isso mudou
quando ele tornou a D&B uma empresa de capital público, há cinco anos. Ryan investiu
tudo que tinha na empresa para garantir o capital que a manteria à tona. Poderia ter
mantido ele mesmo o controle acionário da empresa, mas não foi o que fez.
Ryan fez o quê? O sr. Williams estava dizendo que Ryan abrira mão do controle
acionário da D&B para abri-la ao capital público? Desistira de manter-se no comando
absoluto para assegurar a saúde financeira da empresa fundada por suas famílias? Era
difícil de acreditar que um homem implacável e arrogante como ele podia ser capaz de
uma atitude tão altruísta.
— Não entendi muito bem, mas...
— O que não entendeu, senhorita? Creio ter sido claro. O sr. Ryan Donally abriu a
empresa ao capital público para obter a injeção de recursos que se fazia necessária a fim
de assegurar a continuidade do funcionamento das operações.
— Sim, isso ficou claro, mas... A ausência de um acionista majoritário não torna a
companhia vulnerável a ataques?
— Normalmente, seria como está dizendo, sim. Mas, como ficou estabelecido no
estatuto criado por Ryan, há dois tipos de ações da D&B, srta. Bailey. As ações
preferenciais da companhia, e as ações comuns. Essas últimas são compradas e
vendidas no mercado, mas não ultrapassam a marca de quarenta e nove por cento do
total de ações. De acordo com o estatuto, as duas famílias fundadoras terão juntas
sempre cinqüenta e um por cento da D&B. Nenhum de vocês pode vender ações, a
menos que seja para a outra família, e nenhum acionista comum pode ocupar posição no
conselho diretor sem o consentimento da maioria do conselho. Nesse caso, como todos
vocês têm a mesma quantidade de ações, cada um detém um voto. Resumindo, ainda
são as duas famílias fundadoras que detêm o comando da D&B.
— Mas as ações comuns em poder do público somam quarenta e nove por cento da
companhia. Então, teoricamente, se eu recuperar as ações que estão em poder de Ryan,
posso adquirir ações comuns e obter o controle acionário. Posso apontar quem bem
entender para a diretoria. Posso até estabelecer novas políticas. Em suma, sr. Williams,
ainda é possível uma única pessoa assumir o comando, apesar do novo estatuto criado
por Ryan para proteger a D&B.
— Mesmo que tivesse essa capacidade, o que não tem, porque, como acabou de
dizer, para isso teria de recuperar ações que se encontram em poder de Ryan, o sr.
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30. Perigosa Atração
Donally a impediria assim que tentasse dar o primeiro passo nesse sentido. Ao contrário
da senhorita, ele dispõe dos meios para adquirir ações comuns. Jamais permitiria que
outra pessoa assumisse a presidência da empresa.
Rachell odiava sentir-se impotente. De qualquer maneira, nesse momento era mais
importante encontrar um meio de manter sua divisão irlandesa operando. Pensaria no
controle acionário e no comando da D&B em outra ocasião, quando não estivesse
pressionada por problemas mais urgentes.
— Quero que obtenha a lista dos acionistas — ela pediu. — Esse tipo de relação é de
domínio público, não?
— Srta. Bailey...
— Quero a lista, sr. Williams. Só isso. — Rachell se levantou antes que ele pudesse
oferecer novos argumentos para reforçar seus protestos.
Não havia mais nada que pudesse fazer nesse momento. E não queria correr o risco
de se deixar desanimar.
— Para onde devo remeter as informações que está me pedindo, senhorita?
— Estou hospedada no Palace Hotel. Pode mandar a lista dos acionistas por
mensageiro, se quiser, ou pode levá-la pessoalmente.
Sabia que permaneceria no hotel por mais alguns dias. Não dispunha de muito tempo,
mas precisava esperar. Sem a lista dos acionistas, nada poderia fazer. Mas gostaria de
poder acelerar todo o procedimento e deixar a cidade o quanto antes.
Ryan não a queria em Londres, e ela também não desejava prolongar sua estadia.
Não voltara a vê-lo desde aquele beijo no jardim. Dois dias atrás. Sabia que ele
retornara a Londres na noite anterior. A casa ficava a poucos quarteirões do hotel, e
passara diante dela em uma de suas idas e vindas pelas ruas movimentadas da cidade.
Vira as luzes acesas e a carruagem na porta. Sabia que Ryan estava lá. Mas não voltara
a vê-lo.
— Agradeço por ter me recebido, sr. Williams — Rachell disse a caminho da porta da
biblioteca.
— Estou sempre ao seu dispor, srta. Bailey. Não precisa me agradecer. Afinal de
contas, seu pai foi mais que um simples cliente. Ele foi um grande amigo. E se minha
esposa ainda fosse viva, a senhorita não teria sido impelida a buscar acomodações em
um hotel frio e impessoal. Eu a teria hospedado em minha casa.
— A propósito, sr. Williams, como tem passado desde que ficou viúvo?
— Fomos casados por trinta e dois anos. Como alguém pode se habituar à solidão
depois de tanto tempo? Minha esposa deixou uma lacuna que jamais poderia preencher,
certamente. Compreende o que digo, não é, senhorita?
Rachell não tinha uma resposta para essa pergunta. Não saberia responder. Nada
sabia sobre amor, casamento ou maridos, nem mesmo sobre pais e filhas. Seu pai havia
passado doze longos anos chorando a morte do filho que havia falecido ao nascer, com a
mãe, que também morrera vítima do parto.
Dominado pela dor da dupla perda, ele jamais dera importância ao fato de Rachell ter
perdido a mãe. Depois da negligência e da infância de solidão e frieza, ela passara toda a
vida lutando para obter o reconhecimento do homem que preferia a companhia de uma
garrafa a elogiar as façanhas da filha e reconhecer seu valor. Era compreensível que
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31. Perigosa Atração
Christopher Donally se houvesse tornado seu cavaleiro na armadura brilhante, seu defen-
sor em vestes escarlates... até ela perceber que a única pessoa capaz de salvar sua vida
era ela mesma. Então, tudo mudara. Rachell percorreu o longo corredor que conduzia até
a porta da casa e, com a ajuda da mesma criada que a recebera, cobriu-se com o manto
molhado. A chuva ainda caía lá fora. O ar parecia ainda mais frio por conta da elevada
umidade.
— Meu filho agora é advogado graduado — Williams revelou com tom neutro, embora
fosse óbvio o orgulho que sentia disso. — No mês que vem serei avô pela primeira vez.
— Meus parabéns. — Ela estendeu a mão para cumprimentá-lo. Estava realmente
feliz pelo velho amigo.
— Mandarei notícias sobre a propriedade. Até logo, srta. Bailey. Espero que obtenha
sucesso nessa nova empreitada, embora não tenha muita confiança na sua...
— Sr. Williams, já deixou bem clara sua opinião sobre o que planejo fazer. Mesmo
assim, estou determinada a tentar. E agradeço antecipadamente tudo que puder fazer por
mim nesse sentido. Muito obrigada.
Rachell entrou no coche de aluguel e voltou ao hotel protegida pelo manto com capuz.
Era tarde, e seus passos eram silenciosos e abafados no longo corredor acarpetado do
andar onde ficavam seus aposentos. Elsie, sua ama, já dormia no sofá.
Rachell entrou na área privada da suíte e livrou-se do manto molhado que ameaçava
congelá-la. Agora estava feito, ela pensou satisfeita. Cortara definitivamente seus últimos
laços com a Inglaterra. Começaria uma nova etapa de vida. Uma etapa que, sabia, seria
muito diferente de tudo que vivera antes.
Rachell fechou os olhos e se deixou envolver pelo calor da água morna na banheira.
Merecia esse momento de lazer e relaxamento depois de tudo que enfrentara nos últimos
dias. Com uma garrafa de champanhe em uma das mãos e um cigarro na outra, ela
respirava a fragrância de maçã e canela que o vapor do banho espalhava pelo aposento.
As batidas em uma das portas da suíte a importunaram. Infelizmente, estava mais sóbria
do que gostaria, e ela abriu os olhos absolutamente exasperada por não poder gozar de
um instante de paz. Por que as pessoas não esqueciam que estava viva, mesmo que
fosse só por um momento?
— Seja quem for, mande para o inferno, Elsie! — ela gritou. — Paguei por esse quarto
até o final da semana. Se quiser cantar, ninguém vai me impedir! E gosto de cantar bem
alto!
Era uma mulher independente. Não precisava de mais ninguém para sentir-se
completa. Podia beber, fumar e cantar sempre que quisesse. E não seria um hóspede
mal-humorado e impaciente que mudaria seu temperamento ou interromperia seu
momento de lazer.
— Srta. Bailey? Há um certo sr. Donally esperando para vê-la — Elsie anunciou da
porta do banheiro.
Sr. Donally? O único Donally que iria procurá-la no hotel e ainda teria a ousadia de
subir ao quarto em que se hospedava era Johnny. O sólido e estável casamento com
Moira conferia a ele a liberdade de tomar certas liberdades quanto ao código de moral e
comportamento ditado pela rígida sociedade londrina. Quaisquer que fossem os boatos
que o cercassem, Moira jamais deixaria de acreditar em seu amor e em sua lealdade.
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32. Perigosa Atração
— Elsie, o que Johnny pode querer aqui? Ele e Moira vão à ópera e...
— Johnny? Não sei de quem está falando, senhorita.
— Não sabe? Se acaba de anunciar que um certo sr. Donally deseja falar comigo...
— O nome do cavalheiro é Ryan, senhorita. Ryan Donally.
— Ryan? Aqui? No meio da noite?
— São só seis horas da tarde, senhora.
— Seis horas da tarde? Céus, como pude perder a noção do tempo de forma tão
completa? Por Deus! — Rachell se levantou e constatou que havia bebido demais. As
pernas não pareciam estar tão firmes como de costume, e cada pequeno movimento
exigia grande cuidado. — E Ryan? O que ele pode querer aqui?
— Não sei, senhora. Teria sido ousadia excessiva interrogá-lo sobre o motivo de sua
inesperada visita. Mas o cavalheiro está realmente muito bem vestido.
Rachell se enxugou rapidamente e vestiu o robe de seda, abotoando-o com esforço
enquanto Elsie deslizava uma escova por seus cabelos molhados e embaraçados.
Ela se olhou no espelho. Os cabelos encharcados pendiam ainda um pouco
emaranhados até a cintura. Mas Ryan já a vira em estado pior. E a curiosidade, nesse
momento, era muito maior do que a vaidade. Queria saber o que havia levado Ryan a ir
procurá-la no hotel sem antes se anunciar.
— Esqueça o cabelo, Elsie. Onde ele está?
— Na sala de estar da suíte, senhora.
Rachell correu e tropeçou no tapete do corredor. Temia que ele se cansasse de
esperar e fosse embora, por isso caminhava depressa, apesar do torpor causado pelo
excesso de champanhe e do langor provocado pelo longo banho de imersão.
Mas Ryan não havia partido. Ainda a esperava em pé diante da janela de onde se via
a rua. O casaco desabotoado revelava uma casaca formal e camisa branca com elegante
faixa na cintura, mas o chapéu e as luvas estavam sobre a mesa da entrada, ao lado das
luvas dela.
Ele se virou ao ouvir seus passos.
— Lamento o que aconteceu entre nós no final de semana — Ryan foi logo dizendo
sem rodeios, demonstrando humildade excessiva e inusitada para um homem que
acreditava ser dono do mundo. — Não devia tê-la beijado. Quero me desculpar, Rachell.
Foi simplesmente...
— Surpreendente? Fabuloso? Ou foi só um acidente?
Ryan balançou a cabeça, revelando grande confusão. Rachell não sabia se o
sentimento era causado pelo que acontecera entre eles no jardim da casa na propriedade
rural, ou por sua atitude com relação ao episódio e à presença dele ali, no hotel.
— Aquilo aconteceu bem diante dos olhos de todos os meus empregados.
Rachell levou os dedos indicadores às têmporas, sentindo o início de uma dor de
cabeça que prometia ser devastadora, caso não fizesse nada para contê-la.
Não queria sentir pena dele, mas a reação era inevitável. Devia ser a bebida, decidiu.
Champanhe sempre tivera o poder de alterar sua capacidade de julgamento.
Ela começou a rir, mais uma prova de que estava mesmo alterada pelo consumo
excessivo de álcool. Ryan aproximou-se com ar intrigado e sério.
— Quantas vezes pedimos desculpas um ao outro nessa semana? — ela indagou,
32
33. Perigosa Atração
tentando não ;sentir o calor do corpo que se aproximara repentinamente do dela. Devia ter
antecipado esse tipo de atitude. Ryan era capaz de usar todo e qualquer artifício para
provar um ponto de vista ou tirar proveito de uma situação qualquer.
— Acho que você ainda está ganhando — ele respondeu com tom amargo e
ressentido.
— E eu acho que isso é sinal de que ternos um assunto a concluir—argumentou
Rachell. — Por que nunca terminamos aquele beijo tantos anos atrás?
— Por que você me esbofeteou, talvez? Não pode ter se esquecido desse pequeno
detalhe.
— É claro que não esqueci. O que talvez não tenha pensado é que posso tê-lo
esbofeteado por você tratar a questão como se fosse uma piada. É razoável, não?
— Você era jovem, Rachell. Praticamente uma menina. Seu pai teria me matado, se
soubesse que estávamos nos beijando às escondidas.
Às vezes Rachell odiava a lógica. Especialmente quando ela se apresentava na forma
de mais um irritante argumento de Ryan Donally.
De qualquer maneira, com ou sem lógica, a situação permanecia inalterada. A verdade
das palavras de Ryan não anulava o amor que sentia por ele, nem o fato de ele ter planos
de se casar em outubro com outra mulher. Johnny havia contado que lady Gwyneth era
sua escolhida. O que havia entre Ryan e ela era elétrico, sem dúvida, intenso e inegável,
mas puramente físico. Nunca iria muito longe. Jamais os levaria a um casamento.
De repente ele olhou em volta como se só então notasse o ambiente em que se
encontravam.
— Rachell, por que se hospedou na suíte presidencial do hotel? — Ryan indagou
intrigado e sério.
Ela respirou fundo a fim de não perder a paciência. O homem era mesmo impertinente
e arrogante! Por que achava ter o direito de questionar suas decisões?
— Porque foi a única coisa que Johnny conseguiu arranjar para mim. Não escolhi a
suíte presidencial, se é o que está perguntando.
— Ah, sim... Compreendo. E esteve bebendo, certamente. Quanto? Uma garrafa?
Duas? Mais, talvez?
— Não é da sua conta, Bebo quanto eu quero, quando eu quero, e não preciso da sua
aprovação para isso. Na verdade, não preciso da aprovação de ninguém para nada. Sou
uma mulher independente.
— E inconseqüente, também. — Ryan olhou para Elsie e repetiu a pergunta sem
alterar o tom de voz. — Quanto ela bebeu?
— Meia garrafa de champanhe, senhor, mas ela não comeu nada. E estava na
banheira cheia de água morna, o que deve tê-la tornado ainda mais vulnerável à bebida.
— Como eu imaginava. E como eu disse: inconseqüente. Rachell, tem alguma coisa
adequada para vestir hoje à noite?
Ele caminhou até o armário e abriu as portas. Rachell correu atrás de Ryan, fechou as
portas com chutes violentos e nada femininos e, apoiada nelas, cruzou os braços para
encará-lo numa atitude beligerante. Se Ryan queria um confronto direto, estava mais do
que preparada para enfrentá-lo e vencê-lo.
— O que está fazendo? Por que esse súbito interesse no meu vestuário? E o que essa
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34. Perigosa Atração
noite tem de tão especial? Não vou a lugar nenhum. Não preciso de roupas especiais
para permanecer nos meus aposentos em companhia de Elsie.
— Está enganada, Rachell. Você vai à ópera com Johnny e Moira.
— Eu vou? Quem disse? E por que acha que irei à ópera?
— Todos os membros da diretoria da D&B e da Ore Industries vão estar lá. Quer ser
incluída ou não?
Rachell encarou-o incrédula.
Precisava pensar e clarear as idéias. Depois de um instante de reflexão, ela
perguntou:
— Por que não disse nada antes?
— Porque não julguei necessário. Mas estou dizendo agora.
— Por quê?
— Você faz parte da diretoria, Rachell. E já manifestou sua intenção de se fazer notar
dentro desse grupo. Já disse que quer agir e ser tratada como uma das diretoras.
Portanto, não vou permitir que fique aqui sozinha se embebedando. Você vai sair para ir à
ópera, como todos os outros membros do conselho diretor. Já falei com Johnny e ele virá
buscá-la.
— Como sabe o que faço dentro dos meus aposentos? Quem disse que fico aqui me
embebedando quando estou sozinha?
— Não permitiria que ele invadisse sua vida e começasse a dar ordens como um
César romano!
Ryan não respondeu. Em silêncio, ele escolheu um vestido e colocou-o em suas mãos
com um gesto firme e determinado.
— Providencie para que seja passado. Oh, e ela vai precisar de café — ele comunicou
à criada. — Bem forte e amargo. Vou pedir o jantar. E você precisa arrumar o cabelo. E
vai se alimentar bem, ou não conseguirá assimilar todo o álcool que consumiu.
— Como devo penteá-la, sr. Donally? — quis saber Elsie.
— Não se incomode com isso, Elsie Tompkins — Rachell disparou irritada. — Não é
tão difícil. Vamos conseguir. O sr. Donally não será desapontado por nós. Deus nos livre
disso ! — A exclamação soou debochada e sarcástica.
— Sim, senhora. — Mortificada, a jovem se retirou. Ryan e Rachell ficaram sozinhos.
Ryan caminhou até o hall de entrada da suíte e voltou com a pasta que ela havia
deixado em sua casa e que ele se encarregara de levar naquela noite.
— Seu projeto é consistente, Rachell — ele disse com tom profissional. — Nunca
questionei seu talento ou sua dedicação. Você é uma excelente engenheira. Se fosse
homem, encontraria boas posições em qualquer empresa do mundo.
— Mas se puser meu nome no projeto, a D&B jamais será contratada para outro
trabalho na Irlanda. Precisa considerar seus acionistas. Não é isso que está dizendo,
Ryan?
— É exatamente isso. Esse é meu trabalho, Rachell. Tenho deveres com a empresa e
com as pessoas que dela dependem para sobreviver. Sabe que não posso lhe dar
nenhuma consideração especial. Não agiria de maneira diferente com Johnny, se, por
alguma razão, ele pudesse prejudicar a companhia ou seus empregados.
— Não podemos conversar melhor sobre tudo isso, Ryan?
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