Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de justiça não trabalham, mas o PS governa — e isso, no fundo, é a única coisa que realmente interessa.
1. Miguel Pinheiro – Jornal Observador
O governo do "faz de conta que não vê"
Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de justiça não
trabalham, mas o PS governa — e isso, no fundo, é a única coisa que realmente
interessa.
É a frase mais conhecida de Salgueiro Maia e reflete a forma ligeiramente
fatalista e profundamente desiludida como os portugueses olham para as
recorrentes fragilidades do país: “Há diversas modalidades de Estado: os
estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou”.
Passaram-se muitas décadas, mas, por mais boa vontade que tenhamos, somos
forçados a reconhecer que o estado a que isto chegou não é exatamente
brilhante. Em especial quando concluímos, como aconteceu nesta semana
deprimente, que, inacreditavelmente, há áreas fundamentais do Estado em que
estamos pior do que estávamos durante a pandemia, que foi o evento mais
disruptivo desta geração.
Na Justiça, por exemplo. Os números mostram, com inequívoca clareza, que a
greve dos funcionários judiciais, que se tem prolongado com incompreensível
discrição, já provocou mais adiamentos do que aqueles que aconteceram no
período da pandemia: estão em causa cinco milhões — atenção:
cinco milhões — de atos processuais e 60 mil diligências que ficaram por
fazer.
Nos hospitais, idem aspas. Ficámos a saber por estes dias que, no ano passado,
o número de utentes em lista de espera aumentou e que o número de utentes
sem médico de família também. Segundo o Conselho das Finanças Públicas,
2022 “caracterizou-se pela agudização de determinados constrangimentos já
patentes no período pré-pandemia”. E, agora, foi anunciado esta sexta-feira,
vem aí uma greve geral de médicos, a que se soma uma greve regional, a que
se adiciona uma greve às horas extraordinárias nos cuidados de saúde
primários, a que acresce uma greve à produção adicional nos hospitais.
Nas escolas, há especialistas a avisar que as greves, protestos e paralisações
dos professores tiveram consequências piores do que as da pandemia porque,
2. desta vez, não existe uma mobilização generalizada dos cidadãos para arranjar
soluções que diminuam os efeitos das paragens na aprendizagem.
Com uma paciência teimosa e inamovível, o governo faz de conta que não vê
nada disto. O objetivo supremo de António Costa é convencer o país e a
Europa de que não existe contestação na sociedade portuguesa. Porque, na sua
cabeça, se não existe contestação, é porque não existe conflito; e, se não existe
conflito, é porque não existem problemas.
Havendo greves com efeitos pesados nas três áreas mais sensíveis do Estado
— Justiça, Saúde e Educação —, um governo que não simulasse
sonambulismo teria duas formas possíveis de atuar para resolver os
problemas.
Uma hipótese seria ceder. O primeiro-ministro podia aumentar
significativamente os salários dos funcionários judiciais; podia aplicar uma
pequena fortuna a criar as condições para os médicos quererem trabalhar no
SNS; e podia entregar aos professores a contagem do tempo de serviço que
reivindicam. Mas António Costa antecipa as consequências de uma
distribuição massiva de dinheiro. Conhecendo a história recente do PS, sabe
que iria de cedência em cedência até à troika final.
Outra hipótese seria combater. Um governo de maioria absoluta cercado por
sindicatos poderosos poderia explicar aos eleitores as razões para a resistência
aos seus interesses particulares e poderia criar dificuldades àqueles que o
pretendem fazer vergar. Mas António Costa tem horror a isso porque prospera
com uma imagem política que o apresenta como o homem dos consensos que,
para usar as metáforas da praxe, derruba muros e constrói pontes. Ele é o anti-
Cavaco e o anti-Passos. Combater os sindicatos levaria à destruição dessa
imagem propagandística — e isso, para o primeiro-ministro, é impensável.
Por duas razões. Primeiro, porque é ela que tem sustentado sempre o discurso
de legitimação do governo, mesmo quando faltaram os votos (em 2015) ou
quando faltaram os apoios (em 2021, com o fim da geringonça). Sem essa
imagem, António Costa perde o seu propósito político. A segunda razão que
leva o primeiro-ministro a querer fazer de conta que o país não tem conflitos é
porque essa é a imagem que lhe dá força e poder “na Europa”. António Costa
é considerado para um cargo europeu porque é socialista e o grupo dos
socialistas tem direito a cargos — mas também porque é visto como o homem
dos consensos, que tanto fala com o esquerdista Alexis Tsipras como com o
nacionalista Viktor Orbán.
Por tudo isto, António Costa precisa de poder dizer que reina a paz e a
tranquilidade no país, mesmo que essa tranquilidade e essa paz sejam uma
fantasia. Os professores não ensinam, os médicos não curam e os oficiais de
3. justiça não trabalham, mas o PS governa — e isso, no fundo, é a única coisa
que realmente interessa.