A nova versão do Capuchinho Vermelho segundo Descartes
1. "'A NOVA VERSÃO DO CAPUCHINHO VERMELHO"
(GUIAO)
MENINO (M.). A história que vos vou contar é a história de uma menina que se chama Capuchinho
Vermelho e que trabalha em casa de um filósofo, já vosso conhecido, chamado René Descartes. O
Capuchinho Vermelho interessa-se por tudo aquilo que ele lhe ensina e gosta muito de dar uma espreitadela
nos seus livros. Hoje é o seu dia de folga e, por isso, vai visitar a Avó, que não se encontra doente e, muito
menos, senil, e vai explicar-lhe as razões que provam a existência de Deus e da alma humana, ou, se
preferirem, os fundamentos da metafísica de Descartes. A ver o que vai sair daqui...
C,4PUCHINI-10 VERMELHO (C. V). Oh 'vó! Sabias que para chegarmos ao conhecimento verdadeiro é
preciso duvidar de tudo o que nos foi ensinado até hoje?
A vó (A.): O quê? Duvidar? Não percebo nada do que estás para aí a dizer.
C. V.- Oh 'vó! É assim, já te explico. Ontem, o Sr. Descartes apanhou-me com Um livro dele, um tal
"Discurso do Método" ...
A. (interrompendo de repente): Estou falta de te dizer que estás lá para fazer a limpeza e não para andares a
coscuvilhar os livros do homem.
C. V: Queres ouvir ou não?!
A: Pronto, está bem. Está feito, está feito. Ele não ralhou contigo?
CV: Não, vês. Ele gosta muito de ter alguém que o oiça, o que te digo já, não é nada
fácil. Bem, vou começar. Já te disse que é preciso duvidar, não disse? Mas sabes porquê'?
A.: Oh netinha, não me parece que esse seja o melhor método. Tu já sabes que, nestas coisas, seu um bocado
céptica e, para mim, a dúvida não leva a lado nenhum.
C V: Aí é que te enganas. É preciso duvidar de todos os nossos conhecimentos anteriores, porque eles
foram-nos transmitidos por outras pessoas que, por sua vez, receberam o seu conhecimento ainda por
outras.
A.: Mas como é que quer ias que fosse? Tens uma base melhor?
C V: Segundo o Sr. Descartes, os sentidos enganam-nos às vezes e, por isso, torna-se
díficil de saber quando. É um pouco como naquela história do cesto das maçãs...
q
A. (interrompendo). em que há maçãs podres e maçãs boas e, às tantas, já não se consegue distingui-las.
1/8
2. C V@. Pois, e o mesmo acontece com os sentidos. Mas não é só isso. Quando sonhas, avo, sonhas
com o quê?
A.: Bem,., sonho com as coisas que acontecem e que vejo quando estou. acordada. Até cheguei a
lembrar-me de onde estavam os meus óculos, quando estava a dormir!
C V: Então, agora dizes-me: o que achas rnais real - o que descobres a dormir ou acordada?
A.: Eb... pergunta díficil. Apanhaste'-me de surpresa. No caso dos óculos foi a dormir..., mas já
sonhei coisas -que não tinham nem pés nem cabeça.- e que nunca, poderão acontecer.
C V: Bingo, avó estás a ficar mais brilhante! Mas ainda falta outra, a da Razão.
A--- Não, não, espera!... Essa eu sei! Estou a começar a entrar no teu raciocínio. A voz da
experiência di:k-me que atéo homem mais sábio se pode enganar quando pensa com a Razão.
C. V: Bravo, estou a gostar. Até pareces o Sr. Descartes!
A..- Obrigado, filhinha. Ainda não viste nada! Continua.
C, V: Portanto, a dúvida é o método do meu "filósofo" para chegar ao conhecimento
verdadeiro a que ele tanto quer chegar.
A. Vá, não empates, diz,logo.
C. V: Calma!... Então, se estou a duvidar, estou a pensar, certo?!
A.: Certoooo ... ...
C. V: Então, ara pensa r tenho de ser alguém, isto é, tenho que existir. Agora repara p
bem na frase, eh!: segundo o princípio metafisico cartesiano, "Penso, logo existo". Percebeste,
percebeste?
',4.. Uau!j! Ele até percebe alguma coisita disto...
C. V: E tu nem sabes como é que ele chegou a isto... Não foi por nenhuma dedução rasca! Porque
senão o "Penso, logo existo" teria como base conhecimentos que na ;o foram sujeitos à
dúvida, portanto falsos. Consequenternente, também este principio seria falso.
A.: Não me digas que foste tu a dizer-lhe...
C., V: Oh vó, também não exageres. Foi pela intuição. Não faças.essa cara, que eu explico. O
cogito, o princípio que acabei de dizer, teve origem na intuição, pois é
2/8
3. 2 -
impossível afirmar qualquer outro sem, implicitamente, afirmar este, visto que ao querermos
conhecer algo, é preciso pensar e, para isso, existir. "Capice"?!
A.:@ Até aqui...
C V: Depois, o Sr. Descartes examinou o que é e apercebeu-se que só apreende a sua existência,
pensando, e que mesmo quando supõe que o seu corpo e o mundo que o rodeia não existe, está a
pensar, portanto a existir. Por outras palavras, vai concluir que é um ser pensante e só as ideias
claras e distintas como o "cogito, ergo sunv 5 são verdadeiras. Verdade é evidência!
A.: Não é preciso ser filósofo para chegar até aí. Isso é básico!!! No entanto, se ele não tem corpo...
C V: ... é porque, como ser pensante que existe apenas para pensar, tem alma.. Basta deixar de
pensar para já não ter a certeza da sua existência. Ao mesmo tempo, apercebeu-se que é imperfeito.
A.: Como já diz o provérbio: "Nada nem ninguém é perfeito", não é?!
C. V: Mas como é que sabes que algo é imperfeito?
A.. Ora, ora... Eu sei o que é ser perfeito e, portanto, comparo e...
C V: Não é preciso mais... Isso basta para o que te quero mostrar. Repara...
A..- Repara mas és tu... Tens é que ver se deixas essa mania de me interromper. Isto não
é propriamente a casa do Sr. Descartes... Como eu estava dizendo...
C. V: Como EU estava dizendo, tanto tu, avó, como eu, o Sr. Descartes e todos os homens, temos
noção do que é perfeito, ternos a ideia de perfeição. Mas, como tu própria disseste, não somos
perfeitos, pois não?
A.: Não e o que não faltam são provas disso. Até esse teu Sr., Descartes não é perfeito ao passar a
vida a duvidar de tudo e todos... Chega ao cúmulo de duvidar da sua própria existência, onde é que
já se viu...
C. V: Oh 'vó... A dúvida é, realmente, o maior símbolo da nossa imperfeição... Mas como é que
explicas a existência em nós da ideia de perfeito?
3/8
4. A.: Bem, isso não pode ter surgido do nada, pois deste nada surge... Mas não terá sido o mesmo
ser a criar o Mundo?
C. V: Segundo o Sr. Descartes, nós, homens, temos alguma coisa de perfeito em nós, por isso,
podemos ter sido nós próprios a dar origem ao mundo exterior. Basta pensares que, se o inundo
não existe mesmo, ao acharmos que ele existe, este não passa de fruto -da nossa imaginação, logo
somos nós a criá-lo... Mas o Sr. Descartes não fica por aqui com as suas reflexões, pois quer
mesmo saber de onde surgiu a ideia de perfeição.
3 -
A.: Ob netinha, despacha-te que tenho que ir fazer o almoço e, pelo terna a que a conversa chegou,
ainda te vais demorar algum tempo. E não te esqueças que estou à espera de visitas...
C V.: O que é preciso é calma... O Sr. Descartes também gosta de ter tempo para expôr as suas
conclusões... Bem, voltando à "vaca fria", a ideia do ser perfeito, como disseste, não pode,
segundo o Princípio da Razão Suficiente, ter 1 surgido do nada. Ao mesmo tempo, se atentarmos
no princípio de causa-efeito, isto é, no princípio da adequação causal, facilmente nos
apercebemos, e muito bem, que não pode haver menos perfeição na causa do que no efeito.
A.. Logo, esse ser perfeito é que está na origem de tudo... Então só pode ter sido Deus, ou conheces
algum ser mais perfeito?!
L_É@@ É precisamente a essa conclusão que o Sr. Descartes chegou!
A.: Eu sou gênio!
C V: Sem comentários... Para-o Sr. Descartes, foi Deus quem colocou em nós a ideia
de perfeição, já que é ele o único a reunir as outras perfeições que o meu filósofo e nós
conhecemos, mas que nem, por isso, possuímos. Quando digo perfeições, estou a referir- me à
infinidade, eternidade, imuiabilidade, omnisciência e omnipotência de Deus.
A.: Não é preciso ser muito inteligente para saber essa definição de Deus... até um ateu sabe isso.
Mas esqueceste-te de outra característica, a existência.
C V: Claro, mas isso está implícito na ideia de perfeição. Já viste o que é ser perfeito e não existir?
Isso era o maior dos defeitos, a maior das imperfeições...
A.: Para variar, tens razão. Não andaste a beber, pois não?!
4/8
5. C V: Ob, 'vó, francamente... Estou a falar de um assunto sério... Caso não tenhas reparado, estou a
transniitir-te os meus conhecimentos, afim que tu também possas atingir o conhecimento
verdadeiro!
A.. Segundo o que disseste não há muito, deve-se duvidar de tudo, até do que estás para aí a dizer,
ou estás te a esquecer da radicialidade da dúvida?
C. V: Estás no teu livre direito de duvidar disto tudo... No entanto, não te livras tão depressa de
mim... Falta ainda uma prova da existência de Deus...
A.: Prova?! Ainda não me disseste nada de novo, praticamente!!!
C V.: Vou fazer de conta que não ouvi... A outra prova que o Sr. Descartes apresentou no tal
livro, foi a do triângulo. Senão repara: um triângulo tem sempre três lados, cuja soma dos lados é
sempre 180', não é?!
4 -
A.. Certo, grande novidade. É uma figura geométrica perfeita e que não muda, ou já viste um
triângulo com quatro lados?!
C V: Bravo, exactamente onde eu queria chegar! No entanto, é-te bem claro que um triângulo
pode não existir na realidade, ou encontras por aí montes de triângulo em cada esquina...
Não,'porque a existência dos mesmos não está incluída na ideia de triângulo...
A.: Pode ser da idade, mas não percebi assim muito bem... Para além disso, essa conversa parece-
me conhecida de algum lado...
C V: Não é dificil... Ao dar-se a definição de triângulo, não dizes: é uma figura geométrica com
três lados, cuja soma dos ângulos é 180' e que existe, certo?
A.. Ali, já percebi. Não faz parte da essência do triângulo a existência do mesmo... Mas o que é
que isso tem a ver com a existência de Deus? Na definição, ou essência se preferires, de- Deus, a
existência de Deus é uma das suas características, ou estou enganada?
C. V: Não, tu até sabes as coisas quando prestas atenção... Olha ali, acho que a tua visita acaba de
chegar...
M.. Olá, avozinha... Então, o que tem feito? Olá Capuchinho Vermelho, como está o Sr.
'Descartes? Suponho que muito atarefado e cheio de saudades tuas... Ouvi dizer que ele
5/8
6. sem ti não é ninguém...
C V: Pronto, chegou este para me estragar a conversa...
A.: Senta-te, mas prepara-te que ela hoje está com a "pica" toda... Está aqui com unias conversas
acerca da existência de Deus e com triângulos... Não sei se estás a ver, uma conversa muito
cartesiana!
M.: Bem me parecia que estava um pouco de fumo na sala quando entrei, mas...
C V.: Grgrumm!!! Posso continuar,ó, ó... soneca? Acho bem ... Portanto, vou agora explicar-
vos o inatismo cartesiano.
M..'Inatismo cartesíano?! É pá, esta conversa está interessante ... Pena ter perdido o início...
C V: Continuando, para Descartes, a existência de Deus tem por base a sua teoria das Ideias. Isto
quer dize@ que todos nós temos, ao nascer, sementes da verdade em nós, isto é, ideias inatas que
nos foram colocadas na mente por Deus. Estas ideias são claras e distintas, lo o evidentes e,
portanto, tudo o que extrairmos correctarnente delas, através
9
da razão, é verdadeiro. A ideia de perfeição de que te falei à pouco também é uma ideia inata
colocada em nós por Deus para acedermos ao conhecimento verdadeiro, à ciência certa.
5 -
Afi, então Deus colocou, em nós a ideia de perfeição para concluirmos, como o teu Descartes, a
existência d'Ele... Mas, não sei, esse discurso todo só para dizer isso...
M.: Calma, calma, a ver,se a gente se entende. Estão a falar do 'Discurso do Método"? Bem me
parecia ter ouvido esta conversa nalgum lado... Ontem, encontrei, por acaso, o Sr. Descartes e ele
falou-me das bases da sua metafisica, ou melhor, da sua Razão Metafisica, que se fundamenta em
Deus, no ser perfeito, não enganador. Logo, segundo o mesmo, as ideias que colocou na nossa razão
têm necessariamente de ser verdadeiras.
A.: Outro "fan" do Descartes, suponho...
M.. Depois de ter remetido sobre o que ele me disse, que, diga-se de passagem, não me convenceu
quase nada, cheguei a algumas conclusões próprias.
6/8
7. É agora que a conversa vai aquecer... Acho que não almo çamos hoje ...
M.. Cheguei, por exemplo, à conclusão que ele faz um círculo vicioso ... Então, não é que ele
tenta provar a existência de Deus através das ideias inatas que foram colocadas em nós por Deus?!
A.. É agora, é agora...
C. V: Não percebeste é nada dis@to, isso sim!
M..- Enganas-te redondamente... O que ele diz é o mesmo que dizer: "As sementes da
verdade existem porque Deus existe"; 4 seguir, vai dizer "Deus existe porque em mim existem
ideias inatas"... Vais negar que não é dizer o mesmo?
A.: Acho, netinha, que ele... até tem razão no que diz. Porque é através das ideias evidentes que ele
prova a existência de Deus, não é?!
M.: Escusas de ficar amuada... porque há mais. Ao dizer que Deus existe pela evidência da ideia da
sua existência vai dar ao mesmo...
A.. Agora é que começo mesmo a duvidar do que me disseste... Esse Descartes, afinal é mais tótó
do que eu pensava...
C V: Oh 'vó! Até tu estás contra mim?
A.: Eu não estou contra ti, mas dou-lhe razão. Até já ouvi dizer que a existência não é um
predicado, como o Sr. Descartes fez a determinado momento; só ela é que pode ser alvo de
predicação.
M.. Logo, facilmente concluímos que ele fala muito, mas não prova nada. Já outros filósofos, como
Sto. Anseimo, fizeram o mesmo erro. Mas, também, pudera... querem provar a existência de algo
tão complexo como é Deus, se este existir mesmo...
- 6 -
A;: Pelos vistos, o Sr. Descartes vai ter de trabalhar mais uni pouco... Ai as horas, tenho que ir fazer
o almoço... Esqueci-me completamente das horas...
C. V: Vocês são mas é uns cépticos e não querem perceber nada, pronto. Vou-me embora e acabou-
se... Tenho um compromisso e mais que fazer...
7/8
8. M.: Deixa-me adivinhar: vais-te encontrar com o Sr. Descartes para um almoço a dois...
L.@ Quanto a um almoço a dois, até tens razão... mas vai ser com a minha mãe que está muito
adoentada... Acabou-se a conversa! Vou-me embora. Tchau, avó!
A.: Adeus, netinha e cuid ado com o Lobo-Mau... A estas horas está ele com fome... Adeus, até para
a semana!
M.: Estava a ver que nunca mais se ia embora... Até que enfim... Mas quanto ao almoço a dois, cá
entre nós, continuo a duvidar do que ela disse...
FIM
8/8