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matéria do portal UOL mostrando o cotidiano de trabalhadores que sobrevivem alimentando plataforma de aprendizado para algoritimos de Inteligência Artificial
uol.com.br Saiba quem educa as inteligências artificiais
uol.com.br Saiba quem educa as inteligências artificiais
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Saiba quem educa as inteligências artificiais
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Eles trabalham até 24 h por dia, dormem pouco, não tiram férias. E não são robôs.
Por trás do brilho —e dos bilhões— das inteligências artificiais está uma legião de
trabalhadores invisíveis que ensina as máquinas a enxergar o mundo como gente de
carne e osso.
São os turkers ou microtrabalhadores. Recrutados em países como Brasil e Índia por
grandes empresas de tecnologia, eles passam horas realizando tarefas repetitivas,
pagas em centavos de dólar, para tornar as IAs cada vez mais inteligentes.
O UOL conversou com algumas dessas pessoas para conhecer um pouco mais da rotina
sem glamour dessas espécies de babás humanas das inteligências artificiais.
Júlio Krammer, 40 anos, sobrevive do microtrabalho desde 2016.
Naquele ano, descobriu o Mechanical Turk, ou Mturk, uma plataforma da Amazon que
surgiu para lidar com tarefas que as máquinas não conseguiam fazer sozinhas, como
corrigir produtos duplicados no site ou termos de pesquisa que não davam resposta
correta.
O nome —do qual deriva a expressão turker, usada para identificar trabalhadores como
Krammer— é uma alusão ao Turco, um suposto robô alemão do século 18 que jogava
xadrez, mas que, em seu interior, continha um enxadrista profissional.
Um dia de trabalho de Krammer passa por identificar produtos iguais, reconhecer
determinados objetos em fotos, catalogar assuntos de notícias e até classificar
atributos físicos e posições sexuais em vídeos pornô, de empresas de fora da
Amazon que também podem contratar a mão de obra dos turkers via plataforma.
Krammer mora em Bauru (SP) e, inicialmente, trabalhava só meio período. Em 2018,
largou o emprego fixo e abraçou de vez a vida de turker. "Dava para fazer US$ 200
trabalhando umas 6 ou 7 horas no dia. Já cheguei a fazer US$ 1.000 em uma semana",
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conta.
Mas havia um problema: até 2020, a Amazon não permitia aos turkers transferir o
pagamento às contas bancárias. Se quisessem transformar a grana em dinheiro no
Brasil, eles precisavam fazer compras no e-commerce e vender em mercados paralelos.
"A gente comprava vale-presentes do PlayStation e revendia num outro site de games. E
tinha que vender mais barato, porque, pelo mesmo preço, não dava. De US$ 25, você
recebia uns US$ 18, US$ 19, no final das contas", completa.
E ainda havia riscos. A depender da movimentação, a Amazon classificava a conta como
fraudulenta e bloqueava o acesso. Krammer conta que ele e muitos turkers perderam
meses inteiros de trabalho assim.
"Ficaram com pelo menos uns R$ 5.000 meus em contas canceladas."
Hoje, a Amazon transfere dinheiro para plataformas de pagamento como Payoneer e
Paypal. Mas os trabalhos já não compensam mais tanto, diz Krammer.
A média que [boas tarefas] estão pagando é US$ 3 a hora —às vezes, US$ 5. Se juntar
US$ 200 em uma semana, é porque foi muito boa.
Dê trabalho, não dê esmola
O microtrabalho é um modelo de trabalho que divide um projeto em uma série de tarefas
muito básicas e repetitivas, feitas por várias pessoas ao mesmo tempo.
Imagine uma grande linha de montagem digital, só que ao invés de encaixar peças, as
pessoas:
traduzem expressões,
identificam objetos em uma foto,
tiram fotos ou;
gravam a pronúncia de algumas palavras.
O primeiro registro da expressão "microtrabalho" é de 2008, com a Samasource —ONG
fundada pela ex-funcionária do Banco Mundial Leila Chirayath Janah.
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A Samasource colocava jovens, mulheres e crianças em países como Quênia, Paquistão
e Haiti, para trabalhar em serviços digitais, que iam desde cartões de visita digitais até
traduções e inserção de metadados no Google Maps.
O princípio era que o trabalho, mesmo mal pago, libertaria essas pessoas das
condições miseráveis de seus países.
"Dê trabalho, não ajuda", dizia o lema da Samasource, já que o pagamento, apesar de
centavos de dólar, era suficiente para auxiliar estudantes a pagarem a faculdade.
Empresas como Appen, Telus e Crowdwork também têm plataformas para que clientes
ofereçam microtarefas e paguem o que acharem justo. Os microtrabalhadores aceitam o
que é viável para seu tempo —algo relativo de acordo com o país de origem.
Por mais que a gente pense em máquinas superinteligentes e automatizadas, muitas das
coisas que a gente fala e pensa sobre inteligência artificial, ao menos nas primeiras
etapas, foram feitas com muito trabalho braçal, de gente que a gente não sabe quem é.
Bruno Moreschi, coordenador do Gaia (Grupo de Arte e Inteligência Artificial), do Inova-
USP
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Nos Estados Unidos, os turkers fazem tarefas mais qualitativas e mais bem
remuneradas, como parte de pesquisas acadêmicas ou de iniciativas privadas.
No Brasil e em outros países onde o dólar convertido vale muito mais, o fluxo maior é de
trabalhos de grande volume, mais mecânicos e menos valorizados.
"Como não há regulação, há uma pressão e um esmagamento financeiro dessas
pessoas", explica Daniela Braga, CEO da Defined.ai e uma das 12 conselheiras de Joe
Biden, presidente dos EUA, para assuntos de inteligência artificial.
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Daniela destaca que esse microtrabalho é muito frequente na área de moderação de
conteúdo, o que expõe os turkers a conteúdos nocivos, como pornografia, violência e
abuso, que podem gerar sequelas emocionais.
É o que aconteceu com um desses trabalhadores no Brasil, que prefere não se
identificar. Ele conta que trabalhou verificando conteúdo nas eleições brasileiras de 2018:
"Foi horrível. Eu acabava vendo tudo. Sendo gay, tinha dias que terminava pensando
que precisava me mudar desse país."
É difícil estimar a quantidade de microtrabalhadores no mercado, uma vez que as
empresas do setor não revelam quantos colaboradores possuem, nem permitem
qualquer forma de interação entre eles.
Para Bruno Moreschi, coordenador do Gaia (Grupo de Arte e Inteligência Artificial), do
Inova-USP, isso é proposital para evitar reivindicações de direitos, como no caso de
trabalhadores de aplicativo.
"Enquanto os turkers não conversarem entre eles e entenderem a complexidade das
coisas, as resistências vão ser muito pequenas."
Há uma camada extra de dificuldade: embora existam fóruns de discussão e até grupos
de WhatsApp, as tarefas são digitais e diferentes em cada país.
O pouco que se sabe do perfil do turker no Brasil foi levantado por Moreschi, que
compilou os dados em um artigo publicado na revista acadêmica "Contraponto", de 2020.
Após ouvir 194 microtrabalhadores, ele estimou que 43% deles não têm carteira
assinada, e 66,1% estão fora do mercado de trabalho formal há mais de um ano.
Eles ensinam as inteligências artificiais a enxergar
Vinícius Lannart, 43 anos, não depende do microtrabalho para viver por atuar como
servidor público de Serra (ES). Fazia uma grana extra respondendo pesquisas
remuneradas no site Green Panthera, mas foi atraído para a plataforma Appen pela
chance de ganhar em dólar.
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Em uma tarefa, um cliente pediu que Lannart enviasse vídeos praticando
atividades corriqueiras, como correr, andar ou pedalar.
A cada dois vídeos de cinco minutos, recebia US$ 1. Desistiu da plataforma ao se
deparar com tarefas que passavam do seu limite:
"O projeto pediu para filmar minha filha repetindo algumas palavras e frases que seriam
enviadas após eu me candidatar", conta ele, em e-mail a Tilt.
Lannart logo notou que a maior parte das tarefas parecia melhorar algoritmos de redes
sociais. A maioria dos microtrabalhadores não tem ideia do objetivo das tarefas, mas
elas costumam refinar robôs inteligentes.
"Levei um tempo para entender que, na verdade, eu estava ensinando inteligência
artificial a reconhecer a imagem. Eu não sabia. Achava que eu mesmo estava fazendo o
serviço", admite o turker Júlio Krammer.
Se eu fosse dono de uma das empresas, eu contrataria microtrabalhadores para refinar o
meu modelo [de IA]. Para mim, é um custo baixíssimo. Trabalham 24 horas, não tiram
férias, não dormem. E, quanto mais eles me ajudarem a corrigir, menos eu vou precisar
deles. Pedro Albuquerque Lins, cientista de dados na empresa de caminhões
autônomos FleetOps
Máquinas no lugar dos homens?
Além dos pagamentos cada vez mais baixos, os turkers têm de lidar com outro dilema:
quanto mais treinadas estiverem as IAs, maiores as chances de que, em algum
momento, as máquinas não precisem mais dos braços - olhos e ouvidos - humanos para
aprender.
O rápido desenvolvimento das IAs tem colocado em xeque não só as microtarefas
executadas pelos turkers mas também o futuro de profissões e do trabalho.
Estimativa da UnB (Universidade de Brasília) aponta que, até 2026, 54% da força de
trabalho formal brasileira pode perder seu emprego para robôs ou inteligência
artificial.
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Daniela Braga, CEO da Defined.ai, prevê que as máquinas farão algumas tarefas dos
humanos, mas não acredita que as funções irão desaparecer.
"[As pessoas se tornarão] mais produtivas, porque teremos a IA para nos ajudar. Essa é
a grande revolução", explica.
Fala-se muito que a IA vai moderar a própria IA. É possível chegarmos a esse ponto.
Mas não há nenhuma tarefa de IA que não precise do humano no processo. Daniela
Braga, CEO da Defined.ai e consultora da Casa Branca para IA
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"Mamãe, quanto vale uma hora do seu tempo?"
Para bater as metas semanais, turkers experientes costumam criar estratégias
próprias para se manter ligados o dia inteiro.
Krammer, o turker de Bauru, mantém o computador ligado o dia inteiro. Um alarme o
avisa de tarefas com bom valor. Com isso, ele troca a noite pelo dia, já que, por serem
oferecidos por estrangeiros, os jobs bons aparecem das 21h às 3h.
Afastar-se do computador gera uma certa ansiedade, admite. Ele não fica tranquilo ao
saber que o tempo está passando.
"Já aconteceu várias vezes: esperei o dia inteiro uma tarefa, fui na padaria e ela
apareceu. Quando eu voltei, já não tinha mais. Comecei a cancelar um monte de coisas
porque eu tinha que estar em casa, disponível [para as tarefas]", diz, enquanto clica com
o mouse de um lado a outro da tela.
Problema semelhante tem Sônia Coelho, 44. Turker desde 2016, ela tem três
computadores na casa, ligados 24 horas por dia e configurados com um alerta de som
para avisar quando pintam "boas tarefas" —aquelas que pagam de US$ 2 a US$ 5. Ao
soar do apito, para tudo.
"Se eu sair na hora que tiver um trabalho, vou ter que trabalhar em dobro depois",
diz.
Natural de Foz do Iguaçu (PR), ela começou a procurar formas de ganhar dinheiro online
após o nascimento da filha, em 2016, em uma gestação de risco.
Naquele ano, entrou na Figure-Eight, que pagava por respostas a pesquisas e
questionários. O dinheiro era pouco, demorava até duas semanas para cair na conta,
mas era a forma de passar mais tempo com os filhos sem desfalcar o orçamento
doméstico.
Em 2018, entrou para o MTurk e logo ajustou a vida ao redor da plataforma.
Passou a deitar às 23h para acordar às 3h e a ter uma vida descolada do restante da
família. Refeições nos mesmos horários? Nem pensar. Compromisso fora? Logo tinha
que voltar.
Acabou gerando um estresse com meu marido. No final de semana, todo mundo vai
viajar, mas você já não pode. Vai que aparece alguma tarefa que dá para ganhar uma
grana legal e você não está em casa para executar?
Sônia sabe que a vida que leva não é saudável. Ela conta que, certo dia, seu filho
apareceu no meio de uma de suas tarefas. Com um punhado de moedas nas mãos,
todas tiradas do cofrinho, ele perguntou: "Mamãe, isso aqui paga uma hora do seu
tempo? Se eu pagar, você brinca comigo?"