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Hermenêutica Jurídica Prof. Ms. José Luiz Antiga Jr.
I. CONCEITOS INTRODUTÓRIOS
Introdução
Primeiramente é preciso dizer que o Direito lida com problemas existentes na
sociedade e tem por objetivo resolve-los ou, ao menos, amenizá-los. O homem é um ser
social, pois não vive sozinho. Ademais, também é um ser político, ou seja, quando em
sociedade busca, constantemente, influenciar atos e pensamentos dos demais. Ocorre
que o convívio social gera conflitos de interesses entre as pessoas, ocasião em que se
atribui ao direito a tarefa de tornar tal convívio pacífico.
Essas poucas palavras (constatações) revelam ou indicam que o direito é uma
ciência social aplicada que tem por escopo possibilitar a existência e continuidade de
sociedades humanas. Nessa linha de pensamento, não é errado dizer que a ideologia do
direito é a busca incessante pela justiça, pois mediante essa ideologia/finalidade é que se
pode eliminar ou amenizar os conflitos.
Nessa tarefa de (re)estabelecer a paz social mediante justiça, o direito se vale de
leis. No sistema brasileiro, que é de origem romano-germânica, há preponderância da lei
escrita sobre as demais fontes do direito. Essas leis escritas precisam ser interpretadas,
pois contém disposições abstratas e genéricas, e muitas vezes não são claras, o que leva
o profissional do direito à ter problemas no momento de aplicar a norma ao caso concreto.
I.1 Hermenêutica e interpretação do direito
Hermenêutica não se confunde com interpretação. Hermenêutica jurídica é uma
teoria científica da arte de interpretar1. Assim, a hermenêutica é ciência, ou parte de uma
ciência, ao passo que a interpretação não tem a característica da cientificidade.
Pensamos que quando se fala em hermenêutica jurídica, se pressupõe a adoção de uma
teoria específica que demonstre qual o melhor caminho para uma correta interpretação do
direito. E a doutrina clássica, com seus métodos de interpretação específicos continua
sendo a teoria da interpretação atuante no direito brasileiro. Por tal razão, temos que o
objetivo primordial de um curso de hermenêutica jurídica é a demonstração da aplicação
dos métodos interpretativos pelo poder judiciário.
Interpretar não é descobrir o sentido do texto normativo como se esse sentido já
estivesse presente em suas palavras, ou seja, como se o texto normativo estivesse
sempre pronto e acabado, esperando por um “sábio” que apenas extraísse dele mesmo o
seu significado. Interpretar é atribuir sentido e delimitar o alcance do texto normativo. É,
em outras palavras, transformar o texto normativo em norma. Afinal, aquele que interpreta
não retira do texto um sentido, mas atribui a ele um valor, um significado. Quem interpreta
tem uma carga valorativa própria, ou seja, suas ideologias, seus conhecimentos do
direito, de tal modo que é impossível se ter uma interpretação que extraia do próprio texto
um sentido correto. Essa neutralidade é impossível. O sentido/significado é atribuído ao
texto e assim forma-se a norma jurídica. Ao atribuir um significado/sentido ao texto legal,
o intérprete deve fazer o esforço de tornar seus os valores e ideologias contidos na
Constituição.
I.2 Hermenêutica e aplicação do direito
A hermenêutica descobre e fixa os princípios que regem a interpretação. Encontra
seu limite na aplicação. Em outras palavras: atribuído um significado às normas, mediante
aplicação dos métodos de interpretação, está cumprida a tarefa da hermenêutica. Porém,
o caso prático exige que se aplique esse significado da norma para que seja possível uma
1 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 01.
decisão. Portanto, a aplicação ocorre sempre após a interpretação. Atribuído um
significado à norma, o profissional do direito deve aplicá-lo no caso prático. “A aplicação
do Direito consiste no enquadrar um caso concreto na norma jurídica adequada.”2
Primeiro se atribui um sentido às expressões do texto normativo, transformando-o em
norma, para depois aplicá-la ao caso concreto.
I.3 Função da hermenêutica
A hermenêutica deve, portanto, sistematizar os processos aplicáveis para
determinar (atribuir) o sentido e o alcance das expressões do direito.3 Logo, é preciso
conhecer a origem das expressões do direito. Em outras palavras, não se interpreta o
Direito, se interpreta o que as fontes do Direito pretendem produzir. Conclui-se que é
indispensável conhecer as possíveis fontes do direito e, principalmente, o modelo de
fontes do Direito adotado no Brasil, consoante o modelo de ordenamento jurídico.
I.4 Fontes do Direito
Quando se fala em fontes do Direito se refere tanto aos fatores sociais que levaram
à criação de uma regra jurídica, quanto aos meios pelos quais essa regra é positivada na
sociedade. Temos, no primeiro caso, as fontes materiais do direito. Já os meios ou
processos pelos quais a regra jurídica passa a ser valida são chamados de fontes formais
do direito.
A diferenciação acima indica que o objeto imediato da ciência do direito são as
fontes formais, ao passo que o objeto mediato deve ser considerado como sendo as
fontes materiais, ou os fatores que originaram a consciência de que determinados
comportamentos sociais devem ser disciplinados pelo Estado, permitindo, obrigando ou
proibindo as pessoas. Ora, a preocupação primeira do jurista, do profissional do Direito, é
com as chamadas fontes formais. Evidente que os fatores sociais que motivaram o
surgimento da regra social devem ser considerados. Porém, muitas vezes os fatores
sociais que impulsionaram a criação de uma norma já não existem na sociedade, não
obstante a norma continue sendo de observância obrigatória. Nesse caso os fatores
sociais como objeto mediato do direito deixam de ser a fonte material da regra, para
serem as condições sociais que fazem com que a regra continue existindo. Há maior
clareza no assunto quando se trata das possíveis fontes formais.
Possíveis fontes formais do Direito
As possíveis fontes formais do direito são: fonte legal, fonte costumeira
(consuetudinária), fonte jurisprudencial, fonte doutrinária, fonte negocial e a fonte arbitral.
A) Fonte Legal ou Legislação : Por fonte legal entendem-se todas as regras de Direito
escritas, criadas pelo Estado, pelo Poder Legislativo com a participação do Poder
Executivo, e em alguns casos, criada apenas pelo Poder Executivo. É a legislação que,
aqui, possui um sentido amplo, abarcando inclusive as próprias regras da Constituição
Federal. É a legislação de um Estado, em outras palavras.
B) Fonte costumeira ou consuetudinária A fonte costumeira advém do povo, da
manifestação popular. É a prática reiterada de um determinado comportamento por uma
coletividade. Porém, a prática repetida de um comportamento, por si só, não constitui um
costume. Um regra costumeira precisa possuir o que Miguel Reale chama de elemento
subjetivo, ou seja, a consciência de que comportar-se de acordo com o costume é algo
2 Carlos Maximiliano, op. cit., p. 05.
3 Essa função é dada por Carlos Maximiliano, op. cit., p. 04, com a ressalva de que devemos atribuir um
sentido às expressões das leis, e não tentar extrair algo que elas não possuem.
obrigatório. Vislumbram-se, portanto, dois elementos formadores dos costumes: o
elemento objetivo, que é a prática repetida de um comportamento/ato em sociedade por
várias pessoas; e o elemento subjetivo, que é a consciência de que o comportamento/ato
praticado é obrigatório, imperativo. Há três espécies de costumes: os costumes contrários
à lei (contra legem), os costumes previstos na própria lei (secundum legem) e os
costumes que preenchem as lacunas das leis (praeter legem).
C) Fonte jurisprudencial A jurisprudência pode ser entendida como sendo o
sentido (regra) que decorre do conjunto de decisões dos Tribunais em um mesmo
sentido. Essas decisões são proferidas em processos semelhantes. Disso decorre
que uma decisão isolada, quer seja proveniente do Tribunal, quer seja proveniente
de um magistrado, não cria, por si só, jurisprudência. Essa decisão isolada pode
ser tida como um precedente judicial.
Quando se fala que a jurisprudência é o conjunto de decisões reiteradas proferidas
por um Tribunal, se subentende, a nosso ver, que essa fonte do direito pode se iniciar por
um conjunto de decisões de juízes de primeira instância. Na verdade, é ali que, via de
regra, os processos se iniciam. Um juiz de uma pequena comarca do interior pode proferir
inúmeras decisões em vários casos semelhantes, todas no mesmo sentido, formando o
que chamamos de jurisprudência. Como sempre haverá a possibilidade de recurso
dessas sentenças e, consequentemente, de reforma das mesmas pelo Tribunal, teremos
o típico caso de, havendo mudança das decisões, divergência jurisprudencial. É o caso
em que haverá jurisprudência em sentidos opostos.
A Jurisprudência revela à hermenêutica. Quando se forma um entendimento sobre
um determinado assunto em decisões judiciais, consideramos que a interpretação do
Direito atingiu seu ápice, vale dizer, seu escopo. No momento em que a regra jurídica
abstrata se concretiza é que há o cumprimento da finalidade de interpretar o Direito. Logo,
devemos nos ater à jurisprudência durante o estudo da Hermenêutica jurídica.
Para o estudo da disciplina, mas ainda falando sobre jurisprudência, é preciso que
se tenham claros alguns conceitos que envolvem a atividade judicante. Assim é que os
termos sentença, acórdão, relatório, súmula, ementa, devem ser conhecidos pelos
acadêmicos.
O que é uma sentença?
Sentença é o ato pelo qual o Juiz decide o processo. Associamos sentença ao Juiz
de primeira instância. Aqui, é isso que nos interessa. Sentença é o ato pelo qual o juiz de
primeiro grau revela o direito, diz o direito no caso concreto.
O que é um acórdão?
Acórdão é a decisão proferida por um órgão colegiado em sede recursal. Em outras
palavras, é o ato processual praticado pelo Tribunal, que é o órgão que deve analisar o
processo quando uma ou ambas as partes recorrem das decisões de primeira instância.
Acórdão é sempre proveniente de um órgão colegiado, composto por mais de dois
julgadores, e revela o sentido de acordo, concordância, no momento de se dizer o direito.
O que é ementa?
Ementa é o resumo do que ficou decidido em um acórdão.
Quanto uma ou ambas as partes recorrem da sentença, os autos do processo são
remetidos ao Tribunal competente para analisar o caso. Chegando ao Tribunal, os autos
são encaminhados ao Magistrado que fica caracterizado como RELATOR. É esse Juiz
que vai analisar todo o processo, e vai escrever uma espécie de relatório, no qual dá
conta aos demais Juízes do que ocorreu na demanda. Após o Relatório, esse Juiz
(Relator) profere sua decisão, que chamamos de VOTO. Após, os demais membros do
órgão colegiado dão sua decisão, individual, também chamada de VOTO. Faz-se, ao final,
a contagem dos VOTOS para se chegar à decisão do órgão colegiado. Essa decisão é o
que chamamos, conforme já foi dito, ACÓRDÃO. A Ementa é a síntese dessa decisão.
Conforme foi visto nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito, jurisprudência é o
conjunto de decisões repetidas, ou seja, num mesmo sentido, e em processos
semelhantes. É, vale dizer, o sentido que se extrai desse conjunto de decisões. Esse
sentido, inúmeras vezes, cria novas regras jurídicas, que acabam sendo observadas
pelos Juízes.
O que ocorre é que, na maior parte das vezes, esse sentido ou regra que advém do
conjunto de decisões, o qual chamamos de Jurisprudência, acaba sendo revelado nas
ementas. Muitas vezes é possível constatar, ao lermos algumas ementas, que se decidiu
conforme uma jurisprudência. Outras tantas vezes estaremos diante de uma ementa
(como resumo de uma decisão) que começa a dar origem a uma Jurisprudência, uma
decisão que fará parte de um conjunto de decisões no mesmo sentido.
O que é súmula?
“É o conjunto de decisões estratificadas dos tribunais superiores, apresentadas
em formas de verbetes sintéticos, numerados. Trata-se, portanto, de decisões
costumeiramente adotadas de maneira uniforme pelos tribunais, resumindo uma
tendência sobre determinada matéria, sempre de forma sintética.”4
D)Fonte negocial: Para a questão da fonte negocial trazemos a lição de Miguel Reale:
“Entre as normas particulares, assim chamadas por só ligarem os participantes
da relação jurídica, estão as normas negociais e, dentre estas, por sua
fundamental importância, as normas contratuais, comumente denominadas
cláusulas contratuais.”5
O consagrado jurista ensina que a fonte negocial seja válida, deverá haver a
convergência dos seguintes elementos: manifestação de vontade de pessoas legitimadas
a fazê-lo; forma de querer que não contrarie a exigida em lei; objeto lícito; quando não
paridade, pelo menos uma devida proporção entre os partícipes da relação jurídica.6
E) Doutrina: Os ensinamentos dos juristas constituem o que denominamos doutrina.
São ensinamentos que partem de pessoas que não representam a vontade do Estado.
Em outras palavras, a Doutrina não parte de nenhum dos Poderes do Estado (Legislativo,
Executivo ou Judiciário). O jurista que elabora teorias, ainda que paralelamente
desempenhe a função de juiz, promotor, deputado, senador ou outra qualquer, não
constitui uma solução jurídica do Estado. Quando um magistrado escreve um livro,
expressando sua opinião e desenvolvendo teorias jurídicas, não há relação entre sua
atividade judicante com essa outra atividade doutrinária, também chamada científica. Eis
um dos motivos pelos quais a própria doutrina atual recusa o papel da doutrina como
fonte do direito. Entretanto, não há dúvida de que doutrina é uma possível fonte do direito.
Citamos, como exemplo, a época em que vigoravam no Brasil as Ordenações do Reino
de Portugal. Nessa época, os ensinamentos dos juristas Bártholo e Acúrsio (remontam à
idade média) eram adotadas como fonte do direito. Ou seja, os juízes deveriam decidir os
4 Vitor Frederico Kumpel. Introdução ao estudo do direito: lei de introdução ao código civil e hermenêutica
jurídica, p. 96.
5 Lições preliminares de direito, p. 179.
6 Op. cit., p.180.
casos de acordo com os ensinamentos desses estudiosos do Corpus Iuris Civilis. Em
resumo, a doutrina é uma possível fonte do direito, mas essa possibilidade não se
concretiza no modelo de ordenamento jurídico adotado no Brasil atualmente. Ou seja, a
doutrina pode ser uma fonte do Direito, mas no Brasil atual não o é.
I.5 Fontes do direito e hermenêutica
A hermenêutica fornecerá técnicas de interpretação para que se construa a norma
jurídica a ser aplicada no caso concreto. Essas técnicas são como regras de um jogo.
Vence o jogo quem conhecer as regras e utilizá-las para construir e aplicar corretamente
a norma ao caso concreto.
I.6 Vontade do legislador
Interpretar o direito tentando descobrir qual a vontade do legislador é errôneo. Se
fosse correto, como faríamos quando o legislador, ou o membro da casa legislativa que
propôs a lei já faleceu? E, estando vivo, se mudou de partido, o que pressupõe que
mudou seus posicionamentos e ideologias? Evidente que, descobrir qual a vontade do
legislador não parece ser o melhor caminho para se atribuir um sentido aos textos
normativos. Há muito tempo, na época da escola da exegese na França (início do século
XIX), se buscava interpretar os textos legais descobrindo qual a intenção ou vontade do
legislador, de quem fez a norma.
Hoje, porém, tal técnica já se mostra inadequada. Primeiramente porque quem cria
a lei é uma coletividade, uma força social que independe da vontade de apenas uma
pessoa. Na maior parte das vezes, o que o legislador faz é reproduzir a vontade da
sociedade criando a lei, redigindo um texto legal. A força social é quem transforma o
direito, cria as leis, e não a vontade de um legislador. Ademais, é muito difícil se
estabelecer a real intenção do legislador no momento da propositura de uma lei. Suas
intenções podem ser movidas por “jogadas” políticas não reveladas à sociedade. O
legislador pode, inclusive, ser levado a criar uma lei por forças políticas de apenas uma
pequena parte da sociedade.
Vale lembrar, ainda, que não seria tão difícil pesquisar a intenção do legislador se a
lei a ser interpretada acabara de ser criada. Seria relativamente simples a pesquisa a
anotações, discursos, movimentos políticos. Entretanto, a lei geralmente perdura por
muito tempo e, caso não revogada, deve continuar a ser aplicada. Como fazer, nesse
caso, para adotar a vontade do legislador se o momento da aplicação da lei revela uma
sociedade completamente diferente do momento em que o texto foi criado? A sociedade
se transforma e, conseqüentemente, a lei passa a disciplinar casos que o legislador não
previu quando a elaborou. O legislador nunca prevê a totalidade dos casos quando cria
uma lei. É possível, portanto, que mudando a sociedade a lei passe a ser aplicada a
casos que não foram previstos pelo legislador quando de sua criação. Nesses casos, qual
o valor da vontade do legislador? Quase nenhum.
Importa dizer que devemos substituir a vontade do legislador pela vontade da
Constituição. É esse o parâmetro de interpretação. Toda carga valorativa que deve ser
levada em conta no momento da interpretação advém da Constituição, e não do
pensamento ideológico-político de quem elabora a lei.
Tomemos um exemplo: afigure-se a hipótese de que um legislador tenha elaborado
um projeto de lei, e que, a casa legislativa tenha aprovado esse projeto do modo como
fora proposto. Entretanto, a lei aprovada não deixa claro se a intenção do legislador foi
proteger as chamadas minorias, ou se, ao contrário, sua intenção era eliminá-las. Pouco
ou nada importa a vontade do legislador. O que definirá qual sentido deve ser atribuído à
lei é a Constituição. São as normas e princípios constitucionais que devem nortear o
intérprete na construção da norma jurídica. Os valores e as ideologias presentes na
Constituição são ou devem ser os mesmos que os do povo. Portanto, pensar no bem da
sociedade e não em questões individuais é pensar constitucionalmente. E pensar dessa
forma é a primeira condição para se interpretar um texto jurídico. Em resumo, ao mesmo
tempo em que a Constituição tem em suas normas os valores adotados por uma
sociedade, tais valores passam a ser regras objetivas para balizar a tarefa de interpretar.
I.7 Vontade da lei
Impossível o texto normativo ter vontade própria. Voltamos aqui à discussão sobre
extrair ou atribuir sentido e alcance aos textos jurídicos. Nenhum texto normativo contém
em si o sentido correto que determinará sua aplicação ou não bem como a solução do
conflito no caso prático. O texto não tem vontade. Tem vontade quem interpreta. O
intérprete tem vontades e valores. Está inserido em um contexto social que o texto não
conhece. E principalmente tem (deve ter) seus valores e vontades delineados e
constituídos pela Constituição. Portanto, o texto não é nada além de texto. Não possui
atributos desconhecidos a serem revelados. Possui, muitas vezes, inexatidões e falhas
que devem ser consideradas e que aumentam o trabalho de quem pretende interpretá-lo.
Considerar que a lei tem vontade e que essa vontade tem que ser revelada pelo
interprete também é errôneo, pois possibilitaria atribuir maior autoridade ao intérprete. É o
caso em que, ao ler o texto legislativo, o intérprete dissesse “qualquer coisa”, e essa
“qualquer coisa” seria a norma. Por isso que, ao interpretar a lei, deve-se ter em mente as
normas constitucionais, os princípios e ideologias contidos na Constituição.
I.8 In claris cessat interpretatio
Ensina Carlos Maximiliano:
“Disposições claras não comportam interpretação – Lei clara não carece de
interpretação – Em sendo claro o texto, não se admite pesquisa da vontade –
famoso dogma axiomático, dominador absoluto dos pretórios há meio século;
afirmativa sem nenhum valor científico, ante as idéias triunfantes da atualidade.”7
Esse adágio in claris cessat interpretatio é fruto da escola da exegese, surgida na
França após a codificação do direito civil (início do século XIX), resultante de
pensamentos e idéias iluministas. Por ocasião da promulgação do Código de Napoleão,
em 1804, surgiram correntes do pensamento jurídico que tinham no texto desse Código
verdadeiros cânones, regras perfeitas. A interpretação do Código deveria ser feita de
modo que se descobrisse o significado literal das palavras que compunham o texto.
Quando as palavras eram claras, sem ambigüidades e vaguezas, o intérprete poderia
aplicar o texto no caso prático. Em outras palavras, sendo o texto claro, já estaria pronta a
norma, sem trabalho interpretativo nenhum. Ocorre que o princípio in claris cessat
interpretatio é outra falácia. Não há como não interpretar o texto normativo antes de
aplicá-lo. Mesmo de maneira inconsciente, a interpretação é sempre um ato que antecede
a aplicação das regras jurídicas.
Vejamos um exemplo de como isso ocorre no campo do direito desportivo: um
comentarista de programas de televisão, ex-árbitro de futebol, sempre que questionado
inicia sua argumentação (opinião) dizendo: “A regra é clara”. Ato contínuo, pronuncia o
texto normativo. Continua, após, narrando o fato acontecido na partida de futebol, e
emitindo seu parecer sobre como deveria o árbitro decidir o lance.
Nesse caso, é possível perceber que ao dizer que a regra é clara, o comentarista
se vale dessa formidável “clareza” para convencer o telespectador que a sua
7 Op. cit., p. 27. Primeiramente é preciso ter em mente que Carlos Maximiliano escreveu o trecho acima
mencionado no início do século XX.
interpretação sobre a regra deve prevalecer sobre qualquer outra. O que não se percebe
é que, após dizer a expressão “a regra é clara” há um processo de construção da norma,
de atribuição de sentido ao texto, que resulta na conclusão de como a norma deve ser
aplicada ao caso concreto. Entre pronunciar o texto normativo e dizer como ele deve ser
aplicado no caso concreto, necessariamente se passa pela construção da norma, ou seja,
pela atribuição de sentido ao texto legislativo. Essa construção/atribuição de sentido é
interpretação. Dela, nem o texto mais claro pode prescindir.
Ensina Carlos Maximiliano:
“Os domínios da hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos;
jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir
(sic. atribuir) o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do
Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de
controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis
de interpretação.”8
E continua:
“A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência
translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem
para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser
entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza
exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias
idéias, valores mãos amplos e profundos do que os resultantes da simples
apreciação literal do texto.”9
8 Op. cit., p. 29.
9 Op. cit., mesma página.

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Hermeneutica

  • 1. Hermenêutica Jurídica Prof. Ms. José Luiz Antiga Jr. I. CONCEITOS INTRODUTÓRIOS Introdução Primeiramente é preciso dizer que o Direito lida com problemas existentes na sociedade e tem por objetivo resolve-los ou, ao menos, amenizá-los. O homem é um ser social, pois não vive sozinho. Ademais, também é um ser político, ou seja, quando em sociedade busca, constantemente, influenciar atos e pensamentos dos demais. Ocorre que o convívio social gera conflitos de interesses entre as pessoas, ocasião em que se atribui ao direito a tarefa de tornar tal convívio pacífico. Essas poucas palavras (constatações) revelam ou indicam que o direito é uma ciência social aplicada que tem por escopo possibilitar a existência e continuidade de sociedades humanas. Nessa linha de pensamento, não é errado dizer que a ideologia do direito é a busca incessante pela justiça, pois mediante essa ideologia/finalidade é que se pode eliminar ou amenizar os conflitos. Nessa tarefa de (re)estabelecer a paz social mediante justiça, o direito se vale de leis. No sistema brasileiro, que é de origem romano-germânica, há preponderância da lei escrita sobre as demais fontes do direito. Essas leis escritas precisam ser interpretadas, pois contém disposições abstratas e genéricas, e muitas vezes não são claras, o que leva o profissional do direito à ter problemas no momento de aplicar a norma ao caso concreto. I.1 Hermenêutica e interpretação do direito Hermenêutica não se confunde com interpretação. Hermenêutica jurídica é uma teoria científica da arte de interpretar1. Assim, a hermenêutica é ciência, ou parte de uma ciência, ao passo que a interpretação não tem a característica da cientificidade. Pensamos que quando se fala em hermenêutica jurídica, se pressupõe a adoção de uma teoria específica que demonstre qual o melhor caminho para uma correta interpretação do direito. E a doutrina clássica, com seus métodos de interpretação específicos continua sendo a teoria da interpretação atuante no direito brasileiro. Por tal razão, temos que o objetivo primordial de um curso de hermenêutica jurídica é a demonstração da aplicação dos métodos interpretativos pelo poder judiciário. Interpretar não é descobrir o sentido do texto normativo como se esse sentido já estivesse presente em suas palavras, ou seja, como se o texto normativo estivesse sempre pronto e acabado, esperando por um “sábio” que apenas extraísse dele mesmo o seu significado. Interpretar é atribuir sentido e delimitar o alcance do texto normativo. É, em outras palavras, transformar o texto normativo em norma. Afinal, aquele que interpreta não retira do texto um sentido, mas atribui a ele um valor, um significado. Quem interpreta tem uma carga valorativa própria, ou seja, suas ideologias, seus conhecimentos do direito, de tal modo que é impossível se ter uma interpretação que extraia do próprio texto um sentido correto. Essa neutralidade é impossível. O sentido/significado é atribuído ao texto e assim forma-se a norma jurídica. Ao atribuir um significado/sentido ao texto legal, o intérprete deve fazer o esforço de tornar seus os valores e ideologias contidos na Constituição. I.2 Hermenêutica e aplicação do direito A hermenêutica descobre e fixa os princípios que regem a interpretação. Encontra seu limite na aplicação. Em outras palavras: atribuído um significado às normas, mediante aplicação dos métodos de interpretação, está cumprida a tarefa da hermenêutica. Porém, o caso prático exige que se aplique esse significado da norma para que seja possível uma 1 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 01.
  • 2. decisão. Portanto, a aplicação ocorre sempre após a interpretação. Atribuído um significado à norma, o profissional do direito deve aplicá-lo no caso prático. “A aplicação do Direito consiste no enquadrar um caso concreto na norma jurídica adequada.”2 Primeiro se atribui um sentido às expressões do texto normativo, transformando-o em norma, para depois aplicá-la ao caso concreto. I.3 Função da hermenêutica A hermenêutica deve, portanto, sistematizar os processos aplicáveis para determinar (atribuir) o sentido e o alcance das expressões do direito.3 Logo, é preciso conhecer a origem das expressões do direito. Em outras palavras, não se interpreta o Direito, se interpreta o que as fontes do Direito pretendem produzir. Conclui-se que é indispensável conhecer as possíveis fontes do direito e, principalmente, o modelo de fontes do Direito adotado no Brasil, consoante o modelo de ordenamento jurídico. I.4 Fontes do Direito Quando se fala em fontes do Direito se refere tanto aos fatores sociais que levaram à criação de uma regra jurídica, quanto aos meios pelos quais essa regra é positivada na sociedade. Temos, no primeiro caso, as fontes materiais do direito. Já os meios ou processos pelos quais a regra jurídica passa a ser valida são chamados de fontes formais do direito. A diferenciação acima indica que o objeto imediato da ciência do direito são as fontes formais, ao passo que o objeto mediato deve ser considerado como sendo as fontes materiais, ou os fatores que originaram a consciência de que determinados comportamentos sociais devem ser disciplinados pelo Estado, permitindo, obrigando ou proibindo as pessoas. Ora, a preocupação primeira do jurista, do profissional do Direito, é com as chamadas fontes formais. Evidente que os fatores sociais que motivaram o surgimento da regra social devem ser considerados. Porém, muitas vezes os fatores sociais que impulsionaram a criação de uma norma já não existem na sociedade, não obstante a norma continue sendo de observância obrigatória. Nesse caso os fatores sociais como objeto mediato do direito deixam de ser a fonte material da regra, para serem as condições sociais que fazem com que a regra continue existindo. Há maior clareza no assunto quando se trata das possíveis fontes formais. Possíveis fontes formais do Direito As possíveis fontes formais do direito são: fonte legal, fonte costumeira (consuetudinária), fonte jurisprudencial, fonte doutrinária, fonte negocial e a fonte arbitral. A) Fonte Legal ou Legislação : Por fonte legal entendem-se todas as regras de Direito escritas, criadas pelo Estado, pelo Poder Legislativo com a participação do Poder Executivo, e em alguns casos, criada apenas pelo Poder Executivo. É a legislação que, aqui, possui um sentido amplo, abarcando inclusive as próprias regras da Constituição Federal. É a legislação de um Estado, em outras palavras. B) Fonte costumeira ou consuetudinária A fonte costumeira advém do povo, da manifestação popular. É a prática reiterada de um determinado comportamento por uma coletividade. Porém, a prática repetida de um comportamento, por si só, não constitui um costume. Um regra costumeira precisa possuir o que Miguel Reale chama de elemento subjetivo, ou seja, a consciência de que comportar-se de acordo com o costume é algo 2 Carlos Maximiliano, op. cit., p. 05. 3 Essa função é dada por Carlos Maximiliano, op. cit., p. 04, com a ressalva de que devemos atribuir um sentido às expressões das leis, e não tentar extrair algo que elas não possuem.
  • 3. obrigatório. Vislumbram-se, portanto, dois elementos formadores dos costumes: o elemento objetivo, que é a prática repetida de um comportamento/ato em sociedade por várias pessoas; e o elemento subjetivo, que é a consciência de que o comportamento/ato praticado é obrigatório, imperativo. Há três espécies de costumes: os costumes contrários à lei (contra legem), os costumes previstos na própria lei (secundum legem) e os costumes que preenchem as lacunas das leis (praeter legem). C) Fonte jurisprudencial A jurisprudência pode ser entendida como sendo o sentido (regra) que decorre do conjunto de decisões dos Tribunais em um mesmo sentido. Essas decisões são proferidas em processos semelhantes. Disso decorre que uma decisão isolada, quer seja proveniente do Tribunal, quer seja proveniente de um magistrado, não cria, por si só, jurisprudência. Essa decisão isolada pode ser tida como um precedente judicial. Quando se fala que a jurisprudência é o conjunto de decisões reiteradas proferidas por um Tribunal, se subentende, a nosso ver, que essa fonte do direito pode se iniciar por um conjunto de decisões de juízes de primeira instância. Na verdade, é ali que, via de regra, os processos se iniciam. Um juiz de uma pequena comarca do interior pode proferir inúmeras decisões em vários casos semelhantes, todas no mesmo sentido, formando o que chamamos de jurisprudência. Como sempre haverá a possibilidade de recurso dessas sentenças e, consequentemente, de reforma das mesmas pelo Tribunal, teremos o típico caso de, havendo mudança das decisões, divergência jurisprudencial. É o caso em que haverá jurisprudência em sentidos opostos. A Jurisprudência revela à hermenêutica. Quando se forma um entendimento sobre um determinado assunto em decisões judiciais, consideramos que a interpretação do Direito atingiu seu ápice, vale dizer, seu escopo. No momento em que a regra jurídica abstrata se concretiza é que há o cumprimento da finalidade de interpretar o Direito. Logo, devemos nos ater à jurisprudência durante o estudo da Hermenêutica jurídica. Para o estudo da disciplina, mas ainda falando sobre jurisprudência, é preciso que se tenham claros alguns conceitos que envolvem a atividade judicante. Assim é que os termos sentença, acórdão, relatório, súmula, ementa, devem ser conhecidos pelos acadêmicos. O que é uma sentença? Sentença é o ato pelo qual o Juiz decide o processo. Associamos sentença ao Juiz de primeira instância. Aqui, é isso que nos interessa. Sentença é o ato pelo qual o juiz de primeiro grau revela o direito, diz o direito no caso concreto. O que é um acórdão? Acórdão é a decisão proferida por um órgão colegiado em sede recursal. Em outras palavras, é o ato processual praticado pelo Tribunal, que é o órgão que deve analisar o processo quando uma ou ambas as partes recorrem das decisões de primeira instância. Acórdão é sempre proveniente de um órgão colegiado, composto por mais de dois julgadores, e revela o sentido de acordo, concordância, no momento de se dizer o direito. O que é ementa? Ementa é o resumo do que ficou decidido em um acórdão. Quanto uma ou ambas as partes recorrem da sentença, os autos do processo são remetidos ao Tribunal competente para analisar o caso. Chegando ao Tribunal, os autos são encaminhados ao Magistrado que fica caracterizado como RELATOR. É esse Juiz que vai analisar todo o processo, e vai escrever uma espécie de relatório, no qual dá conta aos demais Juízes do que ocorreu na demanda. Após o Relatório, esse Juiz
  • 4. (Relator) profere sua decisão, que chamamos de VOTO. Após, os demais membros do órgão colegiado dão sua decisão, individual, também chamada de VOTO. Faz-se, ao final, a contagem dos VOTOS para se chegar à decisão do órgão colegiado. Essa decisão é o que chamamos, conforme já foi dito, ACÓRDÃO. A Ementa é a síntese dessa decisão. Conforme foi visto nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito, jurisprudência é o conjunto de decisões repetidas, ou seja, num mesmo sentido, e em processos semelhantes. É, vale dizer, o sentido que se extrai desse conjunto de decisões. Esse sentido, inúmeras vezes, cria novas regras jurídicas, que acabam sendo observadas pelos Juízes. O que ocorre é que, na maior parte das vezes, esse sentido ou regra que advém do conjunto de decisões, o qual chamamos de Jurisprudência, acaba sendo revelado nas ementas. Muitas vezes é possível constatar, ao lermos algumas ementas, que se decidiu conforme uma jurisprudência. Outras tantas vezes estaremos diante de uma ementa (como resumo de uma decisão) que começa a dar origem a uma Jurisprudência, uma decisão que fará parte de um conjunto de decisões no mesmo sentido. O que é súmula? “É o conjunto de decisões estratificadas dos tribunais superiores, apresentadas em formas de verbetes sintéticos, numerados. Trata-se, portanto, de decisões costumeiramente adotadas de maneira uniforme pelos tribunais, resumindo uma tendência sobre determinada matéria, sempre de forma sintética.”4 D)Fonte negocial: Para a questão da fonte negocial trazemos a lição de Miguel Reale: “Entre as normas particulares, assim chamadas por só ligarem os participantes da relação jurídica, estão as normas negociais e, dentre estas, por sua fundamental importância, as normas contratuais, comumente denominadas cláusulas contratuais.”5 O consagrado jurista ensina que a fonte negocial seja válida, deverá haver a convergência dos seguintes elementos: manifestação de vontade de pessoas legitimadas a fazê-lo; forma de querer que não contrarie a exigida em lei; objeto lícito; quando não paridade, pelo menos uma devida proporção entre os partícipes da relação jurídica.6 E) Doutrina: Os ensinamentos dos juristas constituem o que denominamos doutrina. São ensinamentos que partem de pessoas que não representam a vontade do Estado. Em outras palavras, a Doutrina não parte de nenhum dos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo ou Judiciário). O jurista que elabora teorias, ainda que paralelamente desempenhe a função de juiz, promotor, deputado, senador ou outra qualquer, não constitui uma solução jurídica do Estado. Quando um magistrado escreve um livro, expressando sua opinião e desenvolvendo teorias jurídicas, não há relação entre sua atividade judicante com essa outra atividade doutrinária, também chamada científica. Eis um dos motivos pelos quais a própria doutrina atual recusa o papel da doutrina como fonte do direito. Entretanto, não há dúvida de que doutrina é uma possível fonte do direito. Citamos, como exemplo, a época em que vigoravam no Brasil as Ordenações do Reino de Portugal. Nessa época, os ensinamentos dos juristas Bártholo e Acúrsio (remontam à idade média) eram adotadas como fonte do direito. Ou seja, os juízes deveriam decidir os 4 Vitor Frederico Kumpel. Introdução ao estudo do direito: lei de introdução ao código civil e hermenêutica jurídica, p. 96. 5 Lições preliminares de direito, p. 179. 6 Op. cit., p.180.
  • 5. casos de acordo com os ensinamentos desses estudiosos do Corpus Iuris Civilis. Em resumo, a doutrina é uma possível fonte do direito, mas essa possibilidade não se concretiza no modelo de ordenamento jurídico adotado no Brasil atualmente. Ou seja, a doutrina pode ser uma fonte do Direito, mas no Brasil atual não o é. I.5 Fontes do direito e hermenêutica A hermenêutica fornecerá técnicas de interpretação para que se construa a norma jurídica a ser aplicada no caso concreto. Essas técnicas são como regras de um jogo. Vence o jogo quem conhecer as regras e utilizá-las para construir e aplicar corretamente a norma ao caso concreto. I.6 Vontade do legislador Interpretar o direito tentando descobrir qual a vontade do legislador é errôneo. Se fosse correto, como faríamos quando o legislador, ou o membro da casa legislativa que propôs a lei já faleceu? E, estando vivo, se mudou de partido, o que pressupõe que mudou seus posicionamentos e ideologias? Evidente que, descobrir qual a vontade do legislador não parece ser o melhor caminho para se atribuir um sentido aos textos normativos. Há muito tempo, na época da escola da exegese na França (início do século XIX), se buscava interpretar os textos legais descobrindo qual a intenção ou vontade do legislador, de quem fez a norma. Hoje, porém, tal técnica já se mostra inadequada. Primeiramente porque quem cria a lei é uma coletividade, uma força social que independe da vontade de apenas uma pessoa. Na maior parte das vezes, o que o legislador faz é reproduzir a vontade da sociedade criando a lei, redigindo um texto legal. A força social é quem transforma o direito, cria as leis, e não a vontade de um legislador. Ademais, é muito difícil se estabelecer a real intenção do legislador no momento da propositura de uma lei. Suas intenções podem ser movidas por “jogadas” políticas não reveladas à sociedade. O legislador pode, inclusive, ser levado a criar uma lei por forças políticas de apenas uma pequena parte da sociedade. Vale lembrar, ainda, que não seria tão difícil pesquisar a intenção do legislador se a lei a ser interpretada acabara de ser criada. Seria relativamente simples a pesquisa a anotações, discursos, movimentos políticos. Entretanto, a lei geralmente perdura por muito tempo e, caso não revogada, deve continuar a ser aplicada. Como fazer, nesse caso, para adotar a vontade do legislador se o momento da aplicação da lei revela uma sociedade completamente diferente do momento em que o texto foi criado? A sociedade se transforma e, conseqüentemente, a lei passa a disciplinar casos que o legislador não previu quando a elaborou. O legislador nunca prevê a totalidade dos casos quando cria uma lei. É possível, portanto, que mudando a sociedade a lei passe a ser aplicada a casos que não foram previstos pelo legislador quando de sua criação. Nesses casos, qual o valor da vontade do legislador? Quase nenhum. Importa dizer que devemos substituir a vontade do legislador pela vontade da Constituição. É esse o parâmetro de interpretação. Toda carga valorativa que deve ser levada em conta no momento da interpretação advém da Constituição, e não do pensamento ideológico-político de quem elabora a lei. Tomemos um exemplo: afigure-se a hipótese de que um legislador tenha elaborado um projeto de lei, e que, a casa legislativa tenha aprovado esse projeto do modo como fora proposto. Entretanto, a lei aprovada não deixa claro se a intenção do legislador foi proteger as chamadas minorias, ou se, ao contrário, sua intenção era eliminá-las. Pouco ou nada importa a vontade do legislador. O que definirá qual sentido deve ser atribuído à lei é a Constituição. São as normas e princípios constitucionais que devem nortear o intérprete na construção da norma jurídica. Os valores e as ideologias presentes na
  • 6. Constituição são ou devem ser os mesmos que os do povo. Portanto, pensar no bem da sociedade e não em questões individuais é pensar constitucionalmente. E pensar dessa forma é a primeira condição para se interpretar um texto jurídico. Em resumo, ao mesmo tempo em que a Constituição tem em suas normas os valores adotados por uma sociedade, tais valores passam a ser regras objetivas para balizar a tarefa de interpretar. I.7 Vontade da lei Impossível o texto normativo ter vontade própria. Voltamos aqui à discussão sobre extrair ou atribuir sentido e alcance aos textos jurídicos. Nenhum texto normativo contém em si o sentido correto que determinará sua aplicação ou não bem como a solução do conflito no caso prático. O texto não tem vontade. Tem vontade quem interpreta. O intérprete tem vontades e valores. Está inserido em um contexto social que o texto não conhece. E principalmente tem (deve ter) seus valores e vontades delineados e constituídos pela Constituição. Portanto, o texto não é nada além de texto. Não possui atributos desconhecidos a serem revelados. Possui, muitas vezes, inexatidões e falhas que devem ser consideradas e que aumentam o trabalho de quem pretende interpretá-lo. Considerar que a lei tem vontade e que essa vontade tem que ser revelada pelo interprete também é errôneo, pois possibilitaria atribuir maior autoridade ao intérprete. É o caso em que, ao ler o texto legislativo, o intérprete dissesse “qualquer coisa”, e essa “qualquer coisa” seria a norma. Por isso que, ao interpretar a lei, deve-se ter em mente as normas constitucionais, os princípios e ideologias contidos na Constituição. I.8 In claris cessat interpretatio Ensina Carlos Maximiliano: “Disposições claras não comportam interpretação – Lei clara não carece de interpretação – Em sendo claro o texto, não se admite pesquisa da vontade – famoso dogma axiomático, dominador absoluto dos pretórios há meio século; afirmativa sem nenhum valor científico, ante as idéias triunfantes da atualidade.”7 Esse adágio in claris cessat interpretatio é fruto da escola da exegese, surgida na França após a codificação do direito civil (início do século XIX), resultante de pensamentos e idéias iluministas. Por ocasião da promulgação do Código de Napoleão, em 1804, surgiram correntes do pensamento jurídico que tinham no texto desse Código verdadeiros cânones, regras perfeitas. A interpretação do Código deveria ser feita de modo que se descobrisse o significado literal das palavras que compunham o texto. Quando as palavras eram claras, sem ambigüidades e vaguezas, o intérprete poderia aplicar o texto no caso prático. Em outras palavras, sendo o texto claro, já estaria pronta a norma, sem trabalho interpretativo nenhum. Ocorre que o princípio in claris cessat interpretatio é outra falácia. Não há como não interpretar o texto normativo antes de aplicá-lo. Mesmo de maneira inconsciente, a interpretação é sempre um ato que antecede a aplicação das regras jurídicas. Vejamos um exemplo de como isso ocorre no campo do direito desportivo: um comentarista de programas de televisão, ex-árbitro de futebol, sempre que questionado inicia sua argumentação (opinião) dizendo: “A regra é clara”. Ato contínuo, pronuncia o texto normativo. Continua, após, narrando o fato acontecido na partida de futebol, e emitindo seu parecer sobre como deveria o árbitro decidir o lance. Nesse caso, é possível perceber que ao dizer que a regra é clara, o comentarista se vale dessa formidável “clareza” para convencer o telespectador que a sua 7 Op. cit., p. 27. Primeiramente é preciso ter em mente que Carlos Maximiliano escreveu o trecho acima mencionado no início do século XX.
  • 7. interpretação sobre a regra deve prevalecer sobre qualquer outra. O que não se percebe é que, após dizer a expressão “a regra é clara” há um processo de construção da norma, de atribuição de sentido ao texto, que resulta na conclusão de como a norma deve ser aplicada ao caso concreto. Entre pronunciar o texto normativo e dizer como ele deve ser aplicado no caso concreto, necessariamente se passa pela construção da norma, ou seja, pela atribuição de sentido ao texto legislativo. Essa construção/atribuição de sentido é interpretação. Dela, nem o texto mais claro pode prescindir. Ensina Carlos Maximiliano: “Os domínios da hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir (sic. atribuir) o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação.”8 E continua: “A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mãos amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto.”9 8 Op. cit., p. 29. 9 Op. cit., mesma página.