1. Seminário 02 – O conhecimento jurídico: mera tecnologia?
Como se viu no tema do primeiro seminário, o objeto da ciência do direito
não poderia ser outro que não o próprio direito. Embora o conceito de direito tenha múltiplas
dimensões, ora se referindo à norma, ora à autorização dada pela norma, ora à qualidade de
justo, exigirá tantas definições quantas forem às realidades a que se referem.
Nesse sentido, o conceito de direito é algo suposto pela ciência jurídica,
tendo caráter supracientífico ou jusfilosófico. E o caráter teórico (scientia), prático (ars) ou
crítico da ciência do direito dependerá da posição do objeto – o direito – de cada autor ou
cientista do direito. Essa operação será governada por um método, que fixará as bases de
sistematização da ciência jurídica, separando de modo abstrato dos demais fenômenos sociais.
Verifica-se, pois, a dificuldade de uma abordagem unitária do direito,
variando de jurista para jurista, dependendo de sua posição relativa ao próprio caráter
científico do conhecimento jurídico.
Não se deve esquecer, porém, que a preocupação da ciência é atingir a
verdade mediante enunciados descritivos, propondo critérios e instrumentos, buscando uma
validade que seja universal. Tais enunciados, no entanto, são refutáveis, uma vez que não são
absolutos, isto é, obtidos por uma unidade de critérios daqueles que os formulam, estando
sempre sujeitos a verificação, quanto maior o conteúdo informativo que apresentarem, isto é,
quanto mais tentarem se aproximar da realidade a que pretendem dar significado.
Como aponta Tércio Sampaio Ferraz Jr., a ciência jurídica é concebida mais
preponderantemente como saber dogmático a partir do século XIX. Enquanto na Roma Antiga
o saber jurídico era eminentemente ético, hoje pode ser chamado de eminentemente
tecnológico.
Se até o século XIX se entendia a positivação como uma relação de causa e
efeito entre a vontade do legislador e a norma posta, no século XX o direito surge como
imputação de validade do direito, no sentido de que o legislador tem o poder de escolha para
regulamentar um comportamento em detrimento de outros que ficam à sua disposição toda
vez que se faça oportuna alguma alteração do ordenamento. Então, temos que a questão hoje
gira em torno do que deve ser o direito a partir da decidibilidade, dependendo de sua
relevância prática.
A ciência dogmática é um método de sistematização do ordenamento
jurídico e sua interpretação. Aqui o direito positivo não é produzido pelo órgão legiferante;
este apenas escolhe uma possibilidade de regulamentação do comportamento em detrimento
de outras, na voz de Tércio Ferraz Jr, “corpo de fórmulas persuasivas que influem no
2. comportamento dos destinatários, mas sem vincula-los, salvo pelo apelo à razoabilidade,
justiça”, por meio de orientações, recomendações ou exortações.
Vê-se que, a partir daí, a questão central da ciência jurídica não é mais a
verdade de seus enunciados descritivos, mas a decidibilidade dos problemas sociais.
Aqui a teoria dogmática assume papel relevante, passando a ser considerado
o pensamento científico jurídico uma tecnologia, colocando-se a serviço da problemática de
realizabilidade de modelos de comportamento previstos na norma jurídica e sua conseqüência
na realização na vida social.
Podemos encarar a decidibilidade a partir dos seguintes modelos teóricos:
a) o analítico: decidibilidade como relação hipotética entre o conflito
hipotético e uma decisão hipotética, procurando determinar as possibilidades de decisões para
um possível conflito. Seu escopo é a sistematização.
b) o hermenêutico: decidibilidade como relação entre a hipótese de conflito
e a hipótese de decisão, tendo em vista seu sentido. Seu escopo é a interpretação.
c) o empírico: decidibilidade como busca de condições de possibilidade de
uma decisão hipotética para um conflito hipotético. Sua função é a previsibilidade.
Constitui, pois, a função da ciência dogmática do direito, pensamento
tecnológico, voltado à problematização de seus pressupostos, criar condições para a ação
humana no sentido da decidibilidade de conflitos juridicamente definidos.
No entanto, temos de recordar que, dentre as dimensões de análise do direito
há o âmbito zetético, em que se acentua o questionamento sobre os pontos de vista que nos
indicação respostas ao problema ou conflito jurídico. Nesse sentido, as questões dogmáticas,
isto é, os pressupostos colocados fora de dúvida, ressalvam as opiniões, enquanto as questões
zetéticas as colocam em dúvida. Observa Tércio Sampaio duas funções na dogmática:
- a pedagógica, institucionalizando as tradições jurídicas, colocando
problemas para serem ensinados e não para serem explicados;
- agente social, delineando o campo de solução dos problemas relevantes;
Quando as opiniões dogmáticas sobre determinada problemática são
submetidas ao questionamento, exigindo uma justificação e o estabelecimento de novas
conexões que determinem a decidibilidade a respeito dessa problemática, há a influência das
questões zetéticas.
Ora, não se pode olvidar, além da questão tecnológica, a dogmática jurídica
tem relevante função social, especialmente nos processos de conhecimento, atividade capaz
de servir de mediação entre a realidade e a resposta comportamental do cidadão prevista pelo
direito. Gera, pois, expectativas cognitivas, uma vez que a síntese da ciência nos dá a
3. segurança e a certeza de expectativas sociais. Serve como forma de limitar a variação das
decisões, tendo por base outras decisões.
Daí que se pode dizer que as questões dogmáticas são finitas, circundando
dogmas legitimados de alguma maneira plausível. Essa legitimação se dá na imputação das
normas a situações sociais conflitivas. Entre elas há um procedimento, que compõe o
fenômeno da aplicação. Nesse momento é necessário identificar o direito a partir de um
critério comum, que servirá aos interesses da comunidade.
Onde está esse critério comum? Na lei e, assim, temos o a primeira premissa
– a legalidade. Identificar a lei é identificar o direito objetivamente.
Segundo o modelo analítico explicado por Tércio Ferraz Jr., tem-se:
01- o direito deve ser analisado dentro de uma rede de elementos
interligados – o sistema;
02- esta análise sistemática se dá por dois processos:
a) de decomposição – diferenciações e classificações (ligações)
a.1 – diferenciação: desvinculação de elementos
b) de regressão – cadeias de proposições que compõem o sistema
b.1 – ligação – aproximação de elementos e formação de conjuntos por
b.1.1 – definições
b.1.2 – classificações
Logo, a elaboração do sistema resulta de diferenciações e ligações em torno
de um dogma – a lei, o contrato, a decisão judicial. Identificar o direito é aprender a elaborar
sistemas (diferenciar e interligar), a partir de conceitos (definições, classificações), cuja
função é predominantemente operacional na tarefa da sistematização
O objetivo do curso é, daqui por diante analisar os conceitos mais gerais do
sistema para que se compreenda como os demais conceitos foram construídos.