1. O que a reforma do Estado
não é, e devia ser
JOSÉ MANUEL FERNANDES (HTTP://WWW.PUBLICO.PT/AUTOR/JOSEMANUEL-FERNANDES)
08/11/2013 - 00:00
Vale a pena comparar o que não está nas 112 páginas
de Portas com o que está no recente "discurso da
Coroa" do monarca holandês
Falou-se e escreveu-se mais sobre o corpo 16 e a
entrelinha a dois espaços do documento sobre a
reforma do Estado do que sobre o seu conteúdo. É
pena, apesar de revelar muito sobre a pobreza do
debate político. E é sobretudo pena por poucos terem
sublinhado o mais importante: o texto que Paulo
Portas apresentou não traduz nenhuma nova visão do
papel do Estado no Portugal do século XXI, como se
esperava e se exigia que fizesse.
O problema não é o documento ser palavroso e cheio
de frases feitas - já li muitas dessas frases, mais coisa,
menos coisa, em programas eleitorais ou em
programas de Governo e ninguém estranhou, muito
menos se indignou. O problema também não é carecer
de medidas concretas explicadas em detalhe - não é
ainda o tempo de legislar. O problema também não é
recapitular as medidas tomadas ao longo destes dois
anos e meio - o objectivo de diminuir o peso da
despesa pública será sempre um objectivo de
qualquer reforma do Estado. O problema, por fim,
também não é, como alguns protestam, o de se
pretender "acabar com o Estado social" - essa
acusação, por regra, é repetida sempre que se faz
alguma coisa em Portugal e é cada vez mais um
slogan sem significado.
O problema do documento apresentado por Paulo
Portas é que ele é cobarde e é incoerente. É cobarde
porque revela um imenso receio de definir uma nova
aproximação às funções do Estado, ficando-se quase
sempre pela vacuidade das intenções, pelo politiquês
2. da "maior eficiência" ou por proclamações sobre a
"pós-burocracia". E é incoerente pois nem todas as
medidas que enuncia vão num mesmo sentido: há as
que procuram realmente abrir as funções do Estado à
sociedade e as que se ficam pelas promessas de boa
administração da coisa pública.
Há no documento algumas ideias avulsas que seria
importante discutir - na Segurança Social, na
Educação, por exemplo -, mas falta-lhe um discurso
articulado capaz de permitir a construção de um novo
consenso político. Pior só mesmo a recusa obstinada e
oportunista do PS em discutir seja o que for. Se de um
lado temos o vazio, do outro temos o vácuo. O vácuo
absoluto.
O que é que se esperava deste guião? Eu diria que um
mínimo razoável seria situar-se no mesmo patamar
do "discurso da Coroa" pronunciado pelo rei
Guilherme-Alexandre perante o Parlamento holandês
a 17 de Setembro. Foi nesse discurso, que reflecte as
opiniões do Governo apoiado por uma coligação
liberal-socialista, que se defendeu a substituição do
"clássico Estado do bem-estar da segunda metade do
século XX por uma sociedade participativa". Isto
porque as obrigações do actual modelo social "já não
são sustentáveis, nem estão adaptadas às
expectativas dos cidadãos".
Muita gente na Europa ficou de boca aberta ao
escutar esta sinceridade e frontalidade e não faltou
quem comentasse que, nos seus países, mesmo mais
pobres e mais "insustentáveis", as elites políticas
nunca teriam tanta coragem. Paulo Portas terá
pensado o mesmo - se é que pensou alguma coisa.
O que o rei holandês anunciou foi que o seu país teria
de evoluir de um modelo em que o Estado se ocupa de
todos os problemas e necessidades sociais, para um
outro modelo em que uma parte das necessidades
associadas à velhice, à saúde ou à educação passarão a
ser asseguradas num sistema de partilha com as
famílias e com as instituições da sociedade civil. Será
3. um sistema onde haverá mais responsabilização dos
cidadãos e onde o Estado deixa de ser o provedor
universal, uma espécie de ama-seca que trata de
todos do nascimento até à morte, antes assumindo um
papel de regulador e de facilitador.
Para os países do Norte da Europa, precisamente os
que levaram mais longe as funções previdenciais do
Estado, a evolução nesta direcção não é novidade.
Muitos deles estão a percorrer este caminho há quase
duas décadas, procurando soluções novas mas
conseguindo diminuir o montante dos seus encargos
sociais sem provocar rupturas. A forma como o têm
feito é muito interessante e devia ser estudada por
nós. Passe a publicidade, é o que faz Fernando Adão
da Fonseca num interessante artigo publicado numa
revista anual que eu dirijo e que acaba de ser posta à
venda, a XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco
Manuel dos Santos. Ele conta-nos como a Suécia
reformou o seu Estado nos últimos 20 anos, num
processo que envolveu tanto a direita liberal como a
esquerda social-democrata, um processo gradualista
onde mudanças no sistema de incentivos permitiram
manter elevados níveis de protecção social, aumentar
a liberdade e responsabilidade dos cidadãos e
recuperar a competitividade económica.
Em Portugal, preferimos ficar pelos tabus, e um deles
é o da imutabilidade do chamado "Estado social", um
termo que devemos não à democracia, mas a Marcelo
Caetano. Tenho pena que não prefiramos o conceito
mais correcto e preciso de "Estado-providência", uma
designação que só costumo ouvir a Francisco Assis.
Em Portugal, tudo o que não seja um Estado que, de
forma o mais centralizada e napoleónica possível,
trate de providenciar directamente todos os serviços
sociais é sempre visto como representando um "recuo
civilizacional". Com o flop que representa o
documento Portas, perdeu-se mais uma oportunidade
de mostrar que isso não é assim.
4. O rei da Holanda falou de uma nova "sociedade
participativa". Pessoas como Fernando Adão da
Fonseca têm escrito sobre a hipótese de um "Estado
garantia". Paulo Portas preferiu os lugares-comuns apenas deseja "um Estado melhor" (será que alguém
não deseja?). Não surpreende por isso que, por
ausência de fio condutor, o documento arrisque
algumas reformas na Educação - mais autonomia,
mais poder das autarquias, escolas independentes,
ensaio de cheque-ensino - mas não saia dos
parâmetros mais habituais quando fala de Saúde.
Era possível ter ido mais longe, pelo menos no campo
das ideias. Na mesma revista que já referi, a XXI, Ter
Opinião, Isabel Vaz propõe um novo paradigma de
gestão para o Serviço Nacional de Saúde, mudando as
regras do seu financiamento. Nesse modelo, e cito, o
Estado deixaria de ser o fornecedor universal para ser
antes a garantia de universalidade do fornecimento
dos serviços de saúde. Interviria sobretudo como
regulador, corrigindo as distorções do mercado, e
seria implacável na aplicação de regras nomeadamente regras de acesso -, que seriam iguais
para todos os sectores (público, privado e social). É
uma proposta, mas é sobretudo uma ideia de reforma
que corresponde a uma visão diferente do Estado.
O que custa neste processo é verificar como tudo se
mistura. A reforma do Estado não é apenas cortes na
despesa pública, por mais indispensáveis e urgentes
que estes sejam. A reforma do Estado também não é
apenas sobre a qualidade e a eficiência da máquina
pública. A reforma do Estado é sobre a necessidade de
um Estado diferente para o século XXI, porque a
sociedade e o mundo também são diferentes.
O Estado-providência do passado tornou-se na babysitter das classes médias - em Portugal, foi mesmo ele
que fez a classe média -, e isso não é, num mundo
globalizado, a melhor forma, ou a forma mais justa, ou
sobretudo a forma sustentável, de gerir uma
economia. É que, como recordava Jorge Almeida
5. Fernandes neste jornal há duas semanas, no seu
artigo sobre o "discurso da Coroa" holandês, "a UE
representa 7% da população mundial; detém 25% da
riqueza mundial; e representa 50% da despesa social
de todo o mundo".
Digam todo o mal que quiserem da entrelinha do
"documento Portas", mas não se refugiem nisso para
iludir um debate que temos de fazer, apesar desse
mesmo "documento Portas".
P.S.: Muitos leitores escreveram-me a propósito do
meu texto sobre as pensões. Não os desiludirei e,
como prometido, regressarei em breve a esse tema.
Jornalista. Escreve à sexta-feira
jmf1957@gmail.com
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